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INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS Caroline Silveira Bauer A escola dos Annales Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Identificar o surgimento dos Annales da primeira geração. Relacionar as transformações conceituais promovidas pelos Annales da segunda geração. Analisar os impactos e contribuições da escola dos Annales para a história. Introdução Neste capítulo, você vai conhecer a produção de um grupo de historiadores conhecida como escola dos Annales. Esses historiadores elaboraram reflexões que transformaram a historiografia. Seu legado inclui práticas ainda empre- gadas na compreensão e na escrita da história. Os Annales costumam ser apresentados em diferentes “gerações”, que demarcam momentos em que certos objetos históricos foram mais privilegiados, ou em que a gestão da revista esteve sob responsabilidade de determinado historiador. Em um primeiro momento, você vai estudar as práticas historiográficas dominantes na França quando Marc Bloch e Lucien Febvre criaram a revista Annales. Também vai ver as modificações que esses pesquisadores propunham para a escrita da história. Posteriormente, você vai conhecer as mudanças ocorridas na segunda geração da revista, já sob direção de Fernand Braudel. Por fim, você vai refletir sobre o legado das inovações propostas pelos Annales para a disciplina histórica. A revista Annales e a renovação do campo historiográfico Como você sabe, a historiografi a francesa possui grande infl uência na con- formação da disciplina histórica em diferentes países americanos e europeus. Boa parte das mudanças nas práticas historiográfi cas experimentadas ao longo do século XX provém de um grupo de pesquisadores associado à revista Annales d’Histoire Économique et Sociale (Anais de História Econômica e Social), criada em 1929, em Estrasburgo. Como o próprio nome da revista explicita, seus editores e fundadores, Marc Bloch (1886–1944) e Lucien Febvre (1878–1956), procuravam reunir trabalhos de pesquisadores que, como eles, se dedicassem mais às dimensões econômicas e sociais da sociedade do que à dimensão política, por exemplo. Esse grupo ficou conhecido como escola dos Annales, terminologia uti- lizada para enfatizar as concordâncias e semelhanças de abordagens de um grupo que também possuía divergências internas e interesses particulares de pesquisa. Considere o seguinte: Essa escola é, amiúde, vista como um grupo monolítico, com uma prática histórica uniforme, quantitativa no que concerne ao método, determinista em suas concepções, hostil ou, pelo menos, indiferente à política e aos eventos. Esse estereótipo dos Annales ignora tanto as divergências individuais entre seus membros quanto seu desenvolvimento no tempo. Talvez seja preferível falar num movimento dos Annales, não numa “escola” (BURKE, 1991, p. 8). Como encontrar unidade entre historiadores como Lucien Febvre, Marc Bloch, Fernand Braudel, Georges Duby, Jacques Le Goff e Emmanuel Le Roy Ladurie, ou ainda entre outros profissionais que em diferentes momentos se aproximaram da revista, como Ernest Labrousse, Pierre Vilar, Maurice Agulhon e Michel Vovelle (BURKE, 1991)? Para responder a essa pergunta, você deve considerar que, embora a expressão “escola dos Annales” tenha se consolidado para se referir a esse grupo de histo- riadores europeus, havia muitas diferenças entre eles. Isso acabou configurando diferentes momentos — que são chamados de “gerações” — com características que garantem certa identidade em comum. Assim, talvez fosse melhor se referir a esse grupo como “movimento” ou “círculo” do que como “escola” propriamente dita, justamente porque a ideia de “escola” pressupõe uma unidade conceitual, metodológica e teórica que não existiu (BARROS, 2012). No entanto, havia certa unidade entre os historiadores. Tal unidade era conferida: a) pelas condições políticas e sociais do momento em que os historiadores do grupo escreviam; b) pelos objetivos a que eles se propunham e pela sua relação com as práticas historiográficas hegemônicas naquele momento; c) porque eles compartilhavam alguns preceitos em relação à epistemologia da história. A escola dos Annales2 Em relação à conjuntura política e social em que a revista foi pensada, autores salientam que a sua aparição em 1929, ano da grande crise econômica mundial, não se trata de uma coincidência. Fenômenos sociais como a deflação, o desemprego e a recessão em nível global, oriundos das dinâmicas próprias do pós-Primeira Guerra, fizeram com que os pesquisadores se interessassem por aspectos mais relacionados aos âmbitos econômicos e sociais, em detrimento dos políticos (DOSSE, 