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Estudo de caso e resolução cultura,politica e antropologia

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Estudo de caso e resolução
Aluno = Demerval Alexandre Da Silva
RU= 2787354
Licenciatura em História
Disciplinas
1-História , política , economia e cultura na sociedade moderna
2-História , política , economia e cultura no século XIX
3-Relações entre História e antropologia – eletiva
1-História , política , economia e cultura na sociedade moderna 
O presente trabalho faz parte de um projeto mais amplo, do qual é também o primeiro fruto, intitulado "História cultural e história da educação: singularidades, relações e perspectivas". Em relação a esse projeto maior, este artigo representa a introdução teórico-metodológica, abordando a seguinte questão central: o que a história cultural tem a dizer com respeito à educação, tanto em geral quanto particulardamente? Por exemplo, a profissionalização docente, a temporalidade e a espacialidade escolar, o impacto da passagem da cultura ágrafa à alfabetização e outros âmbitos educacionais específicos. Tradicionalmente, a história ocupa-se, de um lado, com as bases materiais e sociais da existência humana, de outro, com as idéias mediante as quais os homens representam essa existência. Fruto de uma construção tipicamente moderna, que se inicia, como "atitude", no século XVIII, com as Luzes, e se consolida, como "disciplina científica", no século XIX, a história, desde esses momentos, bipartiu-se em dois grandes segmentos, um material-social (a economia, a política, a sociedade), outro ideal (as idéias, o pensamento, a filosofia, a literatura, as artes). Na Encyclopédie, de Diderot e d'Alembert, a "árvore do conhecimento" (publicada como anexo em Darnton, 1986, p. 270-273) possuía três ramos principais, o da memória, o da razão e o da imaginação. O primeiro correspondia ao domínio da história, também tripartido: história natural, civil e sagrada. A "história civil" é propriamente a que nos interessa, já que a "história natural" deixou o âmbito da memória, sendo absorvida pelo da razão, através das ciências ditas naturais (física, química, biologia), e a "história sagrada" secularizou-se e passou para o corpo da civil, sob a forma de história das religiões (instituições e idéias). Pois bem, a história civil dos enciclopedistas compreendia a "civil" propriamente dita e a "literária", correspondendo esta última ao segmento "ideal" acima referido. Portanto, já na "árvore" dos enciclopedistas há uma bipartição no campo da história (civil), cabendo a um dos hemisférios a memória dos feitos sociais, ao outro, a dos seus registros literários.
No século XIX a história se instituirá como ciência autônoma, passando por uma primeira fase hegeliana - a "história filosófica" de Hegel. "Renunciar a Hegel" é o título do terceiro tópico do capítulo segundo da História cultural de Chartier (1990). E é o que fizeram alguns historiadores germânicos do período, notadamente Leopold Von Ranke, agitando a bandeira do cientificismo. Ranke postulava a inteira submissão do historiador ao fato histórico, numa perspectiva de registro dos acontecimentos (res gestae). Ranke e seus contemporâneos assentaram as bases da "história científica", mas não contribuíram com uma historiografia específica que desse conta do domínio das idéias ou da cultura. Nesse recorte específico, o marxismo dos primórdios praticamente se absteve do campo, sob o forte impacto da denúncia de Marx e Engels ao idealismo alemão, em A ideologia alemã (1998), enquanto o positivismo multiplicava-se em obras que procuraram mapear as idéias em seu curso histórico, agrupando-as em "escolas" e "tendências". A história das idéias de viés positivista utiliza como referencial "externo" máximo a própria área das demais idéias, afins ou opostas, considerando-as como fontes de "influência" ou de "antagonismo" em um ou outro caso, sem considerar o contexto social histórico em que tais idéias foram geradas. Daí a crítica que sofrerá a partir dos anos 30 do século XX pelos historiadores da escola dos Annales, que considerarão tais idéias como "descarnadas". É no século XX que a história cultural, quer como história das idéias, quer como história intelectual, ou ainda como história cultural propriamente dita, irá eclodir, de início com um coquetel intelectual de idealismo, historicismo, positivismo e psicanálise. Na área do marxismo, as duas primeiras gerações após a morte de Engels, em 1895, ocuparam-se, de acordo com Fontana (1998), com sua "desnaturalização" e sua "recuperação" ante a expansão imperialista (p. 217 e ss.), deixando para os anos após 1930 - ou seja, para o período que se inicia com a grande crise do capitalismo mundial subseqüente ao crack da Bolsa de Nova Iorque em 1929, - o tratamento em profundidade da "questão ideológica". É a partir daí, da obra de Antonio Gramsci, Georg Lukács e dos teóricos da chamada Escola de Frankfurt, como Karl Korsch, que a área cultural passará a interessar seriamente ao pensamento marxista. Já no período posterior, que cobre todo o restante do século XX, de 1930 até nossos dias, podemos vislumbrar duas fases, a primeira indo até aos anos 70, com uma presença destacada senão hegemônica do marxismo, a segunda abrangendo os anos 70, 80 e 90, 3 marcada pela crise da hegemonia acadêmica do marxismo e a ascensão, não só artísticocanônica, mas filosófica e mesmo historiográfico-cultural, do "pós-modernismo". No marxismo é preciso não nos esquecermos de Mikhail Bakhtin, cujo grande trabalho no campo da história cultural, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, influenciará decisivamente o italiano Carlo Ginzburg, autor de O queijo e os vermes (1987), ambos estudando, por vias diversas, a influência recíproca entre a cultura das classes subalternas e a cultura dominante. Um momento particularmente importante na evolução do marxismo no século XX, com repercussões significativas na historiografia cultural, foi o representado pela "escola inglesa", se assim se pode referir ao grupo quase sempre desconexo de pensadores e historiadores que gravitaram em torno do Partido Comunista Britânico, da revista Past and Present e da New Left Review, durante os anos 50 e 60 (ver Fontana, 1998, p. 244-246): Gordon Childe, Christopher Hill, Rodney Hilton, Eric Hobsbawm, Raymond Williams e, sobretudo, Edward P. Thompson. Da obra de Thompson podem destacar-se alguns títulos fundamentais para a história cultural e particularmente para sua leitura no âmbito do marxismo: A formação da classe operária inglesa (1987), A miséria da teoria (1981), Costumes em comum (1998) e A peculiaridade dos ingleses (1998). Declarando-se seguidor das pegadas de Gramsci, Thompson, na sua "Introdução: costume e cultura" ao livro Costumes em comum (op. cit.), mostra sua recusa a aceitar figurinos prontos para a análise histórica das classes sociais e seu mundo cultural. Na Alemanha, o legado do historicismo e do culturalismo de Dilthey e de Weber reponta na obra de diversos autores, dentre os quais um pelo menos teve grande influência nos meios acadêmicos brasileiros: Karl Mannheim, com sua Ideologia e utopia (1968) e O homem e a sociedade (1962). No entanto, seria imperdoável deixar sem citar a obra de Norbert Elias, O processo civilizador (1994), livro escrito em 1939, sendo-lhe acrescentada, quase 30 anos depois, em 1968, uma esclarecedora Introdução, que na edição brasileira aparece como anexo, no final do primeiro volume. O importante para a história cultural do trabalho de Elias está na confluência, para uma dada "configuração social", da sociogênese e da psicogênese, aqui incluindo-se a formação do sentimento. Na França, Les Annales d'Histoire Économique et Sociale, revista fundada em 1929 por Marc Bloch e Lucien Febvre, desempenha papel fundamental neste nosso itinerário, pois a Escola dos Annales é a precursora da História das Mentalidades, que por sua vez é o 4 canal que leva à História Cultural francesa contemporânea. Os fundadores Bloch e Febvre, com seu conceito de outillage mental ("utensilagem mental"?), anteciparam o estudo das mentalidades, apresentado em 1974 por Jacques Le Goff.Entre esses dois momentos, escorre a chamada "Era Braudel" (1956-1969), quando Fernand Braudel, autor, entre outros, do monumental Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII, publicado no Brasil em 1995, dirigiu a revista Annales e a 6ª seção da École des Hautes Études. Enquanto na França os desdobramentos que levariam contemporaneamente à história cultural passavam pelos Annales e depois pelas mentalidades, nos Estados Unidos essa mediação foi feita pela New History, de James H. Robinson, de 1912, e pela History of Ideas, de Arthur O. Lovejoy, que surgiu e ganhou legitimidade acadêmica nos anos 40 (ver "História intelectual e cultural", capítulo 10, de Darnton, 1990, p. 175 e ss.). A primeira, marcada pelo compreensivismo e presentismo histórico, e a segunda, com