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2012 LiterAturA BrAsiLeirA: Do perÍoDo CoLoniAL Ao romAntismo Prof.ª Joseni Terezinha Frainer Pasqualini Copyright © UNIASSELVI 2012 Elaboração: Prof.ª Joseni Terezinha Frainer Pasqualini Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfi ca elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. 869 P284l Pasqualini, Joseni Terezinha Frainer Literatura brasileira : do período colonial ao romantismo/ Joseni Terezinha Frainer Pasqualini. Indaial : Grupo UNIASSELVI, 2012. 237 p. il. Inclui bibliografi a. ISBN 978-85-7830-370-9 1. Literatura brasileira 2. Romantismo I. Centro Universitário Leonardo da Vinci II. Núcleo de Ensino a Distância III. Título Impresso por: III ApresentAção Caro/a acadêmico/a, seja bem-vindo/a ao estudo da disciplina de Literatura Brasileira: do Período Colonial ao Romantismo. Apreciar essa literatura é refletir sobre o contexto histórico, os períodos, os artistas, uma vez que na composição de uma obra literária estão expressas uma cultura, um tempo, uma ideologia e uma estética, mas, sobretudo, uma manifestação da arte. Para a elaboração deste caderno nossa atenção centrou-se na literatura medieval, na renascentista, na literatura escrita em solo brasileiro no período em que o Brasil pertencia a Portugal, para, em seguida, refletirmos sobre a literatura de um Brasil pós-colonial. Sendo assim, apresentamos textos literários dos autores mais expressivos, de modo especial os que nos ajudam a pensar na construção e evolução da literatura brasileira. As escolhas, tanto dos poetas como dos críticos literários, foram pensadas em termos de atender ao objetivo de analisar autores e épocas das manifestações literárias escritas nos três primeiros séculos da nação brasileira, para compreensão do fenômeno literário de nossa nação. Enfim, cremos que os conteúdos abordados podem auxiliá-lo/a no processo de aquisição e aprimoramento de conhecimentos e na capacidade de estabelecer relações, debater e argumentar, o que, esperamos, contribua para que você se torne um/a professor/a sempre em busca de aperfeiçoamento. Prof.ª Joseni Terezinha Frainer Pasqualini IV Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfi m, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. 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Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais que possuem o código QR Code, que é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar mais essa facilidade para aprimorar seus estudos! UNI V VI VII UNIDADE 1 - A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA ......................................... 1 TÓPICO 1 - A IDADE MÉDIA .............................................................................................................. 3 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 3 2 O CONTEXTO LITERÁRIO DA EUROPA MEDIEVAL .............................................................. 3 3 A PRODUÇÃO LITERÁRIA DE UM PORTUGAL MEDIEVAL ................................................ 5 4 A EUROPA RENASCENTISTA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA ................................................. 6 RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 15 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 17 TÓPICO 2 - A ILHA DE VERA CRUZ, A TERRA DE SANTA CRUZ: BRASIL ......................... 19 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 19 2 A COLONIZAÇÃO DA NAÇÃO BRASILEIRA ........................................................................... 19 2.1 A LITERATURA DE INFORMAÇÃO ........................................................................................... 20 3 A CARTA DE CAMINHA ................................................................................................................... 21 RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 27 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 29 TÓPICO 3 - OS JESUÍTAS: FONTE DE CONHECIMENTO E ALARGAMENTO DE NOSSA LITERATURA ........................................................... 31 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 31 2 A LITERATURA JESUÍTA ................................................................................................................. 31 3 COUTINHO E CANDIDO: SOBRE A FORMAÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA ....... 37 RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................................... 43 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 45 UNIDADE 2 - AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO ................................................. 47 TÓPICO 1 - A LITERATURA SEISCENTISTA .................................................................................. 49 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 49 2 O MANEIRISMO .................................................................................................................................. 50 3 O CONTEXTO HISTÓRICO E REPRESENTANTES DO BARROCO EUROPEU .................. 55 3.1 A REFORMA E A CONTRARREFORMA .................................................................................... 56 RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 64 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................66 TÓPICO 2 - O BARROCO NO BRASIL ............................................................................................. 67 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 67 2 A PRIMEIRA EPOPEIA BRASILEIRA ............................................................................................. 67 3 GREGÓRIO DE MATOS..................................................................................................................... 70 4 PADRE ANTÔNIO VIEIRA E OS SERMÕES ................................................................................ 75 5 BOTELHO DE OLIVEIRA E NUNO MARQUES PEREIRA: POESIA EM TERRAS BAIANAS ...................................................................................................... 81 5.1 A PINTURA E A ESCULTURA BARROCA NO BRASIL .......................................................... 85 sumário VIII LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 91 RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 96 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 98 TÓPICO 3 - O ARCADISMO ................................................................................................................ 99 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 99 2 O CONTEXTO HISTÓRICO-FILOSÓFICO DO SÉCULO XVIII ............................................... 99 3 CONVENÇÕES ÁRCADES E SEUS REPRESENTANTES 104 3.1 CLÁUDIO MANUEL DA COSTA...............................................................................................106 3.2 TOMÁS ANTONIO GONZAGA .................................................................................................111 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................126 RESUMO DO TÓPICO 3 .....................................................................................................................129 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................131 UNIDADE 3 - O MOVIMENTO ROMÂNTICO .............................................................................133 TÓPICO 1 - IDEIAS E IDEAIS DOS ROMÂNTICOS ..................................................................135 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................135 2 O ROMANTISMO: CONTEXTO HISTÓRICO NA EUROPA E POR EXTENSÃO NO BRASIL .........................................................................................................136 3 OS PRECURSORES DO ROMANTISMO ....................................................................................143 RESUMO DO TÓPICO 1 .....................................................................................................................156 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................159 TÓPICO 2 - DO PRÉ-ROMANTISMO AO ROMANTISMO ......................................................161 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................161 2 OS POETAS E A TEMÁTICA INDIANISTA ................................................................................161 3 GONÇALVES DIAS: INDIANISTA POR NATUREZA ..............................................................166 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................183 RESUMO DO TÓPICO2 ......................................................................................................................186 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................188 TÓPICO 3 - O ULTRARROMANTISMO .........................................................................................191 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................191 2 POETAS DO INDIVIDUALISMO ROMÂNTICO ......................................................................191 3 O POETA DOS ESCRAVOS .............................................................................................................213 4 O ROMANCE DE FICÇÃO...............................................................................................................218 4.1 REPRESENTAÇÃO TEATRAL ....................................................................................................224 