Prévia do material em texto
1 A DIGNIDADE HUMANA E O ENCARCERAMENTO FEMININO Vitória Alves dos Santos RESUMO: A prisão, desde suas primitivas manifestações fora extremamente lesivo à pessoa do apenado e o descumprimento de regras, a violação de direitos e a desconsideração do ser como alvo da pena sempre se mostrou e, no Brasil, essa situação tornou-se grave em relação à mulher presa. Contudo, a construção normativa aponta para a evolução e o caminho percorrido até então foi pouco significativo, entretanto, na análise histórica, muito já progredimos. Palavras-chave: Dignidade da Pessoa Humana. Direito Penitenciário. Políticas Criminais. Direitos Humanos. 1 INTRODUÇÃO O aprisionamento desde suas primitivas manifestações fora extremamente lesivo à pessoa do apenado e o descumprimento de regras, a violação de direitos e a desconsideração do ser como alvo da pena sempre se mostro e, no Brasil, essa situação tornou-se grave. Com o advento de um Estado todo arvorado na Dignidade da Pessoa Humana – erigida à categoria de valor fundamental com a Constituição Federal de 1988 –, a proteção da pessoa tornou-se essencial mesmo no cumprimento da pena, quando é disciplinado por atos que praticou. O efeito penal decorrente da sentença penal condenatória é, em geral, a sanção privativa de liberdade, a qual é aplicada à maioria dos delitos ocorridos no Brasil. Com tal apenamento, o cidadão passa a ser inserido no sistema carcerário brasileiro para que, uma vez lá dentro, possa sentir e perceber as finalidades da pena. Todavia, vislumbramos na pesquisa que todo o sistema legal fora estruturado, desde seu início no Brasil, para o apenamento masculino que historicamente representou a imensa maioria da parcela de pessoas condenadas e aprisionadas no Brasil. 2 Há, em vigência, uma série de normas tratando de direitos da personalidade, consubstanciada ou não em direitos fundamentais, garantindo proteção às encarceradas. Todavia, realmente existe resguardo destes direitos ou a condenada sofre até mesmo mais do que o encarcerado? Diante de tais questionamentos, emergiu o orbe central, a hipótese que permeia o trabalho, qual seja, a relação entre os direitos da família e as mulheres presas. Fez-se uso do método histórico para situar como determinado instituto jurídico evoluiu, bem como o método dedutivo de pesquisa para atingir- se uma conclusão, uma vez que das premissas apresentadas buscou-se extrair conclusões lógicas. Com relação aos recursos de pesquisa, acrescento que foram utilizados: livros históricos (de caráter científico ou não cientifico); doutrinas nacionais, artigos científicos e notícias veiculadas na mídia, ambos disponíveis na rede mundial de computadores; bem como consulta à legislação. 2 A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE DOS DETENTOS BREVE ANÁLISE HISTÓRICA DO ENCARCERAMENTO FEMININO O Brasil conta com uma cláusula geral de proteção de direitos nucleada na Dignidade. Elimar Szaniawski (2005, p. 141) aponta que o pais fundamenta os direitos da personalidade e sua proteção no valor Dignidade, que permite a expansão da tutela e seu aprofundamento. Aduz a autora: Nossa Constituição, embora não possua inserido em seu texto um dispositivo específico destinado a tutelar a personalidade humana, reconhece a e tutela o direito geral de personalidade através do princípio da dignidade da pessoa, que consiste em uma cláusula geral de concreção da proteção e do desenvolvimento da personalidade do indivíduo. Esta afirmação decorre do fato de que o princípio da dignidade, sendo um princípio fundamental diretor, segundo o qual deve ser lido e interpretado todo o ordenamento jurídico brasileiro, constitui-se na cláusula geral de proteção da personalidade, uma vez ser a pessoa natural o primeiro e o último destinatário da ordem jurídica. O constituinte brasileiro optou por construir um sistema de tutela da personalidade humana, alicerçando o direito geral de personalidade pátrio a partir do princípio da dignidade da pessoa humana e de alguns outros princípios constitucionais fundamentais, espalhados em diversos títulos, que 3 garantem o exercício do livre desenvolvimento da personalidade da pessoa humana. (SZANIAWSKI, 2005. p. 141-142). Embora se atribua à Immanuel Kant1 a autoria do conceito de Dignidade da era