forte teor idealista, afastam a história intelectual do comprometimento com o contexto social. Essa tendência será revertida, nas três últimas décadas deste século, com os historiadores socioculturais, como Robert Darnton nos Estados Unidos e Peter Burke na Grã-Bretanha, ambos muito lidos e com boa penetração acadêmica no Brasil. A história cultural, no último quartel do século XX - dos anos 70 aos 90, - dentro de uma incrível pluralidade de denominações, de ênfases particularíssimas neste ou naquele aspecto, desenvolve-se segundo uma linha de tensão que separa, de um lado, as abordagens ou tendências historiográficas contextualistas, que de algum modo relacionam o universo das idéias - ou intelectual - com o da sociedade; e, de outro lado, as textualistas, que rejeitam ou ignoram tais relações, trabalhando as idéias em seu suporte textual, como discurso ou mensagem. No amplo leque do contextualismo, encontra-se, na área do marxismo, a obra de Lucien Goldmann, a de Louis Althusser, a de E. P. Thompson e, nos nossos dias, o "marxismo pós-moderno" de Fredric Jameson, particularmente preocupado com a questão ideológica em obras como O inconsciente político: a narrativa como ato socialmente simbólico (1992), Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio (1997) e O marxismo tardio: Adorno ou a persistência da dialética (1997). 5 Ainda no campo do contextualismo, mas sem lançar mão da categoria de ideologia, que é essencial à visão marxista do mundo das idéias, temos o trabalho de Roger Chartier, especialmente sua A história cultural (1990), no qual emprega as noções de práticas e representações, e o de Pierre Bourdieu, com obras como A economia das trocas simbólicas (1987) e O poder simbólico (1998), em que opera com noções como "processos simbólicos", "campo", "habitus de classe" e outros. O outro campo é o do "textualismo", cujos fundamentos teóricos podem ser encontrados na "Introdução" à Arqueologia do saber (1997), de Michel Foucault, mesmo que esta tenha sido escrita posteriormente a seus trabalhos propriamente históricos como Histoire de la folie. Hoje é possível dizer que a história cultural, seja sob a denominação de história das idéias, seja sob a de história intelectual, ou ainda de "nova história cultural", como prefere Lynn Hunt (1992), conquistou sua legitimidade acadêmica. E abarca, consoante Viñao Frago (1995), a história da cultura material e do mundo das emoções, dos sentimentos e do imaginário, das representações e imagens mentais, da cultura de elite e da cultura popular, a da mente humana como produto sócio-histórico e a dos sistemas de significados compartilhados. Quais suas relações com a História da Educação? Em muitas classificações, no passado, a educação era compreendida dentro do campo da história cultural. É que a história da educação, ainda que praticada desde o século XIX (como "história da pedagogia", ou do pensamento educacional), demorou a se firmar como disciplina relativamente autônoma. Para Eliane Marta Teixeira Lopes (1995), esse atraso na definição de seu objeto e de seu método levou um historiador como José Honório Rodrigues, na sua Teoria da história do Brasil, ainda em 1969, a considerar a precariedade da História da Educação brasileira em termos de pesquisa e de conhecimento de suas fontes e a classificá-la como espécie do "gênero História Cultural, Intelectual e das Idéias, ao lado, por exemplo, da História da Música ou da História das Idéias Econômicas, Sociais e Políticas" (p. 32). Se atentarmos para o esquema geral da obra de 1943 de Fernando de Azevedo, A cultura brasileira (1963), poderemos observar a subordinação da espécie educação ao gênero cultura. De fato, a cultura, nos seus fatores determinantes, ocupa a primeira parte do 6 livro; nas suas manifestações individuais e institucionais, a segunda parte; e apenas entra, como educação, no sentido de "transmissão da cultura", na terceira parte. A visão de cultura de Fernando de Azevedo é elitista, evolutiva, estratigráfica e a ela contrapõe-se a da antropologia cultural contemporânea, que vê a cultura como uma "teia de significados", como em Clifford Geertz (1978). Como teia, a cultura é o referencial obrigatório para a inteligibilidade do social. Mas ela não é causa dos acontecimentos sociais, como gostaria de ser vista pelo culturalismo. As causas têm que ser encontradas em outro lugar (na produção material da existência, por exemplo, como quer o materialismo histórico); mas uma ciência social interessada na interpretação dos fenômenos sociais (acontecimentos, comportamentos, instituições e processos) não pode deixar de considerar esse mundo simbólico. A história aí tem muito o que fazer. Como diz um historiador: "da cultura do próprio tempo e da própria classe não se sai a não ser para entrar no delírio e na ausência de comunicação. Assim como a língua, a cultura oferece ao indivíduo um horizonte de possibilidades latentes - uma jaula flexível e invisível dentro da qual se exercita a liberdade condicionada de cada um." (Ginzburg, op. cit., p. 27). Numa tal concepção de cultura, existe um forte trânsito bidirecional, da teia para as partes, destas para a teia. A dialética, que assume o processo como totalidade, é a saída para o impasse. Nesse caso, a história cultural, abrangendo a totalidade do processo, seria a história, pura e simplesmente? Não penso assim. A história, como todos os modos de conhecimento do real, especializou-se com o passar dos tempos. Não posso dizer que o objeto da história econômica e o da história cultural sejam o mesmo. A formação das disciplinas científicas é um campo que compete ao historiador estudar (ver, por exemplo, Chervel, 1990) e, nesse estudo, não há por que não incluir a formação das especializações historiográficas. Diz Viñao Frago (1995), parafraseando Richard Schoenwald, "que a história social é sempre história cultural, a história cultural, sempre história social, e que ambas finalmente são somente história." (p. 65). Essa história una reparte-se num grande número de disciplinas históricas, que são como "etiquetas" que a academia lhe prega, na tarefa cartesiana de dividir o real em fragmentos para mais comodamente poder estudá-lo - ou, se quisermos, para acomodar uma crescente população acadêmica na divisão do espaço institucional. Temos, assim, uma especialização epistemológica correndo paralelamente a uma especialização política.
Dentro dessa perspectiva, a história cultural tem seu âmbito próprio, sem deixar de ser história. E a história da educação, depois de um longo itinerário, acaba também por se constituir como campo autônomo, dotado de objeto próprio, ainda que tangenciando outras disciplinas históricas ou com elas caminhando junto. Por exemplo: a história das políticas educacionais (que sucedeu a história das idéias pedagógicas como campo de aplicação da história da educação) não deixa de ser um tangenciamento, ou uma interpenetração, da história política com a história da educação. Mas ninguém em nossos dias deixaria de considerar Política e educação no Brasil, de Dermeval Saviani (1988), como um trabalho de história da educação. É que o objeto material (para usar uma terminologia escolástica meio em desuso), o fenômeno educação, conta tanto quanto o objeto formal,o ângulo político sob o qual tal fenômeno é estudado, na definição de sua área acadêmica. Considerando, com Lucien Goldmann, que a história se ocupa com "as transformações da sociedade humana" (1967, p. 23) e, com Vigotski, que "estudar alguma coisa do ponto-de-vista histórico significa estudá-la em seu processo de mudança", sendo "esta a exigência básica do método dialético" (apud Viñao Frago, op. cit., p. 76), pensamos que a história da educação ocupa-se com o fenômeno educativo na medida em que se transforma. Basicamente, o campo do fenômeno educativo, na sociedade moderna (pósmedieval), abarca as práticas predominantemente escolares (embora também se vislumbrem as extra-escolares) da educação, suas representações (o pensamento educacional, as propostas educacionais) e a regulamentação dessa atividade (legislação educacional, políticas educacionais), nas suas transformações no espaço e no tempo. É sabido que a história da educação anterior aos anos 70 e 80 do século XX preocupava-se sobretudo com o dever ser da educação e com a sua normatividade. Não havia a preocupação com as práticas escolares, isto é, com o que se vivia no cotidiano da escola, a realidade escolar, o ser da escola, os saberes que nela se produziam e reproduziam, o currículo escolar, a avaliação do aprendizado, o significado do tempo, o calendário escolar, o saber social que os alunos traziam à escola e suas relações com o saber instituído pela escola, a simbologia escolar, as festividades, a disciplina como forma de controle, as disciplinas como organização dos saberes e das carreiras docentes, a profissionalização docente e seus ritos, a arquitetura escolar como linguagem significativa... A lista ainda continuaria.