RESUMO DO TÓPICO 3 .....................................................................................................................228 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................231 REFERÊNCIAS ......................................................................................................................................233 1 UNIDADE 1 A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir desta unidade você será capaz de: • refletir sobre as mudanças ocorridas no campo da arte a partir do Re- nascimento; • abordar questões pertinentes ao contexto histórico do qual a literatura faz parte; • analisar textos e identificar características da literatura informativa e jesuítica; • abordar as concepções de diferentes críticos literários no que concerne a uma autonomia literária brasileira em relação a Portugal. Esta unidade está dividida em três tópicos. No final de cada um deles você encontrará atividades que o/a ajudarão a fixar os conhecimentos abordados. TÓPICO 1 – A IDADE MÉDIA TÓPICO 2 – A ILHA DE VERA CRUZ, A TERRA DE SANTA CRUZ: BRASIL TÓPICO 3 – OS JESUÍTAS: FONTE DE CONHECIMENTO E ALARGAMEN- TO DE NOSSA LITERATURA 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 A IDADE MÉDIA 1 INTRODUÇÃO Para a compreensão do argumento literário brasileiro é preciso esboçar um panorama histórico da Europa e de Portugal, no período que antecede a colonização do Brasil. Vale lembrar que, até o ano de 476, Roma foi capital do Império Romano, subjugado após esta data pelos germânicos. Este acontecimento serve de transição para o início da Idade Média. Já no final do século XIII, expande- se no Continente Europeu, principalmente na Itália, um movimento intelectual a partir do qual se desenvolveu a doutrina filosófica e uma nova concepção artística, o Humanismo. A base desse movimento descartava o pensamento servil proposto pela Igreja, valorizando os estudos clássicos e priorizando uma postura racional. 2 O CONTEXTO LITERÁRIO DA EUROPA MEDIEVAL A cultura da Idade Média refletia o momento histórico daquele período: as Cruzadas, a luta contra os mouros, os feudos, o poder espiritual do clero. O sistema econômico e político foi marcado pelo feudalismo, que consistia numa hierarquia rígida entre o suserano (aquele que possuía domínio sobre um feudo e de que dependiam outros feudos) e o vassalo que, mediante juramento àquele, dele se tornava dependente, rendendo-lhe obediência. Além da nobreza, havia ainda outra classe social: o clero, que, na época, detinha grande poder, por possuir grandes extensões de terras, além de dedicar-se também à política. No mundo medieval não havia liberdade religiosa e era a Igreja a guardiã da verdade divina, o que lhe outorgava o direito de controlara vida das pessoas e influenciar nas decisões políticas. O poder máximo da Igreja medieval ocorreu entre os anos de 1198 e 1216, época em que o papa era considerado figura importante dentro do cenário religioso e político, com poder de coroar reis, decidir sobre disputas territoriais e excomungar quem discordasse de suas decisões. No período em questão, padres, bispos e papas vendiam indulgências, acumulando cada vez mais riquezas. A Igreja associava a perdição da alma à realização dos desejos carnais, condenando, dessa maneira, o sensualismo e promovendo a castidade e a devoção a Deus como meio de conquistar a graça divina. Nessa perspectiva, a pena ao Inferno era o que as pessoas temiam e o teocentrismo era base do pensamento da Igreja Católica na Idade Média. UNIDADE 1 | A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA 4 TEOCENTRISMO: visão cristã de mundo baseada na ideia de um ser humano desgraçado e pecador e de Deus como ser perfeito, centro de todas as coisas. (SILVEIRA apud MOISÉS, 2004). UNI A influência da Igreja sobre a produção cultural foi determinante para que se expandisse a visão teocêntrica, cuja razão era iluminada pela revelação divina. Na Europa medieval a produção cultural era composta de textos teológicos, biografias de santos e histórias de cavalaria, o que refletia o domínio da Igreja e da nobreza sobre a sociedade. Os textos sagrados, as obras dos filósofos da Antiguidade, para não representarem qualquer ameaça ao poder da Igreja, eram reproduzidos nas abadias e mosteiros. É nesse contexto de proibição que nasce também o lirismo trovadoresco, aliado ao servilismo dos vassalos aos senhores feudais e dos fiéis a Deus, cuja concepção deu origem à literatura medieval: afirmação da submissão do trovador à sua dama ou do cavaleiro à sua donzela. “A lira trovadoresca é fundamentalmente uma lírica amorosa, que se assenta sobre uma rede específica de relações sociais. Transferem-se assim para o serviço da mulher aquelas atitudes e formas de subordinação que se estabeleciam antes entre o vassalo e o senhor.” A nomenclatura da canção de amor provençal é transportada para as relações feudais: a mulher é a senhora, o homem o seu servidor, “preza-se a generosidade e tem- se em pouco a avareza, estabelece-se entre o homem e a mulher um pacto de serviço e lealdade”. (VIEIRA, 1987, p. 367). UNI O trovador medieval consagrava o amor platônico, pois a dama era a criatura mais nobre e respeitável da criação, a mulher ideal, passava a ser a pessoa a quem compunha os seus versos líricos. Além do Trovadorismo, também se difundiram as novelas de cavalaria, originárias das narrativas de assuntos guerreiros em que o cavaleiro defendia o bem e vencia o mal. O cavaleiro medieval era concebido segundo os padrões da Igreja Católica. Era casto, fiel, dedicado, disposto ao sacrifício para defender a honra cristã. Esse herói feudal nos remete às Cruzadas, envolvido na defesa da Europa Ocidental contra os sarracenos e eslavos, inimigos da cristandade. A ideia de cavaleiro medieval opunha-se à do cavaleiro da corte, geralmente sedutor e envolvido em amores ilícitos. TÓPICO 1 | A IDADE MÉDIA 5 As novelas de cavalaria não apresentavam autoria e circulavam pela Europa como verdadeira propaganda das Cruzadas, para estimular a fé cristã e angariar o apoio das populações ao movimento. Eram tidas em alto apreço e foi muito grande a sua influência sobre os hábitos e os costumes da população da época. Ao final do século XIII o teocentrismo medieval cedeu lugar à valorização do homem e suas potencialidades. Este começa a controlar o seu destino e, a partir do Renascimento, passa a conceber uma visão de mundo antropocêntrica. O Renascimento não rompe com o mundo medieval, no entanto, é um período marcado pela circulação de ordem artística, cultural e científica. O homem passa a exercer sua capacidade de questionar o mundo, ou seja, a fazer uso da razão. A natureza passou a ser vista como obra e bondade divinas. Esse novo modo de ver o mundo surge nas obras literárias e artísticas, as quais contribuíram para a revolução estética. 3 A PRODUÇÃO LITERÁRIA DE UM PORTUGAL MEDIEVAL Portugal tornou-se uma nação independente na Idade Média em 1143 e, na Europa deste período, como já enfatizado, o homem vivia imerso no catolicismo. Nessa perspectiva, os movimentos relevantes foram marcados pela presença da Igreja e quem não seguisse os preceitos católicos estava à margem da sociedade. Portugal começava a afirmar-se como reino independente, embora ainda mantivesse laços econômicos, sociais e culturais com o restante da Península Ibérica. Lembre, caro/a acadêmico/a, que, conforme você estudou no Caderno de Literatura Portuguesa, as primeiras manifestações literárias de Portugal foram editadas em galego-português, quando o trovador Paio Soares Taveirós compõe a cantiga chamada A Ribeirinha. Aí ocorre o início da primeira escola literária portuguesa, o Trovadorismo. O lirismo trovadoresco antecede a prosa portuguesa. Desse modo, são dois períodos que marcam o surgimento da literatura portuguesa: o primeiro, lírico, caracterizado pela poesia das cantigas; e o segundo, a prosa, trazendo as novelas de cavalaria. O período trovadoresco da literatura portuguesa foi marcado pelo florescimento das chamadas cantigas, poemas criados com o objetivo de que fossem cantados, acompanhados por instrumentos musicais. Essas cantigas compreendiam as de amor e de amigo. Existiam ainda as cantigas do gênero satírico, de escárnio e as de maldizer. As novelas de cavalaria marcam a segunda etapa da literatura portuguesa do período medieval. Elas têm grande destaque enquanto obras de ficção escritas em prosa. Sua origem está nas canções de gesta, pois tratavam de aventuras de cavaleiros andantes. UNIDADE 1 | A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA 6 Um dos primeiros textos em prosa conhecidos em Portugal é a novela de cavalaria Amadis de Gaula, cujo modelo de cavaleiro era o herói apaixonado pela donzela. No texto são abordados temas como fidelidade à mulher amada, o desejo físico em flagrante oposição ao platonismo, o sentimentalismo e a timidez do herói, o amor cortês palaciano, as lutas e o ideal do guerreiro, o sensualismo evidente e o desejo carnal masculino e feminino. Outro gênero da época foram as crônicas historiográficas. Elas apresentam um panorama da sociedade lusitana, expondo a vida palaciana, suas contradições e vícios, o movimento dos trabalhadores nas aldeias, as festas urbanas, a decadência da aristocracia, dentre outros aspectos. Além da crônica histórica, outra contribuição foi a prosa didática, a qual se constitui principalmente de textos doutrinários compostos ou traduzidos pela nobreza, com temas religiosos e morais. Este tipo de literatura desenvolveu-se num período em que houve grande preocupação com a cultura. Príncipes deram ênfase à organização de bibliotecas e à escrita. Também se desenvolve a chamada Poesia Palaciana, escrita por nobres e para a nobreza, ressaltando seus usos, seus costumes na vida da corte. A produção literária portuguesa da Idade Média, como já enfatizamos, foi marcada pelo teocentrismo. Com o surgimento do movimento renascentista, o pensamento passa a ser diverso e tal fato é evidenciado também pela literatura, assunto que abordaremos no próximo tópico. 