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Educação, Cultura Afro e Indígena Lilian Toyota • De acordo com Santos e Costa (2016), o estudo da literatura constitui um espaço de reflexão e de ação que apresenta implicações sociais, culturais e políticas bastante significativas e, nesse sentido, Antônio Cândido (1995) afirma ser a literatura um meio poderoso de instrução principalmente porque manifesta, através da ficção, da poesia ou da ação dramática, os valores que a sociedade preconiza e aqueles que considera prejudiciais. Dessa forma, a literatura pode confirmar e negar, propor e denunciar, apoiar e combater, possibilitando ao leitor viver em uma constante dialética ante os problemas sociais e humanos. • Isso é possível porque, de acordo com o autor, não há povo e não há homem que possa viver sem literatura, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de “fabulação”. Se, como afirma Cândido (1995), não há povo e não há homem que possa viver sem a literatura, consideramos a escola como um dos responsáveis por aproximar esse homem do encantamento proporcionado pelo texto literário. • E, nesse contexto, para Santos e Costa (idem), o livro didático passa a ter papel importante no espaço escolar, uma vez que, enquanto ferramenta pedagógica, pode representar questões de poder, tanto na forma como apresenta e produz as discussões, quanto na forma de silenciamento perante temas que precisam fazer parte das reflexões sociais. Quanto a isso, Oliveira (2002, p. 29) reflete que os livros didáticos não são instrumentos “inocentes” quando se pensa no modo como eles representam o “outro”, pois essas representações envolvem questões de poder. Reflexões indígenas e africanas Partindo das reflexões suscitadas por Oliveira (2002), buscamos refletir sobre o lugar da literatura africana e indígena no livro didático do Ensino Médio, principalmente após a promulgação das Leis 10.639/2003 e 11.645/08, que tornaram obrigatória a inserção da história e cultura afro-brasileira e indígena no currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística, literatura e história. Nosso objetivo consiste em analisar as propostas do livro didático para o ensino dessas literaturas após as leis. Partimos de uma abordagem qualitativa em que analisamos duas coleções de livros didáticos do Ensino Médio: Português e Linguagens, dos autores Cereja e Cochar (2003, 2013), e usamos como aporte teórico os estudos de Cândido (2004) e Filho (2009). Consideramos essa discussão pertinente, uma vez que o Brasil se caracteriza por uma grande diversidade de grupos étnicos existentes em seu território em que cada grupo tem sua especificidade cultural: crenças, língua, costumes e valores. Assim sendo, o livro didático não pode se furtar do trabalho de proporcionar aos estudantes um painel diversificado dessas culturas principalmente porque, como nos informa Rojo (2006), esse é um dos poucos materiais escritos, base de práticas letradas, que os estudantes têm em casa. A obrigatoriedade do ensino da história e da cultura africana, afro-brasileira e indígena na educação básica das escolas públicas e privadas é realidade no Brasil há quase uma década, após a promulgação das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que alteraram a Lei 9.394/1996, a qual estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Fato este que, de certa forma, configura-se como um importante passo para a superação da formação eurocêntrica à qual estivemos subordinados ao longo do tempo, assim como se torna um importante instrumento para que a história e a cultura dos povos indígena e africano possam ser valorizadas e vistas sem distorções e sem preconceitos. Aporte teórico No entanto, essa não é uma tarefa fácil, visto que a literatura em sua gênese acabou servindo ao propósito de solidificação da colonização portuguesa e, para tanto, priorizou a cultura europeia em detrimento das culturas indígena e africana, que, segundo Cândido (2009), passaram a ser vistas apenas como alegorias folclóricas. Vejamos o que o autor afirma a respeito do processo de constituição de nossa literatura: Influências de grupos (...) a nossa crítica naturalista, prolongando sugestões românticas, transmitiu por vezes a ideia enganadora de que a literatura foi aqui produto do encontro de três tradições culturais: a do português, a do índio e a do africano. Ora, as influências dos dois últimos grupos só se exerceram (e aí intensamente) no plano folclórico; na literatura escrita atuaram de maneira remota, na medida em que influíram na transformação da sensibilidade portuguesa, favorecendo um modo de ser que, por sua vez, foi influir na criação literária. Portanto, o que houve não foi fusão prévia para formar uma literatura, mas modificação do universo de uma literatura já existente, importada com a conquista e