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CAPÍTULO 3 FOTOGRAFIA E HISTÓRIA A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes objetivos de aprendizagem: Apresentar as principais características da fotografi a. Abordar as relações entre fotografi a e história. Indicar métodos de análise da imagem fotográfi ca. 52 Linguagem Visual na Historiografi a 52 53 FOTOGRAFIA E HISTÓRIA 53 Capítulo 3 CONTEXTUALIZAÇÃO Até há bem pouco tempo, antes da supremacia da imagem digital, tinha- se o costume de guardar, no fundo de uma gaveta ou em uma caixa velha de sapatos, fotografi as antigas. Estas imagens são verdadeiras lembranças visuais de familiares, amigos e lugares. Quando esquecemos a fi sionomia de alguém ou queremos lembrar as férias do ano anterior, recorremos a elas para recordar. A fotografi a tem estreita relação com a memória e a história e será nosso tema de estudos a partir de agora. Este artefato, além de servir como recordação, é responsável pela própria produção das imagens que trazemos em nossa imaginação, em nosso “arquivo de memória”. A fotografi a é comumente considerada um testemunho fi dedigno do real. Veremos, no entanto, que esta ideia dominante no senso comum é enganosa. Escolhemos dedicar este capítulo à fotografi a, justamente porque existe a necessidade de professores de história, como também de outras disciplinas, olharem com mais cuidado este tipo de suporte imagético. Devemos resgatar o sentimento de estranhamento frente à fotografi a (presente na sociedade do século XIX, que a viu nascer e se desenvolver); só assim poderemos problematizá-la, com o intuito de promover debates em sala de aula. A difi culdade que temos de “estranhar” a fotografi a é justifi cada pela banalização da imagem nos dias de hoje, especialmente após a invenção das câmeras digitais. Se este tipo de tecnologia promove a democratização da produção de imagens, também contribui para a relação naturalizada que estabelecemos com a fotografi a, “amolecendo” nossa capacidade de olhar criticamente este objeto de conhecimento. Se hoje vivemos em uma “sociedade da imagem”, boa parte disso se deve à fotografi a que, antes do cinema e da televisão, impulsionou a reprodução das imagens de “si” e do “outro”, assim como das mais inusitadas paisagens. A fotografi a realmente transformou nossa relação com o mundo, divulgou lugares e personalidades através da imprensa e dos cartões-postais. A magia da fotografi a, enquanto objeto material (ou virtual), não está nela mesma, mas nas relações que estabelecemos com ela. Convido você, então, a estudar esta classe de imagem que desperta tantas emoções, lembranças e fantasias. NOTAS SOBRE A HISTÓRIA DA FOTOGRAFIA O termo fotografi a, que signifi ca o processo de produzir imagens sobre uma superfície fotossensível pela ação da luz, foi criado, segundo Boris Devemos resgatar o sentimento de estranhamento frente à fotografi a; só assim poderemos problematizá-la, com o intuito de promover debates em sala de aula. 54 Linguagem Visual na Historiografi a 54 Kossoy (1980), por Antoine Hercule Romuald Florence (1804-1879), em 1839. Hercule Florence era um imigrante francês, que se radicou no Brasil e fez parte do grupo dos primeiros pesquisadores a fi xar as imagens projetadas em uma câmara escura. A câmara escura (ou câmara obscura) é o ancestral mais longínquo da câmera fotográfi ca. Consiste basicamente em uma caixa com um orifício por onde entra a luz refl etida dos objetos postados em sua frente. A imagem é, então, projetada no fundo da caixa ou em uma superfície posta dentro dela. Este mecanismo, inventado por Leonardo da Vinci, foi utilizado pelos pintores do século XIX, para representar realisticamente seus temas pictóricos. Para conhecer mais sobre câmara escura, acesse o seguinte endereço eletrônico: http://www.cotianet.com.br/photo/hist/camesc.htm Florence, Joseph Nicéphore Niépce (1765-1833), Louis Jaques Mande Daguerre (1787-1851) e William Henry Romuald Talbot (1800-1877) são considerados os precursores da fotografi a, os primeiros a conseguir, cada um com seu método, fi xar imagens capturadas pelas câmeras. A fotografi a mais antiga de que se tem registro foi produzida por Niépce em 1826, através do processo de fi xação da imagem por meio do Betume da Judeia (uma resina fotossensível) aplicada sobre uma placa de prata. Este processo foi denominado de “heliografi a”. A fi gura 4 é uma reprodução da foto de Niépce. Trata-se da “vista descortinada da janela do sótão de sua casa, em Chalons- sur-Saône”. (BUSSELLE, 1998, p. 30). A fotografi a mais antiga de que se tem registro foi produzida por Niépce em 1826, através do processo de fi xação da imagem por meio do Betume da Judeia (uma resina fotossensível) aplicada sobre uma placa de prata. 