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DOCUMENTOS DE IDENTIDADE C315d Carretero, Mario. Documentos de identidade : a construção da memória histórica em um mundo globalizado / Mario Carretero ; tradução: Carlos Henrique Lucas Lima ; Revisão técnica: Paulo Fagundes Visentini. – Porto Alegre : Artmed, 2010. 309 p. ; 23 cm. ISBN 978-85-363-2144-8 1. História cultural. 2. Memória histórica. 3. Identidade cultural. 4. Identidade coletiva. I. Título. CDU 930.85 Catalogação na publicação: Renata de Souza Borges CRB-10/1922 Tradução Carlos Henrique Lucas Lima Consultoria, supervisão e revisão técnica desta edição Paulo Fagundes Visentini Professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul Doutor em História pela Universidade de São Paulo, Pesquisador CNPq Pós-Doutor em Relações Internacionais pela London School of Economics 2010 MARIO CARRETERO Reservados todos os direitos de publicação, em língua portuguesa, à ARTMED® EDITORA S.A. Av. Jerônimo de Ornelas, 670 - Santana 90040-340 Porto Alegre RS Fone (51) 3027-7000 Fax (51) 3027-7070 É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, no todo ou em parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrônico, mecânico, gravação, fotocópia, distribuição na Web e outros), sem permissão expressa da Editora. SÃO PAULO Av. Embaixador Macedo Soares, 10.735 - Pavilhão 5 - Cond. Espace Center Vila Anastácio 05095-035 São Paulo SP Fone (11) 3665-1100 Fax (11) 3667-1333 SAC 0800 703-3444 IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL 2007 Mario Carretero Editorial Paidós S.A, Buenos Aires, Republica Argentina Capa: Gustavo Macri Leitura Final: Janine Pinheiro de Mello Editora Sênior – Ciências Humanas: Mônica Ballejo Canto Editora responsável por esta obra: Carla Rosa Araujo Projeto Gráfico e Editoração: Carlos Soares Para Candela, que cresceu junto com este livro. Para Federico, que me sugeriu o assunto. Para Pablo, que contribuiu com humor inteligente. Para Soledad, que se atreveu a ser. Para Rosita, por tudo. Este trabalho foi possível, sobretudo, graças a uma bolsa da Fundação Guggenheim para um projeto de pesquisa sobre “Ensino da História e cons- trução da identidade nacional na América Latina”, o qual deu origem a este livro, tanto ao que se refere ao trabalho empírico (ver Capítulo 4), quanto às reflexões teóricas. Nossa gratidão se refere, essencialmente, à confiança no desenvolvimento de um tema fronteiriço como este, cuja evidência está sendo apresentada cotidianamente pela atual realidade cultural e política do planeta. É preciso, também, agradecer ao Ministério da Educação (Espanha) (Pro- jeto, Consolider SEJ 2006-15461), que habitualmente financia os meus e os trabalhos de meus colaboradores sobre aprendizagem e ensino da história há algum tempo. Também quero mostrar minha gratidão à Agência Nacio- nal de Promoção da Ciência e Tecnologia (ANPCyT)* (Argentina) pelo Pro- jeto 2006-34778 Consolider por razões similares. Por outro lado, no âmbito da cooperação internacional, indispensável para um trabalho desta natureza, também nos beneficiamos de um Projeto Alfa (04.0296) da União Europeia, o qual nos permitiu organizar dois semi- nários em Madri (Universidade Autônoma) e Buenos Aires (Faculdade Lati- no-americana de Ciências Sociais), com o auxílio de cientistas europeus e latino-americanos, bem como a publicação correspondente (Carretero, Rosa e Gonzáles, 2006). Neste sentido, Robert Pardo do Chile e Laura Lima Muñiz e Marcela Arce do México me proporcionaram documentação indispensá- vel de seus respectivos países, a qual me foi de grande utilidade. Além dis- so, estas duas últimas realizaram uma atenta leitura do manuscrito, sobre- tudo do Capítulo 2, contribuindo com interessantes sugestões. Na elaboração deste livro, meus doutorandos e colaboradores presta- ram uma inestimável ajuda que também quero agradecer. Em primeiro lugar está Miriam Kriger, a qual trabalhou na maioria das fases desta pes- *N. de T. No original, Agencia Nacional de Promoción de La Ciencia e La Tecnología. Agradecimentos quisa. Sua lucidez e profundidade no tratamento dos temas foram decisi- vas neste trabalho e em outros de autoria conjunta sobre essas mesmas questões. Sem dúvida, sem sua ajuda este livro teria sido diferente. Sua contribuição foi decisiva para que muitas ideias tomassem forma e para que outras fossem descartadas. Marcelo Borrelli também prestou uma grande ajuda em tudo o que diz respeito à edição final do manuscrito e à busca de documentação. Por sua parte, Ana Atorresi realizou revisões edi- toriais de grande utilidade, e Alexander Ruiz e Fernanda González reali- zaram uma atenta leitura na qual surgiram novas ideias para futuros tra- balhos. Silvia Mora e Sonia Borzi colaboraram em parte das entrevistas do Capítulo 4. Também, Soledad Sanseau e Solange Strugo prestaram um apoio eficaz na gestão editorial do manuscrito. Alguns colegas leram o manuscrito original fazendo sugestões muito úteis: entre eles se encontram, no que se refere à psicologia e à educação, Alberto Rosa, Ángela Bermúdez e Liliana Jacott, quem, além disso, forne- ceu-me útil documentação do México. Ao longo de muitos anos de cola- borações, sem dúvida me enriqueceu com suas contribuições. No que diz respeito à história, também me ajudaram com comentários e sugestões José Álvaro Junco – algumas ideias oriundas de um seminário que com- partilhamos há alguns anos se encontram na origem deste trabalho –, Manuel Álvaro, Jesús Izquierdo e Aurora Rivière. Por sua parte, Guillermina Tiramonti, diretora da FLACSO (Argentina), e Silvia Finocchio, pesquisa- dora da mesma instituição, fizeram-me comentários pertinentes, bem como Beatriz Tornadú, quem realizou uma atenta leitura que me ajudou a defi- nir o possível leitor desta obra. No que se refere às imagens incluídas neste livro, Piroska Çsuri me fez sugestões muito reveladoras. A contribuição de Mikel Asensio, Joaquin Prats e Leo Levinas, autênti- cos especialistas no ensino das ciências sociais, refere-se, sobretudo, aos interesses compartilhados durante tantos anos sobre essas questões, sen- do este último quem me proporcionou o “empurrão” final para terminar este livro. Entretanto, como é habitual, qualquer omissão somente é imputável a mim mesmo, e não a alguma das pessoas citadas. viii Agradecimentos PRÓLOGO ........................................................................................................... 11 INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 17 1. Três Sentidos da História ............................................................................... 31 2. Vozes e Ecos nos Programas e nos Textos ..................................................... 69 3. Lembrança das Feridas Abertas .................................................................. 157 4. História e Pátria no Calendário ................................................................... 197 5. Conclusões ................................................................................................... 