moderna por ter este revisitado o tema com profundidade ímpar, salienta-se que desde a Magna Grécia2 o homem, sua origem, sua natureza, sua vivência e sua materialidade, eram importantes e tutelados ainda que não houvesse normatização neste sentido. A Dignidade é ínsita ao ser que a tem mesmo antes de sua personalidade jurídica e a tem mesmo antes da organização jurídica existir (SZANIAWSKI, 2005, p. 137). Por essa razão, constitui princípios de direito público e expressões de direito privado para os quais deve o Estado atentar, principalmente quando subjulga o ser e de seu corpo se apropria de sua liberdade (BRITTO, 2011, p. 91), como ocorre no apenamento: Os princípios constitucionais, principalmente a partir do fenômeno da constitucionalização do direito privado e da superação da dicotomia do direito, dividindo-os em direito público e privado, constituem-se em legítimos preceitos para a realização da vida social, possuindo um relevante significado paras as relações entre os particulares. Identicamente, possuem as normas constitucionais, para um autêntico e social Estado de Direito, efeitos imediatos no âmbito privado, nas relações jurídicas entre os indivíduos são imprescindíveis para uma sociedade livre. Deste modo, funciona e atua o princípio da dignidade da pessoa como uma cláusula geral de tutela da personalidade do ser humano, tutelando-a em todas as suas dimensões. (SZANIAWSKI, 2005, p. 143). A realidade do homem como ser integral é, num Estado construído com base antropológica da Dignidade, obrigatória e de fácil constatação, sendo a complexidade ínsita à pessoa humana o alvo do máximo interesse público e privado. A constituição de 1988 – como esclarece de Luis Luisi (2003, p. 11) – seguiu tendência de grande parte do mundo ocidental do pós-guerra e 1 Pela criação do imperativo categórico é possível se visualizar a pessoa humana sempre como fim para algo e nunca como meio para algo: “age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”. KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. 1974. p. 229. 2 Os pensadores da natureza ou pré-socráticos já tratavam da integralidade do ser humanos e de suas muitas expressões, embora discutissem sobre o que forma, materialmente, o ser. 4 abarcou, como forma de reconsiderar a pessoa e reforçar a preocupação com ela, a Dignidade e seus direitos e princípios derivados como centro do Ordenamento. Na dicção de Luis Roberto Barroso (2005, s.p.), ocorreu alteração na organização axiológica e teleológica das normas, bem como em seu eixo jurídico, posto que a lei geral passou a ser a Constituição de caráter democrático. Como fonte de reposição e interpretação jurídica, a Constituição teve revelada sua força normativa que deixou de ser tida como algo disforme e abstrato e, com a sua potência revitalizada pelo conteúdo do § 1º do artigo 5º, atingiu-se a possibilidade de aplicar automaticamente normas de direitos fundamentais. Com isso, os direitos da personalidade também se reforçam, pois as mesmas normais que garantem a eles importância constitucional são repositórios de reinterpretação dos dispositivos que necessitam, inafastavelmente, passar por seu crivo. Do ponto de vista de Joaquim José Gomes Canotilho e Vital Moreira (1991, p. 45), a principal manifestação da preeminência normativa da Constituição consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida à luz dela e passada pelo seu crivo.Assim, é quase automática a compreensão que as demais normas – incluindo as reguladoras de direitos da personalidade, devem se curvar à Dignidade da Pessoa Humana para sua aferição de conformidade axiológica, ou seja, avalia-se se aquela norma atinge a finalidade de garantir a materialidade à Dignidade ou não. Com isso, estes direitos inatos da pessoa (direitos da personalidade) que foram conduzidos, primeiro à Constituição dos Estados Unidos da América de 1776 e, depois, à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789, angariam importância máxima e, por isso, foram lançados aos demais Ordenamentos e documentos jurídicos. A Carta das Nações Unidas de 19453 e a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 19484 apresentaram a Dignidade como nuclear e 3 [...] nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço de nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade dos direitos dos homens e das mulheres, assim como nas nações grandes e pequenas [...]