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Visão historiográfica da Etnomatemática como empreendimento humanista Dambrosio

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VISÃO HISTORIOGRÁFICA DA ETNOMATEMÁTICA 
COMO EMPREENDIMENTO HUMANISTA
Ubiratan D’Ambrosio
Como introdução 
Ao discutir a posição da cultura na matemática, pode se entender como a
questão de conciliar a concepção de matemática como uma busca universal
para verdades universais com o fato de que suas várias etapas históricas
sejam sempre marcadas por sua localização espaço-temporal. Isto é, pergunta-
se se o pluralismo matemático no nível cultural é valorizado se reconhecermos
que as diferentes perspectivas que diferentes culturas trazem para matemática
são enriquecedoras. Isso leva a questionamentos sobre a natureza da
matemática e provoca reflexões, críticas geralmente ignoradas. A questão
sobre o que é e não é matemática não é simplesmente uma questão
epistemológica, pois a palavra matemática tem sido historicamente usada para
designar uma das mais nobres atividades da mente humana, de modo que
reconhecer uma forma de pensamento como matemática é reconhecer a
universalidade desse pensamento como um empreendimento humano.
Lamentavelmente, o ambiente acadêmico deprecia e mesmo exclui muitas
formas de matemática, marginalizando-as. Ao reconhecer a universalidade da
matemática, está-se recusando que a Matemática Acadêmica, cuja origem
remonta à Antiguidade Grega, fale por todos e se arvore como uma Matemática
única. Nesse processo, procura silenciar ou ignorar vozes alternativas. É assim
que surge o Programa Etnomatemática, como uma alternativa para restaurar o
caráter humanista da Matemática.
A origem do título
Relatos de viagens sempre me fascinaram. Ainda cursando a Licenciatura, li o
livro em que é relatada a viagem de HMS Endeavour, de 1978 a 1771, sob
comando de James Cook, para encontrar a Terra Australis Incognita ou “terra
desconhecida do sul”. Supunha-se a existência de um outro continente nos
mares do Sul, e o nome do navio sugere um empreendimento à busca do
desconhecido. Gostei da palavra endeavour que encontrei em vários livros e
escritos. Em particular, foi título de um livro elementar de muito sucesso de
1970, por Harold R. Jacobs, Mathematics: a Human Endeavour. Alguns anos
mais tarde, o eminente topólogo Raymond L. Wilder publicou o livro
Mathematics as a Cultural System, 1981. Neste livro, Raymond L. Wilder
1
https://pt.wikipedia.org/wiki/Terra_Australis_Incognita
propôs uma nova maneira de olhar para a matemática, ao considerá-la como
um sistema cultural. Usa sistema cultural como um conjunto de costumes,
rituais, crenças, instrumentos materiais e intelectuais, e assim por diante,
compartilhados por um grupo de pessoas relacionadas por fatores associativos,
como contiguidade geográfica, ocupação comum, relações familiares e tribais e
uma rede de comunicações, principamente a linguagem. Depois de reconhecer
a matemática como um tal sistema, ele recorreu a alguns conceitos de
antropologia, como tensão, consolidação, hereditariedade, estresse, pressão
ambiental, e formulou algumas leis de evolução e padrões culturais
observáveis na evolução da matemática. Na sua análise da evolução histórica
da matemática, estuda a difusão ou isolamento de conceitos, descobertas
múltiplas, o agrupamento de gênios e precursores ou uma defasagem cultural,
padrões de crescimento, de seleção, presença de descontinuidades e mesmo
relegância de ideias, o papel dos problemas e suas soluções, o rigor crescente.
