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3 A reflexão sobre o cinema como meio surgiu praticamente junto com o próprio meio. Na verdade, os sentidos etimológicos das designações com que foi originalmente batizado o cinema apontam já para diversas maneiras de “visualizá-lo” e até mesmo antecipam as teorias posteriores. “Biograph” e “animatógrafo” enfatizam o registro da vida em si (uma corrente bastante forte, mais tarde, nos escritos de Bazin e Kracauer). “Vitascope” e “Bioscope” enfatizam o olhar sobre a vida, portanto, deslocam a ênfase do registro da vida para o espectador e a escopofilia (o desejo de olhar), uma preocupação dos teóricos psicanalíticos dos anos 70. “Cronofotógrafo” enfatiza a escritura do tempo (e da luz), prefigurando, assim, a ênfase deleuziana (bergsoniana) sobre a “imagem-tempo”, ao passo que “cinetoscópio”, mais uma vez antecipando Deleuze, enfatiza a observação visual do movimento. “Scenarograph” enfatiza o registro de histórias ou cenas, chamando atenção tanto para o cenário como para as histórias que nele se passam, implicitamente privilegiando, dessa forma, o cinema narrativo. “Cinematógrafo”, e logo depois “cinema”, chamam atenção para a transcrição do movimento. $ Poderiamos ampliar a discussão, examinando as implicações prototeóricas das etimologias dos termos utilizados para designar os mecanismos pré-cinematográficos: “catnera obscura" (ou sala escura) evoca tanto os processos fotográficos como a comparação marxiana da ideologia a uma catnera obscura, e ainda o nome de um periódico feminista de cinema. “Lanterna mágica” evoca o recorrente tema da “magia cinematográfica”, juntamente com a “lâmpada” criativa do Romantismo e com a “lanterna” do Introdução à teoria do cinema 37 Uuminismo. “Phantasmagoria" c “phasmotrope” (giro-cspctáculo) evocam a fantasia e o maravilhoso, c “cosmorama”, as ambições cinematográficas dc criação de mundos. O fuzil cinematográfico de Marey evoca o processo de filmagem* e chama atenção para o potencial agressivo da câmera como arma uma metáfora recuperada pelo “cinema de guerrilha” dos cineastas revolucionários dos anos 60. “Mutoscopc” sugere um visor de mudanças, enquanto “phcnakistiscope” evoca “visões enganosas”, antecipando o simulacro de Baudrillard. Muitas das designações do cinema incluem variantes de “grafo” (grego para “escritura” ou “transcrição”), prefigurando os tropos posteriores referentes à autoria e à escritura cinematográficas. O alemão lichtspicl (jogo de luz) é um dos poucos nomes que fazem menção à luz. Em razão do princípio “mudo” do cinema, o tato de raramente a nomenclatura [referir-se ao som não chega a causar qualquer surpresa, muito embora Edison percebesse o cinema como uma extensão do fonógrafo, batizando os seus aparelhos pré-cinematográficos com nomes como “íonõgrafo ótico” e “kinctofonógrafo” (a escritura do movimento e do som). Os primeiros esforços de sincronização de som c imagem produziram designações como “cameraphone” e “cinephone”. Em árabe, o cinema íoi denominado sura mutaharika (imagem ou forma em movimento), enquanto em hebraico o termo para o cinema evoluiu de reinoa (contemplar o movimento) para kolnoa (movimento sonoro). Por outro lado, essas designações também implicam a “essencial” visualidade do cinema, entendimento muitas vezes reforçado pelo argumento “histórico” dc que o cinema existiu primeiramente como imagem e apenas depois como som; a bem da verdade, evidentemente, o cinema era, via dc regra, acompanhado tanto pela linguagem (os intertítulos, as articulações labiais da fala) como pela música (os pianos, as orquestras). Nos primeiros escritos sobre cinema, freqüentemente a teoria não passa de uma presença embrionária implícita. Encontramos em alguns críticos de jornal, por exemplo, um discurso de fascinação, uma espécie de reverência religiosa pela pura magia da mimese, pela simples visão de uma representação- simulacro convincente da chegada de um trem ou do “vento soprando a folhagem”. Após assistir à projeção de um filme de Lumière em Bombaim, em 1896, um repórter do Times of índia (de 22 de julho) comentou “o quanto as diversas cenas representadas na tela assemelhavam-se