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Apostila: Linguística Geral 1. Fundamentos da ciência da linguagem 1.1 Um pouco da história do estudo da linguagem Comecemos por considerar que a linguagem humana – como e por que falamos – é um fenômeno misterioso que tem encantado os seres humanos há muito tempo, produzindo os mais diversos tipos de estudos, trabalhos, pesquisas, teorias, métodos de investigação. Tem possibilitado também grandes criações da mente humana, como belíssimos poemas, romances, tratados científicos, teses acadêmicas. Para entender um pouco sobre o estudo dessa capacidade humana que é a linguagem, vejamos um breve histórico com base no que foi apresentado por Petter (2008, p. 12 e 13). Os primeiros estudos sobre a linguagem ocorreram no século IV a.C. motivados por razões religiosas, que fizeram com que os hindus estudassem a sua língua, no intuito de que os textos sagrados não fossem modificados aos serem proferidos. Em seguida, ainda no século IV a.C. os gramáticos hindus se ocuparam da descrição detalhada de sua língua e elaboraram modelos de análise descobertos no final do século XVIII pelo Ocidente. A preocupação dos gregos foi, sobretudo, determinar as relações entre o conceito e a palavra que o nomeia, isto é, eles investigaram a existência de uma relação entre a palavra e o seu significado; Platão, por exemplo, foi um dos estudiosos que discutiu essa questão. Já Aristóteles direcionou seus estudos para uma análise detalhada da estrutura linguística, contribuindo com a elaboração de uma teoria da frase, a identificação das partes do discurso e a enumeração das categorias gramaticais. Houve também o teórico Varrão que se destacou entre os latinos, dedicando-se à gramática e à sua concepção de ciência e arte. Na Idade Média, houve os modistas que conceberam a estrutura gramatical como algo único e universal, considerando as regras gramaticais independentes das línguas em que são realizadas. No século XVI, a Reforma ativou a religiosidade e, ainda que o latim tivesse prestígio e fosse considerado como língua universal, houve a prática de tradução dos livros considerados sagrados para diversas línguas até então desconhecidas, que eram trazidas pelos viajantes, comerciantes e diplomatas de suas experiências e vivências no exterior. Assim, em 1502 é criado, pelo italiano Ambrosio Calepino, o dicionário poliglota mais antigo. As preocupações dos estudiosos antigos são mantidas nos séculos XVII e XVIII; em 1660 a Gramática de Port Royal, de Lancelot e Arnaud, que serve de modelo para muitas gramáticas do século XVII, apresenta a ideia de que a linguagem é fundada pela razão, sendo uma imagem do pensamento. Para eles, os princípios de análise definidos servem para toda e qualquer língua, de modo que não se referem a uma língua específica e particular. No século XIX, com o conhecimento de uma quantidade maior de línguas, há o interesse pelas línguas vivas, ou seja, pelos falares existentes, ocorrendo um estudo comparativo entre eles, que vai de encontro ao estudo mais abstrato da língua predominante no século anterior. Sendo assim, nesse período é elaborado um método histórico, que teve importante papel no desenvolvimento das gramáticas comparadas e da Linguística Histórica. De acordo com a metodologia dessa época, o pensamento linguístico tem como base a observação e análise de fatos. Esse estudo comparado das línguas destaca que “as línguas se transformam com o tempo, independentemente da vontade dos homens, seguindo uma necessidade própria da língua e manifestando-se de forma regular” (Petter, 2008, p.12). Nesse período, o estudioso Franz Bopp se sobressai, principalmente com a publicação em 1816 de sua obra referente ao sistema de conjugação do sânscrito, em comparação ao grego, ao latim, ao persa e ao germânico, o que marca o surgimento da Linguística Histórica. Esse estudo possibilitou a observação de semelhanças entre essas línguas e grande parte das línguas europeias, evidenciando que há um grau ou vínculo de parentesco entre elas. Assim, Bopp descobriu que existe uma família de línguas indo-europeia, advindas do indo- europeu, sendo possível chegar a essa origem através do método histórico- comparativo. Essa investigação do desenvolvimento histórico das línguas que aconteceu no século XIX foi um grande progresso nos estudos linguísticos. Os estudiosos da linguagem perceberam também que as mudanças verificadas nos textos escritos equivalentes aos diversos períodos poderiam ser justificadas pelas mudanças que teriam sido realizadas na língua falada, ocasionando e explicando, por exemplo, o fato de a língua latina ter se transformado e originado, após alguns séculos, as línguas português, espanhol, italiano e francês, ou seja, o latim falado possibilitou a criação de outras línguas. Houve, portanto, uma alteração no objeto de análise dos estudos sobre a linguagem, que até então se interessavam pela língua literária, e a Linguística moderna, apesar de também estudar a língua escrita, tem como prioridade e princípio fundamental o estudo e a investigação da língua falada. No início do século XX, a investigação sobre a linguagem feita pela Linguística é reconhecida como estudo científico e isso ocorre em especial com a divulgação das pesquisas de Ferdinand de Saussure, professor da Universidade de Genebra. Isso ocorreu em 1916, quando dois de seus alunos, com base em anotações feitas durantes suas aulas, publicaram a obra Curso de Linguística Geral, considerada como fundadora dessa ciência. Até então, a Linguística estava submetida a exigências e princípios de outros estudos como a lógica, a filosofia, a retórica, a história e a crítica literária, ou seja, não possuía um caráter autônomo até a exposição dos estudos de Saussure. O século XX, portanto, marcou uma mudança significativa na consideração da Linguística e das pesquisas linguísticas, justamente por reconhecer o caráter científico desses novos estudos, cujo foco está na observação dos fatos de linguagem. Essa observação dos fatos conforme o método científico deve ocorrer antes do estabelecimento de uma hipótese, mediante uma análise sistemática. O trabalho e a pesquisa científica consistem na observação e descrição dos fatos, tendo como base pressupostos teóricos específicos. Dessa maneira, analisam-se os fatos de acordo com um quadro teórico, sendo possível que um mesmo fenômeno tenha diferentes descrições e explicações, pois o pesquisador pode optar por diferentes referenciais teóricos, porém é fundamental a verificação de fatos de linguagem, para que um estudo seja caracterizado científico, tal como faz a Linguística. Para entender melhor o que é a Linguística, vejamos a definição do seu objeto de estudo – a linguagem. 1.2 O que é a linguagem? Nós, seres humanos, somos os únicos capazes de falar (ou escrever) sobre fatos que já aconteceram ou que ainda acontecerão; podemos também falar de coisas que não estão presentes no momento da comunicação. Podemos falar sobre uma festa, um acidente ou qualquer evento importante ocorrido há algum tempo; sobre qualquer pessoa ou objeto, sem que eles estejam presentes ou próximos a nós; sobre sentimentos e sensações passadas ou presentes; enfim, podemos falar sobre tudo o que quisermos. Para isso, ou seja, para comunicarmos essas coisas, nós usamos palavras, gestos ou desenhos. Essa capacidade humana de utilizar, na comunicação, “representantes” ao invés das coisas reais é chamada capacidade simbólica, ou seja, em lugar de mostrarmos o objeto, a pessoa ou o fato sobre o qual estamos falando, usamos palavras, gestos ou desenhos para fazer a referência desejada. Na verdade, toda a comunicação humana é simbólica, isto é, é feita através de sinais (ou signos), que representam as coisas sobre as quais queremos falar. É a nossa capacidade simbólica que nos permite imaginar situações, relembraracontecimentos, planejar o futuro. Quando desenhamos uma casa, estamos simbolizando a casa; quando fazemos o gesto de mão fechada com o polegar levantado, estamos simbolizando mensagens como “tudo bem”, “eu concordo” ou “positivo”; quando a luz verde do semáforo se acende, simboliza “pode avançar, ir em frente”; quando empregamos qualquer palavra como “cachorro”, “jacaré”, “pato”, “amor”, “ódio”, por exemplo, estamos simbolizando os animais e os sentimentos em questão. Os seres humanos criaram vários sistemas de significação (isto é, conjuntos estruturados de elementos possuidores de sentido) para poderem se comunicar e expressar o que desejam. Vejamos alguns deles: • Sistema gestual: os gestos diferem de cultura para cultura; balançar a cabeça verticalmente aqui no Brasil significa “sim” e horizontalmente quer dizer “não”, contudo, em outros lugares, esses gestos podem significar outra coisa. Alguns gestos que traduzem xingamento podem significar algo diferente em outro lugar, como, por exemplo, no Brasil, o gesto de unir o polegar e o indicador, mantendo os outros dedos esticados significa um xingamento, uma ofensa; já, nos Estados Unidos, significa “ok”, “tudo certo”; • Sistema pictórico (de pintura, desenho): desenhar ou pintar é representar, simbolicamente, alguma coisa. Não podemos comer um alimento desenhado, nem pegá-lo, mas essas imagens são usadas para transmitir algum tipo de mensagem; • Sistema da música: as melodias, os sons, as notas musicais traduzem mensagens criadas pelos autores, podendo ser usadas para comunicações diversas como a campainha e o toque do telefone; • Sistema da escultura: as esculturas representam (portanto, simbolizam) objetos, pessoas, mensagens, como monumentos que homenageiam pessoas consideradas personalidades marcantes e importantes ou que representam dados religiosos; • Sistema