. 5 indispensável valor, colocando a pessoa como ápice e suas outras expressões tais como honra, imagem, liberdade e integridade psicofísica em destaque. O enlace, por conseguinte, entre as diversas facetas da personalidade humana e a Dignidade é, indubitavelmente, profunda. Com a evolução histórico-social da Dignidade e da centralização do homem no Ordenamento é que os direitos da personalidade foram alçados, também, a patamares mais importantes nos sistemas jurídicos. Apesar de manifestações filosóficas e jurídicas que prestigiavam a Dignidade e os direitos da pessoa já serem conhecidos, principalmente com os movimentos do Humanismo Jurídico e Iluminismo, no Brasil houve acanhamento inicial no Código Civil de 1916 em relação aos direitos da personalidade, mas essa situação não era, pelo momento histórico, surpreendente, até mesmo porque a revalorização humana ocorreu no pós- guerra com o grande colapso humano. Após tal passagem, as novas leis surgidas foram na maioria do Ocidente, ligadas a ideias humanitárias, como ocorreu no Brasil, com a Constituição Democrática de 1988 e, depois, o Código Civil de 2002. Mesmo antigo em seu projeto5, o Código Civil já considerava os valores do pós-guerra e, no momento do amanhecer de sua vigência, alterado em alguns pontos, era, em certa medida, adequada a nova realidade constitucional que se abrira mais de uma década antes. Como visto, os direitos da personalidade, regulados de maneira não exaustiva pelo Código Civil, são expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana, contida no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal.6 Solidificou-se no Brasil, sem dúvida, uma abertura dos tipos de direitos da personalidade que, além de ser sempre interpretada e aplicada de forma extensiva para benefícios da pessoa, já desde muito é tratada por autores clássicos, como Pontes de Miranda. 4 [...] considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo [...]. 5 O projeto do atual Código Civil data de 1969. 6 Enunciado 274 do Conselho da Justiça Federal aprovado na IV Jornada de Direito Civil. 2007. 6 Essa ideia de um rol exemplificativo dos direitos da personalidade, por ser fundada na Constituição, encontra expressões nas teorias monistas e pluralistas. A estrutura empoeirada de teoria geral dos direitos subjetivos, então, não comportaria a atual relevância da pessoa e as necessidades de sua tutela. Emerge a conclusão da Dignidade como fonte e da abertura conceitual desta como características que alcança os direitos da personalidade. 3 BREVE ANÁLISE HISTÓRICA DAS FUNÇÕES DO ENCARCEIRAMENTO O encarceramento é utilizado como forma de acondicionar indivíduos para disciplina-los sob vigilância e aplicando mecanismos de coerção, que somados aos fatores de segregação, visam deixá-los dóceis, úteis e submissos. Vejamos a grandiosa lição de Foucault, em sua obra, Vigiar e Punir: A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma, uma que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita (FOUCAULT, 1987, p.127). Importante consignar que a prisão é utilizada com um aparelho disciplinar que não se pausa, não se cansa, não se impede. A prisão atinge todas as nuances dos indivíduos, buscando moldar cada aspecto de seu comportamento enquanto perdurar sua aplicação. Portanto, Foucault conclui que ela deve ser a mais potente e enérgica possível, a fim de se atingir a educação e a finalidade que ela se propõe: A prisão deve ser um aparelho disciplinar exaustivo. Em vários sentidos: deve tomar a seu cargo todos os aspectos do indivíduo, seu treinamento físico, sua aptidão para o trabalho, seu comportamento cotidiano, sua atitude moral, suas disposições; a prisão muito mais que a escola, a oficina ou o exército, que implicam sempre numa certa especialização, é [...] é sem exterior nem lacuna; não se interrompe, a não ser depois de terminada totalmente a sua tarefa; sua ação sobre o indivíduo deve ser ininterrupta: disciplina incessante [...] Ela tem que ser a maquinaria mais potente para impor uma nova 7 forma ao pervertido; seu modo de ação é a coação de uma educação total (FOUCAULT, 1987, p. 211,). E nesta senda, para ter toda essa ação, a prisão