à vida real... [com] algo como setecentas ou oitocentas fotografias sendo lançadas sobre a tela no espaço Em inglcs, shooting, que tem também o sentido de “disparo”. (N.T.) 38 Papirus Editora dc uin minuto”? Uma matéria dc 1899 do jornal chinês Yo-shi- Bao í O Jornal do Entretenimento) relata a primeira experiência cinematográfica do repórter; A noite passada... alguns amigos me levaram aos Jardins Chi para assisitir a um espetáculo. Reunida a audiência, as luzes foram apagadas e deu-se início à performance. Na tela, à nossa frente, vimos uma imagem - duas garotas ocidentais dançando, com rolos dc cabelo amarelo e um aspecto bobo. Logo após, outra cena, dois ocidentais lutando boxe... Os espectadores tinham a sensação de qtie eles se encontravam realmente presentes, o que foi incrivelmente emocionante. Dc repente, as luzes se acenderam novamente e as imagens desapareceram. Foi sem dúvida um espetáculo maravilhoso. (Citado em Leyda 1972, p. 2) Em reação à projeção de uma película de Lumière na Cidade do México cm dezembro de 1895, Luis G. Urbina assinalou não apenas as imperfeições da “nova engenhoca” que “nos entretém reproduzindo a vida”, mas que “não possui cor”,1 2 como também as “deficiências” da audiência popular: As massas incultas e infantis experimentam, ao sentar-se em frente à tela, o encantamento de uma criança que escuta o conto de fadas narrado pela avó; foge à minha compreensão como pode um grupo de pessoas com a obrigação de serem civilizadas idiotizar-se [nos cinemas], noite após noite, com a repetição interminável de cenas cujos anacronismos, aberrações, inverossimilhanças são deliberadamente produzidos para um público do mais baixo nível mental, desconhecedor das mais básicas noções de educação. (Mora 1988, p. 6) Os primeiros escritos sobre cinema foram cm grande parte produzidos por personagens do mundo literário. Assim reagiu o romancista russo Maxim Gorki à projeção de um filme cm 1896; Noite passada, estive no Reino das Sombras. Se vocês pudessem imaginar o quão estranho é estar lá... É um mundo desprovido de som e de cor. 1. Citado em Barnouw e Krishnaswamy (1980, p. 5). 2. Citado em Mora (1982, p. 6). Introdução à teoria do cinema 39 Tudo nele - a terra, as árvores, as pessoas, a água e o ar - encontra-se mergulhado em um cinza monótono... Não se trata da vida, mas de sua sombra... E tudo isso em meio a um absoluto silêncio, em que não se escuta o rangido das rodas, o ruído dos passos ou da fala. Nem sequer uma nota da intrincada sinfonia que sempre acompanha o movimento dos seres humanos. (Citado em Leyda 1972, pp. 407-409) Muitos dos primeiros comentadores, como Gorki, mostraram-se ambivalentes com relação ao cinema. Desde o princípio, verificaram-se tendências simultâneas tanto no sentido de identificar no cinema exageradas possibilidades utópicas quanto de demonizá-lo como instrumento do mal. Assim, alguns prometiam que o cinema reconciliaria as nações inimigas e semearia a paz pelo mundo, ao passo que outros manifestavam um “pânico moral”, um temor de que o cinema pudesse contaminar ou degradar o público das classes mais baixas, induzindo-o ao vício e ao crime. Nessas reações, percebe-se a convergência do vulto imponente de três tradições discursivas: (1) a hostilidade platônica às artes miméticas; (27 a*rejeição puritana às ficções, artísticas; e (3) o escárnio histórico das elites burguesas pela plebe imunda. Um leitmotiv bastante comum nos primeiros escritos sobre o cinema foi o seu potencial para a democratização, um tema sempre presente com o advento de toda e qualquer inovação tecnológica, como é o caso, contemporaneamente, do computador e da Internet Um articulista de Moving Picture World afirmou em 1910que “o cinema traz sua nota de simpatia tanto aos cultos quanto aos incultos,raos ricos e aos pobres. É literatura para os iletrados... Não conhece fronteiras de raça ou de nação”. Em um tom que faz lembrar desde Walt Whitman ao discurso cibernético, o autor prossegue: [O espectador] vai para ver, sentir e se identificar. Durante aquele breve intervalo de tempo, é transportado para além das limitações de seu ambiente; passeia pelas ruas de Paris; vê o dia nascer com o caubói do faroeste; mergulha nas profundezas da terra com mineiros cobertos de cinzas, ou se lança ao mar com marinheiros e pescadores. Sente, além disso, a emoção de solidarizar-se com os pobres e necessitados... O artista cinematográfico é capaz de tocar cada uma das tedas do grande órgão da humanidade? 