1994). Também não é uma coincidência a mudança na abordagem de grandes fatos realizados por grandes homens ou por grandes nações. Passou-se para uma perspectiva que se vinculava mais a conjunturas e estruturas com mais ou menos duração e efeitos nas sociedades. Essa mudança ocorreu, segundo Dosse (1994), devido aos traumas decorrentes da Grande Guerra, que afetaram diretamente a escrita da história realizada até aquele momento na Europa, obrigando os profissionais a se questionarem também sobre o que significava ser historiador e produzir história. Em relação ao conjunto das ciências humanas e sociais, era necessário questionar o evolucionismo e as ideias de progresso, que pareciam ter fracassado com os rumos da humanidade no início do século XX. Do ponto de vista historiográfico, no momento do lançamento da revista Annales, havia predominantemente uma forma de se escrever história muito influenciada por aspectos oriundos do positivismo, da chamada “escola me- tódica” e do “historicismo”, aos quais os Annales se contrapõem. Contudo, você deve atentar a duas questões bastante importantes. Primeiramente, os Annales não foram os primeiros a apresentar críticas a essa forma de escrita da história. Outros historiadores contemporâneos ao lançamento da revista já haviam sublinhado os limites dessa abordagem historiográfica. Além disso, os Annales não conseguiram romper definitivamente com preceitos das escolas predecessoras, o que também não significa nenhum demérito em suas análises. A seguir, você vai conhecer melhor as características dessa forma de narrar a história que marcou o final do século XIX e o início do século XX. No campo historiográfico franco-germano do século XIX e do início do século XX, predominavam preceitos oriundos do positivismo, da chamada “es- cola metódica” e do “historicismo”. A concepção de história como uma “ciência positiva” alimentava a crença de que os historiadores poderiam “controlar” a subjetividade, estabelecendo a verdade dos fatos relatados ao se manterem fiéis ao que os documentos históricos — majoritariamente escritos e oficiais — registravam como “história”. Assim, contra o cientificismo objetivista ou o historicismo de Langlois, Ranke e Seignobos, Lucien Febvre e Marc Bloch afirmaram a presença e a influência do historiador na escrita da história. Afinal, ele escolhe seus temas de pesquisa em função de preocupações que 3A escola dos Annales partem de seu momento presente. Além disso, interroga as fontes a partir de determinadas problemáticas. Os Annales, dessa forma, se opunham à maneira como era realizada a crítica documental: de uma história-relato, factual, nar- rativa, pretendiam constituir uma história-problema, que não se sustentasse na ideia de que a história estava nos documentos, bastando copiá-los. Há, portanto, uma recusa ao relato factual e político, de cunho nacionalista, que caracterizava a escrita da história. Também há uma profunda modificação em relação às concepções de passado e presente na historiografia. Veja: Uma das inovações, essencial, dos Annales da época é o rompimento com a concepção puramente passadista do discurso histórico, a correlação passado e presente na construção de uma história que tenha por campo de estudo não somente o passado mastambém a sociedade contemporânea. Enquanto a escola historicista considerava a prática historiográfica, em um percurso cientificista, desvinculada do presente, Lucien Febvre convida o historiador a inspirar-se nos problemas colocados pelo tempo presente, no qual ele vive, pensa e escre- ve. A interrogação do passado a partir do presente tem para os Annales valor heurístico. [...] O presente ajuda a pesquisa do passado e permite valorizar uma história-problema e enriquecer o conhecimento do passado. A partir desse valor heurístico do presente, os Annales defendem uma concepção relativista do dis- curso histórico, pois devido ao fato de a história estar mergulhada em seu tempo e imersa nos problemas do presente, temos como resultado uma construção do tempo histórico, dos clarões, dos recortes cujos limites são aqueles mesmos que permitiram as pesquisas. Trata-se, portanto, de uma construção a ser cada vez descoberta no momento e no lugar em que ela foi enunciada. Cada época constrói sua representação do passado conforme suas preocupações (DOSSE, 1994, p. 40). Para além das características específicas do campo historiográfico, as abordagens sugeridas pelos Annales se basearam também na renovação de outras áreas do saber. As ciências sociais, por exemplo, passaram por transfor- mações muito significativas, com novas interrogações oriundas da linguística, da psicanálise e, principalmente, da geografia e da