linguístico: é composto pelos signos (sinais) da língua, ou seja, as palavras. O sistema linguístico ou verbal nos possibilita expressarmos tudo o que quisermos. As línguas naturais são, portanto, manifestações de algo mais geral que é a linguagem. É importante entender e diferenciar essas duas noções – língua e linguagem – e para tal levaremos em consideração o que foi proposto por Saussure e Chomsky, referente a uma teoria geral da linguagem e da análise linguística. Saussure considerou que a linguagem é complexa e multifacetada, e em sua abrangência há vários domínios, podendo ser, simultaneamente, física, fisiológica e psíquica; segundo ele a linguagem tem caráter individual e social, não sendo possível classificá-la em alguma categoria de fatos humanos. Para o teórico, a linguagem não pode ser objeto de estudo da Linguística, porque ela envolve, além da investigação linguística, outros aspectos analisados por outras ciências, como a antropologia e a psicologia, por exemplo. Sendo assim, Saussure seleciona uma parte essencial do todo linguagem, que é a língua, considerada um objeto uno e passível de classificação. Segundo o autor, a língua “é um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos” (Saussure, 1969, p. 17). De acordo com Saussure, a língua é um sistema ou conjunto de signos ou unidades que se relacionam de maneira organizada dentro de um todo. Seria a parte social da linguagem, fora do indivíduo, que obedece a leis sociais estabelecidas por determinada comunidade e que não pode ser alterada pelos falantes. E juntamente aos conceitos de linguagem e língua, o autor destaca ainda a fala, que é um ato individual, é resultado das combinações que o falante faz usando o código da língua, e essas combinações são produzidas através de atos de fonação. Para Saussure, o objeto de estudo da Linguística é determinado com a distinção de linguagem, língua e fala, haja vista que o autor divide o estudo da linguagem em duas partes: investigação da língua e investigação da fala. Não é possível separar essas duas partes, pois uma depende da outra, isto é, a língua condiciona a produção da fala, porém, não há língua se não houver a fala. Entretanto, percebe-se a necessidade da existência de duas linguísticas, a linguística da língua e a linguística da fala. Saussure concentra os seus estudos na linguística da língua, considerando esse produto social imposto ao falante e constituído de elementos condicionados por regras de funcionamento. Para finalizar a contribuição desse estudioso à concepção de linguagem e língua, é relevante destacar que para ele a Linguística considera a língua por ela própria, analisando os elementos linguísticos, suas relações dentro do discurso e o valor funcional dessas relações identificadas. A teoria de análise linguística sugerida por Saussure resultou no estruturalismo, uma ciência que estuda a estrutura da língua e não o seu uso ou a fala propriamente dita. Conforme mencionado, veremos também a proposta de Chomsky para definir linguagem e língua. Na metade do século XX, o norte-americano Noam Chomsky inovou os estudos linguísticos, dizendo que todas as línguas naturais, nas formas falada e escrita, são linguagens conforme a sua definição. No livro Syntactic Structures, ele define linguagem como “um conjunto (finito ou infinito) de sentenças, cada uma finita em comprimento e construída a partir de um conjunto finito de elementos” (Chomsky, 1957, p. 13). Isso quer dizer que toda e qualquer língua natural é constituída por um número finito de sons e de sinais gráficos que os representam na escrita. E ainda, mesmo que haja um número infinito de possíveis sentenças, cada uma delas só pode ser representada por uma sequência finita desses sons e letras existentes. Em outras palavras, há em toda língua natural uma quantidade finita de sons e letras que possibilitam a criação de um número infinito de sentenças, cabendo ao linguista determinar e reconhecer o que é considerado ou não sentença pertencente à língua analisada, conforme suas regras de funcionamento. Por exemplo, na língua portuguesa, os artigos sempre antecedem o substantivo, logo se houver a troca dessa posição, tal sequência não será aceita como sentença, ou seja, a construção “Menina a quer boneca uma” não é aceita, não pode ser usada em nossa língua; o correto é “A menina quer uma boneca”. Para Chomsky, a análise das línguas naturais precisa definir as propriedades estruturais que diferenciam uma língua natural de outras línguas. Para ele, tais propriedades possuem um grau tão alto de abstração, complexidade e especificidade que não poderiam ser aprendidas do nada por uma criança no processo de aquisição da língua, sem nenhuma base, conhecimento ou capacidade pré-existente. O teórico considera, portanto, que a linguagem é uma capacidade inata e específica do ser humano, transmitida geneticamente, ou seja, a criança já nasce com conhecimento sobre essas propriedades estruturais antes de ter contato com a língua natural e esse conhecimento é acionado durante a aquisição linguística. De acordo com seus estudos, há propriedades universais da linguagem, que possibilitam a constituição de uma teoria geral da linguagem, essa teoria foi chamada de gerativismo. Enquanto Saussure separa língua e fala, Chomsky diferencia os conceitos competência e desempenho. A competência linguística é o conjunto de regras que o falante possui em sua mente, construído pela aplicação de sua capacidade inata para a aquisição da linguagem aos dados linguísticos que teve contato na infância durante essa aquisição propriamente dita, isto é, diz respeito ao conhecimento linguístico que o falante possui e que lhe permite produzir sentenças em sua língua. Já o desempenho consiste no comportamento linguístico do falante, resultante da sua competência linguística e de fatores não linguísticosenvolvidos na produção de enunciados, como convenções sociais, crenças, valores, sentimentos, atitudes do interlocutor, entre outros. O desempenho depende da competência, todavia a competência não depende do desempenho, sendo exclusivamente linguística e também passível de descrição e implícita no desempenho. Para finalizar vale destacar que Saussure ressalta a língua enquanto sistema linguístico socializado e Chomsky enfatiza a competência linguística, que é o conhecimento linguístico internalizado. 1.3 O que é Linguística? Vimos que há vários tipos de linguagens – verbais e não verbais –, que correspondem a sistemas de signos utilizados para a comunicação, como a música, a dança, a pintura, os gestos, as palavras, entre outros. De acordo com Saussure há uma ciência mais geral que estuda todo e qualquer tipo de sistema de signos, chamada Semiologia. A Linguística é uma parte dessa ciência mais geral, é a ciência que estuda especificamente a linguagem verbal humana, sua estrutura e seus usos. Em outras palavras, é o estudo científico da linguagem verbal. Orlandi (1986, p. 9) diz da seguinte maneira: “Linguística definiu-se, com bastante sucesso entre as Ciências Humanas, como o estudo científico que visa descrever ou explicar a linguagem verbal humana.” E por que a Linguística é uma ciência? Porque ela estuda as línguas naturais com o objetivo de conhecer os seus princípios de funcionamento, bem como as diferenças e semelhanças entre elas, sem fazer julgamentos de valor sobre as formas linguísticas, sem classificar tal uso em certo ou errado, bonito ou feio. A Linguística apenas descreve e explica essas formas, esses usos, os fatos tal como se apresentam numa determinada sociedade, abrangendo os padrões sonoros, gramaticais, lexicais e sintáticos. Petter (2008, p. 17) enfatiza que o linguista não leva em consideração julgamentos, pois sua função consiste em “estudar toda e qualquer expressão linguística como um fato merecedor de descrição e explicação dentro de um quadro científico adequado”. A Linguística, portanto, é uma ciência e toda ciência é descritiva e não prescritiva (de prescrever, receitar), não se compara ao estudo tradicional da gramática ou às gramáticas tradicionais, nas quais se baseia a maioria das gramáticas escolares e dos livros didáticos de Língua Portuguesa, que têm caráter prescritivo. Gramáticas tradicionais se baseiam num tipo só de língua – a norma culta, que é o falar das elites –, normalmente usando como exemplos dessa norma culta a língua escrita, ou seja, a obra dos escritores consagrados, a língua literária. A gramática tradicional, portanto, descreve, mas apenas uma parte da língua (a norma culta), e prescreve, ou seja, “receita” a maneira “correta” de se utilizar a língua (como escrever tal palavra, como fazer a concordância verbal e nominal, como efetuar colocação pronominal, etc.), ignorando as outras variedades da língua, os usos que divergem da norma culta, até mesmo condenando-os. A gramática tradicional não é científica, pois faz julgamentos de valor sobre as formas e os usos linguísticos que não se “enquadram em suas regras”. Devemos, portanto, fazer uma distinção bem clara entre a gramática normativa, prescritiva, e a Linguística, descritiva, científica. Lembrando que a gramática normativa preocupa-se com o emprego correto das regras gramaticais e a Linguística é uma ciência que tem por objeto a linguagem verbal humana em todas as suas possibilidades e variedades. A metodologia de análise linguística tem como foco principal a fala das comunidades e como foco secundário a língua escrita. Essa prioridade para o estudo da língua falada e os critérios usados para a coleta, organização, seleção, análise dos dados linguísticos e resultados são justificados pelo fato de ser preciso corrigir os procedimentos de análise apresentados pela