3. Walter M. Fitch, “The motion picture story considercd as a ncw literary form”, Moving Picture World (19 de fevereiro dc 1910), p. 248; citado em Hanscn (1991, pp. 80-81). 40 Papirus Editora Um tema relacionado era a celebração do cinema como nova “linguagem universal”, tema que, conforme aponta Miriam Hanscn, reverberava fontes tão diversas como o Iluminismo francês, a metafísica do progresso e o milenarismo protestante (Hanscn 1991, p. 76). O cinema, portanto, seria capaz de “reconstruir as ruínas de Babel” e transcender as barreiras de nação, cultura e classe. Como escreveu um colaborador da American Magazine (de julho de 1913), não há no cinema Nenhuma barreira de linguagem para o estrangeiro ou o ignorante... por um mísero níquel, o desgraçado... pode ver estrangeiros à sua frente e começar a perceber como se parecem consigo mesmo; pode ver coragem, aspiração e agonia, e começar a perceber a si próprio. Começa a sentir-se como um indivíduo irmanado na raça humana e, como tal, movido por sonhos. (Citado em Hansen 1991, p. 78) A despeito dessa alegação teórica de universalidade, alguns grupos protestaram contra as representações concretas de suas comunidades nos filmes hollywoodianos. A edição de Moving Picture World de 3 de agosto de 1911 relata a audiência de uma delegação indígena norte-americana com o presidente Taft, em que esta protestava contra representações equivocadas e solicitava até mesmo a instalação de um procedimento investigativo no Congresso.4 Na mesma linha, jornais afro-amcricanos como o Califórnia Eagle, de Los Angeles, protestaram contra o racismo de filmes como Nascimento de uma nação, de Griftith. Como veremos, será apenas nos anos 20 que se encontrará uma discussão aprofundada do racismo cinematográfico, na revista de vanguarda Close Up. No período mudo, encontramos, por vezes, uma mentalidade colonizada no jornalismo cinematográfico de países como o Brasil. A revista Cinearte (fundada em 1926), por exemplo, foi uma versão tropical da hollywoodiana Photoplay. Majoritariamente financiada por anúncios publicitários de filmes hollywoodianos, a revista proclamava em editorial seus ideais cinematográficos e sociais: Outra edição de Moving Picture World (10 de julho de 1911), intitulada “Indians grieve over picture shows”, relata os protestos de grupos indígenas da Califórnia contra a sua representação por Hollywood como guerreiros sedentos de sangue quando, na verdade, eram pacíficos agricultores. Introdução à teoria do cinema 41 Um cinema que (...) ensina o fraco a não respeitar o forte, o servo a não respeitar o patrão; que mostra caras sujas, barbas crescidas, aspectos sem hygiene alguma, sordicies e um realismo levado ao extremo, não é Cinema. Tomemos um joven, uma joven, moços, em summa. Vão assistir Tom Mix, seja. Já que é este o symbolo do Cinema americano para os que o atacam. Vêem lá um rapaz de cara limpa, bem barbeada, cabello penteado, agil, bom cavalleiro. E a moça, bonitinha, corpo bem feito, rosto meigo, cabellos modernos, aspecto todo photogenico (...). O parzinho que assistir o film commentará que já viu aquillo vinte vezes. Mas sobre seus corações que sonham, não cahirá a penumbra de uma brutalidade chocante, dc uma cara suja, de um aspecto que tira qualquer parcella de poesia e encantamento. Essa mocidade não pode acceitar essa arte que ensina a revolta, a falta de hygiene, a luta e a eterna briga contra os que tem o direito de mandar.5 Aqui, a noção de fotogenia, posteriormente desenvolvida por teóricos-cineastas como Jean Epstein para promover as potencialidades específicas da “sétima arte”, torna-se uma noção epidérmica normativa de beleza, associada à juventude, ao luxo, às estrelas de cinema e, ao menos implicitamente, à branquidade. Embora a passagem não faça menção à raça, sua apologia dos rostos “limpos” e “higiênicos” em oposição aos “sujos” e sua postura bastante servil com relação ao modelo branco-inocente de Hollywood são sugestivas de uma referência codificada ao tema.6 Por vezes, a referência racial aparece de forma mais explícita. Outro editorialista reivindica que o cinema brasileiro seja um “ato de purificação de nossa realidade”, enfatizando o “progresso”, a “engenharia moderna” e “nosso lindo povo branco”. O autor também adverte que os documentários são 5. Cincarte, Rio de Janeiro (18 de junho de 1930). 