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Filosofia moderna: nova ciência e racionalismo 1 Filosofia moderna: nova ciência e racionalismo IDADE MODERNA A revalorização do ser humano e da natureza Inicialmente iremos considerar alguns aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais relevantes desse período histórico que se convencionou chamar de Idade Moderna (século XV ao século XVIII). Eles nos ajudarão a compreender as mudanças na produção filosófica dessa fase. A partir do século XV, uma série de acontecimentos deflagrou diversos processos que levaram a grandes transformações nas sociedades europeias. Entre eles, podemos destacar: - A passagem do feudalismo para o capitalismo, que se vinculou ao florescimento do comércio, ao estabelecimento das grandes rotas comerciais, ao predomínio do capital comercial e à emergencia da burguesia; - A formação dos Estados nacionais, que fez surgir novas concepções político-econômicas, como a discussão sobre as formas do poder político (ocorreu então a centralização do poder através da monarquia absoluta) e a questão comercial (desenvolveu-se nesse período o mercantilismo e o fortalecimento econômico de alguns Estados, levando ao impulso das grandes navegações marítimas, à descoberta do Novo Mundo e ao estabelecimento das colônias); - O movimento da Reforma, que provocou a quebra da unidade religiosa europeia e rompeu com a concepção passiva do ser humano, entregue unicamente aos desígnios divinos, reconhecendo o trabalho humano como fonte da graça divina e origem legítima da riqueza e da felicidade. Também concebeu a razão humana como extensão do poder divino, o que colocava o indivíduo em condições de pensar livremente e responsabilizar-se por seus atos de forma mais autônoma; - O desenvolvimento da ciência natural, que criou novos métodos científicos de investigação, impulsionados pela confiança na razão humana e pelo questionamento de sua submissão aos dogmas do cristianismo. A Igreja Católica, por sua vez, perdia nesse momento parte de seu poder de influência sobre os Estados e de dominação sobre o pensamento; - A invenção da imprensa, que possibilitou a impressão dos textos clássicos gregos e romanos, contribuindo para a formação do humanismo (movimento que estudaremos adiante). A divulgação de obras científicas, filosóficas e artísticas, que se tornaram a partir de então acessíveis a um número maior de pessoas, propiciou maior grau de consciência e liberdade de expressão. Todos esses acontecimentos modificaram, em muitas regiões, o modo de ser, viver e perceber a realidade de grande número de europeus. Nas artes, nas ciências e na filosofia surgiram novas ideias, concepções e valores. Um exemplo importante dessas mudanças foi o desabrochar de uma tendência social antropocêntrica (que tem o ser humano como centro), de valorização da obra e compreensão humanas, em lugar da supervalorização da fé cristã e da visão teocêntrica (que tem Deus como centro) da realidade. Isso levou ao desenvolvimento do racionalismo e de uma filosofia laica (não religiosa) que se mostrarão, de modo geral, otimistas em relação à capacidade da razão de intervir no mundo, organizar a sociedade e aperfeiçoar a vida humana. Renascimento O movimento cultural que contribuiu para essas transformações é conhecido como Renascimento (séculos XV XVI). Tendo por berço a península Itálica, criaria as bases conceituais e de valores que permitiriam o impulso da razão e da ciência no século XVII. Inspirado no humanismo - movimento de intelectuais que defendiam o estudo da cultura greco-romana e o retomo a seus ideais de exaltação do ser humano e de seus atributos, como a razão e a liberdade -, o Renascimento propiciou o desenvolvimento de uma mentalidade racionalista. Revelando maior disposição para investigar os problemas do mundo, o indivíduo moderno aguçou seu espírito de observação sobre a natureza, dedicou mais tempo à pesquisa e às experimentações, abriu a mente ao livre exame do mundo. Esse conjunto de atitudes contrapunha-se, em grande medida, à mentalidade medieval típica, influenciada pelo pensamento contemplativo e mais submissa às chamadas verdades inquestionáveis da fé. O pensador moderno buscaria não somente conhecer a realidade, descobrir as leis que regem os fenômenos naturais, mas também exercer controle sobre ela. O objetivo era prever para prover, como se diria mais tarde. Isso não significou, porém, um completo abandono das questões cristãs medievais, o