4 A EUROPA RENASCENTISTA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA Na Europa dos séculos XIV a XVI é latente a produção científica e artística. Toda essa intensificação no campo da arte e da ciência ficou conhecida como Renascimento ou Renascença. O berço do Renascimento foi a Itália. Mas, por que a Itália? Vamos recordar alguns fatos relacionados ao contexto dessa época, no intuito de melhor compreender a arte que ali se desenvolvia. A Itália possuía cidades nas quais as atividades comerciais, mesmo durante a Idade Média, eram intensas. Basta lembrar Veneza e Gênova, duas importantes cidades portuárias italianas. Elas mantinham um contato estreitocom os árabes e bizantinos por meio do comércio, fato este que ofereceu condições para que os italianos tivessem acesso às obras clássicas desses povos. Vale lembrar ainda que o Império Romano possuía a memória da cultura clássica, e o Renascimento buscou influência nessa cultura greco-romana. TÓPICO 1 | A IDADE MÉDIA 7 Caro/a acadêmico/a. O ato de patrocinar e investir em arte e cultura é conhecido como mecenato. O termo deriva do nome de um influente conselheiro do Império Romano, Caio Mecenas, que, com suas ideias, influenciou o então Imperador Otávio Augusto a sustentar a produção artística de poetas e intelectuais da época. Tal ideia tornou-se modelo a ser seguido e vários governos, no intuito de obter fama e glória, fomentavam produções artísticas. “Os principais mecenas da época do Renascimento cultural foram: Lourenço de Medici, famoso banqueiro italiano; Come de Medici, nobre banqueiro e político italiano; e Galeazzo Maria Sforza, duque de Milão”. (ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA DO BRASIL, [s.d.], p. 5870). UNI Outro aspecto a ser mencionado diz respeito ao Humanismo: pode-se dizer que ele pregava a pesquisa, a observação e a crítica. Foi um movimento intelectual com forte aversão ao princípio da autoridade. Para Sevcenko (1994), o Renascimento foi a colocação do Humanismo no plano concreto. Há que se considerar que, na Idade Média, os fenômenos naturais ou acontecimentos estariam atrelados a uma explicação originada nos desígnios divinos, o pensamento teocêntrico obtinha maior força e o poder, como vimos, advinha da Igreja. Com o Renascimento, ampliam-se e são reconhecidas novas formas de se pensar as expressões artísticas, as ciências e a política. Foi durante o movimento renascentista que ocorreu a disseminação do humanismo e pode ser definido como uma doutrina de caráter filosófico considerada como afirmação da independência, autonomia e libertação do espírito humano. O historiador Jacob Burckhardt (1818-1897) enfatiza que o humanismo coloca o homem no centro de todas as preocupações filosóficas, morais e artísticas. (ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA DO BRASIL, [s.d.], p. 5870). A partir do grande acúmulo de riquezas obtidas no comércio com o Oriente, formou-se uma poderosa classe de ricos mercadores, banqueiros e poderosos senhores. Estes, ou seja, príncipes, condes, bispos, dentre outros, em troca de reconhecimento, prestígio e status de nobreza, investiam grandes somas em dinheiro na arte. Sendo assim, artistas de várias localidades se dirigiam à Itália em busca de poderosos (mecenas) que financiassem suas obras. Apesar de o humanismo ligar-se intimamente ao Renascimento, ele não iniciou na Renascença, ou seja, as manifestações humanistas fizeram parte da Antiguidade Clássica, bem como do decorrer da Baixa Idade Média. (TOTA; LIMA, 2004). Podemos então afirmar que o Renascimento é a continuidade de um diálogo que se inicia na Idade Média. UNI UNIDADE 1 | A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA 8 A visão de mundo da burguesia sintoniza-se com a renovação, o Renascimento. A ideia da cultura medieval que se configurava pela religiosidade, pela interpretação dos fatos ligados a fenômenos da natureza não mais combinava com a classe burguesa em ascensão. Desse modo, o sucesso nos negócios dependia da observação, do raciocínio e do cálculo, e não da intervenção divina. Na Europa medieval, conforme já descrito, houve produção cultural, mas no Renascimento ocorreu uma significativa expansão. O mesmo foi dividido em três fases: “Trecento” (século XIV), “Quattrocento” (século XV) e “Cinquecento” (século XVI). Da primeira fase destacamos o poeta Francisco Petrarca, Giovanni Boccacio, e sua célebre obra, Decameron, e Dante Alighieri e A Divina Comédia. Petrarca, considerado o “Pai do Humanismo”, compôs inúmeras poesias líricas e odes, em dialeto italiano e na língua latina. Destas destacamos o soneto no qual o “eu” lírico explicita a relação entre o estado de espírito dos amantes, a beleza do dia e a natureza como referência. Obras como as de Petrarca constituíram a base para o desenvolvimento do Humanismo e serviram de inspiração para poetas e artistas de outros países da Europa. Além de cantar o amor entre os amantes na literatura, havia ainda preocupação com o destino do ser humano após a morte. Muitas eram as crônicas e lendas que descreviam os aspectos da vida eterna. Inspirado por essa tradição, o poeta Dante Alighieri dedicou-se à composição de uma das obras-primas da Literatura universal, a Divina Comédia. Considerado pelos italianos como o seu poeta maior, Alighieri viveu entre 1265 e 1321. O autor florentino colaborou com o surgimento de um movimento poético denominado Dolce Stil Nuovo. Duas rosas de amor, no Éden colhidas, No dia, quando Maio era nascente, De amante antigo e sábio alto presente Entre dois jovens foram repartidas. Com riso vago e frases comovidas De enamorar até um silvano horrente, E assim de um amoroso raio ardente Nossas faces ficaram acendidas. O sol não viu jamais um par tão brando – Num suspiro e num riso ele dizia – Os dois jovens amantes abraçando. Assim frases e rosas repartia, E o coração se alegra, recordando Ó feliz eloquência, ó doce dia! (PETRARCA, 1998, p. 32) TÓPICO 1 | A IDADE MÉDIA 9 A concepção do Dolce Stil Nuovo era “o poder do amor como mediador da sabedoria divina; comunicação direta entre a amada e o Reino de Deus; seu poder de conferir fé, conhecimento e renovação interior ao amante; e finalmente, a restrição explícita de tais dons aos que amam”. (AUERBACH, 1997, p. 43). NOTA Esse estilo “[...] é quase sinônimo de poesia de amor”. (CARPEAUX, 1959, p. 332). Tal concepção deu origem a um movimento poético voltado a celebrar os dotes morais da amada e Dante foi o representante maior da poesia stilnuovista, uma expressão idealizada, transcendental, tal qual convinha a um amor por um ser quase celestial. Para compor a Divina Comédia, Dante procurou unir a história da Igreja do seu tempo, a política de Florença e a trajetória do ser humano, juntamente com as suas concepções filosóficas, religiosas e literárias. Poema épico, com propósitos filosóficos, teológicos e morais, o poema poderia ser a afirmação do modo medieval de ver o mundo sob vários aspectos. Escrito num período de catorze anos (1307-1321), sintetiza a visão de Dante quanto ao mundo das almas – uma fantástica viagem pelos três reinos do além- túmulo – Inferno, Purgatório e Paraíso, dividida em três partes, com trinta e três cantos cada uma. O Inferno possui um canto a mais, que serve de introdução ao poema. No total, são cem cantos, com 14.233 versos hendecassílabos, encadeados por rimas segundo o esquema ABA, BCB, CDC. Esse encadeamento pode ser visualizado a partir dos primeiros versos e se repete ao longo de toda a obra: A meio caminhar de nossa vida fui me encontrar em uma selva escura: estava a reta minha via perdida. Ah! Que a tarefa de narrar é dura essa selva selvagem, rude e forte que volve o medo à mente que a figura. De tão amarga, pouco mais lhe é a morte, mas, tratar do bem que enfim lá achei, direi do mais que me guardava a sorte. (ALIGHIERI, 2005, p. 25) UNIDADE 1 | A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA 10 Observa-se que o poema possui uma simetria matemática baseada no número três, cujas estrofes, com três versos cada uma, rimam da forma encadeada, formando, ainda, a terza rima, ou seja, a linha central de cada terceto controla as duas linhas marginais do terceto seguinte. A terza rima dá uma impressão de movimento, ao fazer com que cada terceto antecipe o som que irá ecoar duas vezes no terceto seguinte. Com a terza rima, “Dante encontrou um veículo privilegiado para a progressão de extensas sequências narrativas ou expositivas, pelo peculiar encadeamento que proporciona a cada tercina com as que antecedem e as que lhes sucedem”. (MOURA, 2005, p. 11). UNI Escrita predominantemente em dialeto florentino, revelando o desejo do poeta de que a língua toscanapassasse a ser reconhecida como língua oficial, “[...] a Comédia constitui um ponto terminal e um