sociologia (DOSSE, 1994). De que modo essas transformações, que configuraram uma “revolução científica”, afetaram a perspectiva do historiador? De acordo com Dosse (1994, p. 20), Lucien Febvre e Marc Bloch utilizam-na como argumento contra a história historicizante que fetichiza o documento escrito a ponto de fazer dele a expli- cação histórica. Eles veem na teoria das probabilidades, na teoria da relativi- dade da medida temporal e espacial, a possibilidade de a história aspirar, da mesma maneira que as ciências ditas exatas, ao estatuto de ciência, contanto que critique os testemunhos do passado, elabore fichas de leitura, teste as hipóteses, passe do dado ao criado através de um percurso mais aberto e ativo. A escola dos Annales4 Em síntese, você pode considerar as seguintes características das escolas históricas predecessoras dos Annales, contra as quais os historiadores da revista direcionavam suas críticas: a) a história dizia respeito essencialmente à política, descrevendo feitos e acontecimentos, segundo a ação de “grandes homens”; b) os historiado- res (tradicionais) pensavam a história basicamente como uma narrativa dos acontecimentos; c) fornecia (na história tradicional) a visão de “cima”; d) a história seria baseada nos documentos; e) fornecia a visão dos “documentos oficiais”; f) ser objetiva (ROIZ, 2008, p. 218–219). A identidade dos Annales, portanto, constrói-se a partir do rechaço às abordagens conceituais, epistemológicas, metodológicas e teóricas dominantes no campo da história. Assim, sugere renovações na prática historiográfica ao conceber a história de uma perspectiva total, com predileção a abordagens econômicas e sociais, escrita a partir de problemáticas e interrogações feitas às fontes. Além disso, a ideia era que a história se utilizasse da interdiscipli- naridade para contemplar temáticas anteriormente desprezadas. Por meio das análises de Burke (1991) e Barros (2012), é possível elencar algumas diretrizes que guiaram os autores que participaram desse projeto. Tais diretrizes acabaram por configurar as características dessa “escola histórica”. Veja quais são essas diretrizes: substituir a tradicional narrativa de acontecimentos por uma história-problema; dedicar-se à história de todas as atividades humanas e não apenas à história política; realizar estudos interdisciplinares por meio das contribuições da geografia, da sociologia, da psicologia, da economia, da linguística, da antropologia social e de outras áreas; expandir a compreensão de “fonte histórica”; enfatizar aspectos do coletivo, em uma crítica a abordagens individu- alizantes ou biográficas; ressaltar aspectos estruturais em detrimento de análises factuais; atentar à espacialidade; desenvolver novas formas de compreender a temporalidade histórica e de tratar o tempo na história, reconhecendo a existência de múltiplas durações, ritmos, etc.; conceber a história como uma ciência em construção, devido às cons- tantes interrogações elaboradas pelos historiadores desde o presente. 5A escola dos Annales Costumeiramente, o movimento historiográfico associado à revista Annales é dividido em três fases. A primeira se estende do surgimento da revista até, aproximadamente, 1945. Essa fase configura um movimento pequeno, mas com posicionamentos bastante contundentes em relação às práticas historio- gráficas dominantes no campo, que se caracterizavam por uma predileção em relação aos eventos políticos, à agência dos “grandes homens” e a determinada concepção espacial e temporal, conceituada por Bourdé e Martin (1983, p. 119) como “[...] escola positivista [...]”. Após a Segunda Guerra Mundial, esses historiadores tornaram suas aborda- gens hegemônicas nas universidades europeias, introduzindo novos conceitos e metodologias na historiografia, configurando a segunda fase do movimento. A terceira fase, iniciada no final dos anos 1960, é marcada pela fragmentação. Subgrupos se direcionam a interesses particulares de pesquisa, reavaliando as premissas originais do movimento e recuperando com renovações, por exemplo, a história política e a narrativa. Portanto, essas fases são marcadas pela heterogeneidade de métodos, práticas e temas de pesquisa. A segunda geração ou a “era Braudel” Após o término da Segunda Guerra Mundial, se confi gura novamente uma conjuntura que se assemelha ao pós-Primeira Guerra e que obriga os histo- riadores a repensarem seu campo e suas práticas. Isso não se deve apenas aos traumas da guerra e à reconstrução dos países, mas também aos processos de descolonização da África e da Ásia, à Guerra Fria e à revolução tecnológica (DOSSE, 1994). Essas transformações culturais, econômicas, políticas e sociais exigem