Do filme Coringa à Culpabilidade por Vulnerabilidade_ A Irracionalidade do Direito Penal em Gotham City - MPJUS com br

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02/03/2020 Do filme Coringa à Culpabilidade por Vulnerabilidade: A Irracionalidade do Direito Penal em Gotham City - MPJUS.com.br
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              Ao assistir ao �lme “Coringa” não pude, a todo o momento, talvez por falta de
criatividade da minha parte ou por limitação epistemológica mesmo, deixar de pensar como
o Direito Penal trataria o protagonista, caso o ocorrido fosse investigado e processado
criminalmente e, embora o �lme tenha tratado de nuances que de longa data parecem óbvias
para um estudioso do Direito Penal e da Criminologia, �quei perplexo, pois houve uma maior
dimensão em minha epifania sobre o quão pueril e pobre é a análise que se fez ao valorar
penalmente determinada conduta.
              Não analisarei aqui os aspectos relacionados aos transtornos psíquicos existentes,
primeiramente porque o �lme não trata de um diagnóstico preciso sobre quais seriam e, em
segundo lugar, porque ainda que assim o fosse, não tenho condições técnicas de realizar
uma análise psiquiátrica do personagem e veri�car se as características apresentadas
poderiam ser consideradas imputáveis.
              O histórico trazido pelo �lme (já adianto que haverá spoilers) denota o processo de
desenvolvimento em um núcleo familiar totalmente disfuncional, no qual sofreu abusos por
seu padrasto, foi agredido �sicamente desde pequeno, o que ensejou danos neurológicos;
dependia de um programa do governo para tomar suas medicações psiquiátricas, programa
que foi desativado, deixando-o totalmente sem amparo medicamentoso. Além disso, mesmo
enquanto funcionava, era de utilidade questionável, já que a pro�ssional responsável sequer o
Do �lme Coringa à Culpabilidade por Vulnerabilidade: ADo �lme Coringa à Culpabilidade por Vulnerabilidade: A
Irracionalidade do Direito Penal em Gotham CityIrracionalidade do Direito Penal em Gotham City
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ouvia realmente; embora tenha tentado fazer as pessoas rirem com suas piadas e se
esforçasse para isso, a única e maior piada era sua mediocridade existencial. Em diversas
situações cotidianas era agredido �sicamente; traído por pessoas do trabalho que
considerava seus amigos.
        Em suma, não vivia, mas apenas existia, como Macabéa da obra “A hora da estrela” de
Clarice Lispector. Talvez Macabéa tivesse um pouco mais de sorte, pois era irrelevante como
a grama, passava despercebida, já Coringa não passava despercebido, pois sua existência
servia para ser ridicularizada e motivo de deboches dos mais diversos tipos. Ele não era visto
como alguém capaz de ser um palhaço, mas era tratado como um. Não pelas suas piadas,
mas por sua condição existencial.
              Se o Coringa mostra-se ser, a partir de um determinado momento, um sujeito
absolutamente perturbado, na praxe forense, ele não se pensaria na sociedade em que ele
vive (Gotham City). A violência estrutural presente na vida do protagonista costuma ser
totalmente desprezada em análises processuais ou, quando é feita, o é de maneira limitada,
pobre, parca, tacanha. Não se está aqui a vitimizar o protagonista (todo maniqueísmo é burro
e perverso, pois desconsidera in�nitas nuances), mas, por outro lado, crer na absoluta
inexistência de fatores exógenos que criam ambientes criminógenos é tão inocente ou
ignorante quanto crer que existe meritocracia pura. Ora, se nas atitudes virtuosas há
necessariamente fatores exógenos a in�uenciarem (estrutura familiar, ensino de base de
melhor qualidade, dentre outros), naquelas ilícitas, tais não podem ser desprezados.
        Ao recordar essas premissas fáticas, lembrei-me imediatamente da teoria denominada