263 REFERÊNCIAS ................................................................................................... 293 Sumário Se nos últimos anos houve um tema que tenha sido abordado até o enfa- do foi, sem dúvida, o da “história e memória” (também conhecido como “me- mória histórica” ou “memória coletiva”). Sobre ele opinaram, em muitos ca- sos mais guiados pela temeridade do que pela reflexão, desde historiadores até analistas que estudam a política atual, passando por juristas especializados na reparação de ofensas do passado. Por isso, um livro como este merece um bom acolhimento, não só porque é nascido de longa reflexão e de estudos empíricos, mas também porque enfoca a questão mediante uma nova pers- pectiva: a partir da psicologia e da pedagogia. Embora, verdade seja dita, combine – e com grande certeza – essas duas perspectivas com recentes pes- quisas que sobre o tema nacional aciência política e a história nos oferecem. A ideia fundamental sobre a qual se articula este livro é a distinção – e a conflituosa convivência – entre a “história escolar” e a história enten- dida como disciplina, a qual almeja o conhecimento científico do passa- do. Esta é um conjunto de saberes sobre a vida pretérita da humanidade construído mediante o paradigma racionalista ilustrado. Almeja, portan- to, alcançar e transmitir verdades “limpas”, objetivas, desprovidas, em princípio, de carga moral. Sua finalidade ideal, no caso de ser usada na escola, seria desenvolver habilidades cognitivas. O que é ensinado na escola, por outro lado, sob o nome de “história” é um relato construído dentro do paradigma romântico, no qual a dimen- são afetiva é dominante. Sua finalidade é construir uma identidade cole- tiva estável, criar um espaço de pertencimento sólido, no qual os futuros cidadãos se sintam acolhidos e reconfortados. É, por isso, um relato narci- sista destinado a suscitar adesão emocional ao nosso (nos últimos dois séculos, a nossa nação, legitimadora de nosso Estado – sem dúvida o pa- trão da escola). Para exemplificar a função da história escolar, Mario Carretero utiliza a parábola do espelho da madrasta da Branca de Neve: assim como o espelho mágico, o relato escolar confirma àquele que lhe pergunta que não existe um rival entre as belezas do reino. É um diálogo Prólogo 12 Mario Carretero de forte carga emocional, pela ameaça implícita que contém: que o espe- lho possa responder, algum dia, que apareceu beleza superior. Nesse caso, será preciso utilizar as armas (dialéticas, em princípio) e destruir de ime- diato a beleza rival que pode ser interna (um relato que sirva de base para uma identidade regional alternativa à nacional) ou externa (uma história nacional vizinha). Isso explica que o ensino da história seja um assunto tão polêmico, tão carregado politicamente. Explica, também, o desprezo e a hostilidade que as histórias escolares de distintos países mutuamente expressam (um tema que a União Europeia deveria enfrentar algum dia). Quando comparamos os relatos escolares de nações vizinhas encontramos os mais expressivos contrastes atos que uns descrevem, em tom indignado, como opressivos ou criminosos, são ignorados ou apagados pelos do outro lado, descen- dentes daqueles que cometeram tais atos, quando não são abertamente exaltados como gloriosos. Pensemos na Inquisição ou na colonização ame- ricana, no caso espanhol... Por isso, Carretero escreve que a história escolar é “um bunker em que os grandes relatos nacionais são preparados e reproduzidos, com os mes- mos condimentos, dispondo para as novas gerações memórias ideologica- mente enviesadas à custa de poder prosseguir com a epopeia histórica (na qual a própria escola sinta ainda seu poder simbólico e sua legitimidade como agente de emancipação e progresso)”. As tentativas de revisão des- se modelo histórico-pedagógico empreendidas recentemente propiciaram acaloradas polêmicas públicas, as quais Carretero estuda em países tão distantes e diversos como os Estados Unidos, a antiga União Soviética, o México ou a Espanha. É lógico que a tentativa de deslocar aqueles que dominam o relato histórico tenha sido um aspecto essencial dos objetivos político-culturais contemporâneos. A possibilidade de conciliar essa história escolar com a científica é muito escassa, para não dizer abertamente nula. O fundamento da nação, como explicou há mais de um século Renan, é a deformação da verdadei- ra história, “O progresso dos estudos históricos – escreveu este autor em um momento de especial lucidez – é, muitas vezes, um perigo para a nacionalidade, enquanto o esquecimento, e inclusive o erro histórico, são os fatores essenciais em sua criação”. Não apenas porque se exaltem, ocul- tem, inventem ou disfarcem certos episódios do passado, mas sim porque a finalidade primordial da história ensinada nas escolas é criar espaços estáveis, refúgios firmes e imperturbáveis; e se existe algo que a autêntica história ensina, algo a que podemos chamar uma “lei científica” deduzida do estudo do passado da humanidade, é, precisamente, o contrário: a mudança, a constante mutabilidade do humano. Os indivíduos educados na história escolar, inclusive se em sua idade adulta se interessam pela Documentos de Identidade 13 história séria ou refletem em profundidade sobre as mudanças que devem vivenciar, é difícil que, no fundo de seus corações, deixem de acreditar que, apesar de tantas mutações, algo “essencial” permanece em sua socie- dade. O interessante, e o desesperante ao mesmo tempo, não é que estas duas modalidades de história, a científica e a escolar, sejam incompatí- veis, pois isso se resolveria eliminando a uma delas (e não preciso dizer qual apagaria com um “canetaço”), mas sim que ambas cobrem objetivos ou satisfazem necessidades valiosas, e até mesmo indispensáveis, para a sociedade. A compreensão racional do passado é, simplesmente, tão im- portante quanto qualquer outro avanço no conhecimento científico bási- co. No entanto, a existência de uma “memória coletiva” que elaborasse e digerisse os conflitos vividos em comum e articulasse um relato sobre o grupo humano no qual vivemos – interiorizado e compartilhado pelo con- junto dos cidadãos – ao redor de valores úteis para o presente e para o futuro, é, sem dúvida, um dos fundamentos mais sólidos da coesão social. Também é interessante, mas não menos desesperante, comprovar que, comparados, quem ganha a batalha é a história escolar. Assim como es- creve Carretero, os objetivos românticos têm uma notável e comprovada vantagem sobre qualquer outro, incluídos os cognitivos; colocados diante à disjuntiva racionalidade/irracionalidade, comprova-se “a repetida vitó- ria da irracionalidade”. O que contrasta, de acordo com o autor deste livro, com a escassa atenção que os pedagogos devotam a este tema, situ- ação equiparável para ele, à “subestimação que o fenômeno do naciona- lismo teve dentro do campo do próprio pensamento político, no qual, pese a consciência de sua força imediata desde o século XIX, acreditou-se, de modo majoritário, que desapareceria de forma lógica, progressiva