novas abordagens e categorias históricas, e essas demandas não deixariam de afetar o grupo dos Annales. De acordo com Barros (2012, p. 258): [...] trata-se de um novo momento, e de uma nova configuração para possíveis articulações. O contexto geral é o de uma expansão econômica, à qual muitos economistas do futuro referir-se-iam como “anos de ouro”. As Ciências Sociais conhecem nesta época um novo impulso, afirmando-se em algumas delas uma corrente teórica que ficaria conhecida como Estruturalismo. Nesse contexto, a revista muda de nome, transformando-se em Annales: économies, societés, civilisations (Anais: economias, sociedades, civilizações). Em um primeiro momento, as publicações desenvolvem uma predileção por A escola dos Annales6 análises econômicas, centrando-se nos séculos XVI e XVIII. Há, aqui, um duplo abandono de aspectos da primeira geração: o temático e o cronológico. Estatísticas, preços, registros paroquiais, crises demográficas e de subsistência são temas que perpassam as obras de historiadores. É o caso de Georges Duby, Emmanuel Le Roy Ladurie e Pierre Vilar. Portanto, há uma distinção em relação à geração anterior por interesses vinculados a temas demográficos, debates entre estrutura e conjuntura e métodos históricos (principalmente pela história serial). Contudo, não se pode afirmar que haja homogeneidade entre todos os historiadores: houve aqueles que se aproximaram mais do estruturalismo; outros, do marxismo; e houve ainda aqueles que seguiram com a proposta inicial de pensar as mentalidades. Parece haver consenso entre os historiadores da historiografia de que Fernand Braudel (1902–1985) dominou a segunda geração dos Annales, prin- cipalmente após a morte de Febvre. Muitos chegam a usar a expressão “era Braudel”, que teria se estendido até 1968.Foi nessa fase, também, que houve a institucionalização do grupo, com sua vinculação ou criação de diversos espaços universitários. Em sua obra O Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Filipe II, de 1949, Braudel desenvolve reflexões sobre a cronologia, a duração, os ritmos e as temporalidades na história. Ele afirma que existem aspectos do social marcados por uma longa, por uma média e por uma curta duração, analisando três temporalidades distintas de seu objeto de pesquisa. Primeiramente, haveria uma “história quase imóvel”, a relação dos homens com o espaço geográfico; posteriormente, uma história com outra duração, que caracterizaria conjun- turas, relativa à economia e à sociedade; por fim, Braudel dedica-se a uma história mais factual, de dimensões quase individuais, com mudanças mais frequentes. Braudel afirma, dessa forma, a possibilidade de uma história total, em que tudo — inclusive o que parece imóvel — está sujeito a mudanças. Conheça mais sobre a obra O Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Filipe II, de Fernand Braudel, assistindo ao vídeo disponível no link a seguir. https://youtu.be/PXzOxfvaa3k 7A escola dos Annales O “personagem principal” da obra de Braudel, diferentemente do que se poderia supor, não é Felipe II, e sim o próprio mar Mediterrâneo, interrogado a partir de uma cronologia que também se apresenta bastante inovadora: a obra abarca o “longo século XVI” (1450–1650). A estrutura de organização dessa obra revela uma concepção do tempo e da temporalidade bastante inovadora, sintetizada na Figura 1, a seguir. Figura 1. As durações temporais e as suas respectivas categorias históricas. A Figura 1, que representa uma síntese da inter-relação das durações temporais e suas respectivas categorias históricas para Braudel, evidencia que existem três temporalidades: a longa, a média e a curta. A partir dessa relação, é possível afirmar que uma mesma sociedade experimenta estágios diferentes do tempo, de acordo com o que está sendo estudado. Para Braudel, o efêmero ou factual seria o espaço em que ocorrem experiências de indivíduos, bem como insurreições e levantes; tal espaço possuiria curta duração. As conjunturas demarcariam ciclos econômicos e regimes políticos, por exemplo, e teriam uma duração mediana. Já a longa duração seria a temporalidade das continuidades e das permanências, daquilo em que não se percebe a mudança, das estruturas. A segunda geração do movimento dos Annales também recebeu con- tribuições de outros historiadores, que se dedicaram a explorar o método quantitativo, principalmente durante os anos 1950 e 1970. Foi o caso de Ernest Labrousse, que associou o método à história econômica, ou então aos trabalhos de demografia histórica. Além disso, há as obras de Georges Duby, historiador medievalista que se dedicou à organização da obra História da Vida Privada. A escola dos