gramática tradicional e elaborar uma teoria geral da linguagem através da correlação de informações sobre outras línguas. Dessa maneira, há duas áreas de estudo, chamadas Linguística Geral e Linguística Descritiva. A Linguística Geral trabalha com conceitos e modelos que servem de fundamentos para a análise das línguas, enquanto a Linguística Descritiva disponibiliza os dados necessários para confirmar ou contestar as teorias que a Linguística Geral propõe. As duas são interdependentes, porém é possível que uma descrição linguística, além de conceder recursos para a investigação da Linguística Geral, tenha outros objetivos, como elaborar uma gramática ou um dicionário no intuito de difundir a forma escrita de línguas que ainda não circulam nessa modalidade, a exemplo de línguas indígenas e africanas. No breve histórico sobre o estudo da linguagem, vimos que no século XIX houve uma preocupação por parte dos linguistas em estudar as transformações que as línguas apresentam ao longo tempo, no esforço de desvendar as mudanças linguísticas; nesse contexto a Linguística era histórica ou diacrônica. Contudo, no começo do século XX, Saussure apresentou uma nova perspectiva de estudo da língua, chamada sincrônica, em que a análise e a descrição das línguas são feitas em um determinado momento histórico ou recorte temporal, observando elementos coexistentes. Saussure, apesar de defender o ponto de vista sincrônico do estudo das línguas, reconhecia que as abordagens sincrônica e diacrônica são relevantes e se complementam. A diferença é que na sincronia os fatos linguísticos e seu funcionamento são examinados em um dado momento, e na diacronia os fatos são observados com relação às suas transformações e às relações estabelecidas com os fatos e momentos históricos anteriores e posteriores. Em outras palavras, uma descrição sincrônica leva em consideração os fatos linguísticos e suas relações em um determinado estado da língua, e as pesquisas diacrônicas analisam fatos linguísticos em estados sucessivos da língua, como, por exemplo, o estudo sobre as transformações que aconteceram com o pronome de tratamento “Vossa Mercê” ao longo tempo, resultando na forma atual “Você”, de pronome pessoal, que na oralidade é empregado como “Cê”; para explicar essas mudanças é preciso comparar diferentes estados e momentos da língua. Essa distinção entre sincronia e diacronia – e suas metodologias – ocasionou dois ramos da Linguística: a Linguística Sincrônica que investiga um estado da língua, e que atualmente é chamada de Linguística Teórica, por se ocupar mais da elaboração de modelos teóricos do que da descrição de estados da língua; e a Linguística Histórica, que estuda a história da língua. Para finalizar a concepção de Linguística, é relevante destacar que diversas áreas de estudo se interessam pela linguagem e, por isso, ao relacionar o estudo da língua com outras disciplinas, houve a criação de alguns campos de estudo interdisciplinares, como a Etnolinguística, que investiga a relação existente entre a língua e a cultura; a Sociolinguística, que estuda a relação observada entre a língua e a sociedade; e a Psicolinguística, que examina o processo de aquisição da linguagem, a aprendizagem de uma segunda língua e o comportamento do indivíduo nesses dois eventos. 1.4 Gramática: o ponto de vista normativo/ descritivo Como já mencionado anteriormente, a gramática tradicional possui um ponto de vista normativo e prescritivo da língua, fundamentando a sua análise na língua escrita. Por não reconhecer a diferença existente entre língua falada e língua escrita, considera a forma escrita como um modelo de correção que deve ser aplicado e seguido em todos os tipos de expressão linguística, propagando dessa maneira falsos conceitos concernentes à natureza da linguagem. Conforme citado por Petter (2008, p. 19), é importante recordar que o primeiro registro de descrição linguística é a do sânscrito – no século IV a.C. – realizada pelogramático hindu Panini, cujo objetivo foi justamente garantir que os textos sagrados e a pronúncia correta das preces fossem conservados, num momento em que a língua sânscrita culta, chamada blasha, necessitava de consolidação e fortalecimento para resistir às influências dos falares populares, denominados prácritos, ou seja, essa obra surgiu em um momento histórico em que uma determinada variedade linguística precisava, no entender desse gramático, de valorização e divulgação. Há registros de outras gramáticas antigas prescritivas e pedagógicas, cujo propósito era descrever a língua, contudo também prescrever o que consideravam o uso correto, como por exemplo, gramáticas do árabe, do grego e do latim. Atualmente, essa tradição normativa ainda é predominante, sobretudo em países que se preocupam com o desenvolvimento e consolidação da língua padrão, divulgada como uma norma de correção, uma forma correta de utilização da língua, prescrita por fontes de autoridade como gramáticos e representantes da língua literária. Além de prescrever uma norma de correção e considerar outras variedades inferiores e incorretas, a norma culta ou padrão também é valorizada por ser associada às classes sociais mais altas, instruídas e dominantes. Embora os gramáticos tradicionais trabalhem para descrever a língua, eles priorizam alguns usos em detrimento de outros. Dessa forma, esse estudo descritivo e normativo feito por eles limita o objeto de análise, justamente por privilegiar a variedade padrão. E é essa “forma correta” de uso da língua que geralmente é o foco do estudo nas escolas, que deixam de oportunizar um conhecimento mais amplo e abrangente da diversidade linguística. Na sociedade brasileira, durante muito tempo, e isso ainda ocorre na contemporaneidade, os estudos acerca da linguagem – especialmente nos ensinos fundamental e médio – restringiram-se ao estudo prescritivo da Língua Portuguesa, embasado na gramática tradicional. Esses estudos preocupam-se com a gramática normativa, isto é, com o ensino de regras gramaticais, como acentuação, ortografia, conjugação de verbos, concordância verbal e nominal, entre outros; e deixam de lado a língua propriamente dita, bem como sua variedade de usos e possibilidades. Não se pode negar, obviamente, a importância e a utilidade do estudo normativo, contudo este não pode ser separado do contexto e de uma visão mais completa da língua, nem impedir que o aluno aumente a sua competência linguística, usando-a para se comunicar, compreender mensagens e produzir textos para diversos fins. Todavia, felizmente, essa priorização pelo estudo normativo começou a mudar, pois alguns documentos oficiais, que orientam o trabalho nas escolas, já têm enfatizado e sugerido uma postura mais moderna sobre os estudos da nossa língua. Nas universidades, a disciplina de Linguística – que é obrigatória no curso de Letras – não só tem procurado cumprir seu papel de subsidiar o aluno com os conceitos que a compõem, como também tem auxiliado e servido como base para outras disciplinas, como Língua Portuguesa e Literaturas. É relevante, portanto, enfatizar que abordar a língua somente sob a perspectiva normativa corrobora para que falsos conceitos e preconceitos sejam difundidos, e a Linguística contribui para que essas ideias sejam discutidas e revertidas, haja vista que a língua escrita não pode servir de modelo para a língua falada e que não existem línguas e variedades melhores ou piores, mas sim diferentes. 1.5 A Linguística: o ponto de vista descritivo/ explicativo Já estudamos anteriormente que o campo de pesquisa da Linguística, tal como apresentada por Saussure, tem como foco principal a investigação da língua enquanto conjunto de regras e propriedades formais e que essa ciência não privilegia determinada variedade linguística, considerando todos os usos e fatos linguísticos, e realizando sua descrição. Além disso, há várias áreas de estudo dentro da Linguística, que podem considerar, por exemplo, o fator histórico ou não. No século XIX, os estudos desenvolvidos pela Linguística Histórica, que estuda as mudanças da linguagem, fortaleceu o conhecimento científico da língua, indo de encontro à divulgação de uma norma e mostrando que as transformações linguísticas geralmente são originadas na fala popular, ou seja, é comum que formas consideradas erradas em um dado momento histórico passem a ser consideradas corretas no momento seguinte. Além disso, ao analisar os fatos, observa-se que algumas formas consideradas erradas são recorrentes também na fala de pessoas cultas, confirmando que a língua tem realmente um caráter bastante variável e que a escrita não pode servir de padrão para a fala. Como exemplo, podemos citar o verbo “ir”, no sentido de ir a algum lugar, cuja regência verbal culta pede o uso da preposição “a”, como dizer “Vou ao cinema”; todavia, é muito comum que na fala as pessoas utilizem a preposição “em”, enunciando “Vou no cinema”. Isso quer dizer que existe a variante do padrão culto, mas há também uma variante que não atende a essa regra, porém é utilizada com frequência e inclusive, embora estigmatizada, é encontrada em textos arcaicos e do século XIX, comprovando que essas mudanças e variações ocorrem no decorrer do tempo. Enquanto a visão prescritiva admite apenas uma forma correta com base na língua escrita, a visão descritiva da Linguística reconhece que há a possibilidade de escolha de usos linguísticos que sejam mais apropriados à língua escrita, à língua falada, a situações coloquiais e a situações formais, uma vez que, conforme essa abordagem descritiva, as variedades não padrão da língua também consistem em um conjunto de regras gramaticais, embora diferentes das regras do português padrão. Isso