55 FOTOGRAFIA E HISTÓRIA 55 Capítulo 3 Figura 4 – 1ª fotografi a conhecida (1826) Fonte: Disponível em: <http://www.niepce.com/pages/ page-inv.html>. Acesso em: 14 jul. 2009. Daguerre, por sua vez, fi cou conhecido pelo daguerreótipo – que consistia em uma imagem gravada em uma placa de cobre coberta com uma camada de prata polida, sensibilizada pelo vapor de iodo. Por sua vez, Talbolt produziu o calótipo, uma técnica que fi xava a imagem em papel albuminado (o qual recebia sobre sua superfície o albúmen – substância extraída da clara do ovo de galinha, que servia para fi xar os sais de prata), que foi o papel mais usado até 1890, quando surgiu o papel de prata gelatina. Para que uma imagem fosse gravada, utilizando essas técnicas, era necessário um longo tempo de exposição. Niépce, por exemplo, aguardou 8 horas para obter a imagem (fi gura 4). Porém, com a evolução progressiva da tecnologia, o tempo de exposição foi diminuindo. Na daguerreotipia o tempo de exposição variava entre 15 e 30 minutos. Não caberia aqui abordar de forma mais aprofundada a história da fotografi a e das técnicas fotográfi cas. Para isto, sugiro que você consulte o livro indicado a seguir, assim como as obras relacionadas nas referências bibliográfi cas, listadas no fi nal deste capítulo. Caso você queira estudar mais sobre história da fotografi a, indico o livro: BUSSELLE, Michael. Tudo sobre fotografi a. 8. ed. São Paulo: Thompson Pioneira, 1998. Esta obra apresenta o desenvolvimento das técnicas fotográfi cas,e ensina noções gerais sobre como tirar retratos. Porém, para obter informações sobre técnicas relacionadas à fotografi a digital sugiro o livro: RAMALHO, José. Fotografi a digital. São Paulo: Campus, 2004. 56 Linguagem Visual na Historiografi a 56 Para que você tenha uma noção da evolução das câmeras fotográfi cas entre as décadas de 1830 e 1920, veja o quadro informativo da fi gura 5. Figura 5 – Evolução das câmeras fotográfi cas (1830 e 1920) Fonte: Busselle (1998, p. 32). 57 FOTOGRAFIA E HISTÓRIA 57 Capítulo 3 Perceba que a primeira câmera fotográfi ca portátil que oferecia ao fotógrafo facilidades no manuseio foi lançada pela Kodak em 1888. A operação desta máquina dispensava cálculos complexos para a execução da fotografi a. Como dizia a propaganda: “Você aperta um botão, nós fazemos o resto”. A fi gura 6 apresenta um cartaz de propaganda desta máquina. Figura 6 – Primeira câmera fotográfi ca portátil Fonte: Busselle (1998, p. 37). 58 Linguagem Visual na Historiografi a 58 A câmera da Kodak colocou a fotografi a ao alcance de todos. A partir da câmera portátil, qualquer pessoa podla tirar suas próprias fotografi as, de maneira simples e rápida. Com uma máquina desta nas mãos uma pessoa poderia registrar tudo aquilo que estivesse ao alcance de sua visão. Uma cena poderia ser registrada com apenasum “clic”. Daí a associação que a propaganda da Kodak fez entre esta câmera fotográfi ca e o trabalho do detetive: “A menor, mais leve e mais simples de todas as câmaras-detetive”. Aliás, o trabalho investigativo fazia parte do imaginário urbano do fi nal do século XIX, infl uenciado tanto pelos romances policiais de Sherlock Homes e pela literatura de Edgar Allan Poe, quanto pelo acelerado processo de urbanização das cidades europeias deste período. As cidades cresceram e os crimes também. Em função deste crescimento populacional, as cidades se transformaram. Paris, que era uma referência para o Ocidente, passou por reformas urbanas radicais, entre 1852 e 1870, no governo do prefeito Georges- Eugène Hausmann (1809-1891). Sobre as reformas urbanas em Paris e suas infl uências no Brasil (Rio de Janeiro e Porto Alegre) ver: PESAVENTO, Sandra J. O imaginário da cidade: visões literárias do urbano. Porto Alegre : Ed. da UFRGS, 1999. As modifi cações no espaço urbano, ocorridas no fi nal do século XIX e na primeira metade do século XX – o alargamento de ruas, implantação de redes de energia elétrica e esgoto, construção de edifícios de apartamentos – foram acompanhadas pelo aumento populacional e por uma política de segregação, que empurrou a população pobre para a periferia das cidades. Neste contexto, como ensina Michel Foucault, a população foi alvo dos discursos e práticas de normalizações. Ou seja, criaram-se uma série de dizeres e normas sobre como o cidadão deveria se portar, que tinham como objetivo manter o controle sobre a população ou ordenar o espaço urbano. Neste sentido, a fotografi a passou a servir como ferramenta de identifi cação e controle sobre o espaço urbano. “A fotografi a será utilizada desde seus primórdios como uma ‘máquina de vigiar’ e produtora de imagens forjadas para o grande público”. (TACCA, 2005, p.15-16). Vejamos como Maria Borges se refere ao contexto de aparecimento da fotografi a. Na transição do século XIX para o século XX, os grandes centros urbanos, sobretudo aqueles ligados à produção industrial, recebiam um grande fl uxo de imigrantes. A organização de seus espaços vai sendo profundamente A fotografi a passou a servir como ferramenta de identifi cação e controle sobre o espaço urbano. 