que se torna claro se observamos o fundo religioso que persiste nas obras intelectuais e artísticas desse período. O que ocorreu foi uma renovação no tratamento dessas questões, a partir de uma nova perspectiva humana, de uma “humanização” do divino. Ameaças à nova mentalidade A transição para a mentalidade científica moderna não foi um processo súbito e sem resistências. Forças ligadas ao passado medieval lutaram duramente contra as transformações que se desenvolviam, punindo, por exemplo, muitos pensadores da época e organizando listas de livros proibidos (o Index). Foi nesse contexto que vários pioneiros da ciência moderna sofreram perseguição da Inquisição, tribunal instituído pela Igreja Católica com o fim de descobrir e julgar os responsáveis pela propagação de heresias, isto é, concepções contrárias aos dogmas dos católicos. Exemplo marcante dessas perseguições é o julgamento do pensador italiano Giordano Bruno (1548-1600), condenado à morte na fogueira por contestar o pensamento católico, que se apoiava na ideia de que o planeta Terra era o centro imóvel do universo. Essa noção geocêntrica estava fundamentada na astronomia do grego Ptolomeu, na física de Aristóteles e em certas interpretações da Bíblia. Contra essa concepção, Giordano Bruno defendeu a teoria heliocêntrica, formulada por Nicolau Copérnico, e afirmou que o universo é um todo infinito, cujo centro não está em parte alguma. As perseguições que sofreu por isso são denunciadas nestas palavras: Por ser eu delineador do campo da natureza, por estar preocupado com o alimento da alma, interessado pela cultura do espírito e dedicado à atividade do intelecto, eis que os visados me ameaçam, os observados me assaltam, os atingidos me mordem, os desmascarados me devoram. (BRUNO, Sobre o infinito, o universo e os mundos, p. 3). Nicolau Copérnico O sacerdote e astrônomo polonês Nicolau Copérnico (1473- 1543) escreveu o livro Da revolução das esferas celestes, em que combatia a teoria geocêntrica (a Terra vista como centro do universo) e propunha a teoria heliocêntrica, demonstrando que a Terra girava em torno do Sol e que este era o centro do nosso sistema planetário. O revolucionário livro de Copérnico foi publicado no ano de sua Filosofia moderna: nova ciência e racionalismo 2 morte (1543) e escapou, de início, à condenação católica, que viria com a reativação da Inquisição, após o Concílio de Trento (1545- 1563). A formulação de Copérnico de que é o Sol, e não a Terra, o centro do universo atingia a concepção medieval cristã de que o ser humano é o ser supremo da criação e que, por isso, seu hábitat, a Terra, deveria ter o privilégio de ser o centro em relação aos outros astros. Compreende-se assim o mal-estar causado pela tese copernicana. Outro aspecto que incomodou as autoridades católicas foi que a natureza e o universo passaram a ser concebidos a partir de um novo paradigma, baseado tanto na observação direta como na representação matemática. Essa mudança de atitude e seus resultados foram entendidos como uma ameaça aos dogmas da Igreja, e poderiam afastar as pessoas da fé cristã. Ética, educação e política Além do desenvolvimento do pensamento científico, com implicações evidentes no campo filosófico, outras questões importantes desse período dizem respeito à essência humana, à moral e à política. Nesse âmbito destacam-se, por exemplo, o francês Michel de Montaigne (1523-1592) e o italiano Nicolau Maquiavel(1469-1527). Montaigne desenvolveu um pensamento de fundo ceticista, inspirado em parte no ceticismo da Antiguidade, mas também no epicurismo e no estoicismo. Ele afirmava não ser possível estabelecer os mesmos preceitos para todos os seres humanos, sendo necessário que cada um construa um conhecimento e uma consciência moral de acordo com as suas possibilidades e disposições individuais, mas tendo como regra geral, para alcançar a sabedoria, “o dizer sim à vida”. Na educação, por exemplo, recomendava que todos os conteúdos fossem submetidos à reflexão do aluno. Nada deveria ser imposto ao estudante por simples autoridade da tradição. Todas as diversas doutrinas deveriam ser-lhe apresentadas, cabendo a cada um a decisão de qual é a melhor. E quando não pudesse decidir entre elas, que ficasse na dúvida, “pois só os loucos têm certeza absoluta em sua opinião”. Maquiavel iniciou uma nova fase do pensamento político ao abandonar o enfoque ético e religioso e procurar uma abordagem mais realista da política. Ou seja, buscou descrever o