Wilder usa a palavra endeavour para discutir esse processo. A intenção de
Wilder não era escrever uma história da matemática, mas pretendia recuperar
sua evolução, como uma resposta à intuição cultural da comunidade
matemática. O livro de Wilder foi um dos inspiradores do lançamento, em 1987,
do The Humanistic Mathematics Network, por Alvin White, no Claremont
College, California. Desde cedo associei-me a esse grupo de pesquisa. A
palavra endeavour ficou gravada em minha mente como ações de busca, de
avanço, de progresso. Agora, ao escolher um título para esta palestra, resolvi
qualificar a Matemática Humanista um endeavour da nossa espécie. Utilizei
uma tradução aproximada, um abuso de linguagem, a palavra empreendimento
que de certo modo significa assumir uma responsabilidade, estabelecer uma
relação entre projeto e realização. Achei esse título adequado para meu
enfoque.
A espécie humana, desde seus primórdios no paleolítico e no neolítico,
empreendeu viagens por terras desconhecidos, uma aventura de busca do
novo e do desconhecido, como aconteceu com o HMS Endeavour quando saiu
do porto de Plymouth, em 1768. A história nos dá indicações dos vários
momentos dessa aventura. Adoto uma abordagem holística para a história,
analisando sistemas complexos de fatos, fenômenos e eventos como um todo
interligado, coerente e contextualizado. Isso contrasta com a tradição
puramente analítica, comumente adotada na academia, que é um reducionismo
que visa ganhar compreensão de sistemas complexos dividindo-os em
elementos de composição menores e ganhando compreensão das
propriedades elementares de seus componentes. A dicotomia holismo-
reducionismo é permanente. Ao optar pela abordagem holística adoto uma
postura transdisciplinar e transcultural em minhas reflexões.
O suporte para a abordagem holística é múltiplo. Gosto da proposta da Teoria
Geral de Sistemas, como apresentada por Kenneth Building.1 
1 Kenneth Boulding: General Systems Theory, Management Science, 2, 3 (Apr. 1956) pp.197-
208.
2
temos as disciplinas e ciências separadas, com seus corpos separados
de teoria. Cada disciplina corresponde a um determinado segmento do
mundo empírico, e cada uma desenvolve teorias que têm aplicabilidade
particular ao seu próprio segmento empírico. Física, química, biologia,
psicologia, sociologia, economia e assim todas esculpem para si certos
elementos da experiência do homem e desenvolvem teorias e padrões
de atividade (pesquisa) que produzem satisfação de compreensão e são
apropriados para seus segmentos especiais.
Podemos optar por um nível de construção de um tipo intermediário entre as
construções altamente generalizadas da matemática pura e as construções
específicas das disciplinas especializadas. A Matemática Acadêmica tenta
organizar relações altamente gerais em um sistema coerente, um sistema que
pode não ter qualquer conexão com o mundo "real" ao nosso redor. A
Matemática Acadêmica estuda todas as relações pensáveis abstraídas de
situações concreta ou corpo de conhecimento empírico. Vai além de relações
quantitativas estritamente definidas e ousa recorrer também a relações de
natureza qualitativa. A Matemática Acadêmica aborda a linguagem da teoria,
mas não o conteúdo da teoria.
Todo indivíduo é obcecado por entender o outro e por entender e explicar
eventos, fatos e fenômenos. Isso é próprio da natureza humana. Entender
implica a ação de observar, fruto de uma contemplação intelectual, como vendo
um espetáculo ou participando de uma festa. É uma arte que geralmente
resulta em uma reação retórica de rejeição ou continência, muitas vezes dando
origem a uma prática a serviço da política, da moralidade, da filosofia, da
religião, da saúde e de outros interesses. Quem procura entender está
claramente consciente, projeta suas preocupações e destaca eventos
marcantes, mesmo que suas causas e seus determinantes subjacentes
estejam abaixo do nível de compreensão dos seus contemporâneos, que não
estavam conscientes, às vezes não estavam cientes, mas que
involuntariamente lidavam com suas consequências. Mas há eventos, fatos e
fenômenos que, embora tenham escapado à observação e não tenham sido
registrados na documentação da época, fazem parte da memória culturale das
tradições dos povos. Essas duas categoria de eventos, fatos e fenômenos é o
que o historiador Bernard Bailyn chama história manifesta e história latente. 2
Os historiadores do presente têm mais vistas do velho do que do novo, olham
para o presente recorrendo a seu conhecimento do passado.
