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VISÃO HISTORIOGRÁFICA DA ETNOMATEMÁTICA COMO EMPREENDIMENTO HUMANISTA Ubiratan D’Ambrosio Como introdução Ao discutir a posição da cultura na matemática, pode se entender como a questão de conciliar a concepção de matemática como uma busca universal para verdades universais com o fato de que suas várias etapas históricas sejam sempre marcadas por sua localização espaço-temporal. Isto é, pergunta- se se o pluralismo matemático no nível cultural é valorizado se reconhecermos que as diferentes perspectivas que diferentes culturas trazem para matemática são enriquecedoras. Isso leva a questionamentos sobre a natureza da matemática e provoca reflexões, críticas geralmente ignoradas. A questão sobre o que é e não é matemática não é simplesmente uma questão epistemológica, pois a palavra matemática tem sido historicamente usada para designar uma das mais nobres atividades da mente humana, de modo que reconhecer uma forma de pensamento como matemática é reconhecer a universalidade desse pensamento como um empreendimento humano. Lamentavelmente, o ambiente acadêmico deprecia e mesmo exclui muitas formas de matemática, marginalizando-as. Ao reconhecer a universalidade da matemática, está-se recusando que a Matemática Acadêmica, cuja origem remonta à Antiguidade Grega, fale por todos e se arvore como uma Matemática única. Nesse processo, procura silenciar ou ignorar vozes alternativas. É assim que surge o Programa Etnomatemática, como uma alternativa para restaurar o caráter humanista da Matemática. A origem do título Relatos de viagens sempre me fascinaram. Ainda cursando a Licenciatura, li o livro em que é relatada a viagem de HMS Endeavour, de 1978 a 1771, sob comando de James Cook, para encontrar a Terra Australis Incognita ou “terra desconhecida do sul”. Supunha-se a existência de um outro continente nos mares do Sul, e o nome do navio sugere um empreendimento à busca do desconhecido. Gostei da palavra endeavour que encontrei em vários livros e escritos. Em particular, foi título de um livro elementar de muito sucesso de 1970, por Harold R. Jacobs, Mathematics: a Human Endeavour. Alguns anos mais tarde, o eminente topólogo Raymond L. Wilder publicou o livro Mathematics as a Cultural System, 1981. Neste livro, Raymond L. Wilder 1 https://pt.wikipedia.org/wiki/Terra_Australis_Incognita propôs uma nova maneira de olhar para a matemática, ao considerá-la como um sistema cultural. Usa sistema cultural como um conjunto de costumes, rituais, crenças, instrumentos materiais e intelectuais, e assim por diante, compartilhados por um grupo de pessoas relacionadas por fatores associativos, como contiguidade geográfica, ocupação comum, relações familiares e tribais e uma rede de comunicações, principamente a linguagem. Depois de reconhecer a matemática como um tal sistema, ele recorreu a alguns conceitos de antropologia, como tensão, consolidação, hereditariedade, estresse, pressão ambiental, e formulou algumas leis de evolução e padrões culturais observáveis na evolução da matemática. Na sua análise da evolução histórica da matemática, estuda a difusão ou isolamento de conceitos, descobertas múltiplas, o agrupamento de gênios e precursores ou uma defasagem cultural, padrões de crescimento, de seleção, presença de descontinuidades e mesmo relegância de ideias, o papel dos problemas e suas soluções, o rigor crescente. Wilder usa a palavra endeavour para discutir esse processo. A intenção de Wilder não era escrever uma história da matemática, mas pretendia recuperar sua evolução, como uma resposta à intuição cultural da comunidade matemática. O livro de Wilder foi um dos inspiradores do lançamento, em 1987, do The Humanistic Mathematics Network, por Alvin White, no Claremont College, California. Desde cedo associei-me a esse grupo de pesquisa. A palavra endeavour ficou gravada em minha mente como ações de busca, de avanço, de progresso. Agora, ao escolher um título para esta palestra, resolvi qualificar a Matemática Humanista um endeavour da nossa espécie. Utilizei uma tradução aproximada, um abuso de linguagem, a palavra empreendimento que de certo modo significa assumir uma responsabilidade, estabelecer uma relação entre projeto e realização. Achei esse título adequado para meu enfoque. A espécie humana, desde seus primórdios no paleolítico e no neolítico, empreendeu viagens por terras desconhecidos, uma aventura de busca do novo e do desconhecido, como aconteceu com o HMS Endeavour