59 FOTOGRAFIA E HISTÓRIA 59 Capítulo 3 alterada pela presença de novos atores sociais, cujas vidas os decretos municipais tentaram regular e controlar. Ferreiros, sapateiros, costureiras, bombeiros, operários de fábricas, vendedores ambulantes de todo o tipo, desempregados, mendigos e os chamados vagabundos transitavam pelas ruas, bairros e praças antes reservados aos antigos habitantes. Em meio a tais transformações, criou-se o pânico das massas, das multidões sem identidade própria, imediatamente identifi cadas com a desordem. Para manter o controle sobre o processo de alargamento das fronteiras do espaço público, as autoridades criavam uma série de políticas públicas, alicerçadas por uma enorme literatura, sobretudo médica e jurídica, que a mídia se encarregava de divulgar. Textos e imagem compunham a nova linguagem destinada a domesticar o espaço em diferentes metrópoles da Europa e América. (BORGES, 2003, p. 69). Prezado estudante, estas informações nos ajudam a compreender a propaganda da Kodak, mostrada anteriormente, que se apropriava do imaginário ligado ao trabalho do detetive, ou melhor, dos métodos de investigação científi ca, os quais fazem uso da ciência e da tecnologia para desvendar crimes, integrando o sistema de regulamentação e controle social. A fotografi a servia, assim, como um instrumento privilegiado para o exercício da observação e da vigilância. “Ela será um dos instrumentos privilegiados para o exercício de uma ‘disciplina’ do olhar sobre a experiência quotidiana” (MEDEIROS, 2009, p. 3). Neste sentido, podemos comparar o uso da fotografi a no século XIX com “Sorria, você está sendo fi lmado!” A fotografi a nasceu com a Revolução Industrial, ao mesmo tempo em que a ciência se afi rmava e novas tecnologias surgiam. Como, por exemplo, a luz elétrica, o telefone, a geladeira e o automóvel. A fotografi a, neste contexto, serviu de ferramenta à ciência, uma vez que era tida como mecanismo de registro fi el da realidade. As imagens capturadas pelas máquinas “afi rmavam” que era possível reproduzir a realidade tal como ela é. A fotografi a nasceu, assim, como uma forma de olhar realístico que ressaltava a objetividade do registro imagético. São diversos os usos da fotografi a no século XIX. Além de seu uso como instrumento policial (visto acima), vejamos duas outras utilidades científi cas. A primeira foi o estudo do movimento realizado por Etienne-Jules Marey (1804-1879), que se dedicou à análise minuciosa do movimento do corpo no espaço. Por meio de sequências fotográfi cas ele procurou decompor e estudar a mecânica da locomoção de pessoas e animais. Um exemplo é seu famoso estudo do galope do cavalo, baseado nas fotografi as de Eadweard James Muybridge (1830-1904). A fotografi a também serviu à criminologia técnica que, por meio da frenologia e da antropometria (fi gura 7), procurava identifi car a natureza do comportamento criminoso através da análise da imagem A fotografi a também serviu à criminologia técnica que, por meio da frenologia e da antropometria, procurava identifi car a natureza do comportamento criminoso através da análise da imagem fotográfi ca. 60 Linguagem Visual na Historiografi a 60 fotográfi ca. Se pensarmos nos estudos de Foucault sobre os dispositivos de controle inventados na modernidade, veremos que as técnicas empregadas na criminologia fazem parte das estratégias de poder na sociedade de massa pós-Revolução Industrial. Frenologia: “Doutrina segundo a qual cada faculdade mental se localiza em uma parte do córtex cerebral e o tamanho de cada parte é diretamente proporcional ao desenvolvimento da faculdade correspondente, sendo este tamanho indicado pela confi guração externa do crânio.” (HOUAISS, 2002). Antropometria: “Parte da antropologia que trata da mensuração do corpo humano ou de suas partes. Técnica de identifi cação de indivíduos, especialmente criminosos, com base na descrição do corpo humano (fotografi as, medidas, impressões digitais etc.).” (HOUAISS, 2002). Figura 7 – Criminosos Fonte: Disponível em: <http://www.centenariodarepublica.org/centenario/2009/04/28/ para-que-os-republicanos-mediam-os-cranios-dos-padres/>. Acesso em: 17 jul. 2009. Note, caro(a) pós-graduando(a), que estamos trazendo informações sobre o contexto histórico e cultural em que surgiu a fotografi a. Com isso podemos perceber que a fotografi a não é um registro “neutro” da realidade; ela revela a forma de pensar de homens e mulheres do passado. A fotografi a apresenta-se, então, como um objeto privilegiado de análise das ideias e crenças culturalmente construídas. Você não acha? Vimos até aqui a relação da fotografi a com a ciência, porém, a imagem fotográfi ca também foi considerada uma forma de expressão artística como veremos a seguir. 61 FOTOGRAFIA E HISTÓRIA 61 Capítulo 3 FOTOGRAFIA: ENTRE A ARTE E A TÉCNICA A fotografi a é um divisor de águas na história do registro visual. A máquina fotográfi ca superou o artista que buscava registrar com perfeição as formas e cores do mundo visível. A representação realista na pintura tem como um de seus principais representantes o quadro “Vista de Delf” (1637) do pintor holandês Johannes Vermeer, considerado por Proust a pintura mais linda do mundo. Aliás, Proust não acreditava na fotografi a como obra de arte, mas sim enquanto simples reprodução técnica. Apesar das primeiras experiências ressaltarem a função técnica da fotografi a (de registro fi el do real), consideramosque a fotografi a desempenhou desde seu nascimento um duplo papel: A - Serviu de testemunho do real. B - Surgiu como representação sensível do mundo. No primeiro caso, a fotografi a é pensada simplesmente como resultado do processo mecânico da câmera. No segundo caso, entretanto, a fotografi a é considerada uma construção do fotógrafo sobre o mundo. A