e inevi- tável, devido ao caráter cosmopolita da economia de mercado”. É certo. Faz alguns anos, estando o Partido Popular no governo espa- nhol, seus ideólogos quiseram propagar o conceito de “patriotismo cons- titucional”, a favor do qual inclusive aprovaram uma proposta em um congresso do Partido. Tomado de modo literal, e aceitando que aqueles que a aprovaram acreditavam realmente no que defendiam, supunha-se que a união, ou a comunidade espiritual, entre os cidadãos integrantes de nossa atual unidade política não devia se fundamentar em características étnicas ou em mitos legendários, mas sim girar em torno da ideia da con- vivência em liberdade, do respeito às distintas culturas, dentro da comum submissão às mesmas leis e instituições. Não era uma má proposta, e melhor ainda era que a direita espanhola a fizera sua, direita essa tradicional- mente tão intransigentemente defensora da identidade cultural herdada. No entanto, não obteve êxito. Era um discurso politicamente correto, mas demasiadamente frio. O alimento preferido de um patriotismo vigoroso é 14 Mario Carretero uma boa dose de emoção nacionalista. As pessoas têm necessidade de pertencerem a algo, de se sentirem orgulhosas desse pertencimento, de se vangloriarem e desprezarem, em sendo isso possível, as outras pessoas. Alguém dirá que é um impulso gregário, de união, um tanto infantil, e até mesmo inócuo, e para o qual, definitivamente deveríamos mostrar tole- rância. No entanto isso não é correto. Longe de ser inócuo, é, por outro lado, muito perigoso. Há alguns anos, Amin Maalouf publicou um ines- quecível estudo sobre tais processos de formação identitária baseados em uma memória emocional, fortemente aglutinante, reivindicativa e ressen-tida. Intitulou seu estudo de “Identidades assassinas”. Por outro lado, este tipo de identidade entra, em radical contradição com nossa realidade atual, tão pós-nacional e multicultural. O problema do ensino da história atualmente é, nas palavras de Carretero, “a dificul- dade em conciliar lógicas e sistemas de valores que se opõem crescen- temente: o de uma épica nacional/particular e o de uma ética global/ universal”. A Paz de Westfalia, que acabou em meados do século XVII com as Guerras Religiosas, baseou-se no princípio cuius régio, eius religio: em cada unidade política haveria somente uma religião, a do príncipe; essa norma, aplicada também à língua e ao restante da cultura, foi a base da ordem dos Estados-nações a qual regeu o mundo até, praticamente, on- tem. Todavia, é justamente o que hoje entrou em crise radical, originando o dilema atual do ensino da história: “de que forma evitar a contradição entre os valores de uma nova ética planetária que recupera – discur- sivamente – a prioridade do universal e dos valores de uma ética naciona- lista a qual prioriza o particular”. Outro inconveniente, ou outra limitação, do relato escolar é o fato de que ele não admite um reconhecimento honrado dos erros, ou dos crimes, cometidos pelos nossos antepassados (em ocasiões contra os vizinhos, mas muitas outras vezes contra uma parte de nossa mesma sociedade). Este é outro dos temas do livro que o leitor tem em mãos: a divergência entre uma boa consciência coletiva, vinculada a uma memória de progresso, heroísmo e liberdade, e uma memória crítica ou realista, a qual nos obriga- ria a refletir sobre os aspectos sujos do passado (por colocar esta vez exem- plos não espanhóis, mas sim da atual primeira potência mundial, podería- mos mencionar a atuação estadunidense no Vietnã ou em Hiroshima e Nagasaki). O relato escolar, dirigido a proporcionar certezas (históricas) e satisfações (morais), não pode incluir esses aspectos tão duvidosamente honráveis; a história científica, a qual os inclui e os analisa, enfrenta-se de maneira intolerável com tão arraigadas certezas e satisfações. Como se pode ver, este livro de Mario Carretero não se limita a tratar da história escolar. Trata, também, da forma correta de integrar ao relato ensinado na escola a heterogeneidade cultural do mundo atual ou os acon- Documentos de Identidade 15 tecimentos conflituosos de nosso passado recente. Há, além disso, capítu- los dedicados a outros acontecimentos e práticas escolares, como os jura- mentos à bandeira ou a celebração de festas pátrias. Este que vos fala nunca teve a oportunidade de assistir a essas ternas cenas, que se repetem diariamente em países como Argentina ou Estados Unidos, de crianças içando a bandeira e cantando o hino nacional. Imaginadas a partir da Espanha atual, tornam-se bastante chocantes. Entretanto, o modo mais eficaz de captar a irracionalidade destas práticas e crenças é vê-las desde fora (que é o que este livro faz, e sendo esta outra de suas virtudes). Apenas quando nos enteramos dos desatinos e das simplicidades que as crianças de outros países estudam e absorvem se abre a possibilidade de que nos apercebamos dos nossos próprios. De minha parte, minha mente guarda gravado com força, se não com nitidez, o momento no qual ouvi contar pela primeira vez o heroico final dos numantinos* (talvez tenham sido os saguntinos) diante dos malvados estrangeiros que os assediavam. Embora não houvesse ainda aulas notur- nas, lembro-me de que já havia caído a noite e uma pequena lâmpada de 25 W iluminava a sala. Uma escuridão muito apropriada com a de meu espírito enquanto imaginava a cena de uma grande fogueira no meio da praça da cidade, na qual os guerreiros iam lançando as joias, os móveis, os corpos de crianças e mulheres aos quais previamente haviam matado com a espada, para finalmente se matarem uns aos outros, a fim de que o inimigo triunfante não pudesse capturar escravos nem enriquecer com pilhagem alguma. É que, nós, espanhóis, concluía o professor, somos assim: preferi- mos morrer a ser escravos. Todos sentíamos horror, mas também orgulho, e dizíamos internamente que algum dia faríamos o mesmo, se uma situação semelhante se apresentasse. Também poderia falar sobre a disciplina “For- mação do Espírito Nacional”, cuja razão de ser não compreendia, pois me parecia ser uma mera repetição da aula de História. Alguém me diria que aí se poderia detectar um precoce encantamento pela história. Não é certo. Nem uma coisa nem outra eram história; as duas eram “relato escolar”. Este livro de Mario Carretero explica isso muito bem. Concluindo, como sair do atoleiro no qual se encontra o ensino da história na escola? Ou, de acordo com a bateria de perguntas que o autor deste livro apresenta, “quais outras histórias (a escola) poderia, ou deve- ria, contar? Como é possível estabelecer relações de continuidade entre o passado e o presente?”; “quem fala por meio da voz dos textos e do currí- culo? Quem mais quer falar e ser escutado? A escola pode conceder um *N. de T. Numantinos, pessoas originárias da região da Numância, antiga cidade da Hispânia Citerior. 16 Mario Carretero espaço a essas novas vozes?”; “de que forma a escola pode transmitir his- tórias que entram em contradição com as narrativas nacionais que a legi- timam enquanto instituição socializadora?”