se justifica porque o termo “gramatical” é utilizado com um valor descritivo, isto é, a gramática de uma língua ou de um dialeto corresponde à descrição das regularidades que constituem a sua estrutura. Sendo assim, o exemplo coloquial do verbo “ir” acompanhado pela preposição “em” é uma sentença gramatical na variedade coloquial, compreendida por todos, sem prejuízo à comunicação. E é isso que a Linguística, enquanto ciência faz – não trata a língua como deveria ser, mas sim a descreve como realmente é. Levando em consideração esse objetivo de descrever a língua, a Linguística trabalha com uma metodologia de análise de sentenças que são efetivamente produzidas, formando assim um corpus representativo. Um corpus é um conjunto de dados que são organizados para uma pesquisa específica, sendo que esses dados são reais e empregados na fala dos indivíduos, ou seja, o corpus inclui expressões linguísticas de todos os tipos, pertencentes à variedade padrão e à variedade não padrão, e sua descrição não possui caráter normativo ou histórico, pois o intuito é perceber a estrutura dos elementos linguísticos (frases, morfemas, fonemas) e as regras que possibilitam a sua combinação. De acordo com essa metodologia adotada e a cientificidade da Linguística, há dois princípios que a fundamentam – e o empirismo e objetividade. Assim, a Linguística é empírica porque analisa dados verificáveis através da observação e objetiva por investigar a língua de maneira independente, ou seja, sem levar em consideração preconceitos sociais e culturais. Até os anos 1950, as análises linguísticas, que tinham como base as teorias de descrição de Saussure, trabalhavam apenas com a explicação dos fatos por meio de sua descrição. Entretanto, a partir do final dos anos 1950, Chomsky sugeriu que a análise linguística se prendesse menos aos dados e mais à teoria, isto é, para o teórico, além de observar e categorizar dados, é preciso haver uma teoria explicativa que anteceda esses dados e que seja capaz de explicar as frases produzidas e as que possivelmente podem ser realizadas pelosfalantes, pois para Chomsky um fenômeno linguístico só pode ser explicitado, quando pode ser relacionado a leis gerais, e é essa teoria que é definida por ele como gramática. Conforme essa teoria da gramática, todas as frases gramaticais devem ser estudadas, ou seja, todas as frases que pertencem à língua em análise. Novamente, não dita regras como a gramática normativa, mas explica as sentenças produzidas e as que têm potencial de serem realizadas na língua. O critério utilizado para a gramaticalidade ou agramaticalidade dessas frases é a intuição ou a competência do falante, que vai organizar os componentes linguísticos em uma frase, garantindo essa gramaticalidade ou respeitando as regras gramaticais do sistema linguístico, conforme o conhecimento que o falante tem internalizado. Caso contrário, se essa sequência de palavras não respeitar tais regras, teremos uma sequência agramatical, como no exemplo “Minha copo cheia está muito quase”, que não atende às regras estruturais fundamentais da língua. Essa nova proposta de análise dos fatos linguísticos pertence ao que é chamado de gramática gerativa, pois uma quantidade limitada de regras possibilita a elaboração e a compreensão de uma quantidade infinita de sentenças novas. A preocupação dos gerativistas é captar propriedades comuns e universais da linguagem, que compõem a gramática universal (GU). Como afirma Petter (2008, p. 22), na perspectiva gerativa “as propriedades formais das línguas e a natureza das regras exigidas para descrevê-las são consideradas mais importantes do que a investigação das relações entre a linguagem e o mundo.” Há ainda a gramática funcional, que apresenta outra proposta para explicação dos fatos linguísticos, com base nos fundamentos do funcionalismo. A gramática funcional não separa os elementos linguísticos das funções que eles exercem nas sentenças, considerando o uso desses elementos na interação verbal. Ademais, abrange toda a situação comunicativa na análise da estrutura gramatical, como a intenção comunicativa, os falantes envolvidos e o contexto de comunicação. Essa teoria funcionalista se desenvolveu especialmente na Escola Linguística de Praga, originada no Círculo Linguístico de Praga, criado em 1926. Os linguistas da Escola de Praga elaboraram a definição da perspectiva funcional da sentença, afirmando que pode haver diferentes versões da mesma sentença e que sua estrutura é determinada pelo uso, pela situação de comunicação em que os enunciados são emitidos e pelo fato de envolver informações conhecidas ou novas para o ouvinte. Para exemplificar podemos considerar as sentenças “Maria trabalhou ontem à tarde” e “Ontem à tarde Maria trabalhou”, que, na verdade, são versões diferentes de uma mesma sentença e que serão empregadas conforme os critérios mencionados. Uma grande contribuição do funcionalismo nos dias de hoje é a afirmação de que a língua é, antes de qualquer coisa, uma ferramenta de interação, utilizada para firmar relações comunicativas entre os indivíduos. Vimos algumas propostas para descrição e explicação da linguagem, que não são exclusivas, são diferentes abordagens e corroboram para a compreensão de que a linguagem pode ser estudada de diversas perspectivas. Há o estudo de aspectos internos da língua, mas há também pesquisas que levam em consideração fatores externos como a sociedade, a história e o contexto de comunicação. 2. Língua e Cultura 2.1 Língua como instrumento de comunicação Atualmente, é um consenso o reconhecimento da relevância da comunicação para os dias de hoje e para toda a história da humanidade, podendo-se dizer que a mesma fundou a sociedade, afinal de contas a comunicação é a ferramenta que utilizamos para interagir, para representar ideias, para transmitir conhecimento, para compartilhar informações, para conviver uns com os outros, para propagar a cultura, entre outros, podendo fazê-la por diversos tipos de linguagem, por diferentes conjuntos de signos verbais e não verbais. Nos estudos sobre a linguagem, a comunicação também é considerada fundamental, contudo essa função essencial da linguagem enquanto objeto de comunicação nem sempre foi reconhecida, pois nos estudos gramaticais do século XIX a língua era vista apenas como uma representação de uma estrutura de pensamento, que não necessitava da formalização linguística para existir. Para os estudiosos dessa época a comunicação, caracterizada pela “lei do menor esforço”, era a responsável pela desorganização gramatical das línguas, causando o seu declínio e as transformações linguísticas julgadas como ruínas linguísticas. Barros (2008, p. 26), para exemplificar esse pensamento, diz que “o português e o italiano (...) seriam ‘restos’ em decadência do latim”. Isso quer dizer que se não houvesse comunicação, a língua teria a sua estrutura conservada e não haveria mudanças linguísticas, vistas por esses gramáticos como algo prejudicial ao que era considerado o padrão correto das línguas. Entretanto, no início do século XX, Saussure afirmou que a língua é essencialmente um instrumento de comunicação, ocasionando uma ruptura com essas concepções anteriores. Assim, um dos grandes efeitos da linguística saussureana foi incluir o estudo da comunicação nas investigações e pesquisas linguísticas. Como vimos, através da comunicação podemos aprender e transmitir novas informações, conhecimentos, valores, costumes e crenças tradicionais existentes em nossa sociedade e constituintes de nossa cultura. Vejamos a seguir um pouco mais sobre a concepção de cultura e sua relação com a língua. 2.2 As línguas e a cultura O conceito de cultura pode ser definido como o conjunto de todas as criações humana ou como o resultado da ação do homem sobre a natureza, modificando-a. Com as modificações genéticas que foram ocorrendo no processo de evolução humana, o homem foi se diferenciando dos outros animais ao adquirir a capacidade simbólica e a capacidade de utilizar instrumentos para conseguir o que queria. Os nossos ancestrais não tinham uma vida fácil, pois não eram muito fortes – comparando-os com os outros animais da época – nem especializados, já que não podiam voar como os pássaros, não podiam viver na água como os peixes, não tinham a visão aguçada como a da águia, não possuíam veneno como o das cobras para se defender, nem a velocidade de animais como os leões, enfim, os seres humanos eram totalmente primitivos. Como será, então, que um animal tão indefeso e sem “recursos” conseguiu se tornar o “dono do mundo”? A resposta está justamente no desenvolvimento da capacidade simbólica – em que pôde desenvolver a linguagem – e na capacidade de usar instrumentos – que lhe permitiu a invenção de variados objetos que lhe auxiliassem. Não é à toa que, hoje, o ser humano é capaz de voar por meio dos aviões, ir ao fundo do mar com os submarinos, enxergar a longas distâncias através dos telescópios, enxergar coisas minúsculas usando o microscópio e até ir a outros planetas. Todos esses conhecimentos e invenções humanos constituem a sua cultura. Entre todas as suas criações, talvez a mais impressionante tenha sido a linguagem simbólica, mais especificamente, a linguagem verbal, a língua. É a língua que expressa a cultura dos povos e, ao mesmo tempo, a língua faz parte da cultura, ou seja, para falar de nossa cultura usamos a língua, que faz parte da cultura e não pode ser considerada isoladamente, mas sim com uma parcela de todo o contexto cultural. Em geral, as pessoas acreditam que, para se aprender uma segunda língua, basta decorar uma lista de palavras desse idioma. Nessa concepção, a língua é vista como um simples repertório, um