A Historiografia é como uma areia movediça. É um conjunto de narrativas orais
e escritas, algumas verdadeiras, muitas o resultado de engano e de
autoengano, outras mentirosas, aptas a envolver qualquer leitor e pesquisador
que queira sondar esse conjunto de matérias. O mundo acadêmico proclama
2 Bernard Bailyn: The Challenge of Modern Historiography. The American Historical Review,
Vol. 87, No. 1 (Feb., 1982), pp. 1-24; p.10
3
essa sondagem, mas muitas vezes privilegia o engano, a falsidade deliberada
e a mentira direta como meios legítimos para alcançar fins políticos na
sociedade em geral e na própria academia, onde seu desempenho,
confiabilidade e veracidade são avaliados por seus próprios pares.
O pano de fundo da história não é apenas o que é narrado oralmente ou por
escrito, mas é um complexo de tudo que intervém num fato, num
acontecimento, num evento. Refletindo sobre essas questões, somos levados a
questionar sobre a natureza da ação e sobre os nossos interesses e intenções.
Toda ação implica o novo, o que não significa que necessariamente o que
existia antes deve ser removido ou destruído, e que as coisas como eram antes
devam ser negadas. Lamentavelmente, ao propor o novo, o agente, por
engano ou autoengano ou por mentira deliberada, ignora ou mesmo nega e
propõe destruir o que havia antes. Essa situação é evidente no processo de
conquista e colonização e nas práticas atuais da globalização.
Conhecimento e comportamento
Com essa postura historiográfica, discuto a evolução do conhecimento e do
comportamento. Há inúmeras concepções e definições de conhecimento e de
comportamento. A minha: conhecimento é o conjunto de estratégias para
sobreviver e transcender, e comportamento é a manifestação do conhecimento.
Conhecimento e comportamento evoluem através de um processo lento e
fragmentado. A relação entre conhecimento e comportamento é uma relação
diádica, uma unidade fechada e autoexplicativa da realidade natural, cultural e
social. É um sistema adaptativo que, gradualmente, transforma suas próprias
bases cognitivas e sociais, para satisfazer às pulsões de sobrevivência e de
transcendência da espécie humana.
Em todos os seres vivos, a pulsão de sobrevivência do indivíduo e da espécie é
intrínseca. Em todos os seres vivos, a sobrevivência é a satisfação de
necessidades vitais, e as estratégias são ditadas pelos mecanismos
fisiológicos. A satisfação da pulsão de sobrevivência se dá instantaneamente,
aqui e agora, o que é por muitos chamada de instinto. Dentre a ordem dos
primatas, a família dos hominídeos surgiu há cerca de 14 milhões de anos, e
iniciou-se então o processo evolutivo que conduziu ao gênero homo e à
espécie homo sapiens, que inclui o homo neandertalensis, o homo
denisovanense e várias outras. Sobreviveu até hoje o homo sapiens, do qual
somos físicamente, biologicamente e intelectualmente diferenciados como a
subespécie homo sapiens sapiens.3 No processo evolutivo, as famílias e
subfamílias de bípedes, de australopitecos e muitos outros se moveram em
3 Sigo, para essa classificação, a taxonomia ainda hoje usada, proposta pelo botânico sueco
Carl Linnaeus (1707-1778), para definir os grupos de organismos biológicos com base em
características comuns.