fotografi a liberou as artes pictóricas do compromisso com a verossimilhança, já que os pintores não poderiam concorrer com a fotografi a na representação realista do mundo. Assim, com o advento da fotografi a a identidade da pintura foi posta em cheque, a pintura passou então a expressar o mundo interior do artista (coisa que a fotografi a não poderia fazer), tornando- se mais subjetiva. Podemos dizer, então, que a pintura rompeu as amarras da descrição realista do mundo. Veja, por exemplo, as obras impressionistas da primeira metade do século XX; de Claude Monet, Auguste Renoir e Eliseu Visconti, ou mesmo as obras expressionistas do mesmo período; de Vicent Van Gogh, Paul Klee, Lasar Segall. Segundo Annateresa Fabris: “a fotografi a torna patente a diferença entre informação visual e expressão visual, permitindo que a arte rompesse seu compromisso com a verossimilhança, ao concentrar-se não na representação, mas nos meios expressivos”. (2006, p. 159-160). Por outro lado, a fotografi a também foi considerada um objeto artístico. As fotos de estúdio (que fazem parte dos primeiros momentos da história da fotografi a), eram consideradas verdadeiras obras de arte, elas eram caríssimas e produzidas por poucos e célebres fotógrafos. Vejamos, então, os principais usos da fotografi a no século XIX: A primeira etapa estende-se de 1839 aos anos 50, quando o interesse pela fotografi a se restringe a um pequeno número de amadores, proveniente das classes abastadas, que podem pagar os altos preços pelos artistas fotógrafos (Nadar, Carjat, Lê Gray, por exemplo). O segundo momento corresponde à descoberta do cartão de visita fotográfi co A fotografi a é um divisor de águas na história do registro visual. A máquina fotográfi ca superou o artista que buscava registrar com perfeição as formas e cores do mundo visível. 62 Linguagem Visual na Historiografi a 62 (carte-de-visite photographique) por Disdéri, que coloca ao alcance de muitos o que até aquele momento fora apanágio de poucos e confere à fotografi a uma verdadeira dimensão industrial, quer pelo barateamento do produto, que pela vulgarização dos ícones fotográfi cos em vários sentidos (1854). Por volta de 1880, tem início a terceira etapa: é o momento da massifi cação, quando a fotografi a se torna um fenômeno prevalentemente comercial, sem deixar de lado sua pretensão a ser considerada arte. (FABRIS, 1998, p. 17). Assim, ao mesmo tempo em que a fotografi a libertou o pintor do compromisso de retratar o mundo de modo realístico, apresentou-se como um artefato de massifi cação da imagem. Ou seja, a fotografi a desempenhou um papel fundamental na popularização das artes visuais até então restritas ao universo cultural da elite: aos colecionadores e admiradores de pinturas, esculturas e objetos de arte de modo geral. A fotografi a também agiu como reprodutora de imagens consagradas pela arte pictórica. Isto quer dizer que o enquadramento do fotógrafo assemelhava- se ao do pintor, tanto nos retratos (fotos de rosto), quanto nas fotografi as de paisagens naturais. Portanto, apesar da imagem fotográfi ca se diferenciar das formas tradicionais de arte (uma vez que ela é produzida por um aparelho mecânico), ela estabelece relações de semelhança com as representações da pintura. A busca do pitoresco, por exemplo, é a mesma na pintura, na literatura e na fotografi a. De acordo com Jacques Aumont: “a paisagem apreendida pelo olho do pintor de estudos, e depois pelo olho fotográfi co, continua a ser – é quase sua defi nição – um fragmento qualquer da natureza, cuja pictorialidade poderá ser aplicada em toda parte, descobrindo em toda parte o pitoresco”. (2004, p.49). Assim, apesar da fotografi a romper com a forma de registro visual (através de instantes é possível capturar a imagem em detalhes), ela continuou a produzir olhares consagrados por artefatos visuais mais antigos. SOBRE A NATUREZA DA FOTOGRAFIA O que seria uma fotografi a, se não um fragmento do tempo e do espaço (estrutura espaço-temporal) gravado em uma superfície fotossensível? Segundo Boris Kossoy toda fotografi a “tem sua origem a partir do desejo de um indivíduo, que se viu motivado a congelar em uma imagem um aspecto dado do real, em determinado lugar e época” (2001, p. 36). A fotografi a surge, então, como um recorte de um espaço em um tempo passado. A fotografi a é no fundo uma composição do fotógrafo que envolve escolhas pessoais. Peter Burke traz em seu livro “Testemunha ocular: história e imagem”, uma interessante comparação entre os trabalhos do historiador Ao mesmo tempo em que a fotografi a libertou o pintor do compromisso de retratar o mundo de modo realístico, apresentou-se como um artefato de massifi cação da imagem. O que seria uma fotografi a, se não um fragmento do tempo e do espaço (estrutura espaço- temporal) gravado em uma superfície fotossensível? 