Nos anos 70 e 80 a história da educação conheceu uma reação parcial a esse estado de coisas, passando a relacionar escola e sociedade, mas com o peso colocado no prato desta última. Enfatizaram-se os mecanismos sociais e econômicos externos ao mundo escolar, talvez até de forma hipertrofiada, transformando a escola em mero produto desses mecanismos, funcionando no sentido de sua reprodução e consolidação. Mas foi nos anos 90 que a reação à história teleológica e normativa da educação se fez sentir de forma ainda mais ampliada. Essa reação, segundo Viñao Frago (1998a), corre por duas vias: uma "tendia (...) a prestar mais atenção à realidade externa que condicionava a realidade escolar e a explicar esta última em função da primeira" (p. 168); a outra, [tendia] "a analisar de dentro aqueles aspectos - ainda sociais - gerados por essa realidade escolar, entendida agora como uma cultura com seus traços e exigências, com sua própria lógica interna." (ibid.). De um modo geral, a primeira passou a ver o fenômeno educativo como um "fato social", comportando abordagens diversas, num espectro amplo que vai da "história social da educação" norte-americana, de viés neopositivista, às abordagens dialéticas (marxistas) e "crítico-culturais" (neomarxistas). Em algum lugar desse vasto panorama encontra-se Dominique Julia - "La culture scolaire comme objet historique", apud Viñao Frago (1998a), - que vê a cultura escolar "como um conjunto de teorias, princípios ou critérios, normas e práticas sedimentadas ao longo do tempo no seio das instituições educativas" (id., ibid., p. 168-169) e se preocupa em estudá-la. E também o português António Nóvoa (1992), que se mostra inclinado a uma observação histórica da educação centrada na questão da cultura escolar, articulada em quatro blocos: os atores, os discursos e linguagens, as instituições e sistemas educativos e enfim as práticas educativas. Um dos grandes problemas a atormentar os que trabalham a história da educação pela via da cultura escolar é o de fontes, porque, salvo quanto aos atos institucionais formais e os do sistema educativo, os demais raramente se reduzem a termo escrito. Daí a busca por fontes alternativas, que incluem a iconografia, a oralidade e plantas arquitetônicas. Mesmo entre as fontes escritas, muitas aparecem com o ar de "alternativas" para os profissionais da área, como os cadernos de exercícios escolares, os diários de classe e outros do tipo. A interseção possível entre a história cultural e a história da educação não ocorre pela absorção de uma por outra disciplina, pela anulação de qualquer delas, mas, sem dúvida, por uma mútua fecundação. A história cultural continuará sendo história cultural, 9 interessada no estudo da "teia simbólica" tecida pelas sociedades humanas. A história da educação seguirá sendo história da educação, preocupada com o estudo no tempo e no espaço do fenômeno educativo em mudança. Mas, ao estudar as práticas e representações dos atores e instituições educativas, a história da educação estará filtrando para dentro de seu próprio campo, numa espécie de processo osmótico, temáticas e olhares antes específicos da história cultural, não importa em qual das modalidades das muitas que pontilharam seu itinerário. Procurei fazer um levantamento dessas possibilidades de interseção, na historiografia educacional publicada especialmente no Brasil e preferentemente no último decênio, tendo encontrado, antes de tudo, o espanhol Viñao Frago, cuja pesquisa nesse âmbito caminha por três vias: 1) Profissionalização docente, disciplinas acadêmicas e história intelectual, em textos de 1995 e de 1998. 2) Cultura, organização e escola. Este caminho foi discutido igualmente nos trabalhos de 1995 e de 1998a e pesquisado detidamente em 1996a e, juntamente com Agustín Escolano, em 1998. 3) História cultural, história intelectual e história da mente, com ênfase num duplo âmbito: "o da história das interações entre o oral, o escrito e o visual, em suas diferentes formas e suportes, e o da cultura escrita e mentalidade letrada, âmbito no qual a história cultural e a história da educação se fundem." (Viñao Frago, 1995, p. 78). Além deste trabalho e do de 1998a, genéricos, o autor tem textos específicos sobre a questão editados em 1990 e 1993. Fora os listados, que são os de sua predileção, Viñao Frago (1995) ainda aponta para outros temas, cuja maior dificuldade consiste em "incorporar-se à docência da história da educação como disciplina" (p. 79): a história da infância, do currículo, da família ou das formas de sociabilidade. André Chervel (1990), trabalhando com a história das disciplinas escolares, incluise nesse campo de interseção entre as histórias da cultura e da educação. Larry Cuban (1992) também aí se encontra com sua pesquisa histórica das práticas docentes. Interessante o título do seu trabalho: "Como os professores ensinavam: 1890-1980". Julieta B. Ramos Desaulniers (1992), refletindo sobre um modelo de pesquisa histórica de escolarização, deixa-nos na expectativa de um trabalho necessário sobre o assunto no Brasil. Luciano Mendes de Faria Filho (1998) é o organizador de um livro sobre a história da leitura e da escrita no Brasil, onde figuram, entre outros, um artigo de sua autoria sobre 10 "ensino da escrita e escolarização dos corpos" e um de Diana Gonçalves Vidal sobre "práticas de leitura na escola brasileira dos anos 1920 e 1930". Bárbara Finkelstein (1992) reflete sobre história da infância, pedindo a incorporação das crianças à história da educação. Ivor Goodson (1990) trabalha com história das disciplinas escolares em "Tornando-se uma matéria acadêmica". Harvey Graff (1990) discute a questão da mudança cultural na passagem do analfabetismo para a alfabetização, tema tão caro a Viñao Frago, em "O mito do alfabetismo". David Hamilton (1992) dá uma interessante contribuição para a área, primeiro ao apresentar ao leitor os "bastidores" de sua pesquisa histórica sobre "Mudança social e mudança pedagógica", em seguida com um trabalho sobre "as origens dos termos classe e curriculum". Jean Hébrard (1990) contribui com "A escolarização dos saberes elementares na época moderna". Eliane Marta Teixeira Lopes (1992) examina fontes e categorias para o estudo da história da educação da mulher, tema a que se dedica igualmente Guacira Lopes Louro (1992),autora que também trabalha com oralidade como fonte para a história da educação de gênero (1990). Jorge Carvalho do Nascimento (1998) retoma um olhar macro na sua releitura de "Cultura e educação no Brasil do século XIX". Paolo Nosella e Esther Buffa (1996) contribuem para a história institucional do espaço escolar no seu livro sobre a antiga Escola Normal de São Carlos, SP. Clarice Nunes (1990), com seu artigo em que posiciona a história da educação como "espaço do desejo", faz uma releitura de um velho objeto, proposta também de seu trabalho de 1992. Lucíola L. C. P. Santos (1990) traz para o âmbito brasileiro a preocupação de Chervel com a história das disciplinas escolares. Magda Becker Soares, especialista em história da leitura e da escrita, comparece a esta lista com um trabalho publicado em 1995: "Língua escrita, sociedade e cultura: relações, dimensões e perspectivas". Rosa Fátima de Souza (1998), em livro onde assume literalmente a perspectiva de uma história cultural da educação, trabalha, em Templos de civilização, a implantação da escola primária graduada no estado de São Paulo. A relação é seguramente incompleta. Não tenho qualquer pretensão a um levantamento historiográfico no âmbito traçado que seja completo. Talvez, até o encerramento da pesquisa maior em que este texto se insere, possa completá-lo. Mas aí outro levantamento estará sendo feito: sobre a historiografia cultural no Brasil de 1943, data da publicação de A cultura brasileira, de Fernando de Azevedo, até nossos dias.
 11 Bibliografia ALTHUSSER, Louis. Análise crítica da teoria marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. __________. Aparelhos Ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado (AIE). Rio de Janeiro: Graal, 1983. AZEVEDO, Fernando de. A cultura brasileira. 4. ed. rev. amp. Brasília: Ed. UnB, 1963. BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, Brasília: EdUnB, 1987. _________. Marxismo e filosofia da linguagem. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1981. BARREIRA, Luiz Carlos. História e historiografia: as escritas recentes da história da educação brasileira: 1971-1988. Campinas, SP: Tese (Doutorado) - Faculdade de Educação da UNICAMP, 1995. BLOCH, Marc. Introdução à história. Mem Martins, Portugal: Publicações EuropaAmérica, s. d. BOURDÉ, Guy, MARTIN, Hervé. As escolas históricas. Mem Martins, Portugal: Publicações Europa-América, 1990. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1987. _________. O poder simbólico. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 1998. BOURDIEU, Pierre, PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975. BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII. Trad. Telma Costa. São Paulo: Martins Fontes, 1995. 3 v. BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Ed. UNESP, 1992. CAMBI, Franco. História da pedagogia. São Paulo: Ed. UNESP, 1999. CARDOSO, Ciro Flamarion, BRIGNOLI, Héctor Pérez. Os métodos da história: introdução aos problemas, métodos e técnicas da história demográfica, econômica e social. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1983. CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
2-História , política , economia e cultura no século XIX
Introdução Tomando a produção da História Política dentro de um processo, sua trajetória apresenta dois momentos distintos entre si, no que tange a concepção do objeto e tratamento das fontes, bem como com relação ao próprio olhar do historiador. O primeiro destes momentos liga-se à sua gênese, ainda no século XIX, mas não se limitando a este. Tomado como o paradigma tradicional, a percepção da política por esta historiografia voltava-se aos fatos e as vidas dos homens considerados ilustres. De certo modo, promovia uma sacralização elitista que, ao voltar-se para os líderes, desconsiderava as massas e os segmentos sociais subalternizados. O líder e o fato, e a imediata repercussão de ambos junto à sociedade são tomados como elementos simbólicos desta metodologia, cuja crítica no século XX, não deixou de mencionar seu elitismo e a pouca profundidade de suas análises. Preconizando a reformulação dos embasamentos teóricos da história política, as primeiras décadas do século XX, a partir da Escola dos Annales, na França, passou a crítica, em sua forma mais radical. No afã de promover, mesmo que simbolicamente o resgate da história das gerações passadas e presentes, que eram negligenciadas pela historia tradicional, não se condenava somente aquele modelo, mas sim, o próprio objeto, ou seja, a política, tomada como símbolo perfeito das mazelas que atingiam o exercício historiográfico. Rémond (2003, p. 13, 14) pondera que esta condenação radical advém do fato de que “esses avanços se operaram muitas vezes em detrimento de um outro ramo, como se todo avanço devesse ser pago com algum abandono, duradouro ou passageiro, e o espírito só pudesse progredir rejeitando a herança da geração anterior.”. Portanto, à História Política e à própria política, foram atribuídos os estigmas mais nefastos das velhas tradições. Era questionada, desse modo, a validade da História Política, enquanto era condenada a política, na história. Partindo da produção historiográfica dos Annales, a fase de crítica e condenação da História Política Tradicional abre espaço para a emergência de outros modelos historiográficos, voltados de certo modo à sociedade e à economia. A política dentro deste cenário era posto como o antagonista da sociedade, e a história política, seu algoz. Contudo, a História Política Tradicional, ainda que amplamente condenada, não foi totalmente abandoada. A persistência desta temática seja dentro da história, ou junto às novas ciências que surgiram e que tinha na política um embasamento fundamental, amadureceram a compreensão intelectual da historiografia. Esse fenômeno trouxe uma nova perspectiva historiográfica para a História de cunho político, pois as temporalidades da sociedade e do historiador (temporalidade essa que dá os contornos do olhar do historiador) foram redimensionadas, e assim, também tomadas como elementos responsáveis pela forma como a História Política é construída. Nesse sentido, mais que condenar objetos, percebeu-se que se deveria condenar uma metodologia. A exclusão da dimensão política da produção histórica passava desse modo, ou uma reflexão mais equilibrada, após um momento de flutuação das bases teóricas da História Política. Passando pelos períodos de sacralização e condenação absolutos, a História Política havia chegado a um novo momento, onde sua reabilitação, apoiada em outros fundamentos teóricos, lhe deu uma nova fundamentação, sentido e método.