é moldada por um sistema de direitos, que se prestam a disciplinar o cotidiano por aqueles que suportam os pesados ônus da imposição de sanções penais. Ou seja, para que a pena atinja a sua finalidade, ela necessita ter um sistema de direitos próprios, o qual acaba por restringir parte dos direitos que o indivíduo detinha antes. Neste sentido: A forma jurídica legal que garantia um sistema de direitos em princípio igualitários era sustentada por esses mecanismos miúdos, cotidianos e físicos, por todos esses sistemas de micropoder essencialmente inigualitários e assimétricos que constituem as disciplinas. [...] Além disso, enquanto os sistemas jurídicos qualificam os sujeitos de direito, segundo normas universais, as disciplinas caracterizam, classificam, especializam; distribuem ao longo de uma escala, repartem em torno de uma norma, hierarquizam os indivíduos em relação uns aos outros, e, levando ao limite, desqualificam e invalidam. De qualquer modo, no espaço e durante o tempo em que exercem seu controle e fazem funcionar as assimetrias de seu poder, elas efetuam uma suspensão, nunca total, mas também nunca anulada, do direito. Por regular e institucional que seja, a disciplina, em seu mecanismo, é um (FOUCAULT, 1987, p.194-195). Na antiguidade, punições atingiam sua função disciplinar calcadas na soberania do rei, que atuava demonstrando a sua máxima crueldade, com o fito de gerar temor suficiente pela ingerência aos direitos, de tal forma que até os mais soberanos não iriam ousar correr o risco de serem atingidos pela ira do soberano. Com e evolução dos direitos e garantias fundamentais, a humanidade passa a exigir penas menos desumanas. Contudo, nota-se na história que em que pese tal evolução, com o desenvolvimento da população, o acúmulo de riquezas e a produção de desigualdades pelos sistemas políticos, aumentou também os crimes praticados, em razão de que aqueles que mais suportam o peso da desigualdade, passam a transgredir mais a legislação vigente, na busca por sobrevivência ou até mesmo em razão das vaidades humanas. Assim, gerou-seuma nova demanda por vigilância e segurança para manutenção da ordem vigente. 8 Se estabelece progressivamente um conhecimento positivo dos delinquentes e de suas espécies, muito diferente da qualificação jurídica dos delitos e de suas circunstâncias [...] Nesse novo saber importa qualificar cientificamente o ato enquanto delito e principalmente o indivíduo enquanto delinquente. Surge a possibilidade de uma criminologia (FOUCAULT, 1987, p.225). Ao ingressar no sistema penal, significa que a sociedade julgou aquele indivíduo como inadequado para o convívio social e o segrega. Ao adentrar a instituição, portanto, precisa o indivíduo compreender que o mesmo é diferente do restante da população. Para tal, uma série de procedimentos são praticados, com exposição a situações de rebaixamento, humilhações e degradações, tudo para romper qualquer e toda ligação com a humanidade do mundo externo. Assim, o dia-a-dia na prisão vai intensificando a mutação naquele indivíduo, subjulgando-o ao diminuir o seu acesso a direitos. Contudo, em que pese a mitigação de direitos para serem atingidos os fins educativos penais, abordar sobre o cotidiano dos detentos se faz necessário para compreender de onde viemos e para onde vamos com tal sistema. Nessa perspectiva, precisamos enfrentar tais análises críticas sobre a experiência do cárcere, para adiante aplicar as análises e encontrar os fundamentos nos problemas atuais do cárcere feminino. 4 FINS CONTRADITÓRIOS ATRIBUÍDOS À PENA DE PRISÃO Propõe-se, oficialmente, como finalidade da pena de prisão, a obtenção não de um, mas de vários objetivos concomitantes: - punição retributiva do mal causado pelo delinquente, - prevenção da prática de novas infrações, através da intimação do condenado e de pessoas potencialmente criminosas, - regeneração do preso, no sentido de transformá-lo de criminoso em não-criminoso. Assim, punição e tratamento deveriam ser vistos como os extremos de uma série contínua, com variações intermediárias, as diversas partes a se imbricarem harmoniosamente, sem fraturas. 