quando saiu do porto de Plymouth, em 1768. A história nos dá indicações dos vários momentos dessa aventura. Adoto uma abordagem holística para a história, analisando sistemas complexos de fatos, fenômenos e eventos como um todo interligado, coerente e contextualizado. Isso contrasta com a tradição puramente analítica, comumente adotada na academia, que é um reducionismo que visa ganhar compreensão de sistemas complexos dividindo-os em elementos de composição menores e ganhando compreensão das propriedades elementares de seus componentes. A dicotomia holismo- reducionismo é permanente. Ao optar pela abordagem holística adoto uma postura transdisciplinar e transcultural em minhas reflexões. O suporte para a abordagem holística é múltiplo. Gosto da proposta da Teoria Geral de Sistemas, como apresentada por Kenneth Building.1 1 Kenneth Boulding: General Systems Theory, Management Science, 2, 3 (Apr. 1956) pp.197- 208. 2 temos as disciplinas e ciências separadas, com seus corpos separados de teoria. Cada disciplina corresponde a um determinado segmento do mundo empírico, e cada uma desenvolve teorias que têm aplicabilidade particular ao seu próprio segmento empírico. Física, química, biologia, psicologia, sociologia, economia e assim todas esculpem para si certos elementos da experiência do homem e desenvolvem teorias e padrões de atividade (pesquisa) que produzem satisfação de compreensão e são apropriados para seus segmentos especiais. Podemos optar por um nível de construção de um tipo intermediário entre as construções altamente generalizadas da matemática pura e as construções específicas das disciplinas especializadas. A Matemática Acadêmica tenta organizar relações altamente gerais em um sistema coerente, um sistema que pode não ter qualquer conexão com o mundo "real" ao nosso redor. A Matemática Acadêmica estuda todas as relações pensáveis abstraídas de situações concreta ou corpo de conhecimento empírico. Vai além de relações quantitativas estritamente definidas e ousa recorrer também a relações de natureza qualitativa. A Matemática Acadêmica aborda a linguagem da teoria, mas não o conteúdo da teoria. Todo indivíduo é obcecado por entender o outro e por entender e explicar eventos, fatos e fenômenos. Isso é próprio da natureza humana. Entender implica a ação de observar, fruto de uma contemplação intelectual, como vendo um espetáculo ou participando de uma festa. É uma arte que geralmente resulta em uma reação retórica de rejeição ou continência, muitas vezes dando origem a uma prática a serviço da política, da moralidade, da filosofia, da religião, da saúde e de outros interesses. Quem procura entender está claramente consciente, projeta suas preocupações e destaca eventos marcantes, mesmo que suas causas e seus determinantes subjacentes estejam abaixo do nível de compreensão dos seus contemporâneos, que não estavam conscientes, às vezes não estavam cientes, mas que involuntariamente lidavam com suas consequências. Mas há eventos, fatos e fenômenos que, embora tenham escapado à observação e não tenham sido registrados na documentação da época, fazem parte da memória culturale das tradições dos povos. Essas duas categoria de eventos, fatos e fenômenos é o que o historiador Bernard Bailyn chama história manifesta e história latente. 2 Os historiadores do presente têm mais vistas do velho do que do novo, olham para o presente recorrendo a seu conhecimento do passado. A Historiografia é como uma areia movediça. É um conjunto de narrativas orais e escritas, algumas verdadeiras, muitas o resultado de engano e de autoengano, outras mentirosas, aptas a envolver qualquer leitor e pesquisador que queira sondar esse conjunto de matérias. O mundo acadêmico proclama 2 Bernard Bailyn: The Challenge of Modern Historiography. The American Historical Review, Vol. 87, No. 1 (Feb., 1982), pp. 1-24; p.10 3 essa sondagem, mas muitas vezes privilegia o engano, a falsidade deliberada e a mentira direta como meios legítimos para alcançar fins políticos na sociedade em geral e na própria academia, onde seu desempenho, confiabilidade e veracidade são avaliados por seus próprios pares. O pano de fundo da história não é apenas o que é narrado oralmente ou por escrito, mas é um complexo de tudo que intervém num fato, num acontecimento, num evento. Refletindo sobre essas questões, somos levados a questionar sobre a natureza da ação e sobre os nossos interesses e intenções. Toda ação implica o novo, o que não significa que necessariamente o que