divisor de águas” (AUERBACH, 1997, p. 119), atribuindo ao poeta a paternidade da língua italiana, da mesma forma que o mesmo dá início à literatura italiana. O poeta descreveu a geografia e a população do “outro mundo” e deu forma sensível às ideias religiosas; o escritor foi geógrafo e historiador do Inferno, Purgatório e Paraíso. A Comédia é o relato da viagem e do testemunho da salvação de Dante; é, também, a parábola para qualquer cristão perdido no pecado. O personagem se encontrava no meio do caminho de sua vida, vendo-se perdido em uma floresta escura, que poderia simbolizar um período de entrega a uma vida mundana, ou seja, havia deixado de seguir o caminho dito certo. A viagem do peregrino é acompanhada por Virgílio, que simboliza o intelecto, a razão, a sabedoria moral, que o guiou para fora da selva escura. Com Virgílio, o personagem encontra a possibilidade de elevar-se da “selva selvagem”. Perdido no pecado, empreende a caminhada através do além-túmulo, ao lado do guia, e é nessa condição que o mestre conduz o viajante pelo Inferno e depois pelo Purgatório, representando a razão que é, na concepção aristotélica adotada por Dante, condição da Virtude. (MAURO, 2005). O poeta, ao narrar em primeira pessoa, mobilizou em seu poema as suas virtudes expressiva e imaginativa, como escreve Anatol Rosenfeld: [...] é perfeitamente possível que haja referência indireta a vivências reais; estas, porém, foram transfiguradas pela energia da imaginação e da linguagem poética que visam a uma expressão “mais verdadeira”, mais definitiva e mais absoluta. (1989, p. 22). Ainda segundo o que revela Contini, “no ‘eu’ de Dante convergem o homem em geral, sujeito do viver e do agir, e o indivíduo histórico, titular de uma experiência determinada em um certo espaço e um certo tempo”. (CONTINI, 1999, p. 35). TÓPICO 1 | A IDADE MÉDIA 11 Especialmente no Inferno, o personagem assume em si toda a experiência humana, narrando sua perdição, conversando com as almas e vendo toda a espécie de sofrimento e tormento que se apresenta como caminho a ser percorrido para encontrar a verdade. O narrador não é conhecedor do drama das almas e, na medida em que faz sua peregrinação, passa a compreender os fatos através das imagens que encontra, dos acontecimentos que suscitam sentimentos de piedade, temor, dúvidas que inquietam e instigam seu espírito. Segundo o crítico literário Todorov, é a chamada “visão de fora da narração” (1971, p. 237), que ocorre quando o narrador descreve unicamente o que presencia e ouve. Nessa perspectiva, a narrativa parece residir na firmeza do caráter do personagem, ao lidar com algumas das questões mais fundamentais da condição humana. Diante dos desafios, ele segue, com convicção, sua crença na existência da vida eterna e sugere como finalidade e prioridade de nossa vivência terrena a busca da união com Deus, por meio da purificação. Com gradualidade, nos revelou o seu crescimento espiritual e sua maturação, até a conquista de uma condição correta para encontrar o caminho rumo à salvação.. A Divina Comédia constitui uma doutrina da humanidade, um código moral, cuja obediência aos seus preceitos levaria o homem à conquista do Paraíso. Dessa maneira, o autor exalta e justifica as crenças do catolicismo e, como forma de castigo, destina o homem pecador ao Inferno, e ao homem virtuoso oferece como prêmio alcançar o Paraíso. Quando conhecemos o poema inteiro, reconhecemos quão engenhosa e convincentemente Dante operou para se enquadrar nos homens reais, em seus contemporâneos, amigos, inimigos, personagens históricas recentes, figuras lendárias e bíblicas e figuras da ficção antiga. (ELIOT, 1989, p. 77). O seu sacro poema é, pois, uma obra impregnada de ideias e fenômenos que se propagam ao longo do tempo: é isto que possibilitou o alistamento de Dante como cidadão da Literatura e da História. Esses toscanos exerceram forte influência sobre as literaturas de toda a Europa. Daí a dizer que são considerados precursores do Renascimento. Em meados de 1300, segundo Otto Maria Carpeaux (1959, p. 329), a “Itália já possuía uma literatura moderna, apoiada no renascimento das letras antigas, enquanto o resto da Europa se encontrava ainda nas trevas medievais”. Ainda segundo o mesmo, a gente europeia passou a admirar a renascença italiana que teria “[...] criado o homem moderno e a civilização moderna”. (Op.cit., p. 329). Você se lembra dos mecenas? Aqueles que patrocinavam a arte? Então, do segundo período, “quattrocento” (século XV), merece destaque o fato de a família Medici apadrinhar os escritores, tornando, assim, Florença o principal centro renascentista. UNIDADE 1 | A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA 12 Quanto à terceira fase, o “cinquecento” (século XVI), pode-se destacar Nicolau Maquiavel, pela obra O Príncipe, e Desidério Erasmo de Rotterdam, com O Elogio da Loucura, na qual criticou a sociedade europeia: satirizava os costumes da época e inflava o povo a perceber a necessidade de reformar a Igreja Católica. Na França, o Renascimento teve importantes expoentes: Rabelais (1490- 1553), autor de Gargantua e Pantagruel; Montaigne (1533-1592), autor de estudos intitulados Ensaios. Na Inglaterra, um dos expoentes do Renascimento foi Thomas More (1475-1535), autor de Utopia. Nessa obra é descrita a vida da população de uma ilha imaginária. Outro escritor que merece destaque é o filósofo Francis Bacon (1561-1626), autor de Novun Organun. William Shakespeare, autor de peças teatrais como Hamlet e Otelo, também se consagrou no Renascimento. Na Alemanha, a pintura renascentista imortalizou nomes como Hans Holbein (1497-1553) e Albert Dürer (1471-1528). Na Espanha, a principal figura do Renascimento foi Miguel de Cervantes, autor de Dom Quixote de La Mancha, obra cujo tema e enredo satirizam a cavalaria medieval. Caro/a acadêmico/a: Leonardo da Vinci, autor de Mona Lisa e Santa Ceia, e de estudos que anteciparam importantes inventos e conhecimentos técnico-científicos, tais como o avião, o helicóptero e o submarino, também fez parte do Renascimento. Outro artista italiano foi Michelangelo, que projetou a cúpula da Basílica de São Pedro (em Roma) e pintou afrescos. O Juízo Final e A Criação de Adão são algumas das cenas da Capela Sistina de autoria deste gênio. FIGURA 1 – A CRIAÇÃO DE ADÃO FONTE: Disponível em: <www.wga.hu/index1.html.>. No ABC index: Michelangelo Buonarroti>Frescoes on the Sistine Cell>. Acesso em: 24 jan. 2011. Além de pintor, Michelangelo foi também escultor de notáveis obras, como a Pietà. TÓPICO 1 | A IDADE MÉDIA 13 FIGURA 2 – PIETÀ FONTE: Disponível em: <www.casthalia.com.br/a.../michelangelo_teto. htm>. Acesso em: 24 jan. 2011. No campo científico destacaram-se Nicolau Copérnico, Galileu Galilei e Giordano Bruno. A geografia é transformada devido aos conhecimentos advindos do descobrimento de novos continentes. No campo da tecnologia, destaque-se a invenção da imprensa e da pólvora. NOTA Nunca é demais lembrar que, dentre as características que fazem parte desse movimento renascentista, encontramos: uma sociedade que admirava a beleza e tentava reproduzi-la nas obras de arte; um tempo no qual a razão passou a ser a base do conhecimento e um homem capaz de criar e explicar os fenômenos que o rodeiam, ao mesmo tempo em que passa a valorizar os prazeres sensoriais. Ligada a estes aspectos, destaca-se também uma sociedade com um objetivo em comum, qual seja, sorver da Antiguidade greco-romana a cultura e a estética. Então, os artistas renascentistas passaram a ler e apreciar cada vez mais as obras dos gregos e romanos, na tentativa de imitá-los. Tal fato renovou não apenas as artes plásticas, a literatura, a arquitetura, mas a organização política e econômica daquelas sociedades dos séculos XIV a XVI. E o Brasil? Antes de falar sobre o Renascimento em nosso país,deter-nos- emos um pouco no Renascimento em Portugal. As ideias renascentistas portuguesas eram, como não poderiam deixar de ser, as mesmas que as de toda a Europa. Lembre-se de que Sá de Miranda, autor que você estudou na disciplina de Literatura Portuguesa, passou um período na Itália. Em seu retorno, aproximadamente em 1527, trouxe na bagagem não somente a estética clássica harmoniosa e culta, que vigorava naquele país renascentista, mas as novas concepções e ideias. UNIDADE 1 | A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA 14 Dentre a produção literária portuguesa desse período podemos destacar o teatro de Gil Vicente. Estudiosos contemporâneos dividem os textos vicentinos em: autos de moralidade, autos cavaleirescos e pastoris, farsas, alegorias de temas profanos. Era um tipo de teatro popular, por causa das suas características consideradas fundamentais – temas, linguagem utilizada e atores. Antes de Gil Vicente não havia teatro em Portugal, mas encenações de caráter religioso. Nas suas composições, Vicente procurou manter certa proximidade às influências medievais, com um teatro didático-moralizante. Se, em parte, focalizava as virtudes cristãs, procurava também não perder de vista a sociedade lusitana da época, trazendo o humor e senso crítico. Valendo-se de uma simplicidade que lhe era peculiar, Gil Vicente procurava passar ao público uma visão crítica da sociedade. O elemento básico para a composição das peças era a vida diária, a vida real das pessoas e a doutrina cristã. Mas, sem dúvida, a maior figura do Renascimento em Portugal foi Luís Vaz de Camões. O poeta lírico e épico. Camões perpetuou e eternizou o povo português ao elaborar Os Lusíadas, publicado em 1572. O poema relata a história de Portugal desde sua formação até a descoberta do caminho para as Índias, por Vasco da Gama. Na narrativa em questão aparecem a mitologia pagã e a visão cristã, os sentimentos sobre a guerra e o império, o desejo da aventura. Caro/a acadêmico/a, você já estudou este poeta e sua epopeia no Caderno de Literatura Portuguesa e pôde perceber que Camões funde elementos épicos e líricos. Nela estão presentes duas importantes vertentes do Renascimento português: as expedições ultramarinas e o Humanismo. E foi em uma dessas expedições ultramarinas que as terras brasileiras foram “descobertas”. O Brasil não foi imediatamente explorado. Para os portugueses, interessavam as colônias orientais. Foi aproximadamente em 1532 que se iniciou a colonização propriamente dita e com ela também o processo que foi o germe para a literatura brasileira. Fatos estes que serão abordados no próximo tópico. 