9 Enquanto anteriormente a tônica do confinamento carcerário recaía sobre o alvo escarmento, já a partir do século passado, pelo menos, passou a merecer ênfase especial a meta reabilitação. Designada, indiferentemente, por terapêutica, cura, recuperação, regeneração, readaptação, ressocialização, reeducação e outras correlatas, ora é vista como semelhante à finalidade do hospital ora como à da escola. Hoje, embora a pena ainda vise a retribuição, o tratamento desumano passou a ser abominado para que se atinja a finalidade penal. Vejam-se, por exemplo, as Regras Mínimas do Tratamento dos Reclusos, aprovadas pelo Conselho de Defesa Social e Econômica das Nações Unidas, regras 57, 58 e 59, que sustentam dever a instituição prisional utilizar toda a assistência educacional, moral e espiritual no tratamento de que se mostre necessitado o interno, de sorte a lhe assegurar que, no retorno à comunidade livre, esteja apto a obedecer às leis. No nosso caso, a Lei de Execução Penal, expressamente assim prevê: Art. 1º - a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado. [...] Art. 10º - A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade. Ressalte-se, de logo, que, apesar da energia usada pelos preceitos legais, convergentes no sentido de destacar, especialmente, a reabilitação, dentre os escopos da pena carcerária, os fins de punição e intimidação permanecem intocados, inexistindo regra alguma a autorizar que possa ser desprezado em maior ou menor extensão, se isso for necessário, em benefício da atividade reeducativa. Isto é, se houver atrito de caráter operacional entre os vários fins, o relaxamento daqueles em favor deste não conta com o amparo legal. Punir é castigar, fazer sofrer. A intimidação a ser obtida pelo castigo, demanda que este seja apto a causar terror. Ora, tais condições são reconhecidamente impeditivas de levar ao sucesso uma ação pedagógica. 10 Daí fica extremamente difícil estabelecer uma teoria da punição reformadora, a não ser que retificássemos os conceitos vigentes acerca de educação. Não seria possível, então, criar uma penitenciária exclusivamente regeneradora, suprimindo nela a ideia de castigo? A convicção enraizada de que o criminoso é internado na penitenciária para ser punido, intimidado e recuperado, corresponde a certeza tranquila de que a via para obter tais fins é: impedir que o preso fuja e manter em rigorosa disciplina a comunidade carcerária. Contudo, comprovada a dificuldade ou impossibilidade ede estabelecer uma política coerente, num sentido operacional, pela qual todos os fins e meios-fins possam ser atingidos concomitantemente, só resta a solução de sacrificar alguns em favor de outros. Do que resulta, pelos motivos antes apontados, tender a meta recuperação a estagiar em nível verbal, como expressão de desejo, para consumo público, pois em verdade, quem já conseguiu uma experiência penitenciária que foi reeducativa? Há, porém, um recurso capaz de aliviar o sentimento de fracasso da pena, que decorreria da constatação franca da impossibilidade das várias metas propostas ao trabalho prisional. Consiste na redefinição do objetivo readaptação, que é transmudado de readaptação do interno à vida em sociedade para adaptação do interno à vida carcerária. Ou seja, se o preso demonstra um comportamento adequado aos padrões da prisão, automaticamente merece ser considerado readaptado à vida em liberdade. 5 O DIREITO INTERNACIONAL E A PRISÃO FEMININA Além das normas internas, existe uma série de dispositivos internacionais que tratam dos direitos dos condenados e condenadas. Na XXI Assembleia Geral das Nações Unidas, que aconteceu em 16 de dezembro de 1966, fora discutido e aprovado o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Embora a ideia central não seja tratar de direitos dos presos, já houveram algumas tutelas importantes em tais documentos, especialmente nos artigos 5º, § 2º, 6º, §4º e §5º, artigo 7º, artigo 10º e outros: 11 Artigo 5º, § 2º - Não se admitirá qualquer restrição ou suspensão dos direitos humanos fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado Parte do presente Pacto em virtude de leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob pretexto de que o presente Pacto não os reconheça ou os reconheça em menor grau. Artigo 6º, § 4º - Qualquer condenado à morte terá o direito de pedir indulto ou comutação da pena. A anistia, o indulto ou a comutação da pena poderá ser concedido em