4
https://pt.wiktionary.org/w/index.php?title=evolutivo&action=edit&redlink=1
https://pt.wiktionary.org/w/index.php?title=intelectualmente&action=edit&redlink=1
https://pt.wiktionary.org/w/index.php?title=biologicamente&action=edit&redlink=1
https://pt.wiktionary.org/w/index.php?title=f%C3%ADsicamente&action=edit&redlink=1
https://pt.wiktionary.org/wiki/conduziu
https://pt.wikipedia.org/wiki/Biol%C3%B3gico
https://pt.wikipedia.org/wiki/Carolus_Linnaeus
grupos e começaram a surgir os primeiros passos no desenvolvimento
consciente da pulsão de transcendência, de ir além da sobrevivência. Desde os
primórdios, o gênero homo é formado por indivíduos omnívoros, que vivem em
tribos e desenvolvem comportamento social, vocalização e gestos complexos,
além de revelarem cuidados parentais, o que poderia ser considerada uma
protoeducação. O aqui-agora dá origem ao onde-quando e começam a
questionar e procuram entender e explicar fatos e fenômenos, e lidar com
situações e problemas que surgem na condução do cotidiano. Geram e
organizam estratégias para entender e explicar e lidar com situações e
socializam essas estratégias. Há cerca de 1 milhão de anos inicia-se esse
processo com o surgimento do homo denisovano, homo neandertalense e
outras espécies, inclusive a mais tardia, o homo sapiens. Nesse processo
evolutivo, desenvolveram abrigos comunais, descobriram e aprenderam a
controlar o fogo, desenvolveram linguagem, fabricaram instrumentos e
passaram a reconhecer lideranças. Inicia-se uma hierarquia entre indivíduos de
um grupo. Uma referência básica sobre essas etapas na evolução da espécie é
o excelente filme A Guerra do Fogo de Jean-Jacques Annaud. Embora seja de
1981, o filme é atual e pode ser adotado como roteiro de um projeto de
pesquisa, pois leva quem assiste a fazer revisões permanentes da narrativa
graças a importantes resultados recentes de pesquisa de paleontólogos,
arqueólogos, antropólogos, linguistas e graças às novas técnicas de datação
arqueológica, de sequenciamento de DNA e de tantas outras técnicas que vêm
se desenvolvendo no mundo acadêmico.
Nesse cenário evolutivo desenvolvem-se conhecimento e comportamento, que
são as estratégias para satisfazer às pulsões de sobrevivência e de
transcendência. Essas estratégias são geradas e mentalmente organizadas por
indivíduos, são socializadas, transmitidas e difundidas em grupos afins.
O conhecimento se manifesta de duas formas: 1) pelo indivíduo, que absorve
informações da realidade e gera seu próprio conhecimento, mentefatos, fruto
de sua criação – que podemos chamar de conhecimento individual – acessível
exclusivamente a quem os gerou; 2) alguns desses mentefatos são
transformados, somente por decisão de quem os gerou, em artefatos (gestos,
fala, escrita, artes) e assim, por meio de técnicas de comunicação, são
socializados entre-indivíduos. A realidade é enriquecida por conhecimentos
socializados e cada indivíduo, para gerar conhecimento, é informado pela
realidade. O conhecimento gerado pelo indivíduo, uma vez socializado,
incorpora-se à realidade. Qualquer outro indivíduo (inclusive o próprio gerador
inicial) é informado por essa realidade, que é acessível a todos, é de domínio
público. E a coisa continua, indivíduos pensam uma coisa, geram mentefatos,
socializam alguns desses mentefatos transformando-os em artefatos, o que
permite que sejam captados por outros, e ampliam a realidade. Todos
participam, algum indivíduo (às vezes, independentemente, vários indivíduos)
geram mentefatos, transforma-os em artefatos, o que amplia a realidade e
assim temos o que é chamado conhecimento. Assim evolui o que se chama
5
simplesmente conhecimento, a partir de uma realidade dinâmica, em
permanente ampliação. Levemente parecido com o que Hegel chama zeitgeist.
Curiosamente, pode-se entender fakenews, ao longo de toda a história da
humanidade, por essa conceituação de geração e socialização de
conhecimento.