15 Neste tópico, você viu que: • No mundo medieval não havia liberdade religiosa e era a Igreja a guardiã da verdade divina, o que lhe outorgava o direito de controlar a vida das pessoas e influenciar nas decisões políticas. O teocentrismo era a base do pensamento da Igreja Católica na Idade Média. Além disso, o sistema econômico e político era marcado pelo feudalismo. • Na Europa medieval a produção cultural era composta de textos teológicos, biografias de santos e histórias de cavalaria, o que refletia o domínio da Igreja e da nobreza sobre a sociedade. • A lira trovadoresca é fundamentalmente uma lírica amorosa, na qual o poeta trovador consagra o amor platônico: a dama como criatura mais nobre e respeitável da criação, uma mulher ideal. • Na Europa medieval também se difundiram as novelas de cavalaria, originárias das narrativas de assuntos guerreiros, em que o cavaleiro defendia o bem e vencia o mal. • O teocentrismo medieval começa a ceder lugar à visão de mundo antropocêntrica. • Na Europa dos séculos XIV a XVI é latente a produção científica e artística, patrocinada pelos mecenas. Toda essa intensificação no campo da arte e da ciência ficou conhecida como Renascimento ou Renascença. • O Humanismo pregava a pesquisa, a observação e a crítica. Foi um movimento intelectual com forte aversão ao princípio da autoridade. A base do movimento descartava o pensamento servil proposto pela Igreja, valorizando os estudos clássicos e priorizando uma postura racional. • O Renascimento foi a realização do Humanismo no plano concreto. • A visão de mundo da burguesia sintoniza-se com a renovação, o Renascimento. Sendo assim, a interpretação dos fatos ligados a fenômenos da natureza, bem como as questões ligadas à religiosidade, não mais combinavam com a classe burguesa em ascensão. • A Renascença, no que concerne aos movimentos artísticos, foi dividida em três fases: “Trecento” (século XIV), “Quatrocento” (século XV) e “Cinquecento” (século XVI). RESUMO DO TÓPICO 1 16 • Destacam-se da primeira fase, o “trecento”, artistas como Petrarca e Dante Alighieri, que, além de cantarem o amor entre os amantes, escreviam também sobre o destino do ser humano após a morte. Foi Dante quem escreveu uma das obras-primas da literatura universal, a Divina Comédia, que relata aspectos da vida eterna e, por isso, consagrou-se como o maior poeta italiano. • Do segundo período, o “quattrocento”, merece destaque o fato de que Florença tornou-se o principal centro renascentista. • Quanto à terceira fase, o “cinquecento” (século XVI), vários foram os artistas que se destacaram: Nicolau Maquiavel, Erasmo de Rotterdam, Rabelais, Montaigne, Thomas More, William Shakespeare, Miguel de Cervantes, Leonardo da Vinci, dentre outros. • Dentre as características que fazem parte do Renascimento, destacamos: uma sociedade que admirava a beleza e tentava reproduzi-la nas obras de arte; a razão, que passou a ser a base do conhecimento; um homem capaz de explicar os fenômenos que o rodeavam; artistas que absorvem da Antiguidade greco- romana a cultura e a estética e, então, passaram a ler e apreciar cada vez mais as obras dos gregos e romanos, na tentativa de imitá-los. • A maior figura do Renascimento em Portugal foi Luís Vaz de Camões. O poeta lírico e épico perpetuou e eternizou o povo português ao elaborar Os Lusíadas, publicado em 1572. • Na obra de Camões estão presentes duas importantes vertentes do Renascimento português: as expedições ultramarinas e o Humanismo. 17 1 As novelas de cavalaria e as crônicas historiográficas marcam a literatura portuguesa do período medieval. Elabore algumas considerações sobre elas, procurando destacar suas diferenças. 2 Elenque alguns fatos que nos ajudam a entender o porquê de a Itália ser considerada berço do Renascimento. 3 Na Idade Média, os fenômenos naturais ou acontecimentos estariam atrelados a uma explicação originada nos desígnios divinos. Com o Renascimento, ocorrem mudanças no modo de conceber tais acontecimentos. Aponte algumas destas mudanças. AUTOATIVIDADE 18 19 TÓPICO 2 A ILHA DE VERA CRUZ, A TERRA DE SANTA CRUZ: BRASIL UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO A madeira (o pau-brasil), que atraiu a atenção dos portugueses para a nova terra e da qual extraíam uma tinta vermelha, tinha razoável mercado na Europa. Para sua exploração, os portugueses não movimentaram grande volume de capital, sendo assim, aqui estabeleceram pequenas fortificações, precárias, para proteção da costa e envio da madeira. Sem o estabelecimento de uma sociedade, a vida cultural sofreria de escassez e descontinuidade. Esse período, denominado “Quinhentismo”, apresentou algumas manifestações, escritos com o objetivo de informar e de catequizar. Vejamos, a seguir, o contexto que os originou e, assim, descrever um pouco do que aconteceu no Brasil entre 1500 e 1600 no âmbito da arte literária. 2 A COLONIZAÇÃO DA NAÇÃO BRASILEIRA Para delinear um estudo sobre a literatura brasileira é preciso considerar o início da colonização. Com a chegada dos portugueses ao Brasil, inicia-se a fase colonial e após os primeiros contatos com os indígenas, por volta de 1530, Portugal, efetivamente, inicia a colonização das terras do Novo Mundo. Tal intento ocorre, pois o comércio com as Índias já não era mais tão lucrativo, devido à concorrênciade outros países que também lá chegaram. Além disso, a segurança da Colônia estava ameaçada. Portugal temia perder as terras para os invasores corsários estrangeiros. O sentido da colonização deve ser entendido da seguinte forma: a Colônia fica sob o controle de Portugal, e da Colônia serão extraídos os produtos e metais preciosos enviados à Metrópole. Acontece então a extração do pau-brasil, o cultivo da cana-de-açúcar e o envio de metais preciosos à Corte. A passagem de um Brasil colonial para um Brasil independente ocorre por um “[...] lento processo de aculturação do português à terra e aos nativos, deixando de ser Colônia quando passa a ser sujeito da sua história”. (BOSI, 1992, p. 13). UNIDADE 1 | A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA 20 2.1 A LITERATURA DE INFORMAÇÃO Antes de iniciar a discussão sobre os escritos da Colônia, é interessante refletir sobre as considerações estabelecidas por Antonio Candido (1959). O estudioso distingue manifestação literária de literatura propriamente dita. Segundo o crítico, a literatura é um conjunto de obras que pressupõe em comum temas, língua e imagens, características estas que dão a conhecer “as notas dominantes duma determinada fase” e promovem uma continuidade literária; para tanto, três elementos são indispensáveis: [...] a existência de um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes de seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive; um mecanismo transmissor (de modo geral uma linguagem transmitida em estilos) que liga uns aos outros. (CANDIDO, 1959, p. 26). Sem este conjunto de elementos não há tradição, os escritos não são representativos de um sistema. No entanto, são escritos significativos e possuem valor. Segundo o estudioso, os escritos em terras brasileiras que vão do século XVI ao XVIII são, pois, manifestações literárias importantes para a formação da literatura brasileira. Bosi assim se expressa sobre os textos informativos: “[...] a pré-história das nossas letras interessa como reflexo da visão do mundo e da linguagem que nos legaram os primeiros observadores do país.” (1992, p. 15). Os primeiros textos, de modo geral, eram descrições sobre a qualidade da terra, as possibilidades do que poderia ser explorado, as dificuldades locais, a fauna, a flora, a vida dos nativos e os primeiros encontros destes com os portugueses. Sua função era comunicar, orientar, relatar, enfim, dar a conhecer à Coroa o que se passava nas expedições ultramarinas. Essa informação expressa o modo de noticiar as grandes navegações de Portugal, Espanha e de tantas outras expedições – um gênero muito difundido no século XV, conhecido como literatura de viagem. Em solo brasileiro, desses textos comumente chamados de literatura informativa, destacamos: • A Carta do Descobrimento – Pero Vaz de Caminha A el-rei D. Manuel, relatando a chegada dos portugueses e os primeiros contatos com a natureza e os índios. Escrita em 1500. • O Tratado da Terra do Brasil e a História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos de Brasil – Pero de Magalhães Gândavo. Escrito por volta de 1576. • Fernão Cardim chega em 1584 ao Brasil e percorre capitanias e povoações. Descreve a natureza – fauna e flora – e os indígenas. Ele o faz sob o título Tratado da Terra e da Gente do Brasil. TÓPICO 2 | A ILHA DE VERA CRUZ, A TERRA DE SANTA CRUZ: BRASIL 21 • O Diário de Navegação de Pero Lopes e Souza, escrivão do primeiro grupo colonizador, o de Martim Afonso de Souza (1530). • O Tratado Descritivo do Brasil (1587), de Gabriel Soares de Souza. 