6. Essa perspectiva estética coincidia com atitudes praticadas pela elite na vida social cotidiana. O escritor Monteiro Lobato, por exemplo, em 1908, expressava sua repulsa ao ver os cariocas em seu caminho do trabalho para casa: “Como consertar essa gente? Como sermos gente, no concerto dos povos? Que problemas terríveis o pobre negro da África nos creou aqui, na sua inconciente vingança!... Talvez a salvação venha de S. Paulo e outras zonas que intensamente se injetam dc sangue europeu. Os americanos salvaram-se da mestiçagem com a barreira do preconceito racial. Temos também aqui essa barreira, mas só em certas classes e certas zonas. No Rio não existe” (Monteiro Lobato, A Barca de Gleyre). Juntamente com o endosso das noções arianistas convencionais de beleza, verifica-se uma consciente insistência na hierarquia social, tendendo a excluir os negros brasileiros. (A insistência eufemística na “boa aparência” antecipa o uso em anúncios de empregos, nos anos 50, de expressões como “pessoa de boa aparência como um eufemismo polido para “branco”.) 42 Papirus Editora mais propícios à inclusão de “elementos indesejáveis”. Comenta que devemos evitar os documentários, porque não se prestam a um controle total sobre o que é mostrado, e podem, portanto, permitir a infiltração de elementos indesejáveis: precisamos de um cinema de estúdio, como o de Hollywood, com interiores bem decorados, habitados por pessoas decentes.7 As hierarquias raciais repercutem, portanto, até mesmo em questões de gênero e método de produção. A teoria do cinema do período mudo já se ocupava, embora de maneira intuitiva, de questões que mais tarde se tornariam recorrentes: O cinema é uma arte ou um mero registro mecânico dos fenômenos visuais? Se é uma arte, quais as suas características mais salientes? Como diferenciá-lo dc outras artes como a pintura, a música e o teatro? Outras questões se associavam à relação do cinema com o mundo tridimensional. O que distingue a realidade “do mundo” da realidade como apresentada pelo cinema? Ainda outras diziam respeito aos processos espectatoriais. Quais os determinantes psicológicos do cinema? Que processos mentais a espectatorialidade envolve? O cinema é uma linguagem ou um sonho? O cinema é arte, comércio ou ambos? Qual a função social do cinema? Estimular a inteligência perceptiva do espectador, ser belo e inútil ou promover a causa da justiça no mundo? Embora tenham sido transformadas e reformuladas pela teoria contemporânea do cinema, essas questões jamais foram completamente descartadas. Por outro lado, verificou-se uma clara evolução das preocupações. Enquanto os primeiros teóricos se mostravam determinados a demonstrar as potencialidades artísticasdo cinema, por exemplo, os teóricos posteriores, menos defensivos e elitistas, tomavam o estatuto artístico do cinema como pressuposto, não vendo necessidade de comprová-lo. Boa parte dos primeiros críticos e teóricos procuraram definir o cinema como meio e a sua relação com as demais artes. Citando Lcssing, Wagner e os futuristas, Riccioto Canudo, em seu manifesto “O nascimento de uma sexta arte” (1911), previa que o cinema absorvería as três artes espaciais (arquitetura, escultura e pintura) e as três artes temporais (poesia, música e dança), transformando-as em uma forma sintética de teatro designada “Arte Plástica em Movimento” (Abel 1988, vol. I, pp. 58-66). Prcfigurando a noção 7. Cinearte (11 de dezembro de 1929), p. 28. Introdução à teoria do cinema 43 bakhtiniana de “cronotopo” - a necessária relacionalidade entre tempo e espaço na representação artística - Canudo entendia o cinema como o telos redentor das artes espaciais e temporais precedentes, o