fenômeno político em si mesmo, de modo autônomo. O centro de suas reflexões é o exercício do poder político pelo Estado. Em seu livro mais célebre, O príncipe, o filósofo desenvolve um realismo político em que busca identificar as causas do sucesso e do fracasso na manutenção do poder pelo governante. Nessa análise, desvincula totalmente as razões políticas das razões morais. De forma geral, as considerações acerca do poder político em Maquiavel estão ligadas a uma visão pessimista do ser humano. Para ele: A propensão para o bem, para a construção da boa sociedade, não está inscrita na natureza humana. Esta, ao contrário, é má, fazendo-se necessária a existência do Estado para coibir os maus instintos do homem. Isto, para Maquiavel, deve ser levado em conta por todo aquele que está no exercício do poder. Assim, o recurso à força para conter a maldade humana faz parte da lógica do poder político. RAZÃO E EXPERIÊNCIA As bases da ciência moderna Foi com os filósofos gregos jônicos que as crenças mitológicas começaram a ceder lugar ao saber racional. E a ideia de caos começou a ser dissolvida, nascendo, para substituí-la, o conceito de cosmo. Dentro desse novo e revolucionário conceito, o universo passou a ser encarado como algo ordenado, harmônico, previsível, capaz de ser compreendido racionalmente pelo ser humano. O conceito grego de cosmo desenvolveu-se com os pré- socráticos, encontrando novas formulações com os filósofos do período clássico, entre eles Platão e Aristóteles. Estes legaram ao Ocidente medieval a ideia de um cosmo ordenado, no qual a Terra tinha lugar privilegiado. Era um cosmo finito, fechado, dividido em dois planos básicos: o céu e a Terra. Podemos imaginar a revolução espiritual que representaram, portanto, as novas concepções da ciência nascente. As conquistas e realizações renascentistas deixaram a maioria das pessoas desorientadas e desconfiadas. O mundo racionalmente ordenado da Antiguidade foi questionado e, aos poucos, dissolvido. O que representariam a cidade, o Império ou a Igreja diante de um universo infinito? A respeito desse processo, vejamos o que nos diz o historiador da ciência Alexandre Koyré: O homem perdeu seu lugar no mundo, ou, mais exatamente, perdeu o próprio mundo que formava o quadro de sua existência e o objeto de seu saber, e precisou transformar e substituir não somente suas concepções fundamentais, mas as próprias estruturas de seu pensamento. Podemos dizer que esse quadro conceitual deu origem a algumas questões ou inovações que caracterizam a filosofia moderna. Vejamos em seguida quais são elas. Busca de um novo centro Uma das concepções fundamentais até então - a noção aristotélica de espaço hierarquizado, isto é, em que cada lugar apresenta uma qualidade diferente da de outro lugar - foi substituída pelo conceito de espaço homogêneo, ou seja, em que os lugares são equivalentes, sem um ponto fixo referencial, sem uma hierarquia. O Sol não se converteria no novo ponto fixo, pois o heliocentrismo de Copérnico representava apenas o primeiro passo de um processo de descentralização exterior do mundo. Como ficará mais claro adiante, o ser humano só encontraria um novo centro em si mesmo, isto é, na razão, entendida como a capacidade humana de avaliar a realidade e distinguir o verdadeiro do falso. Mundo representado Até a Idade Média, havia prevalecido a noção de que a realidade do mundo se apresenta diretamente às pessoas, isto é, mostra-se por si mesma à mente (realismo). Os pensadores da modernidade, por sua vez, tenderam a abordar o mundo com base na ideia de que a realidade é representada pela mente. Desse modo, boa parte deles procurou ultrapassar a percepção imediata e sensível da realidade, que passou a ser interpretada como representação. A Representação é uma operação da mente que re(a)presenta o real e produz uma imagem do mundo, ou um outro mundo. Assim, uma das principais características do pensamento moderno foi tentar explicar a realidade a partir de novas formulações racionais. Galileu, por exemplo, explicaria o mundo concreto, sensível, por meio de relações matemáticas, geométricas, o que não se havia feito até então, embora hoje esse seja um procedimento bastante comum. Filosofia moderna: nova ciência e racionalismo 3 Procura-se um método Outra pergunta que surgiu foi: Qual é a garantia de que um pensamento é verdadeiro? A ruptura com toda a autoridade preestabelecida de conhecimento fez com que os pensadores modernos buscassem uma base