conjunto de palavras que se diferenciam das palavras de outras línguas pela diferença dos nomes dados a cada coisa.Esse pensamento não é verdadeiro, pois, como já dissemos, as línguas expressam a cultura e as experiências de cada povo, e sabe-se que as culturas não são iguais. Conclui-se então que, para se dominar outra língua, não basta traduzir cada palavra, é preciso se conscientizar de que há culturas diferentes e mudar a visão de mundo de acordo com a cultura referente à nova língua que se quer aprender. Sendo assim, o sinônimo de língua como lista de palavras não é correto. Um exemplo bastante citado para explicar a noção de “língua como visão de mundo”, ou seja, para explicar a ideia de que cada língua “enxerga” a realidade de uma determinada forma é relativo às cores do arco-íris (resultado da refração da luz solar). Em português, utilizamos sete palavras que nomeiam as cores do arco-íris – vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, anil e violeta (ou roxo); em inglês, utilizamos seis palavras, porque a língua inglesa não faz distinção entre roxo e anil, como nós fazemos. Há outras línguas que dividem de várias outras formas o espectro das cores, como a língua bassa, uma língua indígena da Libéria, na África, que as divide em dois grandes grupos: cores quentes (chamadas ziza) e cores frias (chamadas hui). Na realidade, o que vemos no arco-íris não está dividido com nitidez, não há um traço indicando onde termina o azul e começa o verde, consequentemente, cada cultura divide as cores do arco-íris de uma forma peculiar e cada língua “recorta a realidade de um modo particular” (Lopes, 2001, p. 21), expressando as experiências de cada povo ou comunidade, que podem não coincidir de um local para o outro. Outro exemplo da representação variada da realidade pelas línguas naturais é a denominação relacionada ao indivíduo que guia um automóvel. Em francês essa pessoa é chamada de chauffeur, em inglês de driver, em espanhol de conductor e em português chamamos de motorista. Observando tais nomenclaturas, é possível constatar que os franceses associam esse indivíduo à atividade de aquecer o motor para que o automóvel entre em movimento; os ingleses e os espanhóis fazem uma associação com o ato de dirigir ou conduzir o veículo; e nós, falantes da língua portuguesa, associamos tal indivíduo diretamente ao motor do carro. A atividade é a mesma, mas cada comunidade e cada língua a analisa sob um aspecto particular, resultando numa representação que difere de uma comunidade de falantes para outra. As línguas, além de analisar a realidade de maneira diferente, também possuem sons típicos ou fonemas que reforçam essa especificidade de cada língua, ou seja, os fonemas que são utilizados por falantes de diferentes idiomas para sua expressão apresentam semelhanças, porém não são exatamente iguais. Essas diferenças são percebidas quando observamos o inglês, o francês e o espanhol, por exemplo, e quando tentamos aprendê-las. No inglês há o som representado pelas letras “th” (como em “thanks”, que significa obrigado), cujo fonema usado em sua expressão oral não existe na língua portuguesa, podendo causar certa dificuldade no aprendizado de sua pronúncia, pois na realidade, os fonemas de duas línguas são tão distintos, que quando um indivíduo escuta uma língua que desconhece, é comum ele ter dificuldades para reproduzir tais fonemas com precisão. Enfim, cada língua expressa a cultura ligada a ela, não podendo traduzir com exatidão a língua e a cultura de outras sociedades, e isso reforça o fato de que a língua e a cultura se relacionam, a língua expressa a cultura e também faz parte dela. Como a Linguística é uma disciplina interdisciplinar, o estudo dessa relação entre língua e cultura também faz parte de seu campo de pesquisa e quadro teórico. 2.3 O modelo de comunicação da teoria da informação Como a comunicação é uma função essencial da língua e está diretamente ligada à cultura, veremos aqui um modelo de comunicação elaborado não especificamente pelos estudos linguísticos, mas por estudos que constituíram a teoria da informação e da comunicação, que influenciou os estudos da Linguística, especialmente nos anos 1950. É relevante saber que a teoria da informação investiga a comunicação de um ponto de vista diferente dos estudos linguísticos e com objetivos voltados, segundo Barros (2008), para a medida da informação, que é a quantidade de informação transmitida durante uma comunicação, e para a economia da mensagem, que aborda questões referentes a uma codificação eficaz, à habilidade de transmissão do canal de comunicação e também à eliminação de ruídos que podem causar resultados indesejáveis. O modelo apresentado a seguir diz respeito a uma das propostas mais conhecidas entre os linguistas. Foi elaborado por C. F. Shannon, que apresentou o seguinte esquema para a comunicação (in Barros, 2008, p. 26): Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Shannon_Weaver_- _Modelo_de_Comunica%C3%A7%C3%A3o.png De acordo com esse esquema da comunicação, há um emissor e um receptor, com divisão em duas ou mais caixas, que separam o processo de codificação e decodificação da emissão e da recepção da mensagem. Há um canal, que consiste num suporte material ou sensorial, cuja função é transmitir a mensagem de um local a outro; e há também uma mensagem, que é o resultado da codificação, sendo compreendida durante a transmissão por meio de uma sequência de sinais. Antes da transmissão da mensagem, há os procedimentos de codificação, utilizadas para elaborar a mensagem, e entre a recepção e o destino há os procedimentos de decodificação, que possibilitam o reconhecimento e a identificação dos elementos que constituem a mensagem. Os ruídos, elementos diversos que interferem na comunicação, podem causar tal interferência durante todo o trajeto da informação e prejudicar a eficiência da comunicação. Há vários tipos de ruídos: • Ruídos físicos: barulhos, ruídos, problemas no canal de comunicação, entre outros; • Ruídos psicológicos: desinteresse, desatenção, etc. https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Shannon_Weaver_-_Modelo_de_Comunica%C3%A7%C3%A3o.png https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Shannon_Weaver_-_Modelo_de_Comunica%C3%A7%C3%A3o.png • Ruídos culturais: falta de conhecimento dos códigos, falta de conhecimento de crenças e valores em comum, etc. Para resumir, nesse esquema a comunicação é apresentada como um mecanismo de transmissão de mensagens de um emissor para um receptor, organizadas de acordo com um código e através de sequência de sinais. A preocupação principal desse modelo de comunicação da teoria da informação é aprimorar a transmissão da mensagem, no que diz respeito aos significantes usados na expressão sensorial. Ainda com relação a esse modelo de comunicação, Barros (2008, p. 27) afirma que quando levamos em consideração a comunicação entre os seres humanos, especialmente na comunicação verbal oral ou escrita, é constatado que a comunicação possui outros fins e são identificadas algumas dificuldades nas ideias da teoria da informação, apontando três dessas dificuldades, com críticas e soluções possíveis: 1) Simplificação excessiva da comunicação: esses esquemas da comunicação acabam simplificando demais a comunicação verbal; 2) Modelo linear da comunicação: na teoria da informação a comunicação é contemplada linearmente e trata somente, ou preferencialmente, do plano de expressão, dos significantes (sequência de sinais das mensagens); 3) Caráter mecanicista do modelo: nas concepções da teoria da informação, as questões extralinguísticas, culturais e sócio históricas não são levadas em consideração. Diante dessas dificuldades apresentadas, os estudos da linguagem pretenderam sanar as limitações presentes nos esquemas e modelos propostos pela teoria da informação, complementando as informações muito simplificadas sobre a comunicação e rever a questão dacomunicação sob outra perspectiva, atentando para os tópicos criticados concernentes ao caráter linear e mecanicista. Um dos linguistas que mais contribuíram para complementar e ampliar as propostas e modelos da teoria da informação, de maneira a abranger a comunicação verbal, foi Roman Jakobson (1969). Para ele, os estudos sobre a informação devem considerar que na comunicação há um remetente ou emissor que envia uma mensagem a um destinatário ou receptor. Para que essa mensagem seja eficiente é necessário que haja um contexto a que se refere (ou um referente) decifrável pelo remetente e pelo destinatário, um código (linguagem verbal ou não verbal) que seja comum e conhecido por eles e um contato ou um canal entre o emissor e o receptor, que possibilite essa comunicação. O estudioso Ignácio Assis Silva (1972) propõe mais alguns detalhes ao modelo de Jakobson incluindo, por exemplo, os subcódigos junto aos códigos, que abordam a questão da variação linguística, investigada mais detalhadamente pela sociolinguística, dialetologia ou geografia linguística (ou geolinguística). Além de contribuir com a ampliação do modelo da teoria da informação, especialmente referente aos códigos e subcódigos, Jakobson sugeriu a existência de uma variedade das funções da linguagem, um estudo que também se refere à comunicação e que é considerado a sua contribuição mais conhecida. O teórico constatou que a língua deve ser estudada levando em consideração essa variedade de funções e não apenas a função informativa (também chamada de referencial) como faziam os teóricos da informação. Dessa forma, Jakobson apresentou seis funções da linguagem e explicou que um mesmo texto ou uma mesma mensagem pode apresentar várias funções simultaneamente, contudo