A historiografia ao promover o registro dos movimentos da sociedade humana, possui sob sua guarda, ainda que de forma menos aparente do que as análises acerca da sociedade, as diretrizes da própria produção historiográfica. É com esse sentido que Rémond (2003, p. 13) expressa que “A HISTÓRIA, cujo objeto precípuo é observar as mudanças que afetam a sociedade, e que tem por missão propor explicações para elas, não escapa ela própria à mudança.”. (Grifo do autor). A história política assume função exemplificadora de tal processo, cuja movimentação de ideias, influências, sobreposições de diferentes arranjos de poder, afeta a sociedade, mas também as diretrizes do próprio exercício historiográfico. A produção da história política enceta, através do cotejamento das diretrizes tradicionais e novas, o caráter convencional de suas percepções, que partindo de uma mentalidade hegemônica, privilegiou diferentes dimensões da organização social humana, desde as individuais, até as coletivas, em diferentes escalas. Quando Barros (2004, p. 106, 107) enceta que “o que autoriza classificar um trabalho historiográfico dentro da História Política é naturalmenteo enfoque no ‘poder’”, permite considerar as diferentes formas de exercício do poder, ao longo do tempo e, mais precisamente as diferentes formas pelas quais, esse poder fora tratado e convertido em conhecimento histórico. A História Política, desse modo, instala-se nas dimensões mais delicadas da sociedade humana, onde as relações de poder remetem à submissão e a imposição e que não raro, demonstra que o exercício do poder, sobretudo na forma mais tradicional da história política, se faz mais traumático à sociedade, quanto maior for o interesse político (ou historiográfico) em camuflá-lo. O poder, elemento fundamental na constituição social humana, e seu exercício, apresentam diferentes formas de manifestação e prática. Mas usualmente, se refere à política. È desse fator que emerge a dupla importância da História Política. Em primeiro lugar, essa construção histórica evidencia uma das formas pelas quais a sociedade se organiza, e possuindo uma “consciência” que gere sua manifestação, é um dos vetores de leitura social. Em segundo lugar, a História Política é portadora da delicada missão: identificar, compreender e demonstrar as relações de poder, onde dominantes e dominados interagem. O trabalho historiográfico ao se voltar ou para os dominantes, ou para os dominados, ou ainda para as relações entre os mesmos, oferece embasamento para a construção de imaginários sociais. Para Sansón (2006, p. 12) estes imaginários “[...] podem ser criados e manipulados especialmente [o imaginário] do poder pois seu controle constitui uma estratégia fundamental, potencializadora e autolegitimadora” 1 , de maneira que, a produção historiográfica, que exerce importante papel na construção dos imaginários sociais, pode levar à consciência coletiva, a ruptura, ou a permanência. Quando Julliard (1976, p. 181) aponta que “a história política confunde-se com a visão ingênua das coisas, que atribui a causa dos fenômenos a seu agente o mais aparente, o mais altamente colocado, e que mede a sua importância pela repercussão imediata na consciência do expectador”, expressa uma interessante síntese da História Política Tradicional. A condenação de que a História Política foi alvo, na primeira metade do século XX, relaciona-se com estes aspectos da História Tradicional. As análises superficiais dos eventos históricos, e a percepção invariável dos lideres, suas ações e repercussões imediatas, lhe valeram uma condenação metodológica, e não sem razão. Sua elaboração teórica e concepções metodológicas primordiais apenas “arranhavam” as superfícies do historicamente aparente, desconsiderando as populações, as motivações e as forças subalternizadas, que não deixaram de existir pelo fato de não serem observadas por aquela historiografia. Como resultado imediato - e mais duradouro -, a História Política Tradicional posicionou em campos opostos (e antagônicos), segundo sua própria definição de importância, os líderes (ativos) e as populações (passivas); agentes considerados históricos e agentes considerados como “aistóricos”. As sociedades cuja organização social era marcada pela verticalização do exercício do poder, acabaram sacralizando sujeitos e instituições. A história, nesse sentido, registrava manifestações e decisões individuais, encetando-as como as manifestações (individuais), que guiariam o processo histórico. Este conjunto de elementos, é claro, não se arranjou de forma linear, e harmônica. As vozes dissonantes existiam da mesma forma que as vozes hegemônicas. Porém a História Política Tradicional privilegiou, em sua elaboração, os fenômenos e seus agentes mais aparentes, as elites e os líderes, preservando uma memória que historicamente, traduz a importância de cada um dos setores sociais. 
  
 
Em Paris, Frédéric Mauro, junto com Pierre Chaunu e Vitorino Magalhães Godinho, a cujos cursos eu também assistia, eram discípulos de Braudel e adeptos de uma "história total", de uma história escrita em colaboração com as Ciências Humanas e Sociais, mas também com as matérias ensinadas nos liceus franceses sob o título de "Ciências da vida e da terra", incluindo as biociências e a geologia. Para mim foi fundamental entender que Rio de Janeiro, Bahia e Recife estavam mais perto - quando se consideram as rotas marítimas -, e mais ligados a Luanda e a Benguela do que a Belém e a São Luís. Os livros de Chaunu e de Mauro estudam os espaços marítimos, os enclaves europeus e as comunidades nativas de outros continentes sem se limitar aos territórios nacionais. Manilla, Acapulco, Vera Cruz e Sevilla faziam parte do mesmo circuito e Chaunu estudava as Filipinas na sua realidade da época, como uma dependência do vice-reino da Nova Espanha, do México. O livro de Mauro fala muito do Brasil, mas intitula-se Le Portugal et l'Atlantique (1960) e suas primeiras 100 páginas têm como subtítulo "L'Océan et ses contraintes", para mostrar como as rotas de navegação e os circuitos de comércio condicionam os espaços coloniais. Da mesma forma que Braudel, cuja obra O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II marcou a historiografia do século XX, Mauro privilegiava o espaço marítimo, o agregado formado pelas trocas e os conflitos entre as comunidades da Europa, da América e da África.
 
Braudel e as mudanças da Escola dos Annales
Dos anos 1960 até meados de 1980, a História e Braudel tinham um papel central nas Ciências Sociais na França. Depois, a institucionalização da União Européia e a queda do Muro de Berlim geraram muito mais interesse pela história do continente europeu, tirando um pouco o foco dos grandes estudos sobre o ultramar e as comunidades não Europeias. Houve também uma virada em que se deu mais destaque à micro-história e à história das mentalidades, um certo enfoque de história cultural, que levou a nova direção da revista Annales a tirar a palavra "Economia" de seu subtítulo, afastando-se assim da disciplina associada à História por Marc Bloch, Braudel, Duby, Le Roy Ladurie e tantos outros. Certamente houve excessos da história quantitativa e da história econômica que era preciso reequilibrar com um aporte de história cultural à qual Braudel não era tão sensível quanto Lucien Febvre ou Duby (que era também um historiador da arte). Contudo, creio que o declínio da formação econômica, mas também geográfica das novas gerações de historiadores levou a que muitos livros de história tenham se preocupado mais com a narrativa do que com a  análise das fontes e dos debates historiográficos. 
Quanto à alegada oposição entre micro-história e macro-história, penso que há um mal-entendido. Quem leu Braudel, Duby, Chaunu e Mauro sabe que eles articulam muito bem a macro-história à micro-história, como faz também hoje em dia Serge Gruzinski, um dos mais brilhantes discípulos de Braudel e Chaunu.
Mas é verdade que o mal-entendido persiste. Para o número dos Annales  consagrado ao Brasil, publicado em 2006, eu havia entregue um artigo, inspirado na "velha escola" braudeliana da longa duração, que englobava 300 anos, com um gráfico cobrindo o tráfico negreiro para o Brasil e para as Américas durante esse período. O título inicial do artigo era "Le Brésil de 1550 à 1850: un essai de macro-histoire". Na hora de editar o texto, um membro da redação da revista me chamou para conversar e, cheio de dedos, me disse que o título poderia ser tomado como um ataque à micro-história e que talvez não fosse oportuno, e coisa e tal. Propus outro título que dizia a mesma coisa sem causar melindres: "Le versant brésilien de l'Atlantique Sud : 1550-1850".  Aproveitei para salientar no título uma ideia que venho repetindo há anos: nesses três séculos a história do Brasil se desenrola dentro e fora do atual território nacional, que é parte de um quadro mais amplo: 
Outro ponto importante nessa perspectiva do Atlântico Sul é a mudança na periodização. Na historiografia brasileira e estrangeira dedicada ao Brasil, a transferência da Corte e a abertura dos portos em 1808, assim como a Independência em 1822 têm um estatuto canônico, interpretado como a rupturadefinitiva do sistema colonial. Ora, a partir de 1808, o Brasil incorporou o tráfico de escravos de Moçambique e engoliu também zonas de trato da África ocidental, abandonadas em 1808 pelos ingleses e os americanos, depois que Londres e Washington eliminaram seu comércio negreiro. Dessa forma, a transferência da corte para o Rio de Janeiro ofereceu duas condições importantes para a sobrevivência do sistema escravista. Um governo português - e depois brasileiro - obstinado, renitente, na continuidade do comércio de escravos, e um aparato burocrático e diplomático competente, apto a neutralizar as ofensivas políticas e navais inglesas, protelando o tráfico de africanos até 1850. Essa aposta histórica, geopolítica, estimulou o crescimento da agricultura escravista mas, no longo prazo, gerou uma brutal regressão social e também econômica.  É como se agora, o governo brasileiro, para facilitar o mercado de trabalho para os patrões e o crescimento econômico, reduzisse os anos de escolaridade obrigatória e legalizasse o trabalho infantil! A celebração luso-brasileiro do bicentenário da vinda da Corte, em 2008, a TV Globo e a historiografia dominante difundem a ideia da ocidentalização do Brasil pela dinastia dos Bragança que reinava nas duas margens do Atlântico. Mas houve também outra novidade em 1808, a ampliação da cadeia de trocas que conectou a barbárie ao progresso econômico: quanto mais cresceu a economia brasileira, mais gente foi arrancada da África e escravizada no Brasil.