segura, algo que garantisse a verdade de um raciocínio. Procurava-se, portanto, um método. Por método eu entendo regras certas e fáceis que, observadas corretamente, levarão quem as seguirem a atingir o conhecimento verdadeiro de tudo o que for possível. O método consiste na ordem e na disposição das coisas para as quais devemos voltar o olhar do espírito, para descobrir a verdade. A razão estava em alta. O método escolhido foi o matemático, pois a matemática é o exemplo de conhecimento integralmente racional. Ela se tornaria, por isso, o modelo seguido pelo racionalismo do século XVII. Aprofundaremos a temática do desenvolvimento do método científico no estudo específico das concepções de Francis Bacon e Galileu Galilei, em seguida, e de Descartes, mais adiante neste capítulo. Francis Bacon Nascido em Londres, Francis Bacon (1561-1626) pertencia a uma família de nobres. Depois de concluir seus estudos em Cambridge, iniciou, em 1577, sua carreira política, através da qual conquistaria os mais importantes postos do reino británico. Bacon realizou uma obra científica de inegável valor. É considerado um dos fundadores do método indutivo de investigação científica. Atribui-se a ele, também, a criação do lema “saber é poder”, que revela sua firme disposição de fazer dos conhecimentos científicos um instrumento prático de controle da realidade. Preocupado com a utilização dos conhecimentos científicos na vida prática, Bacon manifestava grande entusiasmo pelas conquistas técnicas que se difundiam em seu tempo: a bússola, a pólvora e a imprensa. Revelava igualmente sua aversão ao pensamento meramente abstrato, característico da escolástica medieval. Teoria dos ídolos Para Bacon, a ciência deveria valorizar a pesquisa experimental, tendo em vista proporcionar resultados objetivos para o ser humano. Mas, para isso, era necessário que os cientistas se libertassem daquilo que denominava ídolos, isto é, falsas noções, preconceitos e maus hábitos mentais. Em sua obra Novum organum, o filósofo destaca quatro gêneros de ídolos que bloqueiam a mente humana e prejudicam a ciência: - Ídolos da tribo - as falsas noções provenientes das próprias limitações da natureza da espécie humana; - Ídolos da caverna - as falsas noções do ser humano como indivíduo (alusão ao mito da cavernade Platão); - Ídolos do mercado ou do foro - as falsas noções provenientes da linguagem e da comunicação; - Ídolos do teatro - as falsas noções provenientes das concepções filosóficas, científicas e culturais vigentes. Método indutivo Para combater os erros provocados pelos ídolos, Francis Bacon propôs o método indutivo de investigação, baseado na observação rigorosa dos fenômenos naturais, que cumpriria as seguintes etapas: - Observação da natureza para a coleta de informações; - Organização racional dos dados recolhidos empiricamente; - Formulação de explicações gerais (hipóteses) destinadas à compreensão do fenômeno estudado; - Comprovação da hipótese formulada mediante experimentações repetidas, em novas circunstâncias. Bacon dizia que aquele que inicia uma investigação com muitas certezas acaba cheio de dúvidas, mas aquele que começa com dúvidas pode terminar com algumas certezas. Assim, a grande contribuição de Francis Bacon para a história da ciência moderna foi apresentar o conhecimento científico como resultado de um método de investigação capaz de conciliar a observação dos fenômenos, a elaboração racional das hipóteses e a experimentação controlada para comprovar as conclusões. Galileu Galilei Nascido na cidade italiana de Pisa, Galileu Galilei (1564-1642) é considerado um dos fundadores da física moderna. Foi um entusiasta defensor da cosmologia que desenvolveu a partir da teoria heliocêntrica de Copérnico. Rejeitava, portanto, a astronomia de Ptolomeu e a física de Aristóteles, que, incorporadas pelo cristianismo católico, reinaram durante o período medieval. Por contrariar a visão tradicional do mundo, foi advertido pelas autoridades católicas, que o julgavam herege. Suas ideias eram consideradas contrárias às Sagradas Escrituras. Galileu teria comentado então que a Bíblia, em se tratando de temas científicos, não era um manual a ser obedecido cegamente. Esse pioneirismo rebelde de Galileu atraiu a fúria da Inquisição. Em 1633, foi condenado por seus inquisidores, que lhe impuseram a dramática alternativa: ser queimado vivo em uma fogueira ou retratar-se publicamente, renegando suas concepções científicas. Galileu optou por viver