em geral há uma função predominante. São elas: • Função emotiva: é centrada no remetente, faz uso da 1ª pessoa, apresenta aspectos ou características subjetivas, utiliza modalizadores referentes ao saber (eu acho, eu considero, eu acredito, etc.), utiliza recursos prosódicos como pausas, hesitações, exclamações e interjeições. Há efeitos de subjetividade, emotividade e proximidade do sujeito, que relata o seu ponto de vista, sentimento e emoções. Um exemplo de texto que contém essa função são poemas em 1ª pessoa ou uma carta de amor. • Função referencial: é centrada no contexto ou no referente, faz uso da 3ª pessoa, apresenta aspectos ou características objetivas e concretas, há uma relação de afastamento do sujeito. Sua função é transmitir objetivamente uma informação, como textos científicos ou jornalísticos, por exemplo. • Função poética: é centrada na mensagem, faz uso de procedimentos no plano da expressão, como formas de utilização dos sons (ritmos, entoações, rimas, entre outros) e figuras de linguagem, com efeito de sentido que rompe o discurso comum e busca a perfeição no funcionamento da linguagem e na aproximação entre expressão e conteúdo. O exemplo mais citado é a poesia, a literatura, mas pode ocorrer também em textos publicitários, jornalísticos ou religiosos. • Função fática: é centrada no contato ou no canal, faz uso de procedimentos prosódicos da fala ou expressões prontas para iniciar (bom dia, oi, tudo bem?), manter (ahã, sei, entendo), verificar (está ouvindo?, está entendendo?) e encerrar (tchau, até mais) o contato entre os interlocutores. Os efeitos de sentidos consistem em aproximação e interesse entre remetente e destinatário, de maneira a garantir a interação de ambos. É a função da conversa, do diálogo, do contato com o outro. • Função metalinguística: é centrada no código, faz uso de verbos de existência e significação (ser, significar), é comum o emprego do presente do indicativo, em orações predicativas de definição (X é ou significa Y). O efeito de sentido é referente à definição, é a linguagem que fala de linguagem, como definições presentes em dicionários, gramáticas, entre outros. • Função conativa: é centrada no destinatário, faz uso da 2ª pessoa, do imperativo, do vocativo, de perguntas e respostas, entre outros. Está presente em textos que produzem efeitos de sentido de interação com o destinatário, objetivando convencê-lo ou persuadi-lo a fazer ou falar algo. Um exemplo bastante representativo são os textos publicitários, que em geral pretendem convencer o destinatário a adquirir algo ou adotar determinado comportamento. Barros (2008) resume que a principal colaboração de Jakobson para o estudo da comunicação diz respeito à inclusão das questões sobre variação linguística no modelo de comunicação através dos códigos e subcódigos, e de como ocorrem na relação entre remetente e destinatário. Além disso, o estudioso destaca que os falantes se comunicam de diversas maneiras e com diferentes objetivos, haja vista a variedade de funções da linguagem existentes no processo de comunicação, que não são exclusivas nem excludentes, mas são empregadas conforme o critério de predominância. As críticas feitas aos estudos propostos por Jakobson apontam que ele não analisa de maneira adequada as relações sócio históricas e ideológicas da comunicação e também não aborda claramente a reciprocidade ou circularidade que são características da comunicação humana, ou seja, seu modelo ainda possui o caráter mecanicista da teoria da informação. Apesar de ampliar e complementar significativamente esse modelo da teoria da informação, a comunicação continuou a ser considerada apenas como um fazer-saber, ou seja, vista como a transmissão de saberes acerca do mundo, das emoções do remetente, do código, do plano da expressão da mensagem e do funcionamento do contato; apenas na função conativa há um fazer-fazer ou um fazer o outro fazer, já que trabalha com o efeito de persuasão. Contudo, esses aspectos criticados foram tratados posteriormente por outras áreas de estudo como a Análise do Discurso, por exemplo, que retoma as questões sócio históricas e ideológicas; já a reciprocidade ou a circularidade são estudadas por linguistas e teóricos da comunicação, como veremos a seguir. 2.4 A interação verbal: modelo linear e circular da comunicação Vimos que os modelos da teoria da informação retratados anteriormente são basicamente lineares, pois abordam a transmissão da mensagem de um emissor a um receptor, sem tratar da reciprocidade ou da circularidade que caracterizam a comunicação humana, uma vez que é possível que o receptor se torne emissor e assim manter ou dar continuidade à comunicação. Em resposta a esses modelos lineares de comunicação, a partir dos anos 1950, nos Estados Unidos, foram desenvolvidos estudos que sugeriram um modelo circular para a comunicação, resultando numa teoria da nova comunicação, abordando as concepções de feedback e realimentação. De acordo com essa nova teoria, a comunicação deve ser relacionada ao emissor e ao receptor, considerando-a um sistema interacional, em que importam tanto os efeitos da comunicação sobre o receptor, como os efeitos que a reação do receptor causam sobre o emissor. Benveniste (1966) tratou em seus estudos sobre a reciprocidade da comunicação, afirmando que o “eu”, ao dizer “eu” situa o “tu” como seu destinatário ou receptor, todavia esse destinatário pode tomar a palavra e dizer “eu”, instalando agora o outro como “tu”. De acordo com o teórico o diálogo consiste na condição da linguagem humana, marcada pela reciprocidade ou reversibilidade. Assim, especialmente os linguistas norte-americanos desenvolveram estudos sobre a interação entre sujeitos durante a comunicação. Bakhtin (1981) foi o primeiro a desenvolver estudos sobre a interação e o diálogo entre interlocutores, buscando demonstrar que a interação verbal é a realidade essencial da linguagem. Ao lado dos estudos sobre dialogismo, surgiram outros dois estudos da interação – a sociologia da comunicação,que tem Goffman como um importante representante, e a análise da conversação, de linha etnometodológica. Na sociologia da comunicação, o linguista Goffman (1967 e 1973) investigou formas de preservação da face na comunicação, isto é, a face é a expressão social do eu individual (ou a autoimagem pública construída) e a interação pode colocá-la em risco. Sendo assim, o teórico em questão apresenta estratégias que servem para ameaçar e atingir a face do outro, mas também para preservar e proteger a mesma; essas estratégias variam de língua para língua, de cultura para cultura. Barros (2008, p. 43) exemplifica a proteção de face através das sentenças: a) Saia já daqui! b) Saia daqui, por favor. c) Você poderia sair daqui? d) Será que você poderia sair daqui, por favor? A sentença (a) exemplifica um efeito de ordem categórica, que é uma ameaça à face do destinatário, indicado pelo imperativo “saia” e pelo advérbio “já”. Os demais exemplos apresentam graus diferentes de atenuação do discurso, que protegem a face do destinatário, como o uso de “por favor”, do verbo “poder” e da interrogação, elementos característicos de um pedido. Já a Etnometodologia analisa a interação social no comportamento diário e cotidiano, considerando a conversação ou a interação verbal como uma maneira privilegiada de interação. Dessa forma, a análise da conversação pretende descrever as estruturas e os mecanismos organizadores da conversação, e fazer uma relação dessas estruturas com as funções interacionais. No estudo da comunicação enquanto interação destacam-se cinco questões: 1) A questão de que os falantes se constroem e constroem em conjunto o texto no processo de comunicação, ou seja, os sujeitos se modificam, se transformam e se constroem na comunicação. Para Bakhtin, no diálogo são construídas relações intersubjetivas e a subjetividade, pois os sujeitos são influenciados e substituídos por diversas vozes que os constituem sujeitos históricos e ideológicos. 2) A questão das imagens ou dos simulacros construídos pelos interlocutores na interação, pois para Pêcheux na análise do discurso o remetente e o destinatário definem um jogo de imagens do qual dependem a comunicação e a interação, abrangendo a imagem que o emissor faz de si mesmo, a imagem que o emissor faz do receptor, a imagem que o receptor faz dele mesmo e a imagem que o receptor faz do emissor. Para exemplificar Barros (2008, p. 44) cita uma situação em que a mãe diz para a filha que determinada forma de se vestir é inadequada para uma cerimônia de casamento; a filha, por sua vez, pode não acreditar na afirmação da mãe, pois a associa com uma imagem de conservadorismo, contudo se uma amiga expuser a mesma opinião, é mais provável que ela troque de roupa. 3) A questão do caráter polêmico ou contratual da comunicação, em que é possível situar os estudos de Goffman sobre a preservação e a ameaça à face, e estudos da análise da conversação sobre o lado contratual e a polêmica conversacional, levando em consideração a abordagem de um tema em que os interlocutores concordam ou discordam; assim há estratégias de discordância, como correção do outro, sobreposição de vozes, assalto ao turno do outro, entre outros. 4) A questão de que não é mais possível colocar a mensagem somente no plano dos significantes ou da expressão quando se considera a relação entre comunicação e interação, pois a mensagem comunicada além de ser a expressão de significantes que circula como um sinal entre emissor e receptor, é também um discurso, conforme definido por Pêcheux, pois está carregada de conteúdos e significados. 