. Não é fácil imaginar soluções. Talvez a proposta mais sensata seja deixar de ensinar história na escola, dada a impossibilidade de contar às crianças relatos que não sejam de bons ou de maus. Outra alternativa é manter a disciplina, mas mudá-la de nome e passe a ser chamada de “Mi- tos e lendas pátrias”; história, de verdade, estudarão quando forem maio- res. Se não há mais remédio além de mantê-la e chamá-la história, talvez possamos pensar em inventar outros mitos, os quais, ao menos, sejam autenticamente inócuos, ou escassamente danosos. Poderíamos pensar, por exemplo, em voltar ao paradigma ilustrado e, tomando como sujeito a humanidade em lugar da nação, ensinar um relato baseado na ideia do progresso, e explicar de que maneira o gênero humano paulatinamente superou a miséria, a opressão, a violência e a injustiça, o que permitirá algum dia alcançar níveis de bem-estar e liberdade que converterão as sociedades do futuro em autênticos paraísos terrenos. É também um con- to de fadas, mas ao menos não faz mal a ninguém, não se dirige contra nenhum grupo étnico nem nenhum vizinho; e seus possíveis efeitos moralizantes, se os chega a ter, iriam no bom sentido. José Álvarez Junco Catedrático de História da Faculdade de Ciências Políticas e Sociologia da Universidade Complutense de Madri. Atualmente, diretor do Centro de Estudos Políticos e Constitucionais. Documentos de Identidade 17 O ESPELHO DE CLIO No conto que todos escutamos pela primeira vez em nossa infância, a madrasta da Branca de Neve se olha no espelho e pergunta, esperando a sabida resposta negativa: “Espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu?”. Todos pensamos – confessemos – que a rainha não espera resposta alguma e que somente pergunta para escutar sua própria voz, um eco que confirme, segundo a quantidade de repetições, a veracidade da resposta. Até que em um belo dia o espelho responde: “Sim, há outra mais bela do que você”, e a rainha recebe o impacto como um raio que desperta sua ira e a obriga a entrar em ação. Somente, então, o conto de fadas pode começar. No entanto – nos perguntamos –, qual é o propósito de semelhante surpresa? Por acaso a madrasta não havia previsto, pré-imaginado, pressen- tido a chegada “ameaçadora” dessa forasteira (duplamente forasteira: por ser sua enteada e por ser mulher) a seu reino (duplo reino: aquele do qual sua enteada é a legítima herdeira e o da beleza, a juventude que sua entea- da também lhe tomará)? Além disso, não havia ela mesma anunciado e projetado – entre a esperança, a espera e o desespero – o espaço noqual se fazia indispensável a entrada “da outra”? Ou, era possível se autoafirmar e moldar uma identidade sem referência e sem competência, mantendo um diálogo sem interlocutor algum? Nesta metáfora, introdutória, mas nem simples nem ingênua, inspi- ram-se as páginas que seguem.1 Uma das teses fundamentais deste livro é a de que o ensino da história que surge no final do século XIX com finali- dades identitárias, relacionadas ao espírito romântico e vinculadas à cons- trução das nações, estrutura-se em meados do século XX sobre a contradi- ção entre tais finalidades e outras mais próximas a uma compreensão disciplinar da história. Devido a sua estreita relação com a formação do Introdução 18 Mario Carretero conhecimento social e a construção do espírito crítico, estes objetivos mais recentes podem ser considerados de origem ilustrada. Assim, por meio destes, pretendia-se que o aluno compreendesse racionalmente os proces- sos históricos submetendo-os a um recurso de racionalização progressivo. Por outro lado, os objetivos identitários de tom romântico impunham uma adesão emocional às representações históricas, com a conseguinte cons- trução de sistemas valorativos e emotivos endogâmicos. A presença desta contradição no século XXI – em nossa opinião escas- samente analisada e desenvolvida pelos pesquisadores e interessados em tais questões – nos põe diante da necessidade de formular novas pergun- tas, cujas respostas, sem dúvida, são difíceis de serem obtidas, pois ambos os tipos de objetivos, românticos e ilustrados, são necessários para as so- ciedades. Assim, serão perguntas sobre o próprio sentido e as tensões ine- rentes à contradição citada, na qual se encontra o ensino da história e cuja análise requer que o olhar seja expandido sobre âmbitos externos à própria escola, porque é preciso indagar sobre as formas as quais as socie- dades lembram. Por isso analisaremos diferentes âmbitos sociais, incluída a escola, os quais moldam uma memória coletiva nas comunidades. Tais perguntas se inserem na atualidade de um processo de globalização; sendo a meta deste livro oferecer um panorama internacional dos conflitos surgidos nos últimos anos relacionados ao ensino da história na escola. Alguns deles, verdadeiras guerras culturais, possuem uma tensão implícita e obviamente ainda não resolvida entre a racionalidade crítica da Ilustra- ção e a emotividade identitária do Romantismo, a mesma que leva a ma- drasta a querer eliminar a Branca de Neve. A partir do fato de que toda história requer ao menos dois personagens, dois pontos, para estabelecer uma linha argumental – visto que não há herói chamado à ação sem um outro que o configure enquanto sujeito des- de fora –, podemos reformular as primeiras perguntas. É valido ainda hoje o ensino da história sob as mesmas finalidades e métodos dos quais a ma- drasta da Branca de Neve se utilizava, no começo do conto, ao reproduzir sua própria imagem tomada de narcisismo e diante da qual nenhuma críti- ca podia surgir? Ou por acaso chegou o momento, já inadiável, no qual a sentença do espelho rompa e abra a fronteira aos novos personagens – e, portanto, ao conflito, ao “nó” do relato – confrontando a madrasta com o fato de que nem sequer a propriedade de seu reino nem a importância de seus atributos – embora reiteradamente confirmados – ficam incólumes com o passar do tempo e com a dimensão da história, na qual outros sujeitos históricos competem? Cada sociedade possui uma cultura dominante que é compartilhada, sus- tentada e interiorizada pela maioria de seus componentes. A história escolar Documentos de Identidade 19 desempenharia seu papel no sistema cultural ao fazer perguntas que poderiam ser respondidas de uma só maneira, com o qual delimitaria ao mesmo tempo o auditório e o repertório. Mais ainda, poderia ser que o que estivesse em questão no momento de hegemonizar o “reino” fosse a capacidade de impor relatos históricos específicos, com vistas a reduzir a polifonia das vozes a um sonar monocórdio para sair exitoso da luta pelo domínio da Realidade (uma disputa entre várias Realezas). Deste modo, da mesma forma como ocorre no conto citado, em um dia inesperado o espelho mágico demonstra sua ousada capacidade ventríloqua e proclama que há outra mais bela ainda no reino, o que não implica que a madrasta não seja formosa ou, muito menos, que seja feia. O espelho está dizendo que há outra – e o pior é que esta pode superá-la, mesmo