63 FOTOGRAFIA E HISTÓRIA 63 Capítulo 3 e do fotógrafo, que, de maneira similar, selecionam textos e imagens para compor suas obras. “Todos os fotógrafos, sentem-se livres para selecionar tema, moldura, lentes, fi ltros, emulsão e granulação de acordo com suas sensibilidades.” Os fotógrafos, assim como os historiadores “selecionam que aspectos do mundo real vão retratar”. Desta maneira, “no mesmo momento em que um fotógrafo seleciona um tema, ele está trabalhando na base de um viés paralelo ao viés expresso por um historiador.” (2004, p. 27-28). Sentimentos e conhecimentos técnicos se imbricam na produção imagética. Segundo Susan Sontag: Ao decidir que aspectos deveria ter uma imagem, ao preferir uma exposição a outra, os fotógrafos sempre impõem padrões a seus temas. Embora em certo sentido a câmera de fato captura a realidade, e não apenas a interprete, as fotos são uma interpretação do mundo tanto quanto as pinturas e os desenhos. (2004, p.17). As fotografi as são, de fato, recortes metódicos dos espaços que revelam fragmentos do tempo contemporâneo ao fotógrafo. A fotografi a tem o poder de ordenar os elementos do mundo no momento em que o fotógrafo focaliza, sob um jogo de luz específi co, o quadro a ser perpetuado. As imagens capturadas de aparelhos mecânicos serviram para registrar ângulos já consagrados do mundo por outras artes, mas também para apresentar novos quadros até então desconhecidos aos olhos (como a ampliação de uma fotografi a). A fotografi a é um ícone de um tempo marcado fortemente pela cultura visual. Acelerou-se, com esse mecanismo, o processo de mapeamento e de descoberta do mundo através do olhar. O conceito de cultura ganhou fôlego na década de 1980, em função da popularização dos estudos sobre imagem virtual. As ciências sociais, de maneira geral, passaram a estudar os fenômenos sociais relacionados a visualidade. A imagem passou então a ser problematizada e estudada como sempre se fez com os textos, enquanto discursos social e culturalmente construídos. Segundo Ulpiano Meneses: A voga dos estudos de “cultura visual” assinala com clareza, no campo das ciências sociais — para o bem e para o mal —, aquilo que já foi chamado de pictorial turn, em seqüência ao linguistic turn de décadas anteriores, que chamara a atenção para o texto antropológico ou sociológico na produção do conhecimento. (2003, p. 23). 64 Linguagem Visual na Historiografi a 64 Para entender melhor a noção de “cultura visual” sugiro que você leia na íntegrao texto de Ulpiano Meneses, intitulado: “Fontes visuais, cultura visual, história visual. Balanço provisório, propostas cautelares”. Originalmente publicado na Revista Brasileira de História. Para isso acesse o texto através do seguinte endereço eletrônico: http://www.scielo.br/pdf/rbh/v23n45/16519.pdf A fotografi a anônima, por exemplo, apesar de não trazer a autoria que nos permite obter informações sobre o fotógrafo, apresenta-se como fonte de conhecimento sobre a cultura visual de um determinado período. A difi culdade em trabalhar com imagens anônimas está justamente na falta de informações sobre as circunstâncias que envolveram a produção fotográfi ca. Porém, este tipo de fotografi a nos coloca em contato com determinados olhares, o que permite ao pesquisador estudar determinados hábitos socioculturais do passado. Vejamos o que Miriam Moreira Leite diz sobre as fotografi as que não trazem o registro pessoal de autoria. A fotografi a anônima é única e jamais semelhante. É encontrada sem legenda e sem dedicatória e tem de se exprimir sem palavras complementares. Como não pode ser identifi cada obriga os historiadores ofi ciais a aprender a olhar, a sentir e a captar com modéstia diante do acaso, que leva o invisível ao domínio do visível. A fotografi a anônima pode conter estereótipos que constituem o verdadeiro território da história em matéria de documento, através de atitudes consideradas justas ou verdadeiras, de elementos furtivos ou de unidades isoladas, referentes à história do cotidiano. A boa foto condensa o olhar; nela cada parte refl ete o todo, enquanto a anônima tolera a dispersão pelas margens, multiplicidade de interesses e leituras, é rica de informações que rompem o estético, sem precisar negá-lo, e suas leituras ligam-se e sofrem a pregnância do tempo e dos hábitos socioculturais. É constituída de imagens isoladas e dispersas de comportamento fotográfi co diferente, embora não menos complexo, de amadores ou profi ssionais desconhecidos. Feita para recordar atos da vida, em sua continuidade, está carregada de conotações tanto mais fortes quanto mais condicionadas pelo mundo exterior (atos sexuais, violência, dramas e confl itos) podem unir o cotidiano e ser da maior 65 FOTOGRAFIA E HISTÓRIA 65 Capítulo 3 importância para a história dos costumes, da indumentária, das técnicas e cobrir manifestações sociais desde as mais humildes e medíocres. (2000, p. 164-165). Assim, a fotografi a é uma fonte passível de análise tanto das práticas cotidianas que retrata, quanto das visões estereotipadas de mundo que enquadra. A análise da fotografi a anônima se fundamenta, contudo, na própria leitura da imagem que nos chega aos olhos. A análise da composição da imagem é o único meio de decifração da foto-documento. O estudo da fotografi a sem autoria exige do leitor de imagens sensibilidade para interpretar os elementos visíveis. Isto quer dizer que o intérprete da foto precisa “ler” os elementos, assim como a forma com que estes elementos surgem da imagem. Em suma, é necessário problematizar a construção da cena. Por fi m, gostaria de