e retratou-se perante o tribunal. Permaneceu, entretanto, fiel às suas ideias e, em 1638, quatro anos antes de morrer, publicou clandestinamente mais uma obra que contrariava os dogmas oficiais de sua época. Método matemático-experimental Na tradição grega aristotélica, para entender uma coisa não era preciso estudá-la experimentalmente. Bastava esforçar-se por compreender como essa coisa existe e funciona e, depois, elaborar uma teoria sobre isso. Assim, para grande parte dos pensadores antigos e medievais, observar as coisas, agir sobre a natureza e pensar como matemático eram práticas incompatíveis. Já Galileu - professor de matemática da Universidade de Pisa - decidiu, de forma inovadora, aplicar a matemática ao estudo experimental da natureza. Desse modo, alcançou grandes realizações, entre as quais podemos destacar: - A elaboração da lei da queda livre dos corpos, segundo a qual a aceleração de um corpo em queda é constante, independentemente de o corpo ser leve ou pesado, grande ou pequeno. A demonstração dessa lei exige condições ideais (vácuo); - A construção e o aperfeiçoamento de um telescópio, com o qual efetuou observações astronômicas que o levaram a descobrir o relevo montanhoso da Lua, quatro satélites de Júpiter, as formas diferentes de Saturno, as fases de Vênus e a existência das manchas solares. Mas não é apenas por suas descobertas específicas que Galileu merece especial destaque na história das ciências. Uma de suas mais extraordinárias contribuições foi ter assumido uma nova postura de investigação científica, cuja metodologia tinha como bases: - A observação paciente e minuciosa dos fenômenos naturais; - A realização de experimentações para comprovar uma tese; - A valorização da matemática como instrumento capaz de Filosofia moderna: nova ciência e racionalismo 4 enunciar as regularidades observadas nos fenômenos. Newton: a ordem do universo Algumas décadas após a morte de Galileu, o físico, matemático, astrônomo inglês Isaac Newton (1642-1727) levaria a termo a revolução científica iniciada pelo cientista italiano, dando origem à física clássica. Newton criou no âmbito da ciência o que seria a base de inspiração para a investigação sobre o conhecimento da filosofia do século XVIII. Em sua obra principal, Princípios matemáticos da filosofia natural (denominava-se então filosofia natural o que hoje consideramos ciências naturais), Newton estabelece regras que se baseiam na noção de simplicidade e uniformidade da natureza. Decorre também do pensamento de Newton a concepção do mundo como uma grande máquina, cujas partes podem ser conhecidas através da observação e da experimentação. Esse mundo ou grande mecanismo seria, por sua vez, obra de um ser inteligente e “regente universal”: Deus. Essa compreensão deu origem à metáfora do “Grande Relojoeiro”, criada por Voltaire em referência a Deus. Para Newton, porém, não podemos conhecer Deus, porque só nos é possível conhecer através de nossos sentidos. Portanto, sobre Deus, só é possível afirmar sua existência a partir da ordem presente no universo. GRANDE RACIONALISMO O conhecimento parte da razão Durante o século XVII, a confiança no papel da razão no processo de conhecimento chega a seu auge no contexto da filosofia (que se mantinha ainda aliada à ciência). Por isso a produção filosófica dessa época é chamada de grande racionalismo. No campo das teorias do conhecimento, racionalismo designa a doutrina que privilegia a razão no processo de conhecer a verdade. Abordaremos em seguida dois dos principais filósofos racionalistas desse período: René Descartes e Baruch Espinosa. René Descartes René Descartes (1596-1650) nasceu em La Haye, França, em uma família de prósperos burgueses. Decepcionado com a formação jesuíta (tomista-aristotélica) que recebera, decidiu buscar a ciência por conta própria, esforçando-se por decifrar o “grande livro do mundo”. Em suas inúmeras viagens pela Europa, estabeleceu contatos com vários sábios de seu tempo, entre eles Blaise Pascal (1623-1662). Temendo perseguições religiosas e tendo em mente a condenação de Galileu, tomou uma série de cautelas na exposição de suas ideias. Autocensurou vários trechos de suas obras para evitar tanto a repressão da Igreja Católica como a reação fanática dos protestantes. Apesar disso, o que publicou é suficientemente vasto e valioso para situá-lo como um dos pais da filosofia moderna. Vejamos algumas concepções básicas de seu pensamento com alguns conceitos elementares