existia antes deve ser removido ou destruído, e que as coisas como eram antes devam ser negadas. Lamentavelmente, ao propor o novo, o agente, por engano ou autoengano ou por mentira deliberada, ignora ou mesmo nega e propõe destruir o que havia antes. Essa situação é evidente no processo de conquista e colonização e nas práticas atuais da globalização. Conhecimento e comportamento Com essa postura historiográfica, discuto a evolução do conhecimento e do comportamento. Há inúmeras concepções e definições de conhecimento e de comportamento. A minha: conhecimento é o conjunto de estratégias para sobreviver e transcender, e comportamento é a manifestação do conhecimento. Conhecimento e comportamento evoluem através de um processo lento e fragmentado. A relação entre conhecimento e comportamento é uma relação diádica, uma unidade fechada e autoexplicativa da realidade natural, cultural e social. É um sistema adaptativo que, gradualmente, transforma suas próprias bases cognitivas e sociais, para satisfazer às pulsões de sobrevivência e de transcendência da espécie humana. Em todos os seres vivos, a pulsão de sobrevivência do indivíduo e da espécie é intrínseca. Em todos os seres vivos, a sobrevivência é a satisfação de necessidades vitais, e as estratégias são ditadas pelos mecanismos fisiológicos. A satisfação da pulsão de sobrevivência se dá instantaneamente, aqui e agora, o que é por muitos chamada de instinto. Dentre a ordem dos primatas, a família dos hominídeos surgiu há cerca de 14 milhões de anos, e iniciou-se então o processo evolutivo que conduziu ao gênero homo e à espécie homo sapiens, que inclui o homo neandertalensis, o homo denisovanense e várias outras. Sobreviveu até hoje o homo sapiens, do qual somos físicamente, biologicamente e intelectualmente diferenciados como a subespécie homo sapiens sapiens.3 No processo evolutivo, as famílias e subfamílias de bípedes, de australopitecos e muitos outros se moveram em 3 Sigo, para essa classificação, a taxonomia ainda hoje usada, proposta pelo botânico sueco Carl Linnaeus (1707-1778), para definir os grupos de organismos biológicos com base em características comuns. 4 https://pt.wiktionary.org/w/index.php?title=evolutivo&action=edit&redlink=1 https://pt.wiktionary.org/w/index.php?title=intelectualmente&action=edit&redlink=1 https://pt.wiktionary.org/w/index.php?title=biologicamente&action=edit&redlink=1 https://pt.wiktionary.org/w/index.php?title=f%C3%ADsicamente&action=edit&redlink=1 https://pt.wiktionary.org/wiki/conduziu https://pt.wikipedia.org/wiki/Biol%C3%B3gico https://pt.wikipedia.org/wiki/Carolus_Linnaeus grupos e começaram a surgir os primeiros passos no desenvolvimento consciente da pulsão de transcendência, de ir além da sobrevivência. Desde os primórdios, o gênero homo é formado por indivíduos omnívoros, que vivem em tribos e desenvolvem comportamento social, vocalização e gestos complexos, além de revelarem cuidados parentais, o que poderia ser considerada uma protoeducação. O aqui-agora dá origem ao onde-quando e começam a questionar e procuram entender e explicar fatos e fenômenos, e lidar com situações e problemas que surgem na condução do cotidiano. Geram e organizam estratégias para entender e explicar e lidar com situações e socializam essas estratégias. Há cerca de 1 milhão de anos inicia-se esse processo com o surgimento do homo denisovano, homo neandertalense e outras espécies, inclusive a mais tardia, o homo sapiens. Nesse processo evolutivo, desenvolveram abrigos comunais, descobriram e aprenderam a controlar o fogo, desenvolveram linguagem, fabricaram instrumentos e passaram a reconhecer lideranças. Inicia-se uma hierarquia entre indivíduos de um grupo. Uma referência básica sobre essas etapas na evolução da espécie é o excelente filme A Guerra do Fogo de Jean-Jacques Annaud. Embora seja de 1981, o filme é atual e pode ser adotado como roteiro de um projeto de pesquisa, pois leva quem assiste a fazer revisões permanentes da narrativa graças a importantes resultados recentes de pesquisa de paleontólogos, arqueólogos, antropólogos, linguistas e graças às novas técnicas de datação arqueológica, de sequenciamento de DNA e de tantas outras técnicas que vêm se desenvolvendo no mundo acadêmico. Nesse cenário evolutivo desenvolvem-se conhecimento e comportamento, que são as estratégias para satisfazer às pulsões de sobrevivência e de transcendência. Essas estratégias são geradas e mentalmente organizadas por indivíduos, são socializadas, transmitidas