reforçar o que foi dito acima: a fotografi a é um artefato, e enquanto tal é resultado da ação de um fotógrafo que “em determinado espaço e tempo optou por um assunto em especial e que, para seu devido registro, empregou os recursos oferecidos pela tecnologia” (KOSSOY, 2001, p.37). A montagem fotográfi ca é uma forma de expressão da realidade: objetiva e subjetiva, que determinada sociedade faz do meio em que está inserida. FOTOGRAFIA E HISTORIOGRAFIA Vimos, anteriormente, que a fotografi a é uma fonte documental ao historiador. Sua utilização, no entanto, é uma prática relativamente recente, uma vez que os documentos escritos compunham, até a segunda metade do século XX, as fontes privilegiadas da historiografi a. Não estamos dizendo que as fontes visuais passaram a concorrer com as escritas, pelo contrário, ambas, a fotografi a e o texto, servem de objetos ao pesquisador que busca uma interpretação mais completa do passado. A fotografi a, neste sentido, não deve ser vista como ilustração de texto, e sim como documento que traz informações sócio-culturais sobre determinado contexto histórico. Isto porque a fotografi a é, como estudamos anteriormente, um recorte de determinado espaço-tempo. As pessoas e as paisagens que são enquadradas pela câmera trazem traços culturais de um período histórico. Pensado desta maneira, ampliaremos nossa noção de documento e ultrapassaremos a visão tradicional que considera documento histórico apenas as fontes escritas ofi ciais. Assim passamos a entender como documento todo artefato cultural passível de análise historiográfi ca. A fotografi a faz parte do universo das fontes visuais e serve como uma alternativa a mais de compreensão do passado. Devemos considerá-la uma produção do fotógrafo, que utiliza determinada tecnologia para fi xar A fotografi a e o texto, servem de objetos ao pesquisador que busca uma interpretação mais completa do passado. A fotografi a é uma fonte passível de análise tanto das práticas cotidianas que retrata, quanto das visões estereotipadas de mundo que enquadra. 66 Linguagem Visual na Historiografi a 66 um aspecto do mundo. Cabe então ao historiador-pesquisador o papel de identifi car o contexto histórico que envolveu a produção da fotografi a, para, em seguida, iniciar a análise do que a imagem traz de visível (aspectos internos), assim como das relações sociais, políticas e/ou econômicas que envolveram sua produção (aspectos externos). Os historiadores que estudam a fotografi a enquanto documento, situam-se nos caminhos abertos pela nova história, em particular pela Escola dos Annales, que a partir dos anos 1960 e 1970 passou a defender o estudo da imagem. A fotografi a, neste caso, passou a representar um traço cultural do passado. Para compreender melhor a importância que a Escola dos Annales tem na nova historiografi a sugiro a leitura do seguinte livro: BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989). São Paulo : UNESP, 1991. Os estudos historiográfi cos dos franceses Jacques Le Goff e Pierre Nora, ligados a Escola dos Annales, estão entre os primeiros que levaram em conta a fotografi a como documento. Vejamos a seguir como o historiador Ivo Canabarro se refere aos estudos de Le Goff e Nora. Para Le Goff, a fotografi a está entre os grandes documentos para se fazer história, por consistir de provas de que algo aconteceu. O autor observa que a fotografi a permite conhecer a riqueza da vida, mesmo sendo realista, porque o próprio realismo é também uma criação. A fotografi a representa uma inegável expressão do indivíduo, da face, do retrato e, também, expressão da vida cotidiana do camponês. A imagem mostra toda a riqueza do simples ato de ver, por ser um texto visual que exprime a plenitude do humanismo. O autor fi naliza salientando que se existem provas concretas do passado a fotografi a é uma delas. O historiador Pierre Nora observa que a partir dos anos 70 do século XX, o texto visual, principalmente a fotografi a, passa a fazer parte da escrita da história. O autor salienta que o alargamento da história, propiciado pela “nouvelle histoire”, infl uencia a valorização do arquivo visual. Paralelo a isso, a noção de testemunha passa a ser entendida como noção de traço e o não escrito começa a dilatar o domínio da história. Nora entende a fotografi a como um instantâneo extraído do Jacques Le Goff e Pierre Nora, ligados a Escola dos Annales, estão entre os primeiros que levaram em conta a fotografi a como documento. 