para que você tenha um quadro mais completo do pensamento cartesiano. Dúvida metódica Vimos antes que Descartes afirmava que, para conhecer a verdade, é preciso, de início, colocar todos os nossos conhecimentos em dúvida. É necessário questionar tudo e analisar criteriosamente se existe algo na realidade de que possamos ter plena certeza. Fazendo uma aplicação metódica da dúvida, o filósofo percebeu que a única verdade totalmente livre de dúvida era que ele pensava. Deduziu então que, se pensava, existia (“Penso, logo existo”). Para Descartes, essa seria uma verdade absolutamente firme, certa e segura, que, por isso mesmo, deveria ser adotada como princípio básico de toda a sua filosofia. Era sua base, seu novo centro, seu ponto fixo. É preciso ressaltar que o termo pensamento é utilizado por Descartes em um sentido bastante amplo, abrangendo tudo o que afirmamos, negamos, sentimos, imaginamos, cremos e sonhamos. Assim, o ser humano era, para ele, uma substância essencialmente pensante. Dualismo Também estudamos anteriormente que Descartes, aplicando a dúvida metódica, chegou à conclusão de que no mundo haveria apenas duas substâncias, essencialmente distintase separadas: - A substância pensante (res cogitans), correspondente à esfera do eu ou da consciência; e - A substância extensa (res extensa), correspondente ao mundo corpóreo, material. O ser humano seria composto dessas duas substâncias, enquanto a natureza seria apenas substância extensa. Essa era uma concepção que se chocava com a noção tomista-aristotélica predominante, segundo a qual haveria tantas substâncias quantos seres existissem. A metafísica cartesiana também incluía uma substância infinita (res infinita), relativa a Deus, o ser que teria criado todas as coisas. Mas essa substância não seria parte deste mundo, pois o Deus cartesiano é transcendente, está separado de sua criação. Idealismo Descartes concluiu, porém, que o pensamento (ou consciência) é algo mais certo que qualquer corpo, pois ele considerava a matéria “algo apenas conhecível, se é que o é, por dedução do que se sabe da mente”. Essa é uma concepção idealista, tanto em termos ontológicos como epistemológicos, pois prioriza o ser pensante em contraposição à matéria, bem como a atividade do sujeito pensante em relação ao objeto pensado. Racionalismo Descartes era um racionalista convicto. Recomendava que desconfiássemos das percepções sensoriais, responsabilizando-as pelos frequentes erros do conhecimento humano. Dizia que o verdadeiro conhecimento das coisas externas devia ser conseguido através do trabalho lógico da mente. Nesse sentido, considerava que, no passado, dentre todos os indivíduos que buscaram a verdade nas ciências, “só os matemáticos puderam encontrar algumas demonstrações, isto é, algumas razões certas e evidentes” Descartes atribuía, portanto, grande valor à matemática como instrumento de compreensão da realidade. Ele próprio foi um grande matemático, sendo considerado um dos criadores da geometria analítica, sistema que tornou possível a determinação de um ponto em um plano mediante duas linhas perpendiculares fixadas graficamente (as coordenadas cartesianas). Método cartesiano Da sua obra Discurso do método, podemos destacar quatro regras básicas, consideradas por Descartes capazes de conduzir o espírito na busca da verdade: - Regra da evidência - só aceitar algo como verdadeiro desde que seja absolutamente evidente por sua clareza e distinção. As ideias claras e distintas seriam encontradas em sua própria Filosofia moderna: nova ciência e racionalismo 5 atividade mental, independentemente das percepções sensoriais externas. Devido a elas, Descartes propôs a existência das ideias inatas (com as quais nascemos), que são plenamente racionais. Exemplos: as ideias matemáticas, as noções gerais de extensão e movimento, a ideia de infinito etc. - Regra da análise - dividir cada uma das dificuldades surgidas em tantas partes quantas forem necessárias para resolvê-las melhor. - Regra da síntese - reordenar o raciocínio indo dos problemas mais simples para os mais complexos. - Regra da enumeração - realizar verificações completas e gerais para ter absoluta segurança de que nenhum aspecto do problema foi omitido. Herança cartesiana O pensamento de Descartes influi profundamente no pensamento posterior. Sua concepção dualista do ser humano ainda é sentida em diversos campos do conhecimento. E seu método contribuiu grandemente para uma visão reducionista da