 
 
No plano nacional, o foco sobre o final do tráfico implica uma mudança de eixo que introduz outra periodização histórica à montante e à jusante de 1850. À montante, essa interpretação altera a análise sobre a abertura dos portos e a Independência; à jusante, ela relativiza a legislação emancipatória que desemboca em 1888. Muitos historiadores situam a crise do escravismo em 1871, na aprovação da Lei do Ventre Livre. Penso que em 1850, a Lei de terras e os debates sobre a imigração no Parlamento já tinham selado o destino do escravismo: a classe dominante preferiu abandonar gradativamente o escravismo para garantir a perenidade do latifúndio. Nos anos 1880, Nabuco, Rebouças e outros abolicionistas que tentaram levantar a questão da reforma agrária perderam a parada. Os latifundiários já haviam se arreglado com os republicanos.
A cátedra
A cátedra da História do Brasil da Universidade de Paris - Sorbonne foi criada pelo governo francês em 1988, é a única na França - e uma das poucas na Europa e nos Estados Unidos - cuja área combina o ensino da história colonial e contemporânea do Brasil em cursos de graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado. Ao contrário de outras instituições similares, a cátedra não depende de verbas públicas ou privadas brasileiras e tem o mesmo estatuto que as demais cátedras francesas, sendo financiada pelo governo francês e preenchida por concurso público. A primeira titular foi a professora Kátia de Queirós Mattoso, recentemente falecida, que prestou concurso em 1988 e ministrou cursos até 1998. Tive a honra de sucedê-la como professor visitante em 1999 e, depois, na sequência do concurso de 2000, como professor titular. Kátia tinha prestígio acadêmico e teve um papel fundamental na afirmação da cátedra na Sorbonne e no mundo universitário francês.
 
 
Quando assumi o cargo, seguindo os conselhos de Frédéric Mauro, de Celso Furtado e também com o acordo dos outros colegas da Sorbonne, decidi abrir as pesquisas para o Atlântico Sul, a África lusófona, e mais particularmente, para Angola. Penso que o Atlântico Sul tem um passado, um presente e um futuro. Por isso, deixei de lado o quadro mais extenso da América Latina, ao qual o ensino de história do Brasil estava ligado, para orientar pesquisas sobre o Brasil, e o Atlântico Sul em geral, incluindo aí também o Uruguai, a Argentina e o Paraguai. É muito interessante trabalhar, no mesmo seminário, com mestrandos e doutorandos que pesquisam sobre a África e o Brasil. Creio que isso dá um perfil original a essa cátedra. Devo dizer também que os estudantes e pesquisadores que trabalham sobre a África e a história contemporânea em geral tiram muito proveito dos documentários e dos debates transmitidos pelos canais de TV franceses e sobretudo por ARTE, o canal aberto franco-alemão. Quando vou ao Brasil e vejo o nível das emissões de TV, me dou conta de que o livre acesso a canais como ARTE faz uma bruta diferença nos debates que ocorrem na França.
A Nova História ao irradiar-se, a partir da França, a outros círculos historiográficos para além da Europa, carregou consigo a bandeira da renovação, onde a História Política, tomada como símbolo de uma tradição arcaica, deveria ser banida. Nesse sentido, a crítica ferina dispensada ao político na história, condenava não apenas o paradigma, mas também o objeto. Vista como parcial e incapaz de atingir as camadas mais profundas da sociedade e do processo histórico, a História Política passou a ser desacreditada, cedendo seu espaço e antiga glória, às novas abordagens defendidas pela Escola dos Annales. Nesse sentido, ampliaram-se as propostas de modelos históricos que, abordados a partir de novas perspectivas, além de abarcar novos objetos e fontes, promoveria uma “história total”, através da ampliação dos objetos, métodos e sujeitos, levando como um de suas bandeiras, a reparação aos esquecidos da história tradicional. Contudo, o transcurso do século XX, que viu o conceito “político” na história ser julgado, condenado e sentenciado, vai apresentar razões para a sua reabilitação. Sua emergência nos estudos historiográficos corresponde , segundo Rémond (2003, p. 23) a “[...] ideia de que o político tinha uma consciência própria e dispunha mesmo de uma certa autonomia em relação aos outros componentes da realidade social”, ou seja, a dimensão política da sociedade, não era apenas produto de outras dimensões, comoa econômica e a social. Assim, a História Política após um período de flutuação teórica consolidou um novo modelo à História Política, inaugurando novas problematizações e perspectivas. O estudo da política pela história, através de seu novo paradigma, não pode ser dissociada das transformações sociais (além das intelectuais) que tiveram lugar entre os séculos XIX e XX. Conforme Rémond (2003, p. 19) “as novas orientações da pesquisa histórica estavam em harmonia com o ambiente intelectual e político. O advento da democracia política e social, o movimento operário, a difusão do socialismo dirigiam o olhar para as massas.”. Essas transformações levaram a um processo pelo qual as posições e papéis sociais exercidos pelo indivíduo e pelos grupos, são modificados, apresentando novas funções e novas importâncias, levando a história consigo. Uma nova sociedade veio assim exigir novas abordagens e métodos à suas novas perguntas. O abandono que atingiu a História Política por si só é um vetor explicativo para a sua retomada. Sendo a dimensão política de uma sociedade parte essencial de seu caráter, o seu abandono levou a história a abrir mão de uma importante faceta da construção sócio-temporal 
 O redimensionamento do olhar historiográfico sobre a política 
A renovação da História Política, ao longo do século XX, acompanhou movimentações e evoluções da própria sociedade, seja no sentido de movimentos sociais, quanto de alteração de paradigmas historiográficos. Conforme Ferreira (1992, p. 266, 267), a retomada dos estudos políticos pode ser compreendida como resultado de dois fatores elucidados anteriormente por René Rémond: “as transformações sociais mais amplas, que propiciaram o retorno do prestigio ao campo político, e a própria dinâmica interna da pesquisa histórica.”. Os eventos políticos, as novas disciplinas e áreas de estudo ligadas diretamente, ou não à política, colaboraram para a volta do olhar da história sobre a política. Como exemplo, Rosanvallon (1995, p. 9) menciona a “[...] historia das mentalidades políticas e da sociologia política, [que] inovaram e permitiram renovar a abordagemdo político. Uma nova sociedade, detentora de maior consciência sobre si mesma, exigia novas formas de questionamento historiográficos. Esses fatores endógenos à pesquisa histórica é o meio pelo qual, a história passa a ter à sua disposição, outras disciplinas, com as quais pode firmar diálogo. Para Ferreira (1992, p. 266) “o contato da história com outras disciplinas, como a ciência política, a sociologia, a linguística ou a psicanálise, que abriu novos campos e trouxe novos aportes. A pluridisciplinaridade possibilitou o uso de novos conceitos e técnicas de investigação.”. Quando Julliard (1976, p. 192) menciona que ‘o setor político, [...] é um daqueles que mais são marcados pela história, um daqueles em que melhor se apreendem as incompatibilidades, as contradições e as tensões inerentes a toda sociedade ’ enceta uma relação de reciprocidade entre a história e a política, razão pela qual, a dimensão política da história se faz tão pertinente. Sendo a história uma representação de um fenômeno (evento), no tempo e no espaço, a história política renovada, e em certo grau, amadurecida, torna-se um ambiente privilegiado para a percepção das tensões internas, pois como se vem percebendo, a história política é a história do poder, dos dominantes e dos dominados. Associados aos fatores endógenos há os fatores externos à história que igualmente contribuem para a revitalização da política. Para Ferreira (1992, p. 267) “as crises constantes que desregulam os mecanismos das economias liberais e [que] levaram o Estado a intervir na economia, ampliando seu raio de ação”, potencializaram a dimensão política da sociedade de maneira que, a história, voltou-se, novamente a ela. A conjugação destas duas dimensões (política e econômica) pôs frente a frente duas esferas explicativas da história. Nesse sentido, a queda do político e a ascensão do econômico (entre outros) nos sistemas historiográficos no século XX, acabaram retornando à história, quando, segundo Rémond (2003, p. 23) ocorre a a ampliação do domínio da ação política com o aumento das atribuições do Estado”. Desse modo, a política na história, não estava totalmente abandonada, fator este que veio a facilitar o seu retorno, e que possui ainda, a capacidade de alterar os rumos sociais, econômicos, culturais. O incremento da dimensão política na sociedade contemporânea, além das esferas institucionais, também se refletiu nas ciências.