todos os casos. § 5º - A pena de morte não deverá ser imposta em casos de crimes cometidos por pessoas menores de 18 anos, nem aplicada a mulheres em estado de gravidez. Artigo 7º - Ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamento cruéis, desumanos ou degradantes. Será proibido sobretudo, submeter uma pessoa, sem seu livre consentimento, a experiências médias ou cientificas. [...] Artigo 10º 1. Toda pessoa privada de sua liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana. 2. a) As pessoas processadas deverão ser separadas, salvo em circunstâncias excepcionais, das pessoas condenadas e receber tratamento distinto, condizente com sua condição de pessoa não- condenada. b) As pessoas processadas, jovens, deverão ser separadas das adultas e julgadas o mais rápido possível. 3. O regime penitenciário consistirá num tratamento cujo objetivo principal seja a reforma e a reabilitação normal dos prisioneiros. Os delinqüentes juvenis deverão ser separados dos adultos e receber tratamento condizente com sua idadee condição jurídica. Notório o fato de que o Documento de 1966 já fez previsão à vedação da pena de morte para gestante, na intenção de evitar que o fato seja também punido por ato de outrem. No entanto, cabe ressaltar que o Pacto não proibia o trabalho para pessoas condenadas, segundo teor do artigo 8, § 3º, alínea ‘b’: 3. a) Ninguém poderá ser obrigado a executar trabalhos forçados ou obrigatórios; b) A alínea a) do presente parágrafo não poderá ser interpretada no sentido de proibir, nos países em que certos crimes sejam punidos com prisão e trabalhos forçados, o cumprimento de uma pena de trabalhos forçados, imposta por um tribunal competente; 12 No primeiro congresso da ONU sobre prevenção de crimes e tratamento de presos em 1955, foram discutidas medidas a serem tomadas em relação à pessoas condenadas que pudessem se harmonizar com os demais conteúdos normativos das Nações Unidas. Houve aprovação das regras em 1957 e formulada as Regras Mínimas para Tratamento de Pessoas Reclusas. Embora a tratativa das Regras seja vasta, há algumas merecedoras de destaque, tal como a prevista no artigo 23: 1) Nos estabelecimentos penitenciários para mulheres devem existir instalações especiais para o tratamento das reclusas grávidas, das que tenham acabado de dar à luz e das convalescentes. Desde que seja possível, devem ser tomadas medidas para que o parto tenha lugar num hospital civil. Se a criança nascer num estabelecimento penitenciário, tal fato não deve constar do respectivo registro de nascimento. 2) Quando for permitido às mães reclusas conservar os filhos consigo, devem ser tomadas medidas para organizar um inventário dotado de pessoal qualificado, onde as crianças possam permanecer quando não estejam ao cuidado das mães. Observa-se que há indicação, assim como na Lei de Execuções Penais, para a existência de instalações próprias para mulheres nos presídios. Estes lugares são destinados à grávidas, gestantes recentes e convalescentes, que são aquelas em recuperação pós-parto. Também é visto na norma que preferencialmente, considerando as condições gerais dos presídios, os partos e cesáreas ocorram em hospitais civis. Caso a criança venha a nascer dentro dos limites penitenciários, é importante que esse dado não conste em qualquer documento. Não obstante o tratamento à gestante, as Regras Mínimas indicam alternativas para beneficiar as crianças de mães presas. Conforme se vê no inciso 2, caso a mãe apenada conserve consigo a criança deve haver local próprio para o contato com a mãe e, quando a mãe estiver em atividade, para a criança. Constata-se ainda a necessidade, como faz a Lei de Execuções Penais, de que haja pessoal qualificado a todo o momento próximo da criança Em 1989 fora entabulada a Convenção Sobre Direitos da Criança, a qual abordou algumas situações que se ligaram com a execução da pena, 13 como, por exemplo, o direito à amamentação. O artigo 9º da Convenção aborda a situação do afastamento entre pais e crianças e prisão: Artigo 9º 1. Os Estados Partes deverão zelar para que a criança não seja separada dos pais contra a vontade dos mesmos, exceto quando, sujeita à revisão judicial, as autoridades competentes determinarem, em conformidade com a lei e os procedimentos legais cabíveis, que tal separação é necessária ao interesse maior da criança. Tal determinação pode ser necessária em casos específicos, por exemplo, nos casos em que a criança sofre maus tratos ou descuido por parte de seus pais ou quando estes vivem separados e uma decisão deve ser tomada a respeito do local da residência da criança. 