realidade. Sua tentativa, porém, de reconstruir o edifício do conhecimento talvez não tenha sido uma obra tão fecunda quanto o efeito demolidor que provocou. Por isso, podemos dizer que Descartes celebrizou-se não propriamente pelas questões que resolveu, mas, sobretudo, pelos problemas que formulou, problemas esses que foram herdados pelos filósofos posteriores. Por fim, as filosofias de Espinosa, de Leibniz, de Malebranche, atestam a importância da revolução cartesiana: elas constroem-se na meditação dos problemas postos por Descartes, e seguindo estruturas provindas do seu pensamento. Baruch Espinosa Baruch Espinosa (1632-1677) nasceu na Holanda, filho de imigrantes judeus de origem hispano-portuguesa. Em sua filosofia, desenvolveu um nacionalismo radical, que se caracterizou pela crítica às superstições religiosa, política e filosófica. De acordo com o filósofo, a fonte de toda superstição é a imaginação. Incapaz de compreender a verdadeira ordem do universo, a imaginação credita a realidade a um Deus transcendente e voluntarioso, nas mãos de quem os seres humanos não passam de joguetes. A partir da superstição religiosa, desenvolvem-se as superstições políticas e filosóficas. Deus imanente Para combater essas superstições em sua origem, Espinosa escreveu a Ética, texto no qual busca provar, como em uma demonstração geométrica, a natureza racional de Deus, que se manifesta em todas as coisas (Deus imanente). Desse modo, Deus não está fora nem dentro do universo: ele é o próprio universo. No interior desse entendimento racionalista, não há lugar para tragédia nem mistérios: tudo se torna compreensível à luz da razão. A filosofia seria o conhecimento racional de Deus, e a liberdade humana consistiria na consciência da necessidade. Ou seja, não haveria livre-arbítrio, uma vez que Deus se identifica com a natureza universal e, portanto, tudo o que existe é necessário, não pode ser transgredido, pois faz parte da natureza divina. Por isso, Espinosa propunha a equação Deus = Natureza, que significa: tudo existe em Deus, e mantém-se em seu Ser. Blaise Pascal Vejamos, por último, um filósofo que viveu na época do grande racionalismo, mas que foi um pensador contra a corrente, isto é, um crítico de seus contemporâneos e da confiança excessiva na razão. Trata-se de Blaise Pascal (1623-1662), nascido em Clermont-Ferrand, na França. Apesar de ter sido um grande matemático e físico e de ter inventado a primeira calculadora, não aceitava o reducionismo matemático nas questões humanas. Exemplo disso é sua frase lapidar: “O coração tem razões que a razão desconhece”. Pascal preferiu refletir sobre a condição trágica do ser humano, ao mesmo tempo magnífico e miserável, capaz de alcançar grandes verdades e gerar grandes erros. Em sua obra Pensamentos (da qual transcrevemos os diversos fragmentos que seguem), escrita sob a forma de aforismos, questiona a situação paradoxal do ser humano em meio a toda a realidade existente: “No fundo, o que é o homem na natureza? É nada em relação ao infinito, é tudo em relação ao nada, algo de intermediário entre o nada e o tudo”. Diante das novas teorias astronômicas de seu tempo, confessa: “O silêncio eterno dos espaços infinitos apavora”. Limites da razão Assim, em vez de mostrar a mesma confiança na razão que caracterizava os pensadores de seu tempo, Pascal defendeu a ideia de que o ser humano não pode conhecer o princípio e o fim das realidades que busca compreender. Estaria limitado apenas às aparências, já que, em suas palavras, “só o autor dessas maravilhas as compreende; ninguém mais pode faze-lo”. Afirmava que a razão humana seria impotente para provar a existência de Deus. Dependeria da 'fé a crença em um Deus, cuja existência jamais poderá ser provada. De acordo com seu pensamento, “o supremo passo da razão está em reconhecer que há uma infinidade de coisas que a ultrapassam”. Dessa forma ele dirá: “O coração - e não a razão - é que sente Deus. E isto é a fé: Deus sensível ao coração e não à razão”. Pascal polemizou contra o Deus dos filósofos e dos sábios, um deus transformado em engenheiro do mundo, que, uma vez criado, seguiria seu rumo em cego mecanicismo. Nessa polêmica, seu alvo era Descartes e sua concepção de um Deus das verdades geométricas. O que Pascal buscava recuperar era o “Deus de amor e consolação, é um Deus que faz cada qual sentir interiormente a sua propria miséria e a misericórdia infinita de Deus”.
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