objetivo em direção ao qual estas teriam sempre se orientado. Em lugar do posterior “mito do cinema total”, de Bazin, Canudo promovia o “mito da forma de arte total”. Nas primeiras décadas do cinema, boa parte da teorização era informe e impressionista. Um bom exemplo desse tipo de teorização ad hoc e assistemática encontra-se na obra do poeta e crítico norte-americano Vachel Lindsay. Em The art of lhe moving picture (1915, revisado em 1922), Lindsay aborda uma diversidade de questões, mesclando seu anedotário pessoal a especulações cm torno da literatura e do cinema. Escrevendo em um suposto cenário de grande escárnio do mundo literário pelo cinema como meio, Lindsay promove a defesa do cinema popular perante a sua audiência: os diretores de museus de arte, os professores dos departamentos de inglês e“o mundo da crítica e da literatura cm geral” (ibid., p. 45). O | cinema, para Lindsay, é uma arte democrática, uma nova escrita hieroglífica •norte-americana na tradição de Whitman. Algumas de suas especulações ' recaem sobre a questão do gênero, definido, de modo bastante impreciso, não com base na estrutura, mas no conteúdo e no tom. Lindsay cita três “gêneros”: ação, intimidade e esplendor. Para definir o cinema, recorre ao exemplo de outras artes, percebendo-o simultaneamente como “escultura em movimento”, “pintura em movimento” e “arquitetura em movimento”, com o “movimento”, portanto, constituindo o substrato comum da definição (a orientação visual de Lindsay não surpreende, haja vista a sua formação em pintura no Art Institute de Chicago). Ou seja, o autor adota uma abordagem diferencial à especificidade cinematográfica, definindo o cinema em oposição aos outros meios. Em um dos capítulos, por exemplo, realiza um inventário das diferenças entre as photoplays (isto é, o cinema) e as performances teatrais: no teatro, as saídas e entradas estão ao lado e ao fundo do palco, ao passo que “nas photoplays padrão estas se encontram ao longo da linha imaginária das luzes da ribalta”; e embora o teatro seja dependente dos atores, os filmes dependem do “gênio do produtor” (ibid.-, pp. 187-188). Gilbert Scldes (1924), uma década mais tarde, mostrou-se cm parte um herdeiro dc Lindsay em sua entusiasmada apologia do cinema como arte popular cm The seven lively arts. Mesmo sendo evasivo em sua argumentação, Lindsay antecipa várias das correntes posteriores. Sçu fascínio pela analogia entre o cinema e a escrita 44 Papirus Editora hieroglífica prefigura tanto Eisenstein quanto Metz, c sua compreensão de Thomas Edison como um “novo Gutenberg” antecipa as formulações de McLuhan sobre os novos meios e a “aldeia global”. Por outro lado, sua sugestão de que os espectadores deveríam se manifestar em voz alta durante a projeção é antecipatória da noção brechtiana de um “teatro de fumantes” e de um “teatro de interrupções”. Lindsay também dedica uma espécie dc atenção etnográfica à resposta da audiência. Por exemplo, os filmes de ação “gratificam a incipiente e exuberante mania dc velocidade de todo e qualquer norte- americano” (Lindsay 1915, p. 41). Já “as pessoas adoram Mary Pickford em razão de um certo aspecto do seu rosto nos momentos mais exultantes” (ibid., p. 55). Antecipando a posterior comparaçãode Vertov do_cinema com as drogas (“cinc-nicotina”, “cine-vodca”), mas sem o tom reprovador deste, Lindsay compara os prazeres gregários da sala de cinema aos do saloon. Por serem as ruminações bastante dispersas de Lindsay altamente especulativas, c mesmo frívolas - em determinada passagem, o autor chega a sugerir correspondências rimbaudianas entre gêneros cinematográficos e cores específicas -, é mais produtivo lê-lo em termos das questões propostas c das possibilidades inauguradas. As origens da teoria sistemática do cinema encontram-se no primeiro estudo abrangente do meio cinema: The photoplay: A psychological study, de Hugo Munsterberg, psicólogo e filósofo de Harvard (1916). Elaborando tanto com base em categorias da filosofia neokantiana como da pesquisa em psicologia da percepção, bem como em seu próprio conhecimento do que era então um corpus relativamente modesto de filmes - o autor envergonhava-se