“Culpabilidade por vulnerabilidade” do professor Eugenio Raul Zaffaroni. A culpabilidade,
segundo tal autor, deve levar em conta a seletividade do sistema e que o sistema punitivo
seleciona conforme a vulnerabilidade do sujeito¹ (e Coringa é o típico exemplo de sujeito
extremamente vulnerável, neste contexto). Pessoas com renda inferior, empregos com menor
status no meio social, determinados estereótipos, detentoras de menos poder têm maior
vulnerabilidade e menor risco de serem amparadas pelo Estado (o �lme mostra isso no
momento em que o tratamento é interrompido e ele nada pode fazer) e, portanto, maior
probabilidade de serem indivíduos sujeitos ao sistema punitivo preponderante. Diante desta
construção, a culpabilidade é de�nida como a reprovação do esforço pessoal para alcançar a
situação concreta de vulnerabilidade ao poder punitivo.
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              Apesar de o protagonista tentar obter sucesso (seus devaneios denotam o quanto
idealizava sucesso e fama), o destino parece lhe empurrar de maneira bastante intensa para
um estado radical de vulnerabilidade. Veri�ca-se que não foi necessário nenhum esforço para
que se tornasse cada vez mais vulnerável. Pelo contrário, as tentativas para sair de tal estado
se mostraram totalmente inúteis.
              Em casos como esse, trazido no �lme, no bojo do sistema penal, instalar-se-ia um
processo com partes muito bem de�nidas, autor e vítima, o que só é possível graças a um
recorte cartesiano que se faz dos sujeitos participantes do feito e de um recorte fático que,
talvez por uma pretensa busca de segurança jurídica é feito, mas que, em verdade oculta,
menospreza quase que totalmente diversas nuances relacionadas ao fato.
              Ao pretexto de se obter uma segurança, uma objetividade, chega-se a um formalismo
pela forma, um mero “formalismo dadaísta” que, sob o argumento de almejar ser �el ao
fatidicamente ocorrido, distancia-se tanto da riqueza humana que acaba por se tornar uma
grande �cção. Ao �nal, julga-se o feito com fundamento em uma �cção criada por um falso e
hipócrita formalismo que despreza quaisquer nuances envolvendo o fato. Ao se buscar a
racionalidade na aplicação da lei, o sistema se torna terrivelmente irracional.
            Não há um ser em si, que se constrói em um fenômeno puramente endógeno. Há, em
verdade, alguém que se desenvolve e se reconstrói a cada momento a partir de fatores
também externos. Já se disse: “Yo soy yo y mi circunstancia”. Em verdade o maior Coringa de
todos é o tecido social, que, com sua violência estruturada e estruturante, com a completa
ausência de empatia e a “coisi�cação” das relações humanas, cria, induz ou instiga �lhotes,
reconstrói e se multiplica e multiplica a violência, ainda que simbólica, para depois eleger
alguns bodes expiatórios e causar uma falsa sensação de segurança.
              Ao menos a mim causam alívio e tranquilidade saber que o contexto e essa análise
partem de uma cidade distante, Gotham City, da qual provavelmente estamos distantes, bem
distantes…
 
Referências:
[1] Derecho Penal, Parte General, pág. 654.
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Devo Atacar o Mérito no Habeas Corpus? Lei Finalmente Criminaliza Indução à Autolesão Pelas Redes Sociais
Culpabilidade por Vulnerabilidade Filme Coringa Irracionalidade do Direito Penal
Rodrigo Francisconi CostaPardal
 
Professor de Direito Penal do Damásio
Educacional. Mestre em Direito Penal pela PUC-SP. Pós-graduado em Direito Penal pela Escola
Superior do Ministério Público e pela Universidade de Salamanca - Espanha. Pós-graduando em
Filoso�a do Direito pela PUC-MG. Bacharel em Direito pela PUC-SP. Autor de artigos na área Penal.
Colaborador em Direito Penal.
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Rodrigo Francisconi Costa Pardal
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