67 FOTOGRAFIA E HISTÓRIA 67 Capítulo 3 movimento permanente, uma mostra representativa de uma realidadedistante, um analogon do que foi o passado e uma relação de descontinuidade decorrente de uma mistura de distância e aproximação. Deste modo cabe ao historiador perceber o valor de diferença do que se apresenta e o movimento que continua a existir. Naturalmente este é um longo trabalho que exige muita erudição na restituição de um objeto histórico. (2005, p. 27-28). Por outro lado, o estudo da fotografi a ganhou fôlego no Brasil nas últimas décadas do século XX. Boris Kossoy (2001, p. 31) fez um levantamento e constatou que em 1970 foram escritos quatro trabalhos acadêmicos (dissertação ou tese) sobre fotografi a, em 1980 o número subiu para doze e em 1999 para setenta e três. Atualmente além do próprio Kossoy temos em nosso país historiadores de renome que se dedicam ao estudo da fotografi a, entre eles: Ana Maria Mauad de Souza Andrade Essus (UFF), Miriam Lifchitz Moreira Leite (USP) e Annateresa Fabris (USP). Atividades de Estudos: 1) Explique os motivos que levaram os historiadores a desconsiderarem a fotografi a como fonte histórica. _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ 2) Em que medida a fotografi a contribui para o trabalho do historiador? _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ 68 Linguagem Visual na Historiografi a 68 PARA UMA ANÁLISE DA FOTOGRAFIA As interpretações das imagens fotográfi cas seguem métodos distintos de análise. Porém, de maneira geral, elas não escapam de uma abordagem dos aspectos internos e externos da fotografi a. Ou seja, a análise da fotografi a trata tanto da composição da foto (confi guração dos elementos da fotografi a), quanto os fatores sociais, políticos e econômicos que envolveram sua produção, assim como o circuito que envolve seu consumo (ou apropriação). No primeiro e segundo caso temos as interpretações iconográfi cas e iconológicas, que tratam em decodifi car os signifi cados da composição da fotografi a. Na análise iconográfi ca, o estudioso procurará 1. a reconstituição do processo que originou o artefato, a fotografi a: pretende-se, assim, determinar os elementos que concorreram para sua materialização documental, (seus elementos constitutivos: assunto, fotógrafo, tecnologia) em dado lugar e época (suas coordenadas de situação: espaço, tempo); 2. a recuperação do inventário de informações decodifi cadas na imagem fotográfi ca: trata-se de obter uma minuciosa identifi cação dos detalhes icônicos que compõe seu conteúdo. (KOSSOY, 2002, p. 58). Esta é considerada a primeira etapa de análise, que consiste em levantar as informações básicas sobre a imagem e identifi car os elementos que a compõem. Neste caso, busca-se simplesmente levantar o maior número de informações sobre os aspectos visíveis da imagem. A etapa seguinte consiste na análise iconológica, em que o estudioso centrará sua atenção em 1. resgatar, na medida do possível, a história própria do assunto, seja no momento em que foi registrado, seja independentemente da mesma representação; 2. buscar a desmontagem das condições de produção: o processo de criação que resultou na representação em estudo. (KOSSOY, 2002, p. 58). Esta segunda etapa compreende o estudo dos aspectos externos envolvidos na produção da imagem. Nesta etapa, o historiador irá desenvolver verdadeiramente sua habilidade interpretativa, a partir de sua sensibilidade e erudição. Pois, a análise iconológica tem como objetivo analisar a memória social e as ideias acerca do assunto representado, assim como as relações ideológicas envolvidas na construção da imagem. Portanto, concluímos que a análise iconográfi ca, como nos ensinou Panofsky, dedica-se à descrição da imagem, enquanto a análise iconológica age no sentido de interpretá-la. A análise iconográfi ca, como nos ensinou Panofsky, dedica-se à descrição da imagem, enquanto a análise iconológica age no sentido de interpretá-la. 69 FOTOGRAFIA E HISTÓRIA 69 Capítulo 3 Não existe, neste caso, uma fórmula defi nitiva de análise da fotografi a. Podemos considerar as noções apresentadas anteriormente, no entanto, como a base de diferentes métodos que se dedicam a decifrar as imagens fotográfi cas. Podemos considerá-las como a teoria clássica de interpretação. Muitos historiadores que se dedicam ao estudo da fotografi a, desenvolvem seus próprios métodos de análise, tendo como base as teorias da iconografi a/iconologia, ou então, da semiótica. Apresentaremos, a seguir, um exemplo de análise iconográfi ca e iconológica desenvolvida por Boris Kossoy (2001, p. 118-121). A foto analisada pelo autor é um postal e tem como tema a colheita do café (fi gura 8). Figura 8 – A colheita do café Fonte: Disponível em: <http://www.oselo.com.br/images/ e12103.jpg>. Acesso em: 29 jul. 2009. INTERPRETAÇÃO ICONOGRÁFICA Grupo de colonos – provavelmente imigrantes – em plena colheita num cafezal, em uma fazenda da região de Araranguá. Na época próxima à colheita, que ocorre geralmente em maio, são executadas as tarefas de preparação. Durante o período da colheita toda a família do colono participa do trabalho, inclusive as crianças, como se vê na foto. A colheita é feita por derriça; as cerejas derriçadas, juntamente com folhas e pedacinhos de galhos, são rasteladas para fora das saias dos cafeeiros. Limpas as cerejas com as peneiras, são conduzidas para o lavrador ou diretamente para o terreiro. A colheita no pano, registrada ao centro, evita que o café derriçado entre em contato com a terra. Além da informação que nos apresenta, por assim dizer, o fato da colheita, tal como se dá no campo, trata-se, por outro lado, de uma foto bastante elaborada sob o prisma estético. Os colonos – no momento da foto também 70 Linguagem Visual na Historiografi a 70 personagens de Gaensly (autor da foto) – são registrados “naturalmente”, em plena harmonia com o carro de bois e o restante da paisagem montanhosa, ao fundo, por onde se estende o cafezal: uma perfeita composição. INTERPRETAÇÃO ICONOLÓGICA A serenidade que esta imagem romântica do trabalho nas fazendas de café transmite mascara, no entanto, uma dura realidade escondida além da imagem. [...]