de ser flagrado na platéia - o livro de Munsterberg postulava o cinema como uma “arte da subjetividade”, imitadora da maneira como a„ÇQjisciência çonfere forma ao mündoTcnomênicm “A photoplay nos conta uma história humana apropriando-se das formas do mundo exterior, ou seja, espaço, tempo e causalidade, e ajustando os acontecimentos às formas do mundo interior, ou seja, atenção, memória, imaginação e emoção”.8 Em sua introdução, Munsterberg distingue entre o progresso “interior” e “exterior” do cinema, o primeiro referindo-se aos princípios estéticos e o segundo à evolução desde os mecanismos pré-cinematográficos, como o cinetoscópio, até os primeiros filmes “verdadeiros”. (Nesse sentido, ele 8. Munsterberg (1970, p. 74). A obra foi originalmentc publicada com o título The photoplay: A psychologicalstudy (Nova York: D. Appleton, 1916). Introdução à teoria do cinema 45 antecipa uma importante área de interesse para os historiadores contemporâneos do cinema mudo.) Com respeito às origens tecnológicas e ao potencial futuro do cinema, Munsterberg adota uma inovadora posição não- teleológica: É arbitrário afirmar onde se iniciou o desenvolvimento do cinema, e impossível prever em que direção nos conduzirá... Se pensamos no cinema como fonte de entretenimento e de fruição estética, podemos identificar a sua origem na catnera obscura, que permitia a passagem das placas de cristal uma por detrás da outra... por outro lado, se a característica essencial do cinema é a combinação de várias imagens em uma impressão contínua, devemos nos reportar ao tempo do phenakistoscope, que apresentava um interesse meramente científico. (Munsterberg 1970, p. 1) Mas o que de fato interessa a Munsterberg são as “formas interiores” do cinema, isto é, os progressos na linguagem cinematográfica que possibilitam que “episódios banais” se transformem em “uma nova e promissora arte” (ibid., pp. 8-9). A seleção, pelo cineasta, do que é significativo e conseqüente, para Munsterberg, opera a transformação do caos no “cosmos” do filme. Seus interesses, pois, são tanto estéticos como psicológicos. A utilização cinematográfica do espaço e do tempo, de acordo com ele, transcende a dramaturgia teatral através de mecanismos como o close-up, os efeitos especiais e as mudanças ágeis de cena por meio da montagem. Para Munsterberg, é precisamente a distância entre o cinema e a realidade física que o transporta para a esfera do mental. Refletindo com base na tradição idealista em filosofia, na qual o pensamento conforma a realidade, Munsterberg afirma que o cinema reconfigura a realidade tridimensional segundo as “leis do pensamento”. Diversamente do teatro, cria prazer ao triunfar sobreo princípio material, libertando o mundo palpável do peso do espaço, do tempo e da causalidade, e dotando-o das formas de nossa própria consciência. ’ Porém, há uma tensão estética cm Munsterberg. Por um lado, reivindica a “perfeita unidade entre trama e aparência pictórica” e o “completo isolamento do mundo prático”, evocativos do ilusionismo hollywoodiano; por outro, postula um “livre jogo de experiências mentais” com final mais aberto e imprevisível, evocativo do subjetivismo do cinema de arte. 46 Papirus Editora Munsterberg pode ser considerado o pai espiritual dc muitas das correntes da teoria do cinema. Sua ênfase em um espectador ativo, que preenche as lacunas do cinema por meio de investimentos intelectuais e emocionais, dessa maneira participando do “jogo” cinematográfico, antecipa posteriores teorias da espectatorialidade. Na noção de que o espectador aceita a impressão de profundidade disponibilizada pela imagem filmica, embora tendo consciência de sua artificialidade, encontramos, por exemplou* germe da noção psicanalítica posXénqf da,^c,rença dividida”, o je sais mais quand nièmedo. teoria dõ’ cinema dos anos 70. Por sua vez, o entendimento de que os Jilmes produzem eventos mentais, de que o filme existe, em última instância, pão no celulóide mas na mente daquele que o atualiza, antecipa a “teoria da recepção” dos anos 80. Por fim, o trabalho de Munsterberg sobre o “fenômeno h?hz” o processo pelo qual a mente constrói um sentido cinético baseado