É importante tomarmos a palavra conhecimento com muita atenção. Vem do
latim cognoscere (saber/fazer, não dicotômicos: “quem sabe, faz, quem faz
está sabendo”) e se tornou favorito de pensadores. Um exemplo interessante:
Pedro, o Mago (contemporâneodos apóstolos), ficou famoso por tentar
conhecer os milagres de Cristo – isto é, saber – e a partir daí, tentar realizar –
fazer. Muito a ver com as relações entre conhecimento e poder. Para mais
detalhes sobre esse tema ver minha teoria sobre o CICLO DO
CONHECIMENTO, particularmente quando discuto a expropriação do
conhecimento como instrumento político.
Todos os filósofos, em todos os tempos, tentam explicar o que é conhecimento.
Um lê o outro, contesta ou discorda, escreve tratados sobre isso. Filósofos
livrescos (usando a frase de Schopenhauer) se deliciam escrevendo sobre
conhecimento, repetindo o que outros disseram, mas poucos recorrem às
ciências da cognição e às ciências da mente. Discutem a palavra. Isso se dá
não só sobre conhecimento, mas sobre qualquer tema de interesse universal.
Engaiolam-se nas discussões sobre um tema, criando um linguajar específico.
Isto me levou a formular a metáfora da GAIOLA EPISTEMOLÓGICA, onde o
objetivo dos ali reunidos é refletir sobre problemas e questões formuladas na
gaiola, utilizando métodos e outros recursos intelectuais próprios da gaiola. O
que se passa fora da gaiola, contextualizado nos ambientes naturais, sociais e
culturais mais distintos, não é objeto das pesquisas nas gaiolas. Felizmente,
alguns engaiolados saem da gaiola e retornam com questionamentos novos.
Isso me faz lembrar um relato fictício de viagem, que é o livro Nova Atlântida,
de Francis Bacon (1627). Assim se dá o verdadeiro progresso no sentido
humanístico.
Minha discussão é contextualizada e, naturalmente, holística, integrando
recursos de diferentes naturezas: recursos humanos (conhecimento, práticas,
trabalho, hierarquias), recursos inertes (terra, instrumentos) e recursos vivos
(sementes, plantio e colheita, animais e domesticação). Integrados, dão origem
a sistemas econômicos, a sistemas de governança e a sistemas de poder. A
humanidade é um conjunto de sociedades, todas muito complexas.
Compartilham conhecimento e comportamento, saberes e fazeres, resultados
da socialização, que são transmitidos e difundidos, e determinam o
comportamento do grupo, que se submete a um acordo sobre maneiras de
agir, sobre linguagem e maneiras de se relacionar, sobre valores e rituais.
Nesse contexto se situa a Matemática que, de formas muito diferentes, tem
estado presente em todos os tempos e em todas as culturas. É, efetivamente,
6
um empreendimento humano. A trajetória da Matemática, em todas as culturas,
é elusiva. Há uma preocupação de filósofos de todos os tempos em definir
matemática. A palavra remonta, etimologicamente, ao Grego Antigo. O uso da
palavra Matemática para designar uma ciência autônoma, uma disciplina como
a conhecemos hoje, é tardia, surge no século XVI, mas pouco prestigiada.
Richard Mulcaster (1532–1611) publicou uma série de ensaios com uma
proposta de reorganizar a educação na Inglaterra. Diz
Eu teria outra faculdade dedicada às Ciências Matemáticas, embora eu
me oponha a alguns de boa inteligência, que não conhecendo a força
dessas faculdades porque as consideravam indignas de estudo, como
não levando à preferência, estão acostumados a zombar de cabeças
matemáticas. Tais estudos requerem concentração, e exigem um tipo de
mente que não busca fazer exibição pública até depois da contemplação
madura na solidão.4
Na Primeira Edição, 1771, da Encyclopaedia Britannica; or, A dictionary of arts
and sciences, compiled upon a new plan, lemos:
MATHEMATICS originalmente significava qualquer disciplina ou
aprendizagem; mas no presente, denota aquela ciência que ensina, ou
contempla, o que for capaz de ser numerado ou mensurado, desde que
computável ou mensurável; e de acordo é subdividida em Aritmética, a
qual tem números como seus objetos, e Geometria, a qual trata de
grandezas. Matemáticas são comumente distinguidas em pura e
especulativa, que consideram quantidade abstratamente; e mistas, que
trata magnitude como subsistente em corpos materiais, e
consequentemente são sempre tecidas em considerações físicas.