3 A CARTA DE CAMINHA Quando a corte portuguesa aqui chegou, encontrou uma natureza exuberante, os índios e seus costumes, fatos que deveriam ser comunicados ao rei D. Manuel. Pero Vaz de Caminha era o escrivão da frota incumbido de acompanhar a expedição de Pedro Álvares Cabral e relatar o que nela ocorria. Caminha, tão logo aportou na nova terra, comunicou o fato ao rei. O teor da carta, considerada a certidão de nascimento do Brasil, permite-nos perceber as expectativas dos portugueses em relação ao Brasil. Para tanto, Caminha faz uso da tipologia descritiva. Lembre, caro/a acadêmico/a, que fazer uso da linguagem para representar a imagem de alguma cena, seres ou objetos é adotar o ato de descrever. Os textos que possuem como estratégia predominante a descrição oferecem a possibilidade de visualizar o cenário, as personagens, os objetos. Para tanto, o escritor emprega a linguagem denotativa. Além disso, na organização de uma descrição, quem escreve capta a realidade a partir de um ponto de vista, organizando as ideias no intuito de informar o leitor, convencê-lo, transmitir impressões, sentimentos e emoções. No caso da carta endereçada à corte portuguesa, Caminha relata com objetividade e clareza, no intuito de atender aos interesses da Coroa. Enumera algumas das características físicas dos índios através de adjetivos como “avermelhados”, “rostos e narizes bem feitos”, “cabelos corredios”: “A feição deles era parda, algo avermelhada; de bons rostos e bons narizes. Em geral são bem feitos, andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de cobrir ou mostrar suas vergonhas, e nisso são tão inocentes como quando mostram o rosto”. (CAMINHA, 1999, p. 19). Perceba que a beleza física e a nudez impressionaram os portugueses. Os adornos indígenas também inquietam e são descritos com riqueza de detalhes: Ambos traziam o beiço de baixo furado e metido nele um osso verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita a modo de roque de xadrez. E trazem-no ali encaixado de sorte que não os magoa, nem lhes põe estorvo no falar, nem no comer e beber. (Op.cit., p. 19-20). Por vezes, Caminha atenua a descrição do selvagem com os conectivos “porém”, “contudo”, conforme o fragmento: UNIDADE 1 | A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA 22 Eles, porém, com tudo, andam muito bem curados e muito limpos e naquilo me aprece ainda mais que são como aves ou alimárias monteses que lhes faz o ar melhor pena e melhor cabelo que às mansas, porque os corpos seus são tão limpos e tão gordos e tão formosos, que não pode mais ser. E isto me fez presumir que não têm casas em moradas em que se acolham. E o ar, a que se criam, os faz tais. (Op.cit., p. 43-44). A Carta é, sem dúvida, fonte de pesquisa tanto da gente quanto das terras do além-mar. Percebemos na introdução e ao final do relato a relação de subordinação à Coroa, patrocinadora das expedições marítimas: “Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância por boa vontade”. (Op.cit., p. 11). “Beijo as mãos de Vossa Alteza”. (Op.cit., p. 62). Caminha permeia a carta significativamente com reverências ao rei, à Igreja e ao capitão. Apesar de toda essa hierarquização, sugere qual deveria ser a principal preocupação da Coroa, qual seja, focar a atenção ao povo indígena: “Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar”. (CAMINHA, 1999, p. 61). Ao longo da narração são relatados encontros entre os indígenas e os portugueses. A comunicação se estabelece através da linguagem não verbal, como observa Pero Vaz de Caminha: O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, aos pés uma alcatifa por estrado; e bem vestido, com um colar de ouro, mui grande, ao pescoço. E Sancho de Tovar, e Simão de Miranda, e Nicolau Coelho, e Aires Corrêa, e nós outros que aqui na nau com ele íamos, sentados no chão, nessa alcatifa. Acenderam-se tochas. E eles entraram. Mas nem sinal de cortesia fizeram, nem de falar ao Capitão; nem a alguém. Todavia um deles fitou o colar do Capitão, e começou a fazer acenos com a mão em direção à terra, e depois para o colar, comose quisesse dizer-nos que havia ouro na terra. E também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal, como se lá também houvesse prata! Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como se os houvesse ali. (1999, p. 21). Tais acenos interessaram sobremaneira os portugueses, interpretados como indicação de riquezas que poderiam ser exploradas na Terra de Vera Cruz. Outros trechos da Carta dão a entender que existe ouro em terras brasileiras. É descrita uma provável permuta proposta pelos indígenas, uma troca de objetos de adorno dos portugueses por ouro: Viu um deles umas contas de rosairo, brancas; acenou que lhas dessem e folgou muito com elas e lançou-as ao pescoço e depois tirou-as e embrulhou- as no braço; e acenava para terra e então para as contas e para o colar do capitão, como que dariam ouro por aquilo. (Op.cit., p. 22). TÓPICO 2 | A ILHA DE VERA CRUZ, A TERRA DE SANTA CRUZ: BRASIL 23 O escambo começaria incidindo sobre diversos objetos. Os contatos se intensificaram e com eles a familiaridade: “Tudo era, de certa maneira, pautado pelo toma-lá-dá-cá, mesmo se o prazer de convívio se acrescentava à avidez da troca”. (SEABRA, 2000, [s.p.]). Ao capitão da expedição interessa descobrir se existia ouro e tentou obter, através dos gestos, informações precisas acerca da existência ou não do metal precioso, questionando um velho indígena: E depois foi o Capitão para cima, ao longo do rio, que anda sempre em frente da praia, e ali esperou um velho que trazia na mão uma pá de almadia; falo, estando o Capitão com ele, perante nós todos, sem nunca ninguém o entender, nem ele a nós, sobre as coisas que a gente lhe perguntava de ouro, que nós desejávamos saber se o havia na terra. (CAMINHA, 1999, p. 39-40). Nenhum vestígio, a presença de ouro ainda era enigmática, como constatou Pero Vaz de Caminha ao final da Carta: “[...] até agora não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem nenhuma cousa de metal, nem de ferro: nem lho vimos.” (1999, p. 61). Caminha acompanha as ações dos índios e europeus, as reações e atitudes de cada grupo, chegando a perceber as emoções que o contato desperta em ambos. No entanto, é preciso atentar para a relação complexa que se tece, a comunicação se estabelece de várias formas, mas também a alienação, própria de trocas frequentemente desiguais, como as que se desenvolveram entre povos, civilizações e culturas estabelecidas pelas descobertas. Pero Vaz de Caminha (1450?-1500) é designado escrivão da feitoria de Calicute, na Índia. Segue com Cabral, em 1500, a caminho do Brasil. Quando Cabral chegou ao Brasil, cumpre sua missão de contar os feitos ao Rei e, em seguida, parte para a Índia, onde morreu no final do mesmo ano nas lutas entre portugueses e muçulmanos. A Carta, considerada o mais importante documento sobre o início da história do Brasil, ficou guardada nos arquivos da Torre do Tombo por mais de três séculos, sendo divulgada pela primeira vez em 1817, no livro Corografia Brasileira, escrito pelo padre Aires do Casal, fato que corroborou para esclarecer várias questões inerentes às terras recém-conquistadas. UNI Além de Caminha, outros viajantes também fizeram relatos sobre o Brasil. Pero Magalhães Gândavo escreveu a História da Província de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil. No Prólogo informa ao leitor o motivo que o levou a escrever sobre a Província: “A causa principal que me obrigou a lançar mão da presente historia, e sair com ella a luz, foi por não haver até agora pessoa que a emprendesse, havendo já setenta e tantos annos que esta Provincia he descoberta.” (GÂNDAVO, 1980, [s.p.]). UNIDADE 1 | A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA 24 Mas para que nesta parte magoemos ao Demonio, que tanto trabalhou e trabalha por extinguir a memoria da Santa Cruz e desterra-la dos corações dos homens, medeante a qual somos redimidos e livrados do poder de sua tirania, tornemos-lhe a restituir seu nome e chamemos- lhe Provincia de Santa Cruz, como em principio (que assi o amoesta tambem aquelle illustre e famoso escritor João de Barros na sua primeira Década, tratando deste mesmo descobrimento) porque na verdade mais he destimar, e melhor soa nos ouvidos da gente Christã o nome de hum pao em que se obrou o misterio de nossa redençam que o doutro que nam serve de mais que de tingir pannos ou cousas semelhantes. (1980, [s.p.]). No trecho a seguir, extraídos do Capítulo V, intitulado: das plantas, mantimentos e fruitas que ha nesta província, Gândavo faz referências às qualidades das frutas aqui existentes: São tantas e tam diversas as plantas, fruitas, e hervas que ha nesta Província [...] Primeiramente tratarei da planta e raiz de que os moradores fazem seus mantimentos que la comem em logar de pão. A raiz se chama mandioca, e a planta de que se gera he de altura de hum homem