em imagens estáticas, torna-o avô dos cognitivistas, para quem os processos miméticos não refletem uma ligação entre o cinema e a “realidade”, mas entre os processos fílmicos e os da mente em si. E como um filósofo profissional que dedica sua atenção ao cinema, Munsterberg antecipa figuras posteriores como Maurice Merleau-Ponty e Gilles Deleuze. Embora Munsterberg enfatizasse a dimensão psicológica do cinema, outros teóricos compreendiam-no como uma espécie de linguagem, com gramática, sintaxe e vocabulário próprios. Para Vachel Lindsay (1915), o cinema constituía uma nova linguagem de palavras-imagens e hieróglifos, uma espécie de esperanto. A noção de linguagem cinematográfica também é encontrada na França dos anos 20 nos escritos de Riccioto Canudo e Louis Delluc, os quais entendiam que o aspecto lingüístico do cinema vinculava-se, paradoxalmente, ao seu estatuto não-verbal e à sua capacidade para transcender as barreiras das línguas nacionais.9 Já Béla Balázs, o teórico húngaro do cinema, repetidamente enfatizava a sua natureza linguística em obras dos anos 20 ao final dos anos 40. Os espectadores cinematográficos, de acordo com Balázs, têm de aprender a “gramática” da nova arte, suas conjugações e declinações de close-ups e de montagem.10 (O tropo da linguagem cinematográfica, como veremos, também foi desenvolvido pelos formalistas russos e, de forma muito mais rigorosa, pelos semiólogos do cinema da década de 1960.) 9. Citações de Canudo e Delluc referindo-se à linguagem podem ser encontradas em diversas antologias clássicas: Lapierre (1946),L’Herbier (1946) e CHerminier (1960). 10. Ver Balázs (1930), idéias posteriormente retrabalhadas em Balázs (1972). Introdução à teoria do cinema 47 Outra corrente teórica pode-se identificar nos comentários de cineastas a respeito de seu próprio trabalho. A afirmação de Griffith de que tomara suas técnicas de chiaroscuro emprestadas a Rembrandt, por exemplo, configura uma perspectiva quasi-teórica sobre a relação entre cinema e pintura. A descrição de Louis Feuillade de seus filmes como “fatias de vida”, que representam “as pessoas e as coisas como são de fato, e não como gostariam de ser”, certamente implica uma perspectiva sobre o realismo artístico.11 O aforismo do realizador brasileiro Humberto Mauro de que “cinema é cachoeira”, da mesma forma, sugere que este deveria privilegiar a beleza natural, no caso, a beleza brasileira. Também alguns não-cineastas ofereceram “teorias” embrionárias do cinema. O elogio de Woodrow Wilson a Nascimento de uma nação como “história escrita com luz” pode ser entendido como contendo uma proposição teórica sobre o potencial do cinema para a escritura historiográfica, ainda que com perturbadoras implicações racistas. A declaração de Lênin de que “o cinema foi para nós a mais importante de todas as artes” poderia igualmente ser entendida como portadora de uma proposição teórica implícita sobre os usos político-ideológicos do cinema. Várias das “teorias” incipientes foram elaboradas com base em tradições preexistentes em outras áreas artísticas. A idéia do cineasta como “autor”, por exemplo, foi herdada dos milhares de anos de tradição literária. Embora a noção de autor tenha entrado em voga apenas nos anos 50, a idéia original surgiu no período mudo, em razão da busca de legitimação artística por parte do cinema. Vachel Lindsay, já em 1915, antecipava a política dos autores ao prever que“distinguiremos, algum dia, entre os diversos mestres do cinema tal como hoje nos deleitamos com os diferentes sabores de O. Henry e Mark Twain” (Lindsay 1915, p. 211). Em 1921, em “Le cinéma et les lettres modernes”, o realizador Jean Epstein aplicou o termo “autor” aos cineastas, enquanto Louis Delluc analisava os filmes de Griffith, Chaplin e Ince de uma maneira qualificada por Stephen Crofts como “proto-autoral” (Croft, em Hill e Gibson 1998, p. 312). Da mesma forma, a caracterização do cinema como a sétima arte conferia, implicitamente, aos artistas cinematográficos o mesmo estatuto dos escritores e pintores. 11. Louis Feuillade, “L’art d u vrai”, Gné-joumal (22 de abril de 1911); citado em Jcancolas (1995, p- 23). 48 Papirus Editora