5) A questão do aumento da circulação do dizer na sociedade, pois muitas vezes a comunicação deixa de ser intimista e apenas um diálogo entre o “eu” e o “tu”, aqui e agora, tendo sua circulação alargada socialmente, como uma entrevista na televisão ou na imprensa escrita, e um júri. Vimos, portanto, a contribuição dos estudos interacionais da comunicação, sobretudo a característica da reciprocidade da comunicação, que é dialógica. 2.5 Linguagem falada e linguagem escrita Para concluir essa abordagem sobre a comunicação, língua e expressão da cultura, é relevante considerarmos a linguagem falada, a linguagem escrita e suas especificidades. Como sabemos, a linguagem escrita é um dos meios visíveis de expressão mais comuns. Em algumas situações, inclusive, o linguista precisa utilizar esse meio para realizar suas análises, como, por exemplo, quando investiga uma “língua morta”, por meio de documentos antigos, como o latim e o grego clássico. Entretanto, é preciso considerar as duas modalidades da expressão linguística, pois fala e escrita possuem uma função relevante na comunicação. Em nossa sociedade, durante muito tempo (e esse pensamento ainda perdura nos tempos atuais), a escrita foi priorizada nos estudos linguísticos por representar um padrão da língua, sendo-lhe atribuído um papel superestimado em nossa cultura. Essa importância da linguagem escrita deve ser assinalada, haja vista que ela está diretamente ligada à expressão e conservação das conquistas e dos avanços das ciências e das artes, todavia ao relacionar as duas modalidades da expressão linguística – fala e escrita – constata-se que a invenção da escrita é algo recente, se comparada com a antiguidade da fala. Lopes (2001, p. 33) diz que a fala “se confunde com a própria origem do homem”. Os primeiros registros a serem considerados tipos de escrita são inscrições sumérias, egípcias e indianas, que não possuem mais que cinco ou seis mil anos; e o que aconteceu na história da humanidade ainda ocorre na contemporaneidade, ou seja, nós seres humanos ainda aprendemos primeiro a falar para depois aprendermos a escrever. Além disso, segundo os linguistas, a fala tem mais possibilidade de sobreviver do que a escrita, pois a modalidade escrita poderia ser substituída por outro tipo de modalidade de expressão e registro, porém seria praticamente impossível imaginar outro sistema ocupando o lugar da fala e inutilizando-a. Outro aspecto importante é que, diferentemente da escrita, a fala é universal, independente do grau de desenvolvimento de um povo ou comunidade. Não existe um só povo que não se comunique através da linguagem falada; entretanto, há muitos povos que não possuem e que desconhecem qualquer sistema de escrita. Ademais, todos os sistemas de escrita existentes têm como base a linguagem falada, sendo secundários a ela. Por essa razão, Saussure concluiu que a principal função da escrita é representar a fala. Observando essa relevância da fala, ao analisar a linguagem escrita sem considerar também a análise da linguagem falada, o pesquisador em questão pode acabar cometendo equívocos interpretativos, como a não percepção da existência de mais morfemas do que fonemas, por exemplos, ou seja, um mesmo morfema ou uma mesma palavra podem ser pronunciados da mesma maneira ou pode haver omissão de alguns morfemas na fala, uma vez que a fala tende a ser menos redundante e mais econômica do que a escrita. Isso pode ser exemplificado, por exemplo, quando na escrita registramos “está”, mas na fala dizemos simplesmente “tá”, ou quando, em uma sentença que está no plural, marcamos o fonema /s/ apenas no primeiro elemento da sentença para indicar o plural, mas os demais permanecem sem essa sinalização, por ser desnecessário e tornar a fala mais prática, como “Os menino estuda aqui perto.”. Assim, quando uma pesquisa linguística se baseia somente no levantamento de traços da modalidade escrita apresenta resultados diferentes de pesquisas que consideram também as peculiaridades da modalidade falada. Por conta disso, os linguistas procuram investigar os fatos linguísticos enquanto fenômenos que constituem um sistema convencional de signos orais, tendo como objeto de estudoespecialmente a língua falada. 3. O Estruturalismo de Saussure e a dupla articulação da linguagem 3.1 Saussure e o Estruturalismo A Linguística moderna teve início com a publicação, em 1916, do livro Curso de Linguística Geral, de Ferdinand de Saussure. Essa publicação marca uma reviravolta nos estudos linguísticos, até então voltados para a Filologia e para os estudos comparativistas entre as línguas. A obra traz uma nova visão sobre as questões linguísticas, afirmando, entre outras coisas, que as línguas são sistemas cujas estruturas e funcionamento devem ser estudados internamente, não sendo dependentes de fatores externos, como a história. Saussure fez uma separação entre a linguística interna (fora do contexto sócio histórico) e a linguística externa (a que considera os fatores exteriores que condicionam os fenômenos linguísticos). O curioso é que Saussure, fundador da ciência Linguística moderna, faleceu sem ter ideia do papel que representaria para os estudos da linguagem. Ele faleceu em 1913 e três anos após a sua morte houve a publicação do Curso de Linguística Geral (conhecido como CLG), organizado por dois de seus discípulos (alunos), Ch. Bally e A. Sechehaye, que utilizaram as anotações feitas durante as aulas, já que não puderam contar com os manuscritos do mestre para auxiliá-los. Ferdinand de Saussure nasceu em Genebra, em 26 de novembro de 1857. Em 1880, foi para Paris assistir a cursos na Escola de Altos Estudos, universidade francesa. Um ano depois, Michel Bréal, seu professor, cedeu-lhe seu curso na escola e, assim, com apenas vinte e quatro anos, Saussure foi nomeado “mestre de conferências de gótico e de velho alto-alemão”. Era a primeira vez que se ensinava Linguística em uma universidade francesa e seus cursos ficaram famosos. Em 1891, transferiu-se para Genebra, onde lecionou na cadeira de Linguística, criada especialmente para ele, até sua morte em 1913. Por muitos anos, Saussure estudou a versificação indo-europeia arcaica, elaborando a hipótese dos anagramas (palavras formadas por letras transpostas de outras palavras, por exemplo, da palavra “Maria” podemos formar “Airam”, de “Iracema” podemos formar “América”, de “Roma” pode-se formar “amor”) e se devotou a uma série de interesses no campo da Literatura. Mas o Saussure que passou à história, que teve sua imagem realmente reconhecida, é o do monumental Curso de Linguística Geral. A noção de sistema (conjunto de partes interdependentes) foi depois denominada estrutura pelos sucessores do mestre. Saussure tinha uma visão estruturalista, estudou a estrutura (a forma) da língua e, por isso, é considerado o “pai” do estruturalismo (na Linguística). O primeiro professor de Linguística ilustra a noção de sistema usando o jogo de xadrez como exemplo. Nesse jogo, o valor atribuído a cada peça não tem a ver com o material de que é feita (pode ser de plástico, de madeira, de cristal, de metal), nem mesmo com a sua aparência (podemos usar botões coloridos, ao invés das peças), mas tem a ver com a relação de oposição que cada peça tem com as outras peças e com a posição que tem no conjunto total. Por exemplo, um cavalo pode ser feito de qualquer material, pode ser até um botão colorido, mas o seu valor advém da sua oposição às demais peças (se opusermos cavalo e peão, o cavalo vale mais, mas vale menos que a dama, por exemplo) e da sua posição no jogo (pode movimentar-se em “L”). A identidade de cada peça no jogo de xadrez depende do seu lugar no tabuleiro, das regras de sua movimentação, do seu valor no jogo. Diríamos então que a estrutura do jogo de xadrez é composta do valor de cada peça, do número delas, e das regras para o jogo. De maneira similar, qualquer unidade da língua se define em relação às outras entidades e pela posição que ocupa no todo, no sistema. Um fonema, como o /t/, só pode ser analisado e adquirir um valor com relação a todos os outros fonemas do português, opondo-se a cada um deles – é diferente de /d/, de /f/, de /n/, etc. Um fonema sozinho não seria um fonema, mas apenas um som, já que não sabemos a que língua pertence e que relações de oposição mantém com o sistema linguístico. E é seguindo o mesmo raciocínio que podemos analisar palavras, prefixos, sufixos, etc. Por exemplo, {-izar} é um sufixo do português, que forma verbos como imortalizar, radicalizar, mas não o é do Inglês. Já {-ing} pertence ao inglês e não ao português, como em running. Essas concepções sobre a estrutura das línguas, a visão da língua como sistema, fazem de Saussure o “pai” do estruturalismo, corrente de pensamento que, a partir da Linguística, vai atingir vários outros campos das chamadas Ciências Humanas. Em suma, o estruturalismo procura explicar um sistema a partir de suas próprias leis, sem considerar outras explicações ideológicas ou históricas. São exemplos de outros campos em que essa corrente de pensamento foi/é utilizada: - A Semiologia (que analisa os vários sistemas de significação) de Roland Barthes; - A Antropologia (que estuda o homem e suas características) de Lévi-Strauss; - A Psicanálise (método de investigação psicológica) de Lacan; - A marxologia (estudo das ideias de Karl Marx) de Althusser; - Michel Foucault, com contribuições em várias áreas; - E a área de Teoria Literária, com vários trabalhos e autores que estudam ou estudaram a forma, a estrutura do texto, e não a história, a época ou a vida do autor, que seriam fenômenos externos à obra. Das várias análises e contribuições do Curso de Linguística Geral, quatro pares de conceitos são destacados, conhecidos como “as dicotomias saussureanas”. A palavra dicotomia significa divisão em duas partes, ou seja, as dicotomias são concepções teóricas com duas perspectivas diferentes para os estudos linguísticos. Assim, os quatro conceitos, que serão apresentados separadamente a seguir, são: a) Sincronia e diacronia; b) Língua e fala; c) Significante e significado; d) Paradigma e sintagma. 