3-Relações entre História e antropologia – eletiva
História e antropologia no campo da Nova História Antonio Paulo Benatte1 Resumo: Na historiografia francesa da década de 1970, a guinada para a antropologia foi um dos acontecimentos mais marcantes e polêmicos da chamada Nova História. O objetivo deste artigo é analisar o modo como se constituiu esse diálogo interdisciplinar e a forma de interpretação histórica dele resultante. Palavras-chave: Historiografia — antropologia — Nova História. Abstract: In the historiography of the 1970s, the turning to anthropology was one of the most outstanding and controversial events of the called New History. The aim of this article is to analyze that the interdisciplinary dialogue was constituted and the form of historical interpretation of its resultant. Keywords: : Historiography — anthropology — New History. I O desenvolvimento da historiografia no último terço do século XX foi significativamente marcado pela guinada antropológica ou culturalista (o chamado cultural turn). Esse diálogo emerge com mais visibilidade na chamada história das mentalidades, um gênero historiográfico predominante na França dos anos 60 e 70. A tendência crescente para o estudo histórico de fenômenos culturais — ou melhor, para a análise do conteúdo cultural de eventos e processos de sociedades do passado —, estimulou a transmigração de métodos e modelos explicativos da antropologia, traduzidos e adaptados na perspectiva de análises históricas. Sem dúvida, a aliança com a antropologia — especialmente com a antropologia social e cultural — ampliou o quadro de referências dos historiadores, contribuindo para o esbatimento das fronteiras disciplinares. Propiciou também, ou principalmente, um deslocamento da objetiva: cada vez mais, um número significativo e importante de historiadores passou a investigar o que Pierre Chaunu chamou “o terceiro nível” (a cultura, sendo os outros dois a economia e a demografia) da organização social. Outros, como Emmanuel Le Roy Ladurie, preferiram utilizar uma metáfora arquitetônica para designar essa mudança de perspectiva: “do porão ao sótão”, quer dizer, da infraestrutura para a superestrutura, para utilizar as categorias marxistas então em voga. É claro que essas mutações não podem ser atribuídas unicamente ao estreitamento das relações entre as duas disciplinas, mas essa aliança interdisciplinar constituiu sem dúvida um de seus principais fatores. Em 1977, o medievalista Jacques Le Goff diagnosticava os começos de uma mutação importante no jogo de alianças da história com as ciências sociais: “Após um divórcio de mais de dois séculos, historiadores e etnólogos mostram tendência para se aproximar. A história nova, após ter-se feito sociológica, tende a tornar-se etnológica.” (LE GOFF, 1979: 315) Essa constatação não era unilateral: em 1971, numa entrevista ao programa Lundis de l´histoire, apresentado pelo mesmo Le Goff na rádio France Culture, o antropólogo Claude Lévi-Strauss fora ainda mais explícito quanto às recentes afinidades eletivas entre praticantes das duas ciências sociais: “Tenho a impressão de que nós [antropólogos e historiadores] fazemos a mesma coisa. O grande livro da história é um ensaio etnográfico sobre as sociedades do passado.”(Apud DOSSE, 1992: 169) Exemplo célebre de um desses grandes livros da história de tendência etnográfica seria publicado em 1975 com o título Montaillou, village occitan de 1294 à 1324, de autoria de Emmanuel Le Roy Ladurie. Best seller mundial, Montaillou é considerado com justiça um dos clássicos fundantes do cultural turn na historiografia contemporânea, ao lado de O queijo e os vermes, de Carlo Ginsburg, O retorno de Martin Guerre, de Natalie Zemon Davis, Religião e declínio da magia, de Keith Thomas, A formação da classe operária inglesa, de E. P. Thompson e O grande massacre de gatos, de Robert Darnton. A simples listagem das referências bibliográficas de Montaillou ilustram essa tentativa de combinação de abordagens historiográficas e antropológicas. Em meio aos clássicos estudos históricos sobre o medievo francês e ao corpus documental e erudito, são elencados trabalhos de Bourdieu, Godelier, Goody, Leach, Lévi-Strauss, Mauss, Peristiany, Pitt-Rivers, RadcliffeBrown, Redfield, Sahlins, Van Gennep, entre outros numes tutelares da ciência antropológica. A ancoragem historiográfica no campo etnológico ou antropológico tornou possível uma forma de história que unia a erudição fértil, a descrição analítica minuciosa e a interpretação histórica rigorosa do universo sócio-cultural de uma pequena comunidade agrária e pastoril situada num passado bastante longínquo (fins do século XIII, inícios do XIV). Examinemos o percurso de Le Roy Ladurie. Desde 1966, no prefácio de seu Paysans du Languedoc, o autor afirmava ter-se lançado à aventura de uma história “total”, quer dizer, à apreensão global do funcionamento e da estrutura de uma sociedade histórica. (LE ROY LADURIE, 1966: 5) Esse objetivo heurístico, conscientemente irrealizável, é radicalizado em Montaillou. A primeira parte do livro dá uma boa idéia das características dessa tentativa de “história total”: analisando um povoado coeso e cindido “clanicamente” entre a ortodoxia romana e a heresia cátara, o historiador aborda a demografia, o território, as atividades econômicas, a divisão do trabalho, a alimentação; ou seja, faz “breves observações sobre a vida material e o meio ecológico”. (LE ROY LADURIE, 1997: 30) Segue-se um “estudo social e sociopolítico da aldeia”: a distribuição do poder, as especificidades locais das clivagens e dos conflitos sociais, o regime das terrase da situação jurídica dos homens, etc. A partir do capítulo 2, mais etnográfico, inicia-se o estudo “total” da sociedade pelo prisma da cultura. Os temas são variados: a família e a casa (domus); as alianças conjugais; as relações de parentesco e de parentela; as crenças; a sociabilidade doméstica; as “superstições”; as relações de poder e de autoridade; os ritos mágicos de proteção da linhagem e da casa (mentalidade mágica); os laços de vizinhança, de aliança, de parentesco e de domesticidade; os arranjos familiares ou estruturas coabitacionais, etc. Em poucas palavras, as “estruturas etnográficas da região”. (Idem: 59) Os novos historiadores, a partir de uma predação um tanto selvagem do campo vizinho, valem-se dos operadores conceituais e dos aparatos analíticos das antropologias econômica, política, social e cultural, embora privilegiem esses dois últimos subcampos da disciplina. De modo geral, o olhar histórico-antropológico dos praticantes da nouvelle histoire é bastante variado em suas inspirações. Eles não observam uma fidelidade estrita a um determinado “clã” ou escola do pensamento antropológico; antes praticam um certo ecletismo vagabundo adaptado a seus interesses específicos de pesquisa. O que eles parecem buscar na ciência social vizinha não é um corpus conceitual sistêmico ou uma teoria geral da cultura, mas sim um aguçar da sensibilidade para a diferença e alteridade do passado empiricamente cognoscível. Do ponto de vista metodológico, o caso de Montaillou é novamente exemplar. O autor confere uma autoridade etnográfica aos registros do inquérito coletivo realizado pelo tribunal da Inquisição entre 1318 e 1325 na região occitânica (sudoeste da França). Na introdução, intitulada justamente “Do inquisidor ao etnógrafo”, explica que o material coletado pelo inquisidor, o douto bispo Jacques Fournier, futuro papa de Avignon, é excepcionalmente rico em dados etnográficos de todo tipo: “meticuloso como um escolástico”, “espécie de Maigret obsessivo e compulsivo”, “maníaco do detalhe”, Fournier devassara implacavelmente a vida dos camponeses, artesãos, pastores, comerciantes ínfimos, em busca do menor sinal de heresia ou do mínimo desvio em relação aos dogmas da ortodoxia católica. São esses mesmos depoimentos, oriundos da repressão, que o historiador — “esse monstro frio” — analisa como indícios para o conhecimento o mais totalizante possível da microestrutura sociocultural. Trata-se, com efeito, de fontes documentais excepcionalmente ricas em informações diversas: a riqueza qualitativa do testemunho ultrapassa em muito o estrito domínio das perseguições por heresia: “Para além das perseguições anticátaras [...] dizem respeito, de fato, às questões da vida material, da sociedade, da família e da cultura camponesa.” (Idem: 12-17) Como procedimento heurístico, o historiador estabelece uma equivalência formal entre a devassa inquisitorial e o trabalho de campo ou pesquisa participante, quer dizer, com o método por excelência dos antropólogos desde a década de 1920, a partir de Malinowski e da escola funcionalista. Como explica outro praticante célebre da micro-história de viés cultural, Carlo Ginsburg, os processos inquisitoriais “são o que temos de mais aproximado aos inquéritos in loco de um antropólogo moderno.” (GINSBURG, 1991: 174) A partir desses registros, Le Roy Ladurie realiza um amplo inventário etno-histórico do modus vivendi cotidiano da aldeia, com suas coesões e seus conflitos, individuando as estruturas das relações que, em toda a sua complexidade, unem e dividem uma microssociedade tradicional do alto medievo francês. Metodologicamente, o historiador opera uma redução simultânea da escala de observação cronológica (um “esfriamento” dos tempos sociais) e dos marcos espaciais (a aldeia encontra-se relativamente isolada nos Pirineus). Em suma, um grupo social isolado e de dimensões reduzidas (em torno de 200 a 250 pessoas) é tomado, para efeitos de análise, como um universo monádico e ensimesmado. Essa operação permite um estudo que privilegia o primado do lógico sobre o cronológico, característico das abordagens clássicas da antropologia desde a crítica funcionalista ao evolucionismo social vitoriano e às análises difusionistas que se lhe seguiram. O estudo, como reitera por várias vezes o autor, “pretende ser monografia de aldeia”. (LE ROY LADURIE, 1997: 74), reconhecendo que a redução da escala de observação — a que se chamaria micro-história — tem uma inspiração diretamente etnográfica: “Bem se sabe, com efeito, depois dos trabalhos de Redfield, de Wylie e de alguns outros, que a vida terra-a-terra, ao rés-do-chão, acomoda-se muito bem à monografia aldeã. Nossa pesquisa não será exceção a essa regra de ouro [...].” (Idem: 18) Certa feita, o antropólogo Raymond Firth resumiu com extrema clareza um conjunto de idéias-força do olhar antropológico. O antropólogo, diz Firth, “pode ser classificado como um sociólogo que se especializa na observação de campo, direta e em pequena escala, e que conserva, relativamente à sociedade e à cultura, um quadro conceptual que confere privilégio à idéia de totalidade...”; e acrescenta: “Já sabemos muito sobre a macroestrutura de nossas instituições. O que o antropologista deve fornecer é um conhecimento sistemático de sua microestrutura e de sua organização.” (THOMAS, 1974: 133) Ora, mudando o que tem que ser mudado, esse é justamente o tipo de abordagem levado a efeito pela micro-história, um dos gêneros resultantes do cultural turn. Mas as influências não são tão diretas nem tão simples. A monografia de aldeia, ademais, assemelha-se a um gênero de história regional e local que deve mais à geografia humana da escola de Vidal de La Blache que à petite histoire dos eruditos de província. Em outro momento e lugar, Le Roy Ladurie definiu a monografia aldeã como um gênero científico mais amplo e consolidado: “Penso que a monografia sobre uma aldeia é um gênero bem definido nas Ciências Humanas, tal como a tragédia clássica foi um dos gêneros do teatro europeu do século XVII.” (LE ROY LADURIE, 1983: 30-31) Na micro-história à francesa observa-se, portanto, uma confluência de duas tradições bastante distintas, uma geográfica e outra antropológica: por um lado, a tradição da monografia regional inaugurada pelas pesquisas de geografia humana, e que tanta influência tiveram sobre os historiadores dos Annales desde os anos 1930 (história social, econômica e demográfica); e, por outro lado, o princípio antropológico, desde Franz Boas, do inquérito pormenorizado em terreno circunscrito. A essa restrição espacial, soma-se uma restrição temporal tomada, paradoxalmente, da historiografia a mais convencional: o corte cronológico curto da narrativa episódica, embora permaneça, como pano de fundo, o tempo estrutural da longa duração braudeliana. 