e difundidas em grupos afins. O conhecimento se manifesta de duas formas: 1) pelo indivíduo, que absorve informações da realidade e gera seu próprio conhecimento, mentefatos, fruto de sua criação – que podemos chamar de conhecimento individual – acessível exclusivamente a quem os gerou; 2) alguns desses mentefatos são transformados, somente por decisão de quem os gerou, em artefatos (gestos, fala, escrita, artes) e assim, por meio de técnicas de comunicação, são socializados entre-indivíduos. A realidade é enriquecida por conhecimentos socializados e cada indivíduo, para gerar conhecimento, é informado pela realidade. O conhecimento gerado pelo indivíduo, uma vez socializado, incorpora-se à realidade. Qualquer outro indivíduo (inclusive o próprio gerador inicial) é informado por essa realidade, que é acessível a todos, é de domínio público. E a coisa continua, indivíduos pensam uma coisa, geram mentefatos, socializam alguns desses mentefatos transformando-os em artefatos, o que permite que sejam captados por outros, e ampliam a realidade. Todos participam, algum indivíduo (às vezes, independentemente, vários indivíduos) geram mentefatos, transforma-os em artefatos, o que amplia a realidade e assim temos o que é chamado conhecimento. Assim evolui o que se chama 5 simplesmente conhecimento, a partir de uma realidade dinâmica, em permanente ampliação. Levemente parecido com o que Hegel chama zeitgeist. Curiosamente, pode-se entender fakenews, ao longo de toda a história da humanidade, por essa conceituação de geração e socialização de conhecimento. É importante tomarmos a palavra conhecimento com muita atenção. Vem do latim cognoscere (saber/fazer, não dicotômicos: “quem sabe, faz, quem faz está sabendo”) e se tornou favorito de pensadores. Um exemplo interessante: Pedro, o Mago (contemporâneodos apóstolos), ficou famoso por tentar conhecer os milagres de Cristo – isto é, saber – e a partir daí, tentar realizar – fazer. Muito a ver com as relações entre conhecimento e poder. Para mais detalhes sobre esse tema ver minha teoria sobre o CICLO DO CONHECIMENTO, particularmente quando discuto a expropriação do conhecimento como instrumento político. Todos os filósofos, em todos os tempos, tentam explicar o que é conhecimento. Um lê o outro, contesta ou discorda, escreve tratados sobre isso. Filósofos livrescos (usando a frase de Schopenhauer) se deliciam escrevendo sobre conhecimento, repetindo o que outros disseram, mas poucos recorrem às ciências da cognição e às ciências da mente. Discutem a palavra. Isso se dá não só sobre conhecimento, mas sobre qualquer tema de interesse universal. Engaiolam-se nas discussões sobre um tema, criando um linguajar específico. Isto me levou a formular a metáfora da GAIOLA EPISTEMOLÓGICA, onde o objetivo dos ali reunidos é refletir sobre problemas e questões formuladas na gaiola, utilizando métodos e outros recursos intelectuais próprios da gaiola. O que se passa fora da gaiola, contextualizado nos ambientes naturais, sociais e culturais mais distintos, não é objeto das pesquisas nas gaiolas. Felizmente, alguns engaiolados saem da gaiola e retornam com questionamentos novos. Isso me faz lembrar um relato fictício de viagem, que é o livro Nova Atlântida, de Francis Bacon (1627). Assim se dá o verdadeiro progresso no sentido humanístico. Minha discussão é contextualizada e, naturalmente, holística, integrando recursos de diferentes naturezas: recursos humanos (conhecimento, práticas, trabalho, hierarquias), recursos inertes (terra, instrumentos) e recursos vivos (sementes, plantio e colheita, animais e domesticação). Integrados, dão origem a sistemas econômicos, a sistemas de governança e a sistemas de poder. A humanidade é um conjunto de sociedades, todas muito complexas. Compartilham conhecimento e comportamento, saberes e fazeres, resultados da socialização, que são transmitidos e difundidos, e determinam o comportamento do grupo, que se submete a um acordo sobre maneiras de agir, sobre linguagem e maneiras de se relacionar, sobre valores e rituais. Nesse contexto se situa a Matemática que, de formas muito diferentes, tem estado presente em todos os tempos e em todas as culturas. É, efetivamente, 6 um empreendimento humano. A trajetória da Matemática, em todas as culturas, é elusiva. Há uma preocupação de filósofos de todos os tempos em definir matemática. A palavra remonta, etimologicamente, ao Grego Antigo. O uso da palavra Matemática para designar uma ciência autônoma, uma disciplina como