suas virtudes não tendo declinado – que a submete à comparação, que oferece um olhar alternativo ou que vem mostrar que as coisas talvez não tenham ocorrido como sempre se havia dito. Claro que essa outra representa uma ameaça! No entanto, também – e sobretudo – expressa a íntima necessidade da madrasta: ser requerida por outro rosto para sair da armadilha de seu próprio olhar, o qual a lançaria ao lago como a Narciso. Porque, quando Branca de Neve aparece pela primeira vez na cena em que é “captada” pelo espelho, já estava no palácio, tão pró- xima da madrasta que não podia ser reconhecida. Não é, portanto, uma figura desconhecida, distante, mas sim próxima, a qual surge do interior do mundo familiar: alguém cuja aparição pertence mais à ordem da intro-mis- são que da in-trusão. Trata-se, precisamente, da enteada do conto, filha nunca adotada pela madrasta, protegida de sua rival crescendo no próprio seio. Uma série de tensões é posta em jogo, e assim, entre a consanguinidade e a legitimidade, o familiar e o político, o eu e a alteridade, tece-se o relato e ameaça seu suspense. A imediata reação da madrasta diante da “recém-chegada” ao limite de seu espelho (e de sua fantasia) é a hostili- dade e não a hospitalidade. A estratégia aponta para anulá-la, eliminá-la desse espaço, mandar matá-la, com a pretendida intenção – maliciosa e sem atenuantes – de removê-la do Reino da Realidade e enviá-la para as trevas mais profundas. Para onde? Para lá. Para fora. Para o deserto. Para o país onde as coisas não têm nome. Por isso, o servo assassino da madrasta não consegue matar Branca de Neve: a madrasta quer e impõe mais, pedindo a cabeça da jovem, não apenas para ter uma prova do crime, mas sim – suspeitamos que, sobretu- do – para garantir seu silêncio. Vale dizer: para tirar-lhe o rosto, a pala- vra, a língua, a identidade e, além disso – completando todos os termos da exclusão –, para impossibilitar a sepultura quando retira da jovem sua última propriedade, sua “terra” no descanso final. 20 Mario Carretero Negar, perseguir, matar, destruir as provas físicas e simbólicas, desin- tegrar radicalmente. Foi isso o que as distintas versões das histórias esco- lares de cada Estado-nação fizeram – embora a violência se atenue devido às suaves, plastificadas e alegres capas ilustradas dos livros escolares – com as concepções alternativas que se correspondiam com as Brancas de Neve locais, regionais e de seus vizinhos, presenças que surgem no próxi- mo e entram “inesperadamente” na disputa, atravessadas, talvez, pelo que Freud denominou “narcisismo das pequenas diferenças”. Os exemplos mais claros desse processo de violência cultural extrema se mostraram nos regimes totalitários, tanto de direita quanto de esquer- da. Em todos esses casos, reproduziu-se o mecanismo magistralmente ex- posto por George Orwell em 1984; as histórias escolares foram construídas como o “espelhinho” da madrasta e também como um tal Ministério da Verdade, pelo qual as coisas eram ou bem brancas ou bem pretas, e nunca brancas e pretas, cinzas ou coloridas. No entanto, também nas democracias – mesmo nas quais se apresentam como versões bem-sucedidas – as histórias escolares encontram grandes difi- culdades para superar a etapa narcisista do relato e acolher a chegada de outras vozes; em particular, se surgem a partir de seu próprio interior. Isso implicaria reconhecer tais rostos e competências diversas (culturais, linguísticas, educativas, comunicativase, por fim, humanas) em um sentido diferente do que assume o voraz apetite da “assimilação” cultural, sob a for- ma de variadas traduções e transposições, incluída aí, sem dúvida, a didática. O ensino da história, em numerosas nações do planeta, como nos países ibero-americanos*, proporciona um bom exemplo para questionar os efei- tos da aquisição cognitiva e emotiva dos conteúdos históricos nas crianças. Todo cidadão de países como Argentina, Bolívia, Chile, Costa Rica, México, Peru e Uruguai considera cotidiano e natural que existam, de manhã cedo nas escolas, um juramento à bandeira ou festividades de datas ditas “pátrias”. Inclusive essas festas que rejam o calendário escolar e a atividade de toda a instituição, no sentido de servir de eixo da memória coletiva e o tempo em geral. Por outro lado, em alguns países europeus, como a Espanha 2, surpre- enderia enormemente a possível incorporação de símbolos pátrios na esco- la. Para o olhar europeu, as atividades histórico-patrióticas que são parte da essência dos sistemas escolares ibero-americanos – também dos estadunidense e de outras nações3 – são consideradas mais próximas do doutrinamento que do ensino disciplinar da história. Encontramos, em ou- tro lado do espelho, uma total estranheza e certa incredulidade de muitos *N. de T. Países localizados no continente americano colonizados pelas nações ibéricas (Espanha e Portugal). Documentos de Identidade 21 professores ibero-americanos ao saber que, na Espanha, as atividades “historicopatrióticas” não são praticadas. Evidentemente, encontramos duas formas muito distintas de configurar o “disco rígido” do laço social, sendo que ambas merecem ser analisadas em seus mecanismos e eficácias relativas. Não apenas os programas de ensino da história variam enorme e sur- preendentemente de um país para outro, mas também os modos como eles são experimentados pelos sujeitos. Essa comprovação demanda uma pro- funda revisão tanto dos métodos quanto dos conteúdos da história escolar. Considerando seu papel nos processos de formação das identidades nacio- nais – e, eventualmente, sua possível relação, em casos extremos, mas não infrequentes, com a produção do que Maalouf denomina “identidades as- sassinas” (1998) –, as versões escolares parecem articular, por um lado, uma construção de narrativas sobre a base de um relato único, o qual fun- ciona mais como um implante de lembranças do que como uma memória; esse conjunto de lembranças, enfeitado como uma bela estampa, pede doses intermitentes de vivência e de esquecimento, o que em termos orwellianos se relacionaria expressamente à questão do poder, posto que “quem controla o passado controla o presente, e quem controla o presente controla o futuro”. Por outro lado, as versões escolares da história articulam uma experiên- cia que dá forma a uma particular memória emocional, carregada de iden- tificações, expressas ao ritmo de inflamados hinos que caem como um bálsamo no coração e no cérebro dos alunos em meio da sequidão dos maçantes conteúdos escolares; uma experiência aplicada com vistas a gerar uma disciplina mental e corporal, a qual podemos caracterizar como performances patrióticas (entre cujas características apontamos, por exem- plo, o uso de insígnias na Argentina ou a tomada de distância no momen- to de içar a bandeira em qualquer dos países anteriormente citados). Por que a história segue assumindo essa função, romântica e aglutinante, cada dia mais contrária à vocação crítica brandida pelo discurso escolar con- temporâneo? Trata-se de uma contradição ou de uma articulação significati- va que funde história, escola e nação da qual ainda não se pode prescindir? Sem dúvida, estamos diante de uma nova manifestação de identidades políticas e subjetivas em escala planetária, na base de processos de globalização que operam em múltiplos níveis, em um contexto caracteriza- do por tendências pós-nacionais (como expressa a formação da União Europeia) e, ao mesmo tempo, transnacionais e nacionalistas minoritárias (como se viu na Irlanda, Euzkadi e outros casos) (Waldmann e Reinares, 1999). Tudo isso inverte a relação entre o saber e o poder que caracterizou o nascimento dos Estados nacionais, da escola e da história, e nos leva a revisar a relação originária entre educação e nação – tal como surgiu em fins do século XIX, sob o amparo dos ideais de progresso e da emancipação –, conferindo-lhe um novo sentido, descartando ou lhe reinventando. 