Annales8 De todas as tendências derivadas da segunda fase dos Annales, a que ganhou mais destaque foi a história quantitativa, juntamente à história demográfica. Ambas são oriundas de debates e reflexões sobre o crescimento exponencial da população no planeta na década de 1950. Como resultado dessas reflexões, posteriormente ocorreu o desenvolvimento da história social e da história regional. Impactos e contribuições para a história A infl uência dos Annales foi extensa e profunda. Sem dúvidas, o grupo con- tribuiu para a renovação formal da disciplina histórica, sugerindo novos pro- blemas, novos métodos e novos campos de estudo. Contudo, sua infl uência na historiografi a de outros países foi diversa, com algumas rejeições onde a tradição anglo-saxônica era predominante. Veja o que afirma Burke (1991, p. 87): Da mesma maneira que se concentraram sobre a França, os historiadores dos Annales voltaram sua atenção sobre um período, o chamado “início da idade moderna”, de 1500 a 1800, mais especificamente o “antigo regime” na França, que vai de mais ou menos 1600 a 1789. Sua contribuição para os estudos medievais foi também notável. Como já vimos, alguns historiadores da Antiguidade foram companheiros de viagem dos Annales. Para além de algumas limitações do ponto de vista cronológico, espacial ou temático, existe uma contribuição do ponto de vista epistemológico que modificou a disciplina histórica. De acordo com Barros (2012, p. 51–52), “[...] à parte as diferenças da recepção dos Annales no espaço historiográfico europeu, pode-se dizer que o movimento dos Annales abriu inquestionavel- mente um novo capítulo na história da historiografia, quer desenhemos suas realizações com cores mais vivas ou com tonalidades mais discretas [...]”. Para esse autor, os Annales, juntamente ao materialismo histórico e à hermenêutica historicista, constituem uma das influências mais impactantes e duradouras sobre a historiografia ocidental (BARROS, 2012). Do ponto de vista conceitual, os Annales contribuíram com novos conceitos ou novas abordagens para categorias já utilizadas, tais como “[...] conjuntura [...]”, “[...] civilização [...]”, “[...] etno-história [...]”, “[...] história global [...]”, “[...] imaginário [...]”, “[...] história-problema [...]”, “[...] história quantitativa 9A escola dos Annales [...]”, “[...] história serial [...]”, “[...] história total [...]”, “[...] longa duração [...]”, “[...] mentalidade [...]”, etc. (BURKE, 1991, p. 90–92). Além disso, considere o seguinte: Olhando o movimento como um todo, percebemos uma grande quantidade de livros notáveis aos quais é difícil negar o título de obras-primas [...]. Devemos lembrar também as equipes de pesquisa que foram capazes de levar adiante empreendimentos que demandariam muito tempo a um único indivíduo para levar qualquer deles a bom termo. A longa vida do movimento permitiu que os historiadores se apoiassem, através de suas obras, mutuamente (ou tam- bém reagissem contra). Nomear apenas as mais importantes contribuições da história dos Annales significa escrever uma lista por si só impressionante: história-problema, história comparativa, história psicológica, geo-história da longa duração, história serial, antropologia histórica. Da minha perspectiva, a mais importante contribuição do grupo dos Annales, incluindo-se as três gerações, foi expandir o campo da história por diversas áreas. O grupo ampliou o território da história, abrangendo áreas inesperadas do comportamento humano e grupos sociais negligenciados pelos historiadores tradicionais. Essas extensões do território histórico estão vinculadas à descoberta de novas fontes e ao desenvolvimento de novos métodos para explorá-las. Estão também associadas à colaboração com outras ciências, ligadas ao estudo da humani- dade, da geografia à linguística, da economia à psicologia. Essa colaboração interdisciplinar manteve-se por mais de sessenta anos, um fenômeno sem precedentes na história das ciências sociais (BURKE, 1991, p. 89). Os aportes do movimento dos Annales foram importantes para a superação dos preceitos da “escola metódica”, principalmente em relação às concepções de “acontecimento” e “evento” e à determinação do que seria um “fato histórico”. Aróstegui (2001) afirma que essa seria a mais importante e mais duradoura contribuição epistemológica da escola. Ele ressalta o papel que o historiador desempenha na construção dos “fatos históricos” ao desenvolver suas análises. Outra contribuição do movimento foi enfatizar o caráter da problematização da pesquisa histórica, em detrimento da “história narrativa”: os historiadores deveriam se preocupar em resolver problemáticas mais do que em narrar