2. Caso seja adotado qualquer procedimento em conformidade com o estipulado no parágrafo 1 do presente artigo, todas as partes interessadas terão a oportunidade de participar e de manifestar suas opiniões. 3. Os Estados Partes respeitarão o direito da criança que esteja separada de um ou de ambos os pais de manter regularmente relações pessoais e contato direto com ambos, a menos que isso seja contrário ao interesse maior da criança. 4. Quando essa separação ocorrer em virtude de uma medida adotada por um Estado Parte, tal como detenção, prisão, exílio, deportação ou morte (inclusive falecimento decorrente de qualquer causa enquanto a pessoa estiver sob a custódia do Estado) de um dos pais da criança, ou de ambos, ou da própria criança, o Estado Parte, quando solicitado, proporcionará aos pais, à criança ou, se for o caso, a outro familiar, informações básicas a respeito do paradeiro do familiar ou familiares ausentes, a não ser que tal procedimento seja prejudicial ao bem-estar da criança. Os Estados Partes se certificarão, além disso, de que a apresentação de tal petição não acarrete, por si só, conseqüências adversas para a pessoa ou pessoas interessadas. Importante no inciso primeiro a determinação de que o afastamento não é motivado por prisão dos pais, conteúdo reconfigurado pelos incisos terceiro e quarto que informam que se o afastamento familiar for decorrente de prisão, o contato e as informações deverão ser garantidos. O artigo 24 trata do direito à saúde e inclui a saúde da mãe e o aleitamento materno, dada sua imensa relevância médica, social e emocional tanto para a mulher quanto para seu filho. No ano de 2010, no mês de dezembro, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou as chamadas Regras de Bangkok, na verdade intituladas Regras das Nações Unidas para o tratamento das reclusas e 14 medidas não privativas de liberdade para as mulheres delinquentes, mas dotadas de apelido em consequência do forte apelo do governo tailandês para a criação de tais normas. Em sua nota de abertura, descoberta fica o paradigma encontrado e adotado pelas normas: Recordando que, na Declaração de Bangkok, Estados membros recomendaram à Comissão sobre Prevenção ao Crime e Justiça Criminal que considerasse revisar a adequação dos padrões e normas estabelecidas em relação à administração penitenciária e às pessoas presas, Tomando nota da iniciativa do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos de denominar a semana entre 6 e 12 de outubro de 2008 como a Semana da Dignidade e da Justiça para as Pessoas Reclusas, na qual se enfatizavam os direitos humanos de mulheres e meninas, Considerando que mulheres presas são um dos grupos vulneráveis com necessidades e exigências específicas, Consciente de que muitas instalações penitenciárias existentes no mundo foram concebidas primordialmente para presos do sexo masculino, enquanto o número de presas tem aumentado significativamente ao longo dos anos, Reconhecendo que uma parcela das mulheres infratoras não representa risco à sociedade e, tal como ocorre com todos os infratores, seu encarceramento pode dificultar sua reinserção social, Acolhendo a criação pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime do Manual para administradores de prisões e formuladores de políticas públicas sobre mulheres e encarceramento. De início, constata-se a afirmação de vulnerabilidade feminina que demonstra a aceitação da Organização das Nações Unidas (e adoção implícita de inúmeros países signatários) de que há necessidade de proteção suficiente à mulher, implicando em arcabouço legal muitas vezes diversos. Essa vulnerabilidade faz com que disposições de regulamentação normativa sejam específicas às mulheres e distantes daquelas destinadas apenas aos homens. Tal particularidade é o núcleo axiológico das Regras editadas, até mesmo porque visualiza e realça a nítida distinção de compleição física e emocional entre pessoas de sexos distintos. Reconhece-se que a arquitetura e a ideia por trás das penitenciárias é a de comportar e (tentar) tratar homens e não mulheres. 