22 Mario Carretero De modo definitivo, trata-se de analisar como, por que, para quem e para que se produz a transmissão dos conteúdos históricos escolares em um con- texto histórico no qual os ideais que forjaram as bases da educação formal se bifurcam em polos ideologicamente opostos: a Ilustração e o saber crítico em uma via, e o Romantismo e a perspectiva nacionalista em outra. Essas contradições surgiram durante a última década: em diferentes países, observaram-se casos nos quais o ensino da história se tornou um tema de debate irracional. Desde 1994, aproximadamente, estamos reunindo documen- tação sobre este âmbito educacional e cultural (ver, por exemplo, Carretero, Jacott e López-Manjón, 2002; Carretero, Rosa e González, 2006; Carretero e Voss, 2004) e estamos persuadidos de que não é casual o fato de que recente- mente se tenham produzidos acontecimentos como os que seguem: • Em muito pouco tempo todos os conteúdos da antiga União Sovié- tica, bem como os de numerosos países sob sua influência, modifi- caram-se drasticamente (ver Capítulo 2); isso significa que, entre outras coisas, milhões de alunos, de diferentes idades, receberam, quase da noite para o dia, uma versão do seu passado nacional, e do passado em geral, radicalmente distintas das quais se vinha en- sinando na escola. • Nos Estados Unidos, a elite neoconservadora, que finalmente al- cançou o poder nas eleições de 2000 e de 2004, chegou a questio- nar seriamente os novos conteúdos escolares de história projetados por diversos estudiosos depois de um minucioso trabalho profissio- nal e amplamente democrático. • Em países como México, Espanha e vários outros, produziram-se dis- cussões de grande repercussão social em torno dos conteúdos escola- res de história; tais discussões foram, muitas vezes, muito mais além da escola e adquiriram projeção social e política, pois se debatia, de modo implícito, entre outras coisas, o projeto de futuro de cada socie- dade; na realidade, grande parte desses debates continuam abertos. • Em muitos países da América Latina, algumas datas de grande rele- vância na memória coletiva, como o 12 de outubro*, vem sofrendo uma intensa revisão nos últimos anos;em alguns países, como a Ar- gentina, por exemplo, não é mais ensinada uma versão “espanholista” dessa data, e em outros, como o Peru ou Venezuela, produzem-se críticas abertas à existência de monumentos ou de conteúdos escola- res a respeito. 4 *N. de R.T. “Descoberta” da América, depois apropriada pelo franquismo como “Dia da hispanidade”. Para a América, uma invasão violenta e exploração; para a Espanha, uma “missão civilizadora” cristã. Documentos de Identidade 23 • Todos os casos anteriores se referem a questões e a conteúdos rela- cionados a fatos ocorridos há séculos; mas o que se refere à histó- ria atual – por exemplo, a grandes temas como a Segunda Guerra Mundial ou a Guerra do Vietnã –, ainda hoje, nos conteúdos esco- lares de um grande número de países (p.ex., Japão, Alemanha, Estados Unidos), é notória a ausência de uma informação que seria comum em outros países, assim como a presença de conteúdos pouco confiáveis do ponto de vista historiográfico, o que tem gera- do intensos debates generalizados cuja virulência se intensificou a partir dos anos de 1990 (Hein e Selden, 2000). Alguns destes de- bates originaram intensos protestos sociais, como os da China ao exigir que o Japão reconheça em seus textos escolares as atrocida- des ocorridasdurante a Segunda Guerra. • Quando análises comparativas são realizadas (como as que podem ser encontradas em Ferro, 1981 e 2004; The Academy of Korean Studies, 2005), referentes a França/Argélia, Grã Bretanha/Índia, China/Japão e Coreia/Japão, é possível perceber que as versões do passado recente que ainda hoje são apresentadas aos cidadãos des- tas respectivas sociedades não podem ser mais diferentes entre si; em alguns casos, os conteúdos escolares obrigatórios estão reple- tos de inexatidões e falsidades, tendenciosamente expostas, e em outros é apresentada uma visão dificilmente aceitável pelo país com o qual se realizou a comparação. • De forma tradicional, pelo menos desde o início do século XX, os livros escolares de história mostravam ausências significativas em relação ao país no qual eram publicados; por exemplo, nos livros escolares espanhóis não se definiram questões essenciais sobre a colonização americana, como os maus-tratos aos indígenas ou o escravismo enquanto prática social e econômica generalizada; tais questões, por outro lado, eram destacadas nos livros mexicanos ou brasileiros (Carretero, Jacott e López-Manjón, 2002). • Todos estes aspectos são somente uma parte de um movimento intelectual e educacional de revisão profunda das histórias nacio- nais e locais. Assim, em muitos países europeus, e de outros conti- nentes, se está produzindo uma reconsideração do passado, o que representa mudanças relevantes na história acadêmica e transfor- mações equivalentes na história escolar. Tais fenômenos têm em comum algumas questões como as seguintes, que, de fato, às vezes são contraditórias, a saber: a) a busca de uma relação significativa entre a representação do passado e da identidade, seja nacional, local ou cultural; b) a demanda de histórias menos míticas e mais objetivas; c) a necessidade de elaboração dos conflitos do passado 24 Mario Carretero com vistas a realizar projetos futuros, como é o caso da reinter- pretação dos conflitos nacionais europeus em nome de um futuro comum; e d) a ainda muito incipiente utilidade de gerar uma com- paração entre histórias alternativas de um mesmo passado. Com frequência, sustenta-se que tais fenômenos eram previsíveis dadas as intensas transformações sociais das últimas décadas. No entanto, trata- -se de expressões extraordinárias as quais devem ser analisadas minucio- samente, pois compartilham elementos comuns que são fundamentais para questionar o sentido e as contradições atuais do ensino da história, bem como a própria natureza do conhecimento historiográfico. Há pelo menos duas questões essenciais que não deveríamos ignorar: a necessidade de estudar este conjunto de fenômenos em um contexto internacional (o que foi muito pouco feito até o momento)5 e a inclusão de um olhar do outro como requisito para compreender a problemática apresentada. Outra ausência recorrente e significativa nos debates é a daqueles que, em nossa opinião, são seus protagonistas mais significativos: os autores dos currículos, dos programas e dos textos “oficiais” legítimos, os profes- sores e os estudantes. Suas vozes poderiam ser ouvidas neste livro por meio de diversas manifestações: os conteúdos históricos despejados nos textos escolares, as práticas que articulam a experiência vivida com a apren- dizagem histórica (como as dadas de comemoração pátria nos países da América Latina), e as representações identitárias e as percepções mútuas que geram nos alunos e nos professores.6 A perspectiva teórica das diversas pesquisas costuma possuir limites definidos. Procurei percorrer tais limites, embora mais por necessidade do que por preferência. De qualquer forma, este é, sem dúvida, um livro fronteiriço. A pesquisa que gerou estas páginas começou sendo um traba- lho de psicologia com o qual queríamos atender os desafios que Bruner havia proposto (1990), um dos grandes estudiosos da mente, quando apon- tava a necessidade de dar um papel central ao estudo dos discursos en- quanto configurações essenciais na construção da identidade pessoal e cultural. Recorremos à psicologia, sobretudo em sua vertente do desen- volvimento cognitivo, para abordar a questão de como se formam no alu- no – futuro cidadão – a estrutura e o conteúdo das ideias nacionalistas. Essas ideias pelas quais estará disposto inclusive a ir até a morte, pelo menos teoricamente. Todavia, nos deparamos com o fato de que muitos dos fios com os quais tais pensamentos estavam tecidos tinham sua origem em um lugar para além da escola. Em outras palavras, na própria função que a sociedade atribuía a tal instituição e no sentido que, por sua vez, esta última lhe outorgava. Por isso, era inevitável analisar com detalhe as atuais guerras culturais vinculadas ao ensino da história, apresentadas no Documentos de Identidade 25 começo deste livro. Pretendi abertamente percorrer os espaços existentes entre a mente individual e esse âmbito comum chamado “cultura”, no qual nós, seres humanos, estamos sempre imersos. Para isso, foi inevitá- vel caminhar entre as disciplinas, tomando contribuições de onde pudes- sem ser úteis e frutíferas, com a secreta esperança de que se produzissem escutas recíprocas que ajudassem a resolver alguns dos problemas funda- mentais de nosso tempo. É certo que, no entanto, como dizem alguns, fora das disciplinas não há conhecimento, tendemos a pensar que nesse “lugar” sem nome há algo mais do que trevas exteriores, algo mais do que escuridão permanente. Para começar, o Capítulo 1 deste livro apresenta os marcos conceituais, teóricos e históricos sobre os variados sentidos do conceito de história, dife- renciando três sentidos: o escolar, o acadêmico e o cotidiano, ou popular. Apesar de tratar de uma distinção bem conhecida, suas implicações não o são tanto nos âmbitos culturais em geral nem nos educacionais em particular. A discriminação conceitual desses três sentidos, tanto como a de seus âmbitos e sujeitos de produção, permitirá, em nossa opinião, uma maior compreen- são da vinculação entre a educação formal e os fenômenos sociais e políti- cos os quais se apresentam nos casos que analisaremos posteriormente. Por outro lado, abordamos as relações entre a história e a escola desde a origem dos Estados nacionais, o que significa considerar as paulatinas transformações que sofreram até chegar a ser o que são hoje. Posterior- mente, abordamos as formas que tal união foi adotando, e nos centramos no surgimento das histórias escolares e nacionais, bem como em seu sen- tido e seus objetivos primordiais. Precisamente, partindo de uma hipótese que aponta uma contradição crescente entre os objetivos ilustrados e os românticos na escola em geral e no ensino da história em particular, de- senvolvemos uma tese central de nosso trabalho. Os dois capítulos seguintes se concentram na exposição e análise de casos e materiais reais, os quais permitem examinar tal contradição; em alguns deles, em uma dimensão empírica. No Capítulo 2, apresentam-se e discutem-se os debates sobre o ensino da história ocorridos na década de 1990 em cinco países: Estados Unidos, México, Estônia, Alemanha e Espanha. Em todos eles, as controvérsias se produziram em torno dos conteúdos escolares, que, como é sabido, são uma das vozes por meio das quais se expressam as decisões que os Estados tomam sobre o que seus futuros cidadãos devem estudar e conhecer. A análise em detalhe destas conclusões tenta mostrar que não constituem fenômenos isolados e sem relação entre si, mas sim o contrário, casos particulares de uma dinâmica na qual cumprem um papel essencial as contradições entre as respectivas heranças do Romantismo e da Ilustração, bem como de sua interação com algumas das características centrais da política, da cultura e da sociedade 26 Mario Carretero desde fins do século XX. No Capítulo 3, tratamos estas questões em refe- rência à historia recente, essa categoria difusa (contradição nos termos?)na qual muitas vezes se localizam as feridas abertas das sociedades, esse espaço no qual se pretende, com êxito e fracasso ao mesmo tempo, tanto esquecer quanto recordar. Abordamos o problema de ensinar na escola alguns dos horrores do século passado e a forma como algumas socieda- des enfrentaram essa questão; particularmente a Alemanha, o Japão, os Estados Unidos, a Argentina e a Espanha, entre outras. Os citados capítulos partiram de propostas como as recentes contri- buições de Ferro (1981) e Vázquez (1970), os quais trabalharam sobre os “particulares” conteúdos dos livros didáticos de história (Ver também os estudos mais recentes de Boyd, 1997, e Romero, 2004). No entanto, pare- cia essencial complementar esses trabalhos, tendo como objetivo respon- der a seguinte pergunta: o que se encontra em tais textos está também na mente dos alunos? Assim, no Capítulo 4, incluímos o assunto que foi obje- to de nossas pesquisas empíricas. Referimo-nos a um dos âmbitos mais interessantes e reveladores que se podem encontrar atualmente na prática do ensino da história: a comemoração escolar das chamadas “efemérides” ou festas pátrias; elas ocupam um lugar central nos sistemas educacionais de muitos países da América Latina e da América do Norte, e, no entanto, estão ausentes em outros países, entre os quais se encontra a Espanha. A despeito de estarem separados dos conteúdos curriculares de história, os alunos e professores estabelecem explícita e implicitamente muitas relações entre estes dois âmbitos. Nesse capítulo são apresentados alguns resulta- dos da pesquisa realizada na Argentina e são incluídas análises de entre- vistas realizadas com alunos, nas quais, acreditamos, pode ser vista com clareza a maneira como tomam forma na mente – e na própria vida – dos cidadãos de um país as contradições propostas como hipótese