a conhecemos hoje, é tardia, surge no século XVI, mas pouco prestigiada. Richard Mulcaster (1532–1611) publicou uma série de ensaios com uma proposta de reorganizar a educação na Inglaterra. Diz Eu teria outra faculdade dedicada às Ciências Matemáticas, embora eu me oponha a alguns de boa inteligência, que não conhecendo a força dessas faculdades porque as consideravam indignas de estudo, como não levando à preferência, estão acostumados a zombar de cabeças matemáticas. Tais estudos requerem concentração, e exigem um tipo de mente que não busca fazer exibição pública até depois da contemplação madura na solidão.4 Na Primeira Edição, 1771, da Encyclopaedia Britannica; or, A dictionary of arts and sciences, compiled upon a new plan, lemos: MATHEMATICS originalmente significava qualquer disciplina ou aprendizagem; mas no presente, denota aquela ciência que ensina, ou contempla, o que for capaz de ser numerado ou mensurado, desde que computável ou mensurável; e de acordo é subdividida em Aritmética, a qual tem números como seus objetos, e Geometria, a qual trata de grandezas. Matemáticas são comumente distinguidas em pura e especulativa, que consideram quantidade abstratamente; e mistas, que trata magnitude como subsistente em corpos materiais, e consequentemente são sempre tecidas em considerações físicas. Matemáticas mistas são muito abrangentes, desde que elas possam se referir a Astronomia, Ótica, Geografia, Hidrostática, Mecânica, Fortificação, Navegação, etc. Matemática Pura tem uma vantagem peculiar, que ela não ocasiona disputas contenciosas, como nos outros ramos de conhecimento; e a razão é que as definições dos termos são premissas, e todos que leem uma proposição têm a mesma ideia de cada parte dela. Assim é fácil pôr um fim a todas as controvérsias matemáticas, argumentando que o adversário não tem apoio para sua definição, não tendo mostrado verdadeiras premissas, ou que ele tenha derivado conclusões falsas de princípios verdadeiros, e no caso de não sermos capazes de usar nenhum desses argumentos, devemos reconhecer a verdade do que foi demonstrado. Interessante que Álgebra não é uma área da Matemática, mas tem sua posição como uma linguagem conveniente para Aritmética. O verbete Álgebra nos diz, na Britannica de 1771: 4 James Oliphant: The educational writings of Richard Mulcaster (1532–1611), abridged and arranged, with a critical estimate, Glasgow:James MacLehose and sons , 1903; P.95. 7 ALGEBRA é um método geral de computação por certos sinais e símbolos, os quais foram concebidos com esse objetivo e se mostraram convenientes. É chamada Universal Arithmetic, e procede por operações e regras semelhantes às da aritmética comum, fundamentada nos mesmos princípios. Pode parecer estanho ter uma preocupação em definir matemática. Por que nos preocuparmos com o desenvolvimento de uma compreensão mais detalhada da matemática — definindo-a, por exemplo, com conceitos em termos precisos? Todos sabem do que estamos falando quando nos referimos a coisas como aritmética, álgebra, geometria, teoremas, equações. Mesmo expressões estranhas que encontramos em textos científicos são identificadas como matemática. No entanto, a filosofia muitas vezes se voltou para a questão de definir matemática e tem feito isso amplamente por duas razões principais. A matemática sempre foi um domínio de aplicação específica para a filosofia, no sentido de que a matemática levanta numerosas questões de natureza filosófica. A filosofia sempre tratou objetos matemáticos como objetos de estudo. Questiona aspectos que vão desde o limite da filosofia e da psicologia, tais como por que os seres humanos em todas as idades e de todas as culturas recorrem à matemática para lidar com e para explicar fatos e fenômenos de seu ambiente?, até aspectos de natureza ontológica, como que tipo de coisa é uma proposição matemática? Essas são preocupações prático- funcionais, como qual é o propósito da matemática e como formulamos julgamentos de valor sobre matemática. Portanto, não apenas o conceito de matemática em geral, mas também resultados matemáticos têm provocado e desafiado o pensamento filosófico. A matemática sempre foi tratada de forma específica com raízes religiosas, mas na modernidade se libertou e marcou o desenvolvimento intelectual de uma cultura, enquanto, ao mesmo tempo, reconhecem na matemática vínculos com a realidade e com a espiritualidade. A filosofia também tem se preocupado com a questão do que é que nos leva a levar a matemática como