15 Inclusive Henrique Kloch e Ivan Dias da Motta (2008, p. 21), em sua pesquisa sobre penitenciárias,apontam que apenas em 1.559 a Europa teve, na cidade de Amsterdã, presídios para mulheres e, ainda segundo os autos, somente no ano de 1.819 é que se lançou a ideia de separação plural de presos seguindo sexo. A Regra 2 de Bangkok tem o seguinte texto: 1. Atenção adequada deve ser dedicada aos procedimentos de ingresso de mulheres e crianças, devido à sua especial vulnerabilidade nesse momento. Recém ingressas deverão ser providas de condições para contatar parentes; acesso a assistência jurídica; informações sobre as regras e regulamentos das prisões, o regime prisional e onde buscar ajuda quando necessário e em um idioma que elas compreendam; e, em caso de estrangeiras, acesso aos seus representantes consulares. 2. Antes ou no momento de seu ingresso, deverá ser permitido às mulheres responsáveis pela guarda de crianças tomar as providências necessárias em relação a elas, incluindo a possibilidade de suspender por um período razoável a medida privativa de liberdade, levando em consideração o melhor interesse das crianças. Enfim, esse conjunto de regras, como se depreende após sua leitura, permitem uma composição forte de proteção de direitos da personalidade da condenada, expandindo-se para a tutela do filho da mãe presa. 6 CONCLUSÕES Considerando tudo quanto já fora constatado durante o estudo e levando-se em conta a dificuldade na obtenção de obras ligadas ao tema, visto que são poucas e raras, tomando-se em foco os objetivos que, de forma inaugural, foram apresentados, chegamos a síntese deste estudo. A legislação de execução penal é acionada no momento em que uma pessoa é submetida ao cumprimento da pena em decorrência da sentença penal condenatória e a Lei de Execuções Penais aborda inúmeras circunstâncias de proteção e tutela humana. Com o cerceamento da liberdade, outros direitos são obrigatoriamente mantidos pelo cidadão, em razão do Estado estar 16 sedimentado sobre o pilar do respeito à Dignidade da Pessoa Humana, e que por sua própria natureza, não deve abandonar isso em hipótese alguma, nem mesmo para reeducar. Certamente, as particularidades femininas deveriam ter sido o núcleo das medidas, políticas públicas e elaborações legislativas no que tange ao sistema penitenciário do Brasil, todavia, é nítida a percepção de que nada disso fora levado em conta. Com o aumento da criminalidade, consequentemente houve o aumento do número de mulheres infratoras. O Estado, detentor do poder de punir, não estava preparado para receber mulheres nas celas. Com o passas do tempo, o cenário foi se mantendo e os direitos começaram a ser violados e ante às transgressões, até o direito internacional começou a agir. Contudo, as políticas carcerárias que consideram parcialmente a situação da encarcerada, foram tímidas em lidar com as peculiaridades que envolvem a mulher, gestante ou mãe inserida nas prisões. O caminho para se atingir mínimo em termos de dignidade humana ainda é longo, mas muito já foi percorrido. Os deveres do Estado frente aos seus encarcerados na jurisprudência da Corte Interamericana e sua relação com a moral kantiana. 17 REFERÊNCIAS DIAS, Ricardo Gueiros Bernardes; TORRES, João Guilherme Gualberto. O Processo de Incorporação de Tratados Internacionais: Novas Perspectivas Jurisprudenciais. Revista de direito brasileira. Ano 4, vol.7. jan-abril/ 2014. FOUCAULT Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 10 ed. Petrópolis: Vozes; 1987. LEFEBVRE, Henry. A vida cotidiana no mundo moderno. v. 24, São Paulo: Ática; 1991.. ______. O retorno à dialética. São Paulo: Hucitec, 1996. LISZT, Franz von. Tratado de Direito Penal. T. I. Reus. 1914. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. rev., atual. E ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. ORGANIZAÇÃO Das Nações Unidas (ONU). Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. 1994. ______. Convenção Sobre Direitos da Criança. 1986. ______. Convenção Sobre Direitos da Criança. 1989. ______. Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. 1966. ______. Regras Mínimas para Tratamento das Reclusas. 1989.