no Capítulo 1. Acreditamos firmemente que os resultados encontrados nessas pesqui- sas podem coincidir com o que poderia ser encontrado em outros países – inclusive naqueles nos quais se praticam as ditas efemérides –, o que ofe- receria substanciais pautas de compreensão. Com efeito, as vozes analisa- das, de alunos e professores, contêm, sem dúvida, uma mostra da gênese dos sentimentos e das representações nacionalistas, e revelam de que for- ma um dispositivo social e cultural hegemônico – a escola – contribui para fabricar, muito precocemente, as bases cognitivas e afetivas das “co- munidades imaginadas”. Nesse sentido, apresenta-se também uma tenta- tiva de explicação sobre o porquê de tais discursos e celebrações serem tão eficazes na obtenção de seus propósitos. Ou seja, quis apresentar o caso argentino como um exemplo de como funciona a engenharia emotiva a serviço do Estado nacional, a qual é projetada principalmente nas ori- gens românticas do nacionalismo. Buscar precisamente tais origens psico- Documentos de Identidade 27 lógicas se deve a minha convicção de que são indeléveis. Se aceitarmos a ideia literária de que a pátria é a infância, é razoável pensar que esta última se constitui em um tipo de período crítico em cujo desenvolvimento, espaço e tempo por sua vez se dão e se forjam os anelos que nunca enfra- quecem, mas que simplesmente tomam diferentes formas ao longo da vida. Em outras palavras, o que ocorre na infância não é intercambiável com qualquer outra experiência. Ao contrário, é único e idiossincrático comparado com qualquer outro momento da vida. Por isso, qualquer teo- ria sobre a identidade nacional, vale dizer, sobre o patriotismo, deve ex- por sua gênese individual, deve explicar de que maneira se forma a voz da nação em cada um de nós, de que maneira se instala o laço social – o qual nos constitui e nos limita ao mesmo tempo – em um momento evolutivo – na infância –, no qual os componentes e os mecanismos identitários são absorvidos de forma compulsiva, sob pena de chegar a não pertencer a nenhuma “manada”. Finalmente, o Capítulo 5 apresenta, primeiramente, algumas discus- sões críticas, filosóficas e políticas, contemporâneas de grande importân- cia para que se possa interpretar compreensivamente os novos desafios da história e da escola, e do condicionamento no ensino escolar da histó- ria. Abordamos nesse capítulo o deslocamento das identidades – subjeti- vas e políticas – as quais caracterizam os processos globais, e estabelece- mos vinculações significativas entre tais processos e os quais configuram o problema atual do ensino da história integrando perspectivas pós-mo- dernas, críticas e multiculturalistas para delinear a disjunção diante da qual se localiza a história escolar. Por último, nas conclusões oferecemos uma perspectiva do exposto em cada capítulo, sua inter-relação e suas implicações educacionais, tan- to teóricas quanto práticas. Reconhecemos a necessidade, e por que não dizer a urgência, de um ensino da história e das ciências sociais que con- tribua para a compreensão e aceitação dos outros, independentemente da nacionalidade, pertencendo ou não a um Estado nacional, compreensão que não deve reduzir o conflito inerente a todo processo de construção identitária. Entendemos que o que está em jogo é o próprio sentido da função da escola na sociedade: ensinar conhecimentos “válidos” e “for- mar” cidadãos. Dito metaforicamente: haverá chegado a hora em que o espelho revele para a madrasta que o mundo não cabe mais em seus limi- tes? Ela poderá sair de seu próprio labirinto autorreferencial e desenvol- ver alguma estratégia diante do outro que não seja a da exclusão? E Bran- ca de Neve, assumirá a responsabilidade de cuidar de si mesma? Este livro tenta contribuir, talvez também retribuir, para esse debate. O reconhecimento da própria identidade, atravessada também pela pluralidade e a diferença pela atitude dialógica e a interdiscursividade 28 Mario Carretero que fazem da história um espaço povoado de sentidos e identidades múl- tiplas, exige que nós preparemos nossas ferramentas de compreensão, não somente para melhorar o ensino da história na escola, mas também sua presença em contextos informais, e sua persistência, suas profundas marcas na consciência de homens e mulheres que, já adultos, seguem empenhados em atravessar o espelho. NOTAS 1. A estrutura e o conteúdo dos contos tradicionais dão lugar a com- preensões introdutórias dos fenômenos identitários, como anali- sa Álvarez Junco (2001a) ao usar a metáfora de Peter Pan para compreender os argumentos dos chamados nacionalismos peri- féricos na Espanha. 2. A existência de um nacionalismo espanhol “fraco” em sua forma- ção histórica (Álvarez Junco, 2001b) faz, provavelmente, que tal surpresa seja maior que em muitos outros países europeus. 3. Recentemente Chomsky (2003) tratou, de modo lúcido, o interes- sante caso de um aluno que foi punido por se negar a realizar o juramento à Constituição norte-americana por considerar que seu cumprimento não coincide com a realidade social desse país. Como será visto no Capítulo 4, esse tipo de atividades patrióticas, com numerosas relações com a História e a Formação Cidadã enquanto disciplinas escolares é muito frequente nos sistemas escolares de muitos países, apesar de na Espanha, surpreendentemente, inexistirem. De fato, também é surpreendente que a hierarquia eclesiástica e a escola privada espanhola de caráter religioso se oponham a uma disciplina de Formação Cívica, a qual existe em muitos países há décadas. 4. Entre os muitos casos que mostram tal questionamento podem ser citados os incidentes em Lima ao retirar uma estátua de Pizarro, as propostas de celebração alternativa na Venezuela, que requeriam homenagens aos indígenas que resistiram à chegada dos espanhóis, e o recente debate na Argentina na raiz da discussão sobre a possí- vel eliminação do 12 de outubro como dia festivo. 5. A documentação à qual recorremos para escrever estas páginas demonstram a permanência de um olhar nacional e endógeno na maioria dosdebates, independentemente do país no qual tenha sido produzido. As pesquisas, certamente muito escassas, as quais tratam de entender como e de que maneira uma sociedade man- tém uma visão histórica nacionalista somente conseguiram lançar Documentos de Identidade 29 luz sobre o problema quando realizaram uma análise comparati- va, de modo geral, relativa ao vizinho ou à metrópole de origem. 6. A maioria dos pesquisadores da educação (p.ex., Delval, 2006; Postman, 1995; Savater, 1997) concordam quando destacam a importância de uma cultura de paz e entendimento entre os cida- dãos, a qual permita a compreensão do outro. Nesse objetivo cos- tumam estar de acordo todos os agentes educacionais da maioria dos países. Entretanto, não concordam no que se refere a como isso se realiza e com quais conteúdos. Nas páginas seguintes, ve- remos profundos desentendimentos nas narrativas históricas es- colares que se relacionam com o passado de uns povos frente ao passado de outros.