pouco mais ou menos. (1980, [s.p.]). [...] Huma planta se da támbem nesta Provincia, que foi da ilha de Sam Thomé, com a fruita da qual se ajudam muitas pessoas a sustentar na terra. Esta planta he mui tenra e nam muito alta, nam tem ramos senam humas folhas que serão seis ou sete palmos de comprido. A fruita della se chama bananas. Parecem- se na feição com pepinos, e crião-se em cachos: alguns delles ha tam grandes que tem de cento e cincoenta bananas pera cima, e muitas vezes he tamanho o peso della que acontece quebrar a planta pelo meio. Como são de vez colhem estes cachos, e dali a alguns dias amadurecem. Depois de colhidos cortão esta planta porque nam frutifica mais que a primeira vez: mas tornam logo a nascer della huns filhos que brotam do mesmo pé, de se fazem outros semelhantes. Esta fruita he mui sabrosa, e das boas, que ha na terra: tem huma pelle como de figo (ainda que mais dura) a qual lhe lanção fora quando a querem comer: mas faz dano à saude e causa fevre a quem se desmanda nella“. (1980, [s.p.]). No Capítulo I, lamenta o fato da mudança de nome de Terra de Santa Cruz para Brasil. Segundo Gândavo, tal acontecimento é obra do Demônio e, para derrotar trabalho tão ardiloso, sugere: TÓPICO 2 | A ILHA DE VERA CRUZ, A TERRA DE SANTA CRUZ: BRASIL 25 Há na obra descrição da fauna, flora, dos costumes indígenas, seus ritos e as guerras entre os povos nativos. Ao que parece, o autor assume uma postura negativa, uma vez que compara os costumes dos aborígenes aos padrões culturais e religiosos do povo português. A respeito da língua tupi, declara: A lingoa de que usam, toda pela costa, he huma: ainda que em certos vocabulos differe n’algumas partes; mas nam de maneira que se deixem huns aos outros de entender: e isto até altura de vinte e sete grãos, que dahi por diante ha outra gentilidade, de que nós nam temos tanta noticia, que falam já outra lingoa differente. Esta de que trato, que he ageral pela costa, he mui branda, e a qualquer nação facil de tomar. Alguns vocabulos ha nella de que nam usam senam as femeas, e outros que nam servem senam pera os machos: carece de tres letras, convem a saber, nam se acha nella F, nem L, nem R, cousa digna despanto porque assi nam têm Fé, nem Lei, nem Rei, e desta maneira vivem desordenadamente sem terem alem disto conta, nem peso, nem medido. (1980, [s.p.]). Gabriel Soares de Souza também escreveu sobre a colônia. Seu Tratado Descritivo do Brasil é fonte de informações. Tal qual Gândavo e Caminha, o objetivo é o de informar à Metrópole sobre o que a Colônia poderia oferecer. Segundo Bosi, “[...] percorre toda a fauna e a flora da Bahia fazendo um inventário de quem vê tudo entre atento e encantado”. (1992, p. 21). Os escritos que relatam o reconhecimento de um novo espaço respondem à necessidade de revelar geograficamente e socialmente a nova terra a Portugal e à Europa em geral. Revelam um maravilhar-se diante dessa nova paisagem e dos nativos: E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas, pouco mais ou menos.E dali avistamos homens que andavam pela praia, uns sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos que chegaram primeiro. Então lançamos fora os batéis e esquifes. E logo vieram todos os capitães das naus a esta nau do Capitão-mor. E ali falaram. E o Capitão mandou em terra a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou a ir- se para lá, acudiram pela praia homens aos dois e aos três, de maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, já lá estavam dezoito ou vinte. Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel. E Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os depuseram”. (CAMINHA, 1999, p. 16). Além dessa admiração diante da beleza, são exploradas comparações com o paraíso. Américo Vespúcio, cartógrafo e geógrafo, membro da primeira expedição enviada por D. Manuel em 1501, para explorar o litoral brasileiro, em seus escritos relata a beleza da gente nativa e ainda compara o “novo mundo” ao paraíso terrestre: “Questa terra é piena, preso al paradiso terrestre”. (VESPÚCIO apud COUTINHO, 2004a, p. 247). UNIDADE 1 | A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA 26 Esse lugar ideal, paradisíaco, também é tema do escritor Thomas More, já citado como representante da terceira fase do Renascimento. Sua obra, Utopia, publicada em 1516, é marcada pela descrição de um lugar, uma ilha na qual os homens vivem em sistema de igualdade, acima das diferenças de classes, um paraíso. Explorar dimensões míticas culturais é inaugurado por Erasmo, em Elogio da Loucura, em 1508. Sucessores como Montaigne, Rebelais e Daniel Defoe, ao dar vazão a estes escritos, se alargam na descrição física e comportamento do elemento humano, sem deixar de lado o paradisíaco, projetam e ao mesmo tempo provocam o interesse do “Velho Mundo” sobre o “Novo Mundo”. As palavras de Vespúcio e Caminha aparecem em Gândavo e Anchieta e ecoam em Nóbrega, explorando um jardim, bosque de frutos viçosos em uma terra paradisíaca, “de tal maneira graciosa, que querendo aproveitá-la, dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem”. (CAMINHA, 1999, p. 61). São informações preciosas pela clareza e realismo com que descrevem essa visão edênica chamada Brasil. E dentre outras características, podemos destacar a exaltação de tudo o que fosse pitoresco e exótico. Informações como as descritas foram frequentes no século XVI; paralelamente a estas, aparecem os escritores portugueses jesuítas. Estes revelam, além de ricas informações, uma intenção catequética. É o que veremos a seguir. 27 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você, viu que: • A madeira que atraiu a atenção dos portugueses para a nova terra, o pau- brasil, tinha razoável mercado na Europa. Para sua exploração, estabeleceram- se em terras brasileiras pequenas fortificações precárias, para proteção da costa e envio da madeira. Sem o aparecimento de uma sociedade, a vida cultural sofreria de escassez e descontinuidade e, assim, a jovem nação passa a ser colônia de Portugal. • O sentido da colonização deve ser entendido da seguinte forma: a Colônia fica sob o controle de Portugal e da Colônia serão extraídos os produtos e metais preciosos enviados à Metrópole. • No que concerne aos primeiros escritos em solo brasileiro, estes não são representativos de um sistema. No entanto, são escritos significativos e possuem valor. Sendo assim, para alguns estudiosos, os escritos em terras brasileiras, que vão do século XVI ao XVIII, são manifestações literárias importantes para a formação da literatura brasileira. • Os primeiros escritos em terras brasileiras foram os documentos que informavam à corte portuguesa a chegada e o encontro com os habitantes, os nativos. De modo geral, eram descrições sobre a qualidade da terra, as possibilidades do que poderia ser explorado, as dificuldades locais, a fauna, a flora, a vida dos nativos e os primeiros encontros destes com os portugueses. • Em solo brasileiro, desses textos comumente chamados de literatura informativa destacamos: A Carta do Descobrimento; O Tratado da Terra do Brasil e a história da província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos de Brasil; Tratado da Terra e da Gente do Brasil; O Tratado Descritivo do Brasil, dentre outros. • Pero Vaz de Caminha era o escrivão da frota incumbido de acompanhar a expedição de Pedro Álvares Cabral e relatar o que nela ocorria. Caminha, tão logo aportou na nova terra, comunicou o fato ao rei. O teor da carta, considerada a certidão de nascimento do Brasil, permite-nos perceber as expectativas dos portugueses em relação ao Brasil. • Na carta endereçada à corte portuguesa, Caminha relata e enumera com objetividade e clareza algumas das características físicas dos índios, fatos que revelam a comunicação que se estabelece através da linguagem não verbal e o escambo que se iniciaria entre os aborígenes e o homem português. 28 • Além de Caminha, Pero Magalhães Gândavo faz referência às plantas, às frutas, aos pássaros, enfim, fauna e flora aqui existentes. Descreve também os costumes indígenas, seus ritos e as guerras entre os povos nativos. Ao que parece, o autor assume uma postura negativa em relação aos indígenas. • De modo geral, esses escritos informativos revelam um maravilhar-se diante dessa nova paisagem e dos nativos: esse gênero literário, que explora dimensões míticas culturais, é inaugurado por Erasmo, em Elogio da Loucura, em 1508. 29 1 É frequente nos escritos informativos o emprego de comparações (neste caso a Corte Portuguesa), na tentativa de exprimir aos leitores o desconhecido, o inusitado, o extraordinário. Cite uma dessas comparações. Você poderá retirar dos fragmentos dos autores analisados ou, se preferir, procure na internet as obras na íntegra. 2 A Carta de Pero Vaz de Caminha afigura-se como uma espécie de “Certidão de Nascimento” de nosso país. Localize uma passagem do texto de Caminha na qual, em meio às expressões de admiração e louvor, está subentendida a ideia de “conquista”, “posse” da Nova Terra. 