Matemáticas mistas são muito abrangentes, desde que elas possam se
referir a Astronomia, Ótica, Geografia, Hidrostática, Mecânica,
Fortificação, Navegação, etc. Matemática Pura tem uma vantagem
peculiar, que ela não ocasiona disputas contenciosas, como nos outros
ramos de conhecimento; e a razão é que as definições dos termos são
premissas, e todos que leem uma proposição têm a mesma ideia de
cada parte dela. Assim é fácil pôr um fim a todas as controvérsias
matemáticas, argumentando que o adversário não tem apoio para sua
definição, não tendo mostrado verdadeiras premissas, ou que ele tenha
derivado conclusões falsas de princípios verdadeiros, e no caso de não
sermos capazes de usar nenhum desses argumentos, devemos
reconhecer a verdade do que foi demonstrado.
Interessante que Álgebra não é uma área da Matemática, mas tem sua posição
como uma linguagem conveniente para Aritmética. O verbete Álgebra nos diz,
na Britannica de 1771:
4 James Oliphant: The educational writings of Richard Mulcaster (1532–1611), abridged and
arranged, with a critical estimate, Glasgow:James MacLehose and sons , 1903; P.95.
7
ALGEBRA é um método geral de computação por certos sinais e
símbolos, os quais foram concebidos com esse objetivo e se mostraram
convenientes. É chamada Universal Arithmetic, e procede por operações
e regras semelhantes às da aritmética comum, fundamentada nos
mesmos princípios.
 
Pode parecer estanho ter uma preocupação em definir matemática. Por que
nos preocuparmos com o desenvolvimento de uma compreensão mais
detalhada da matemática — definindo-a, por exemplo, com conceitos em
termos precisos? Todos sabem do que estamos falando quando nos referimos
a coisas como aritmética, álgebra, geometria, teoremas, equações. Mesmo
expressões estranhas que encontramos em textos científicos são identificadas
como matemática. No entanto, a filosofia muitas vezes se voltou para a
questão de definir matemática e tem feito isso amplamente por duas razões
principais. A matemática sempre foi um domínio de aplicação específica para a
filosofia, no sentido de que a matemática levanta numerosas questões de
natureza filosófica. A filosofia sempre tratou objetos matemáticos como objetos
de estudo. Questiona aspectos que vão desde o limite da filosofia e da
psicologia, tais como por que os seres humanos em todas as idades e de todas
as culturas recorrem à matemática para lidar com e para explicar fatos e
fenômenos de seu ambiente?, até aspectos de natureza ontológica, como que
tipo de coisa é uma proposição matemática? Essas são preocupações prático-
funcionais, como qual é o propósito da matemática e como formulamos
julgamentos de valor sobre matemática. Portanto, não apenas o conceito de
matemática em geral, mas também resultados matemáticos têm provocado e
desafiado o pensamento filosófico. A matemática sempre foi tratada de forma
específica com raízes religiosas, mas na modernidade se libertou e marcou o
desenvolvimento intelectual de uma cultura, enquanto, ao mesmo tempo,
reconhecem na matemática vínculos com a realidade e com a espiritualidade.
A filosofia também tem se preocupado com a questão do que é que nos leva a
levar a matemática como um todo e até mesmo permanecer cativado por ela.
Isso normalmente acontece com certas áreas da matemática que são,
potencialmente, especialmente poderosas em sua capacidade de provocar
reflexões sobre a realidade como um todo. Em suma, experimentamos uma
vasta gama de questionamentos quando analisamos uma proposição
matemática. O que é surpreendente é que tudo isso fascina, mesmo aqueles
que enfocam a questão de maneira diferente uns dos outros. Todas as
reflexões são provocadas por objetos que têm uma forma peculiar de
existência,pois podem ou não se referir a objetos que pertencem ao mundo
real, objetos que existem ou já existiram, ou objetos que nunca existiram. Há
um paradoxo no fato de que o interesse dos filósofos distingue objetos reais de
fictícios que levam a outros objetos fictícios.