um todo e até mesmo permanecer cativado por ela. Isso normalmente acontece com certas áreas da matemática que são, potencialmente, especialmente poderosas em sua capacidade de provocar reflexões sobre a realidade como um todo. Em suma, experimentamos uma vasta gama de questionamentos quando analisamos uma proposição matemática. O que é surpreendente é que tudo isso fascina, mesmo aqueles que enfocam a questão de maneira diferente uns dos outros. Todas as reflexões são provocadas por objetos que têm uma forma peculiar de existência,pois podem ou não se referir a objetos que pertencem ao mundo real, objetos que existem ou já existiram, ou objetos que nunca existiram. Há um paradoxo no fato de que o interesse dos filósofos distingue objetos reais de fictícios que levam a outros objetos fictícios. Naturalmente, o comportamento acordado pelo grupo provoca a busca de mais conhecimento pelo grupo. Esse compartilhar leva ao conceito de cultura. 8 O que é cultura? Há um sem número de definições de cultura. Minha definição é a seguinte: cultura de um grupo é o conjunto de comportamentos acordados por este grupo e de conhecimentos compartilhados e intrínsecos ao grupo, o que implica linguagem comum, mitos e valores aceitos e “saberes/fazeres” praticados no grupo. Cultura é um conceito social, central nos estudos da evolução humana. Pesquisas recentes de primatologistas têm dado importantes indicadores do processo de diversificação cultural humana e de seu impacto na adaptação humana. O processo de evolução do conhecimento é lento e fragmentado e está sujeito a encontros de grupos com culturas distintas. Essas distinções podem ser verticais, isto é, intraculturais, sobretudo entre grupos distanciados em tempo (históricos, ancestrais e novas gerações), e horizontais, isto é, interculturais. Lidar com esses encontros verticais e horizontais é objeto do estudo transdisciplinar e transcultural da DINÂMICA DOS ENCONTROS CULTURAIS, que tenho discutido em vários trabalhos. Como conclusão Tentei mostrar que as teorias de base para fundamentar o Programa Etnomatemática e o conceito de Matemática Humanista são o ciclo do conhecimento, a metáfora das gaiolas epistemológicas e a dinâmica dos encontros culturais. Há muitas maneiras pelas quais as populações diferentes se encontram. Por exemplo, através de comércio, exogamia, guerras e invasões, migrações para outras terras, sobretudo por razões climáticas, expansão demográfica e outras razões. Em todos eles há uma troca de caracteres cultururais, tais como língua, religiões, comportamento e etiquetas, nutrição e culunária. Desde o neolítico até hoje essas consequências de encontros ocorrem. É o que chamo a dinâmica dos encontros culturais. A realidade [entorno natural e cultural] informa indivíduos por meio dos sentidos, da memória, do emocional, do imaginário e tantos outros fatores da realidade. Cada indivíduo, ao ser informado, gera e organiza intelectualmente conhecimento, através de mecanismos neurocognitivos, com a finalidade de explicar, entender, conviver e lidar com a realidade, resolvendo problemas e situações que identifica. Esse conhecimento individual [mentefatos] é seletivamente socializado com outros indivíduos, através de comunicação no sentido amplo [artefatos: gestos, ruídos, linguagem, artes]. Assim, tornam-se sociofatos, que são conhecimentos sociais, organizados e incorporados à realidade acessível a todos.5 Mostra-se conveniente e útil, muitas vezes 5 Devo as palavras mentefatos, artefatos e sociofatos a David Bidney: On the Concept of Culture and Some Cultural Fallacies. American Anthropologist New Series, [S.I.], v. 46, n. 1, p. 30-44, jan./mar., 1944. 9 indispensável, para explicar, entender, conviver e lidar com a realidade, resolvendo problemas e situações. É então expropriado pelos grupos de poder e institucionalizado como sistemas [disciplinas, com normas e códigos específicos e epistemologia própria, o que chamo gaiolas epistemológicas], e mediante esquemas de transmissão e de difusão, principalmente retórica, educação, seitas, academias, mosteiros, universidades, associações gremiais, clubes e sociedades, agora com ampla utilização das mídias e redes sociais. A geração, a organização individual e social, e a transmissão e difusão de conhecimento é o que chamo ciclo do conhecimento. 10 Na Primeira Edição, 1771, da Encyclopaedia Britannica; or, A dictionary of arts and sciences, compiled upon a new plan, lemos:
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