3 As primeiras informações dos europeus, portugueses, documentam a natureza e o homem brasileiro. Sobre A Carta de Caminha, é correto afirmar: A - Aproxima-se mais de um relato, dando notícias à corte de Portugal sobre as primeiras impressões da nova terra e da gente aqui encontrada. B - Enfatiza uma terra de rara beleza e fertilidade, uma visão edênica da natureza do Brasil e sua exuberância. C - O texto revela o encontro de duas culturas diferentes: a portuguesa e a indígena. D - A carta de Caminha pode ser considerada como pertencente a uma literatura que explora o ‘eu’ lírico amoroso, quando se observam as comparações e descrições da fauna e da flora. a) ( ) As afirmativas A e D estão corretas. b) ( ) As afirmativas A, B e C estão corretas. c) ( ) Somente a afirmativa C está correta. d) ( ) Todas as afirmativas estão corretas. AUTOATIVIDADE 30 31 TÓPICO 3 OS JESUÍTAS: FONTE DE CONHECIMENTO E ALARGAMENTO DE NOSSA LITERATURA UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Para a Companhia de Jesus, a docência era uma das características principais dos seus missionários. Nos colégios, os religiosos não somente ensinavam os alunos candidatos à vocação sacerdotal, como também jovens que não pretendiam seguir a vida religiosa, com o mesmo rigor e sujeitos às mesmas regras. No Brasil, a Companhia aporta nove anos após a fundação da Ordem e se fixa na Bahia. A tônica na terra recém-descoberta passou a ser a conversão dos índios à fé cristã. Além dos intensos trabalhos com a educação dos aborígenes e do povo em geral, os jesuítas dedicaram-se à escrita de poemas, autos e sermões. Nesse tópico, dos inacianos que aqui viveram, destacaremos Manuel da Nóbrega e José de Anchieta. 2 A LITERATURA JESUÍTICA A Companhia de Jesus, uma ordem religiosa fundada por Inácio de Loyola, em 1540, tinha por objetivo expandir a fé e os dogmas cristãos. Nesse sentido, o alargamentodos impérios português e espanhol veio a calhar. Os jesuítas estariam presentes no Continente Americano desde o início da colonização. A docência passaria a ser a característica principal da Companhia. Inicialmente os colégios dedicavam seus esforços apenas a alunos candidatos à vocação sacerdotal. Posteriormente passaram a aceitar também jovens que não pretendessem seguir a vida religiosa, mas ficariam sujeitos às mesmas regras dos candidatos a jesuítas. Foi em Messina, na Sicília, que, em 1548, Inácio de Loyola abriu o primeiro colégio da Companhia, que serviria de inspiração a todos os outros. Em 1551 um Colégio Jesuíta é fundado em Roma, o qual começou a ensinar, além de Gramática e Retórica, Filosofia e Teologia. Os jesuítas empreenderam e implementaram a sistematização da sua atividade docente e publicaram, em 1599, a Ratio Studiorum. Segundo Joaquim Ferreira Gomes (1995, p. 35), [...] a Ratio não é um tratado de pedagogia, mas um código, um programa, uma lei orgânica que se ocupa do conteúdo do ensino ministrado nos colégios e universidades da Companhia e que impõe métodos e regras a serem observados pelos responsáveis e pelos professores desses colégios e universidades. UNIDADE 1 | A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA 32 Eram 466 regras que compunham a Ratio Studiorum. Elas versavam sobre: férias, feriados, formação dos professores, relações entre os pais dos alunos, metodologias de trabalho, plano de estudos (humanidades, filosofia, história, ciências físicas e matemáticas), avaliação, regras disciplinares, dentre outros assuntos pertinentes à formação. Em 1549, membros da Companhia de Jesus chegaram ao Brasil e se fixaram na Bahia. Lá, fundaram um colégio e iniciaram a catequese dos índios. A fé ibérica e medieval veio na bagagem desses missionários; em terras brasileiras, seu principal objetivo era propagá-la e a tônica passou a ser a conversão dos índios à fé cristã. Tais intentos ficaram registrados nos escritos desses jesuítas Manuel da Nóbrega e José de Anchieta. Manuel da Nóbrega nasceu em Portugal, em 18 de outubro de 1517. Formado em Cânones (Coimbra, 1541), em 1544 entra para a Companhia de Jesus. Cinco anos depois, vem para o Brasil, juntamente com Tomé de Souza, primeiro governador geral, chefiando a missão incumbida de instalar a Ordem na terra nova. Colaborou na fundação de Salvador e do Rio de Janeiro, e fundou São Paulo, em 25 de janeiro de 1554, ajudado por José de Anchieta. Faleceu em 18 de outubro de 1570. Escreveu: Cartas do Brasil (publicadas em conjunto em 1886) e Diálogo sobre a Conversão do Gentio (escrito entre 1556 e 1558 e publicado em 1880). (MOISÉS, 1999). UNI Nóbrega escreveu Diálogo sobre a Conversão do Gentio. Nesta obra apresenta um debate, uma conversa entre as personagens Gonçalo Álvares e Matheus Nogueira: uma discussão sobre a preocupação com o doutrinamento e a conversão do indígena ao cristianismo. O diálogo é um gênero cultivado desde a Grécia. O filósofo Sócrates, por exemplo, empregava-o para averiguar uma verdade filosófica. Este poderia ocorrer entre personagens reais ou fictícios. NOTA TÓPICO 3 | OS JESUÍTAS: FONTE DE CONHECIMENTO E ALARGAMENTO DE NOSSA LITERATURA 33 A obra explicita a posição de Nóbrega, que, segundo o missionário, para a conversão do gentio, seria necessária a dedicação dos jesuítas. Segundo Faria (2006, p. 76), O Diálogo apresenta-se, assim, como um convite à conversão para o próprio missionário, que estava, com certeza, deixando-se enfraquecer por causa das dificuldades encontradas no embate com o gentio. O missionário abatido e desanimado (no Diálogo, representado por Alves) justifica sua posição de aversão ao indígena e à lida com ele, pois este não seria humano e não mereceria investimento. Vale ressaltar que o maior obstáculo para a catequese incidia sobre a questão dos hábitos indígenas. No início do Diálogo, o interlocutor Gonçalo Alves afirma: “– Por demais hé trabalhar com estes; são tão bestiais, que não lhes entra no coração cousa de Deus; estão tão incarniçados em matar e comer, que nenhuma outra bem- aventurança sabem desejar; pregar a estes hé pregar em deserto ha pedras”. (NÓBREGA, 2006, p. 2). Nessa passagem percebe-se a intertextualidade com o Evangelho de Lucas, a parábola do semeador que revela uma colheita custosa: “Eis que o semeador saiu a semear. E, ao semear, uma parte caiu à beira do caminho; foi pisada, e as aves do céu a comeram. Outra caiu sobre a pedra; e, tendo crescido, secou por falta de umidade [...]” (BÍBLIA SAGRADA, 1993, Lucas, 8:5-8). A personagem Gonçalo Alves manifesta o árduo trabalho que terá o missionário em terras brasileiras, comparando-o ao de um semeador. José de Anchieta nasceu na Ilha de Tenerife, uma das Ilhas Canárias, em 1534, e faleceu em Reritiba (Espírito Santo) em 1597. Veio para o Brasil ainda noviço em 1553, logo fez sentir sua ação apostólica fundando com Nóbrega um colégio em Piratininga, núcleo da cidade de São Paulo. Pelo zelo religioso e pela sensibilidade humana, Anchieta ficou na história da colônia como exemplo de vida espiritual, particularmente heroica, nas condições adversas em que viveu. Suas poesias foram escritas em português, castelhano, tupi e latim. (BOSI, 1992). UNI Os escritos de Anchieta são autos e poemas. Nestes, revela que as necessidades humanas são espirituais e não materiais. Traduz não a materialidade do Renascimento, mas a salvação através de Deus. 34 UNIDADE 1 | A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA Nos versos a vida não tem dura, o bem vai se gastando, Anchieta chama atenção para a brevidade da vida. Diante dessa pequena dimensão, o ser humano não deveria comprometer-se com a precariedade do mundo terreno. Lembra ao homem que tudo é vão e efêmero, a vida carnal é uma passagem, somente Deus é supremo. Segundo Leodegário de Azevedo Filho (1986), Anchieta é contrário à concepção epicurista, qual seja, devido à brevidade da vida e à não crença na eternidade da alma, o homem busca os prazeres mundanos e aproveita cada momento (carpe diem). Por enfatizar a fugacidade do tempo, a ilusão da vida e as coisas mundanas, Anchieta faz alusão à literatura barroca que se idealizaria plenamente no século XVII. No entanto, a forma de suas poesias, a exemplo de Em Deus meu criador, aproxima-se do arquétipo da poesia medieval. O mesmo emprega a redondilha. Redondilha é o nome adotado, a partir do século XVI, para as estrofes em verso de cinco ou sete sílabas poéticas. É também chamada de medida velha e foi muito utilizada por Camões. NOTA Segundo Bosi (1992, p. 23), “[...] o vetor afetivo de Anchieta é a consolação pelo amor divino”, como podemos atestar na poesia que segue: Em Deus meu criador Não há cousa segura, tudo quanto se vê vai passando A vida não tem dura. O bem se vai gastando. Toda criatura passa voando. Contente assim, minh´alma, do doce amor de Deus toda ferida, o mundo deixa em calma buscando a outra vida, na qual deseja ser absorvida. (ANCHIETA apud BOSI, 1992, p. 26) TÓPICO 3 | OS JESUÍTAS: FONTE DE CONHECIMENTO E ALARGAMENTO DE NOSSA LITERATURA 35 Mas se os poemas valem em si mesmos como estruturas literárias, os autos são de cunho pedagógico. Emprega ora o português e ora o tupi, conforme o público a doutrinar. Vejamos algumas palavras: Bispo é Pai-Guaçu; Tupany é Nossa Senhora; Alma é anga; demônio é anhangá e Deus é Tupã. “Aculturar também é sinônimo de traduzir”. (BOSI, 1992, p. 64). Além disso, Anchieta e os demais missionários colheram das narrativas correntes algumas passagens nas quais apareciam entidades cósmicas (Tupã), ou então heróis civilizados (Sumé). Recorrem a tais narrativas sem compromisso com a cultura desse povo, aos missionários interessava as que se identificassem, sob algum aspecto, com figuras bíblicas. (BOSI, 1992, p. 68). A literatura serviu como instrumento para conversão e expansão da fé cristã e, então, o colonizador que aqui chegou impôs a celebração e o