3.2 A dicotomia Sincronia e Diacronia A primeira dicotomia de Saussure que estudaremos será sincronia e diacronia. Na palavra sincronia, o prefixo de origem grega {sin-} significa conjuntamente, ao mesmo tempo e o radical {cronos} significa tempo. Por conseguinte, sincronia se refere aos fatos que ocorrem simultaneamente ou ao mesmo tempo. A Linguística sincrônica descreve o sistema linguístico (sons, palavras, gramática) em um dado momento, não necessariamente no momento atual, pois podemos estudar, por exemplo, a poesia medieval sem fazer nenhuma comparação com poesias de outras épocas, realizando, assim, um estudo sincrônico. A descrição sincrônica apenas analisa o sistema linguístico, descrevendo sua estrutura. Essa primeira grande dicotomia saussureana tem grande importância, pois separa os fatores internos de um sistema dos fatores externos, históricos e culturais, que condicionam esse sistema. De acordo com essa perspectiva, o tempo não é fator determinante das mutações linguísticas, ele apenas permite que esses fatores externos ajam uns sobre os outros, ocasionando as mutações. Já na palavra diacronia, o prefixo de origem grega {dia-} significa separação e o radical {cronos}, como já foi dito, significa tempo. A diacronia, portanto, identifica os estudos dos fatos linguísticos que ocorreram em momentos diferentes. A Linguística diacrônica analisa esses fatos, comparando-os com fenômenos históricos, estuda as transformações históricas da língua. Por exemplo, quando estudamos as mudanças que ocorreram no latim para que surgisse a língua portuguesa, quando comparamos o português de hoje com o português medieval, ou os sonetos da época de Camões com os sonetos modernos, ou quando estudamos a mudança das palavras (“vossamercê” se transformou em “você”), estamos fazendo estudos diacrônicos. Saussure utiliza a seguinte figura para ilustrar essa dicotomia: C A B D Figura 1 – Dicotomia sincronia-diacronia. Fonte: Saussure (1974, p. 95). a) AB representa o eixo das simultaneidades, que diz respeito à sincronia, às coisas que coexistem, sem a intervenção do tempo; b) CD representa o eixo das sucessividades, que diz respeito à diacronia, às coisas que acontecem temporalmente. A Linguística sincrônica também é chamada Linguística estática, ou interna, ou ainda Linguística dos estados. O objeto de estudo sincrônico é a organização do sistema, sua estrutura. Já a Linguística diacrônica é conhecida também como Linguística evolutiva, histórica, externa ou ainda Linguística dinâmica. Seu objeto de estudo são os estados sucessivos dos sistemas, ou seja, as transformações e mudanças que as línguas apresentam conforme passa o tempo. Para melhor compreensão dos dois conceitos, vejamos suas principais diferenças: LINGUÍSTICA SINCRÔNICA LINGUÍSTICA DIACRÔNICA Estuda os fatos linguísticos simultâneos; Estuda os fatos linguísticos sucessivos; Não considera o fator tempo; Considera o fator tempo; É interna (estuda exclusivamente os fatos próprios da língua); É externa (inclui o estudo dos fatos extralinguísticos, ou seja, sociais e históricos, fora da língua); É estática, pois se ocupa de um só recorte temporal; É dinâmica, pois considera vários recortes temporais; Não é histórica (não estuda a história dos fatos da língua); É histórica; Não é, portanto, evolutiva. É evolutiva (considera a evolução das línguas e suas mudanças ao longo do tempo). Quadro 1 – Linguística sincrônica x Linguística diacrônica. A imagem de Saussure está ligada à divisão entre Linguística interna e Linguística externa, o que ocasionou várias críticas feitas a ele, como se a Linguística saussureana fosse antifilológica, ou seja, contrária aos estudos históricos das línguas. Apesar de ter realmente feito essa divisão, ele nunca negou a importância da Linguística diacrônica (que ocupa uma boa parte do seu livro), sendo ele mesmo um filólogo. O que aconteceu é que a repercussão do Curso de Linguística Geral se deu por causa das novidades que havia ali, que são justamente as teses que vão embasar os estudos estruturais, ou seja, a parte que trata da Linguística sincrônica, interna. Por isso, ele é o mentor do estruturalismo e “pai” da Linguística moderna. Com relação a essa dicotomia, há ainda mais um fator importante: a possibilidade de haver estudos sincrônicos e diacrônicos ao mesmo tempo (chamados de pancronia, em que o morfema {pan-} significa tudo, todos). Saussure admite que é possível realizar estudos linguísticos sob o ponto de vista pancrônico, porém somente com relação às leis gerais da língua, pois, segundo ele, os fatos particulares das línguas ou são estudados sob o ponto de vista sincrônico ou sob a perspectiva diacrônica. 3.3 As dicotomias: Língua e Fala, Significado e Significante Veremos agora mais duas dicotomias de Saussure, a começar pela Língua e Fala (ou Linguagem, Langue e Parole). A linguagem humana é a capacidade que o homem tem de comunicar-se com os seus semelhantes através de signos verbais e essa linguagem verbal abrange a língua (langue) e a fala (parole), conforme o pai da Linguística. Saussure designa língua como o próprio sistema linguístico e fala como a utilização concreta do sistema pelos falantes, distinguindo as duas. Voltando à comparação com o jogo de xadrez, os valores das peças e as regras do jogo formariam a língua, enquanto as jogadas feitas constituiriam a fala. A língua é caracterizada pelo teórico como abstrata, pois ninguém conhece tudo sobre a língua; coletiva, pelo fato de ser um conceito social definido pelo grupo social ao qual o indivíduo pertence; e conceituada como o conjunto de todas as regras fonológicas, morfológicas, sintáticas e semânticas que orientam o emprego dos elementos linguísticos pelos falantes. Já a fala, ao contrário da língua, é concreta, pois é composta de elementos concretos que são os sons; e individual, uma vez que é realizada de maneira diferente, dependendo do falante. Há uma liberdade de combinações na fala, visto que cada um fala do seu jeito, combinando os fatores conhecidos da língua. Enfim, a fala é o uso da língua, é a língua posta em prática, dependendo dela para existir. Para finalizar, cabe aqui uma observação relevante: quando denominamos o sistema como um conjunto das regras da língua, não estamos fazendo referência à gramática normativa. Como já foi dito, a Linguística não faz julgamentos de valor sobre as formas e usos linguísticos. Regras, nesse contexto, correspondem ao que devemos respeitar para que fiquemos dentro do sistema da língua. Por exemplo, se dissermos “nós queremos dois pastéis”, ou “nóis qué dois pastel”, estaremos dentro do sistema da língua portuguesa, pois essas duas frases representam variedades da nossa língua, pertencem ao nosso sistema linguístico e são compreendidas numa situação de comunicação. Não importa se uma é considerada correta e bonita, e a outra errada e feia, considerando que são falas diferentes, mas que pertencem ao mesmo sistema, que não julga as realizações por serem diferentes; isso ocorre apenas socialmente. Todavia, se dissermos “nós querer dois pastéis”, estaremos usando uma frase que não pertence ao sistema do português, que não segue as regras da nossa língua, haja vista que numa sentença o verbo deve ser conjugado; apesar de ser compreendida, na verdade, falariam assim somente os estrangeiros, que não dominam a maneira de se fazer a conjugação dos verbos. Ainda com relação à dicotomia língua e fala, há um conceito que complementa essa ideia de Saussure, proposta pelo linguista Eugenio Coseriu, que introduziu na dicotomia saussureana língua e fala um terceiro elemento – a norma – com o objetivo de esclarecer aspectos da análise linguística que essa dicotomia de Saussure não resolve. Para Coseriu (1979), quando falamos, além de realizar concretamente o sistema abstrato, estamos realizando o modo de falar do grupo social ao qual pertencemos. Ou seja, o falante pertence a diversos grupos sociais (definidos pela faixa etária, nível de escolaridade, região onde vive, etc.) e cada agrupamento social possui uma determinada maneira de falar, que é a norma desse grupo. Assim, temos uma norma culta, outra popular, outra infantil, outra paulistana, outra carioca, e assim por diante. Vale lembrar que norma lembra “normal” e normal é exatamente aquilo que as pessoas geralmente fazem, ou seja, aquilo que se repete no comportamento social. É normal ir à praia de terno e gravata ou usando salto alto? Não, pois quase ninguém faz isso. Quando dizemos que o comportamento de alguém “não é normal”, estamos afirmando que esse comportamento é incomum e diferente do das outras pessoas. Se imaginarmos uma peneira e nela colocarmos todos os falares concretos das pessoas de um determinado grupo social (por exemplo, as pessoas nascidas na capital do Rio de Janeiro) e retirarmos dessa peneira tudo o que é realização individual, modo de falar de cada indivíduo, teremos a fala. Se peneirarmos de novo, retirando então tudo que se repete nas falas das pessoas cariocas, teremos a norma. O que resta na peneira, retirados os falares individuais e os modos de falar dos grupos, é o sistema, que é o conjunto de oposições funcionais básicas, das regras que identificam uma língua. Para facilitar, apresentamos um esquema, segundo as ideias de Coseriu (1979): SISTEMA (= LÍNGUA) NORMA FALA
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