epi- sódios. Ainda que, posteriormente, a narrativa histórica tenha se revalorizado, essa retomada está permeada pelas contribuições historiográficas desenvolvidas pelos Annales e por outras correntes. O movimento dos Annales também chamou a atenção para a utilização de novas fontes para além das chamadas “fontes oficiais”, o que permitiu o desenvolvimento de novastemáticas de pesquisa. Os Annales foram, em certa A escola dos Annales10 medida, responsáveis por uma mudança na compreensão do que seriam fontes históricas e das formas de realizar a crítica documental (ARÓSTEGUI, 2001). Este, sem dúvida, pode ser considerado um dos mais significativos legados dos Annales para a disciplina histórica: a ampliação da definição de fonte histórica e os procedimentos para realizar sua crítica. Veja: Os Annales e os materialistas históricos abriram possibilidades para renovações no pensamento e na pesquisa histórica. A partir de então, o fato histórico deixou de ser entendido como dado de forma verídica e real pelo documento; ele precisaria ser construído pelo historiador a partir de uma conjunção de fatores presentes e passados. Ou seja, o documento não era mais o portador da verdade irrefutável sobre o passado. Nesse sentido, também a ideia do que era fonte histórica se am- pliou e o documento deixou de ser apenas o registro político e administrativo, uma exclusividade de povos com escrita. Para a história interpretativa não importava a veracidade do documento, mas as questões que o historiador lhe remetia. Desde então, a fonte histórica passou a ser construção do historiador e de suas perguntas, sem deixar de lado a crítica documental, pois questionar o documento não era apenas construir interpretações sobre ele, mas também conhecer sua origem, sua ligação com a sociedade que o produziu (SILVA; SILVA, 2009, p. 159). A renovação temática nas investigações históricas também se deveu à abertura a outras disciplinas, como a antropologia, a economia, a geografia, a sociologia e a psicologia. E no Brasil? De acordo com Barros (2012, p. 40): A Escola dos Annales, em alguns países como o Brasil, alcançou quase a po- sição de um mito, no sentido popular desta expressão. Os historiadores dessa escola estenderam sobre a historiografia brasileira uma influência só compa- rável a algumas correntes do Materialismo Histórico, e, mais recentemente, à Micro-história Italiana. Muitos dos livros produzidos pelos historiadores dos Annales tornaram-se sucessos de vendagem entre os leitores brasileiros. No ambiente de estudantes e profissionais de História, alguns dos maiores nomes do movimento dos Annales deixaram muitos admiradores, e mesmo seguidores. Assim, é possível sintetizar o surgimento dos Annales como uma tentativa de aproximar os historiadores de outras áreas do conhecimento; problematizar deter- minadas práticas historiográficas dominantes naquele momento, principalmente aspectos do positivismo e da chamada “escola metódica”; e, por fim, utilizar novas fontes, novos métodos e, assim, explorar novas temáticas de pesquisa. Ao longo do século XX, as práticas historiográficas do grupo que se reunia em torno da revista Annales adquiriam hegemonia no campo da história. 11A escola dos Annales Paralelamente às práticas dos Annales, desenvolviam-se reflexões a partir do marxismo, da história social e da história econômica. Contudo, as mudanças do ponto de vista epistemológico afetaram também essas outras correntes teóricas, principalmente no que diz respeito à compreensão do que eram as fontes histórias e das críticas a que deveriam ser submetidas. ARÓSTEGUI, J. La investigación histórica: teoría y método. Barcelona: Crítica, 2001. BARROS, J. D. Teoria da história. Petrópolis: Vozes, 2012. (A Escola dos Annales e a Nova História, v. 5). BOURDÉ, G.; MARTIN, H. As escolas históricas. Mira-Sintra: Publicações Europa-América, 1983. BURKE, P. A Revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annales 1929-1989. São Paulo: USP, 1991. DOSSE, F. A história em migalhas: dos Annales à nova história. Campinas: Unicamp, 1994. ROIZ, D. S. A recepção da ‘Escola dos Annales’ na europa e nas américas: algumas reflexões. Akrópólis, Umuarama, v. 16, n. 4, p. 211-226, out./dez. 2008. SILVA, K.; SILVA, M. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2009. Leituras recomendadas BARROS, J. D. A escola dos Annales: considerações sobre a história do movimento. Revista História em Reflexão, Dourados, v. 4, n. 8, p. 1-29, jul./dez. 2010. BARROS, J. D. O campo da história: especificidades e abordagens. Petrópolis: Vozes, 2004. BLOCH, M. Apologia da história ou o ofício do historiador. 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