Contudo, há que se reconhecer que, no caso de Montaillou, a inspiração etnográfica é metodologicamente determinante, o que pode ser generalizado para outros representantes da Nova História (Le Goff e Duby, particularmente). Com efeito, no citado livro de Le Roy Ladurie, a vida cotidiana do povoado, no plano das realidades materiais e das representações coletivas, é esquadrinhada de alto a baixo como uma verdadeira sociedade tribal. O historiador não deixa sequer de recorrer ao método comparativo, mesmo correndo o risco do anacronismo: “As análises publicadas por Bourdieu quanto à casa cabila parecem-me pertinentes, a título comparativo, para uma confrontação entre dados [etnográficos] magrebinos e pirenaicos.” (LE ROY LADURIE, 1997: 74) Observando a “regra de ouro” da etnografia e adaptando-a, muito criativamente, aos procedimentos da operação historiográfica, Le Roy Ladurie lança-se, assim, à aventura de uma espécie de antropologia retrospectiva através da qual emergem da opacidade as práticas cotidianas e os hábitos coletivos regulares, constantes e repetitivos, mais próximos do inconsciente que do pensamento refletido dos homens e mulheres do passado. Cabe ainda uma observação sobre a narrativa — ou, melhor dizendo,a escritura — de Montaillou. Significativamente, o tempo verbal empregado não é o pretérito, típico da história cronológica “acontecimental” (événementielle) ou mesmo processual; mas o presente do passado, à semelhança do “presente etnográfico” característico dos trabalhos de campo realizados pelos antropólogos. (Cf. CLIFFORD, 2002: 26) O historiador, aliás, não conta propriamente uma história: não há enredo, trama ou intriga nos moldes mais convencionais. A escritura assume a forma de uma descrição. Ele descreve analiticamente (densamente, diria Clifford Geertz) as estruturas profundas, subjacentes, da vida social e cultural da comunidade. Trata-se de um tipo de escrita da história que Paul Veyne chamaria “não-acontecimental” (non-événementielle), ou seja, menos uma crônica dos episódios de superfície do que uma análise das estruturas profundas, numa palavra, uma história estrutural. (Cf. VEYNE, 1989: 248) Nem por isso o texto deixa de ser envolvente. A escrita desce ao nível do cotidiano vivido, criando um efeito de realidade capaz de nos familiarizar com pessoas comuns, gente como a gente, mas ao mesmo tempo muito diferentes de nós, e que viveram e morreram faz mais de sete séculos.
Muito já se escreveu sobre as relações entre história e antropologia, inclusive no contexto historiográfico da Nova História. Mas essas considerações, via de regra, são feitas en passant, tanto em textos celebrativos quanto demolidores da nova tendência, ou em artigos mais gerais sobre a antropologia histórica, as mentalidades, a micro-história ou mesmo a “história vista de baixo” (history from bellow). (SHARPE, 1992: 47) O tom por vezes apologético dos ardorosos defensores da Nova História em parte impediu uma análise mais sóbria e acurada da real dimensão e importância desse diálogo. Mas é necessário reconhecer, para começo de conversa, que, apesar de todas as restrições que se possa fazer, trata-se de um vigoroso esforço para transpor os limites artificiais entre as disciplinas, tentar “ver de perto” e fazer falar as pessoas comuns sobre sua própria experiência e concepção de mundo, em suma, alcançar o “ponto de vista do nativo” e tratar o passado como se fosse um país estrangeiro. (Cf. PALLARES-BURKE, 2000: 120) Uma das dificuldades em tratar das relações interdisciplinares é que não se trata nunca de um encontro marcado e pontual. Com freqüência, as fronteiras não são apenas lugares de encontros, mas de desencontros. Daí os descompassos e os mal-entendidos, como exemplifica Peter Burke: [...] os historiadores descobriram as explicações funcionais mais ou menos na época em que os antropólogos já demonstravam insatisfação com elas. Inversamente, os antropólogos estão descobrindo a importância dos eventos quando muitos historiadores já abandonaram a histoire événementielle para se dedicar ao estudo das estruturas subjacentes. (BURKE, 2002: 36) Além disso, no plano epistemológico, trata-se, afinal, de perspectivas muito diferentes, a começar pelas diferenças no tocante ao sujeito e ao objeto dos respectivos saberes. Discutindo as relações tempestuosas entre os distintos observadores, Clifford Geertz coloca muito claramente a complexidade do problema: O “nós”, assim como o “eles”, significam coisas diferentes para quem olha para trás [o historiador] e para quem olha para os lados [o antropólogo], problema este que não se torna propriamente mais fácil quando, como vem acontecendo com freqüência cada vez maior, alguém tenta fazer as duas coisas. (GEERTZ, 2001: 113) Como diz um historiador da antropologia, James Clifford, é preciso procurar saber como idéias antropológicas “viajam” para outras disciplinas, e como elas são traduzidas ou rejeitadas. (CLIFFORD, 2002: 256) Para tanto, as margens ou fronteiras entre as disciplinas são campos privilegiados de análise, pois é ali que os contatos e as repulsas se dão efetivamente e onde saberes híbridos são produzidos. Importa frisar, entretanto, a necessidade de observar essas disciplinas em suas inter-relações dinâmicas, quer dizer, apreender a historicidade própria dos diálogos e sua efetivação na prática dos saberes. Uma perspectiva teórica e metodologicamente interessante para analisar o caráter híbrido de determinados discursos é aquela aberta por Walter Mignolo, crítico literário mexicano que trabalha numa zona de tríplice fronteira entre a teoria da literatura, a antropologia de culturas meso-americanas e a análise do discurso historiográfico. Para Mignolo, trata-se de entender que as diferenças e as semelhanças [entre os campos do saber] são construídas a partir dos pressupostos que fundam e dos objetivos que guiam tanto a produção discursiva quanto sua análise, e não necessariamente em propriedades “naturais” que devem ser descobertas na “literatura”, “história”, “antropologia”, “ficção” etc. Essa tese pressupõe que tais palavras não remetem a entidades nem concretas nem abstratas, mas a um conhecimento compartilhado e heterogêneo entre aqueles que produzem e interpretam os discursos. (MIGNOLO, 1993: 115-16, grifos no original). Em outras palavras, semelhanças e diferenças entre práticas de conhecimento heterogêneas não são naturais, não estão dadas a partir das especificidades dessas práticas; antes, elas próprias são construções condicionadas social, histórica e culturalmente, e, portanto, sujeitas a regras, normas e convenções específicas no tempo e no espaço. Portanto, podem ser cartografadas e historicizadas a partir da análise de um determinado contexto intelectual, no jogo interdisciplinar de relações entre as diferentes perspectivas de conhecimento. Nas regiões de fronteira entre as ciências sociais, as redes constituídas pelas relações interdisciplinares — ao mesmo tempo amigáveis e litigiosas — são evidentemente muito complexas. No presente caso, é claro que diferentes maneiras de conceber a teoria da história e a teoria antropológica terão como resultado diferentes modos de conceber as relações possíveis entre ambas ciências sociais. Assim, grosso modo, o diálogo entre o marxismo de E. P. Thompson ou Christopher Hill e a antropologia social anglo-saxônica é muito diferente do diálogo entre a história da cultura de Darnton e a antropologia hermenêutica de Geertz; e ambas são bastante singulares quando comparadas à história a la Annales e o privilégio que ela dá aos contatos com a etnologia francesa, de Mauss a LéviStrauss e além. Os múltiplos cruzamentos e combinações possíveis entre as diferentes tradições antropológicas e historiográficas tornam ainda mais complexos os campos constituídos por essas interfaces que, no limite, apontam para a dissolução das fronteiras disciplinares. Há que se considerar, ainda, a mobilidade e a fluidez das fronteiras entre a história e a antropologia pelo menos desde o fim do século XIX. Em outras palavras, é importante apreender os intercâmbios disciplinares em sua historicidade complexa, percebendo simultaneamente as rupturas e as permanências das relações entre os saberes num quadro epistêmico de mais longa duração. E há que se levar em conta, por fim, os diferentes contextos de antropologização do discurso histórico e de historicização do discurso antropológico, pois se sabe que o estudo das relações interdisciplinares — como, aliás, de qualquer tipo de relação — ganha em clareza quando se as concebe como uma via de mão dupla e não como uma rua de mão única. Mas esse é um programa necessariamente coletivo com o qual, aqui e agora, podemos