Naturalmente, o comportamento acordado pelo grupo provoca a busca de mais
conhecimento pelo grupo. Esse compartilhar leva ao conceito de cultura.
8
O que é cultura? Há um sem número de definições de cultura. Minha definição
é a seguinte: cultura de um grupo é o conjunto de comportamentos acordados
por este grupo e de conhecimentos compartilhados e intrínsecos ao grupo, o
que implica linguagem comum, mitos e valores aceitos e “saberes/fazeres”
praticados no grupo. 
Cultura é um conceito social, central nos estudos da evolução humana.
Pesquisas recentes de primatologistas têm dado importantes indicadores do
processo de diversificação cultural humana e de seu impacto na adaptação
humana. O processo de evolução do conhecimento é lento e fragmentado e
está sujeito a encontros de grupos com culturas distintas. Essas distinções
podem ser verticais, isto é, intraculturais, sobretudo entre grupos distanciados
em tempo (históricos, ancestrais e novas gerações), e horizontais, isto é,
interculturais. Lidar com esses encontros verticais e horizontais é objeto do
estudo transdisciplinar e transcultural da DINÂMICA DOS ENCONTROS
CULTURAIS, que tenho discutido em vários trabalhos.
Como conclusão
Tentei mostrar que as teorias de base para fundamentar o Programa
Etnomatemática e o conceito de Matemática Humanista são o ciclo do
conhecimento, a metáfora das gaiolas epistemológicas e a dinâmica dos
encontros culturais.
Há muitas maneiras pelas quais as populações diferentes se encontram. Por
exemplo, através de comércio, exogamia, guerras e invasões, migrações para
outras terras, sobretudo por razões climáticas, expansão demográfica e outras
razões. Em todos eles há uma troca de caracteres cultururais, tais como língua,
religiões, comportamento e etiquetas, nutrição e culunária. Desde o neolítico
até hoje essas consequências de encontros ocorrem. É o que chamo a
dinâmica dos encontros culturais.
A realidade [entorno natural e cultural] informa indivíduos por meio dos
sentidos, da memória, do emocional, do imaginário e tantos outros fatores da
realidade. Cada indivíduo, ao ser informado, gera e organiza intelectualmente
conhecimento, através de mecanismos neurocognitivos, com a finalidade de
explicar, entender, conviver e lidar com a realidade, resolvendo problemas e
situações que identifica. Esse conhecimento individual [mentefatos] é
seletivamente socializado com outros indivíduos, através de comunicação no
sentido amplo [artefatos: gestos, ruídos, linguagem, artes]. Assim, tornam-se
sociofatos, que são conhecimentos sociais, organizados e incorporados à
realidade acessível a todos.5 Mostra-se conveniente e útil, muitas vezes
5 Devo as palavras mentefatos, artefatos e sociofatos a David Bidney: On the Concept of
Culture and Some Cultural Fallacies. American Anthropologist New Series, [S.I.], v. 46, n. 1, p.
30-44, jan./mar., 1944. 
9
indispensável, para explicar, entender, conviver e lidar com a realidade,
resolvendo problemas e situações. É então expropriado pelos grupos de poder
e institucionalizado como sistemas [disciplinas, com normas e códigos
específicos e epistemologia própria, o que chamo gaiolas epistemológicas], e
mediante esquemas de transmissão e de difusão, principalmente retórica,
educação, seitas, academias, mosteiros, universidades, associações gremiais,
clubes e sociedades, agora com ampla utilização das mídias e redes sociais. 
A geração, a organização individual e social, e a transmissão e difusão de
conhecimento é o que chamo ciclo do conhecimento.
10
	Na Primeira Edição, 1771, da Encyclopaedia Britannica; or, A dictionary of arts and sciences, compiled upon a new plan, lemos:

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