. Em 1902, o governo italiano, através do decreto Prinetti, proibia a imigração subsidiada para São Paulo, baseado em denúncias contidas nos relatórios de observadores que para aqui vieram. Constataram eles as péssimas condições de vida e trabalho a que estavam submetidos seus compatriotas nas fazendas de café. A construção estética da foto, onde se tem um forte apelo às composições românticas da pintura, tem uma fi nalidade: a de atrair colonos para as fazendas do Estado de São Paulo, como de fato foram utilizadas pelos agentes de recrutamento de trabalhadores, na Europa. Comprova isso o fato de que o fotógrafo era contratado pela Secretaria de Agricultura, Comércio e Obras Públicas do Estado de São Paulo, para documentar as fazendas do interior, justamente entre os anos 1902 e 1903, época em que foi tirada a foto. As fotos de Gaensly foram continuamentemultiplicadas pelas primeiras publicações, ilustradas num contexto claramente promocional. Eis, pois, o verdadeiro signifi cado da foto. Uma imagem que utiliza o realismo fotográfi co da aparência, enquanto testemunho fi el, enquanto “prova” que pode conduzir o receptor desavisado a imaginar uma situação verdadeira, que não existe, para criar, enfi m, no imaginário dos receptores uma (pseudo)realidade. Concretamente, o que de fato temos, é uma cilada sedutora, uma fi cção documental. Algumas conceituações podem ser estabelecidas a partir desta categoria de imagens: 1. A proximidade que pode existir entre a fotografi a documental e a propaganda; 2. A ideologia determina a estética de representação: os mecanismos de produção e de recepção da imagem são governados por este princípio. 71 FOTOGRAFIA E HISTÓRIA 71 Capítulo 3 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Um dos objetivos deste caderno de estudos é justamente apresentar noções sobre interpretação de imagens. Assim, o(a) professor(a) de história - ou de disciplinas afi ns - terá uma base para planejar suas aulas, caso trate da imagem enquanto fonte de refl exão e conhecimento. Uma sugestão é que o professor inicie o estudo a partir da interpretação iconográfi ca coletiva, para depois planejar pesquisas sobre a imagem em questão. Para que possamos compreender as condições matériais e ideológicas envolvidas na produção fotográfi ca, precisamos desconstruir a fotografi a, ou seja, realizar um trabalho de interpretação. Este trabalho, por sua vez, só é possível mediante a utilização de outras fontes: textos ou relatos orais. Para isso, é preciso ter sempre em mente que a fotografi a é uma construção datada; só assim manteremos o distanciamento necessário para uma refl exão crítica sobre a imagem. Quando empreendemos a análise de uma fotografi a, é preciso pensá-la como uma representação, ou, como afi rma Kossoy, uma segunda realidade, visto que a realidade presente na foto é uma realidade “construída, codifi cada, sedutora em sua montagem, em sua estética, de forma alguma ingênua, inocente, mas que é, todavia, o elo material do tempo e espaço representado, pista decisiva para desvendarmos o passado”. (KOSSOY, 2002, p. 22). Cabe então ao professor, que se propõe trabalhar com a imagem em sala de aula, elaborar um plano para decifrar a imagem. Como o detetive que deseja desvendar um crime, professor e aluno devem se unir neste instigante exercício de interpretação. Para isso, é necessário perseguir as pistas contidas na imagem, mas também coletar o maior número possível de informações sobre o contexto em que ela se insere. Pense a fotografi a como um vestígio que deve estimular o espírito investigativo dos alunos! O estudo da fotografi a é particularmente rico ao professor de história, já que a fotografi a envolve fundamentalmente refl exões acerca da memória. A fotografi a tem um papel ativo na construção de imagens de memória. Vale a pena pensar sobre seu papel na construção de memórias familiares, por exemplo; mas também como construtora de memórias sociais e nacionais. Por outro lado, estudar a fotografi a auxiliará o professor a pensar, junto como seus alunos, o próprio processo de construção do texto histórico, feito de escolhas e recortes. Lembre-se de que, tanto no ato fotográfi co quanto na historiografi a, são dadas ênfases a determinados assuntos e excluídos tantos outros. Pense a fotografi a como um vestígio que deve estimular o espírito investigativo dos alunos! 72 Linguagem Visual na Historiografi a 72 REFERÊNCIAS AUMONT, Jacques. O olho interminável: cinema e pintura. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. BORGES, Maria E. L. História e fotografi a. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru, SP: EDUSP, 2004. BUSSELLE, Michael. Tudo sobre fotografi a. 8. ed. São Paulo: Thompson Pioneira, 1998. ______. (org.). Fotografi a: usos e funções no século XIX. 2. ed. São Paulo: Ed. da USP, 1998. CANABARRO, Ivo. Fotografi a, história e cultura fotográfi ca: aproximações. Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, v. 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