apenas nos identificar. Concentremo-nos mais detidamente no último terço do século XX e nas especificidades da conjuntura intelectual francesa. No campo historiográfico, a virada antropológica no jogo das relações interdisciplinares da história com as ciências sociais pode ser lido, entre outras razões, como um descontentamento com os determinismos monocausais e com a metáfora da base/superestrutura nas explicações históricas, em que a cultura ou a ideologia, as mentalidades, o simbólico, as representações coletivas ou ainda o imaginário apareciam como reflexos ou epifenômenos da realidadematerial, numa abordagem bastante reducionista e mecanicista. Mas, segundo Michel de Certeau, dois outros elementos mais gerais e importantes intervém no processo de antropologização da história, a saber, a permanência do “morto” (a tradição) e a crise da idéia de progresso: Em primeiro lugar, a tomada de consciência contemporânea (antropológica, psicanalítica, etc.) de que a tradição, que se tinha relegado para um passado totalmente acabado, julgando assim expulsá-la, permanece e volta nas presentes práticas e ideologias. O morto continua assolapado na atualidade, assedia-a e determina-a. Nunca mais se acaba de o matar ou de o exorcizar. Semelhante verificação, ligada à desmistificação da idéia de progresso, engendra uma antropologização da história e uma recrudescência do interesse por aquilo a que ontem se chamavam as “resistências” ao progresso. Daí uma análise com vistas a detectar a relação dos acontecimentos com as constâncias estruturais, as permanências nos modelos de sociabilidade, de festa, de exclusão, etc. (DE CERTEAU, 1983: 28) Nesse contexto, a antropologia histórica triunfante a partir dos anos 70 foi o exemplo mais espetacular de uma dessas tentativas de hibridização levadas a efeito sob o signo da interdisciplinaridade. O encontro da antropologia com a história, ou vice-versa, é uma das matrizes daquilo que Geertz chamaria gêneros misturados, ou seja, estudos de caráter híbrido que não obedecem mais às fronteiras disciplinares estabelecidas pela ciência moderna a partir do século XIX. (GEERTZ, 1983: passim) Outros preferiram falar da “fusão” história-antropologia como uma das formas do pós-modernismo em historiografia. Seja como for, o contato crítico com os conceitos antropológicos básicos (cultura, etnicidade, alteridade, relativismo, identidade, diferença, entre outros) propiciou o nascimento de uma historiografia antropologicamente orientada que, por sua vez, tornou possível a problematização, pelos historiadores, do conceito de cultura e, assim, a afirmação da história cultural em novas bases. Geralmente, os historiadores tinham, até então, uma concepção humanista e elitista muito estreita do que seja cultura: as obras do pensamento erudito, das belas artes e da literatura, objetos do que hoje chamaríamos, respectivamente, história intelectual ou das idéias, história da arte e história literária. Em meados dos anos 1960, Le Roy Ladurie era um dos inúmeros historiadores que reclamavam a ampliação do conceito de cultura e a expansão dos domínios da pesquisa histórica. Numa discussão sobre a história social realizada no Colóquio de Saint-Cloud em 1965, o historiador expunha claramente suas reservas quanto ao uso generalizado da noção marxista, então muito em voga, de consciência de classe: “Uma tal expressão”, aponta, “reclama duas observações. Não há, também, elementos inconscientes, cuja importância não é desprezível, nos comportamentos sociais?” E propunha a substituição do conceito sociológico restritivo pela noção antropológica mais abrangente de cultura: “Em vez de consciência de classe, termo um pouco restrito, não se deveria falar de níveis de cultura, cultura no sentido intelectual, e também, de maneira geral, no sentido antropológico do termo?” (Apud GOUBERT, 1973: 137) É certo que o contato com os estudos antropológicos permitiu a muitos historiadores relativizar a concepção ocidental moderna de historicidade como evolução ou progresso unilinear contínuo e homogêneo; ensinou-lhes, como diz Roberto DaMatta, que há vários modos de conceber e vivenciar a duração do tempo, e que tempo e história são coisas completamente diferentes. (DaMATTA, 1991: 125) Contudo, se as relações com a história (em suas formas evolucionista, “progressista” e historicista) constituem, desde o século XIX vitoriano, uma discussão endêmica na teoria antropológica, a recíproca não é totalmente verdadeira, apesar das notáveis exceções, mormente nos estudos sobre o medievo europeu (um Huizinga, um Marc Bloch). Entre os historiadores franceses, é somente a partir do final dos anos 1950, com a célebre polêmica entre Lévi-Strauss, Braudel
Trata-se, na verdade, de uma mutação muito mais ampla das práticas historiográficas, marcadas significativamente pelo avanço da história cultural em seus variados modelos, seguidos ou não do epíteto “antropológico”. A rigor, o campo intelectual da chamada Nova História é todo ele constituído por uma ampla e complexa rede de cruzamentos interdisciplinares. A chamada terceira geração dos Annales de fato radicalizou o imperativo categórico de Febvre em prol da abertura da curiosidade historiadora: “Historiadores, sejam geógrafos. Sejam também juristas e sociólogos, e psicólogos (...)”. (FEBVRE, 1977: 56) Sejam, sobretudo, antropólogos, acrescentaria a terceira geração. É preciso observar que os praticantes da Nova História pertencem a uma geração de historiadores — Duby, Delumeau, Chaunu, Le Goff, Vovelle, Le Roy Ladurie e outros —, que passou, com mais ou menos rapidez, de uma história estritamente econômica e social a uma história amplamente cultural. (LANGLOIS, 1993: 662) No contexto francês, a história social e econômica, dominante no campo historiográfico desde o segundo pós-guerra, relativamente apagou-se diante desse avanço que retomava — para transformá-lo profundamente — o programa original dos fundadores dos Annales, Bloch e Febvre, nos anos 1930. Numa tentativa de síntese teórica sobre a Nova História, Le Goff insere essa tendência historiográfica numa “profunda renovação do domínio científico” desde o final dos anos 50: 1) a afirmação de ciências relativamente novas: a sociologia, a demografia, a antropologia, etc.; 2) a renovação de ciências tradicionais: a lingüística moderna, a nova história econômica, a matemática moderna; 3) o avanço da interdisciplinaridade, que deu origem a uma série de ciências compósitas: história sociológica, demografia histórica, antropologia histórica, psicolonguística, etno-história, matemática social, psicofisiologia, etnopsiquiatria, sociobiologia, etc. (LE GOFF, 1990: 27) O jogo de relações entre história e antropologia coloca uma série de questões. Do ponto de vista da história da historiografia e da epistemologia da história, em que mais imediatamente nos situamos, a questão mais geral e importante é a seguinte: que tipo de história e, conseqüentemente, que regime de historicidade (a expressão é de François Hartog) são produzidos a partir do agenciamento, sob a forma do texto, das diferentes perspectivas de análise da vida social? Outras questões são decorrentes: que concepção de história e de antropologia orienta o diálogo interdisciplinar no campo da Nova História? Que concepção de interdisciplinaridade orienta esse (ou resulta desse) encontro de olhares? Quais são os pressupostos epistemológicos subentendidos na prática interdisciplinar? Como se constrói, empírica e teoricamente, a aliança entre a perspectiva histórica e a antropológica? A principal hipótese que aventamos é a seguinte: o privilégio conferido a um princípio de simultaneidade (de sincronicidade), em detrimento de um princípio de sucessão (de diacronia), esse primado não coloca em xeque a noção mesma de historicidade — como afirmam apressadamente os seus críticos —, mas sim altera-lhe o estatuto. A chamada história estrutural, não sem tensões e paradoxos que cumpririam examinar mais detidamente, combina e concilia, no trabalho de representação inteligível do passado, o enfoque sincrônico típico da antropologia com a abordagem diacrônica característica da racionalidade historiadora. Vemos nascer assim, dos rebentos desse enamoramento instável, um novo regime de historicidade que, embora carente de elucidação teórica, parece que veio para ficar. Portanto, não há que se falar, polêmica e paradoxalmente, de uma “história imóvel”, como quer Le Roy Ladurie; nem há que se concordar simplesmente com a crítica ligeira e generalizante de François Dosse, de que “A inércia, que caracteriza o que se chama de ´sociedades frias´, define, então, a civilização ocidental.”

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