submetida ao processo geral de colonização e ajustamento ao Novo Mundo. (2009, p. 1-2). Como reflexo da marginalização da cultura indígena, Cândido aponta a distorção da imagem do índio, que, no romantismo, por exemplo, apresenta traços do europeu, fenômeno definido pelo autor como tendência genealógica que “consiste em escolher no passado local os elementos adequados a uma visão que de certo modo é nativista, mas procura se aproximar o mais possível dos ideais e normas europeias.” (2009, p. 10). Diante disso, é importante ressaltar que a lei em si não é suficiente para que, de fato, a história e a cultura dos povos africano e indígena deixem de ser marginalizadas em nossas salas de aula ou até mesmo silenciadas. Na verdade, é preciso um conjunto de ações, no âmbito social e educacional, que possam garantir a inserção das diferentes manifestações culturais de nosso povo no currículo escolar e, sobretudo, que possam reconhecer a importância e a contribuição dessas manifestações na construção da identidade de nosso país. No que se refere ao âmbito educacional, segundo Santos e Costa (idem), é preciso investir mais na formação de nossos professores e na melhoria dos nossos livros didáticos, que, como já dissemos anteriormente, ainda continuam sendo a principal fonte de leitura dos nossos alunos e uma das principais ferramentas didáticas usadas pelos docentes. Assim sendo, os autores reafirmam a importância do desenvolvimento de uma análise crítica sobre o lugar que é dado às diferentes manifestações culturais nos livros didáticos que circulam em nossas escolas, sendo que nosso interesse é ainda mais pontual: identificar o lugar que é dado aos textos literários indígenas e africanos, produzidos por estes povos, nos livros de Língua Portuguesa. Esse desejo não é apenas nosso, tampouco recente, conforme podemos ver nas palavras da escritora indígena Darlene Taukane, que, em sua auto-história, afirma que: Foram vários os momentos em que me vi diante dos outros e senti necessidade de autoafirmação. Senti necessidade de ser ouvida, de que acreditassem e conhecessem a riqueza tão vasta de uma cultura indígena. Talvez tenha sido a minha meta, de que os povos indígenas falem por eles mesmos (TAUKANE, 1999, p. 18). Com base nisso, entendemos que a história desses povos não pode mais ser vista apenas a partir da ótica do “europeu” ou do “branco”; precisamos dar voz aos sujeitos de suas histórias para que possamos, inclusive, desconstruir imagens estereotipadas e preconceituosas que ainda povoam o imaginário social. O papel de sujeito-autor Os povos africanos e indígenas precisam assumir, na literatura, o papel de sujeito-autor de suas histórias e dar voz a suas experiências e formas de ver o mundo, conforme afirma Sarteschi (2011, p. 14): “É nessa medida que o ensino dessas literaturas explicita um compromisso ético que busca contribuir para a produção de novas subjetividades e identidades e de suas imagens (...)”. No entanto, para Santos e Costa (idem), é importante destacar que a questão daprodução literária engajada com a temática étnico-racial não é tão simples de ser analisada, visto que durante muito tempo o africano e o indígena par t ic iparam apenas como meros coadjuvantes da literatura nacional. Inclusive, segundo Filho (2004), posicionamentos mais engajados a respeito do papel do negro como sujeito nos textos literários surgiram apenas nas décadas de 30 e 40 e vêm ganhando força até o século atual, sendo que, para o autor: Posição literária “Essa tomada de posição literária relaciona-se com os movimentos de conscientização dos negros brasileiros que marcam o início do século atual e vem ganhando contornos mais nítidos e definidos ao longo desse período histórico, com maior ou menor evidência.” (2004, p. 174). Na verdade, ao analisarmos a produção literária, com foco nas questões étnico-raciais, com mais profundidade, percebemos duas questões centrais. A primeira é que não basta apenas dar voz ao indígena e ao africano; é preciso, sobretudo, que esses africanos e indígenas sejam sujeitos engajados e comprometidos com a etnia, ou seja, que defendam uma posição de resistência e de luta pela afirmação e pelo reconhecimento social, pois do contrário teremos uma literatura produzida por africanos e indígenas, porém marcadas pelo “branqueamento ideológico”. A segunda é que não se deve separar as produções literárias de indígenas e africanos por meio de adjetivações específicas (literatura negra e literatura indígena) como se estas não pertencessem à literatura brasileira, visto que: “Admitir o isolamento no espaço de uma especificidade identificadora é, na realidade brasileira, aceitar o jogo do preconceito. Outra deve ser a estratégia. Há que assumir a igualdade na coparticipação da construção da nacionalidade. Há que reivindicar o direito à plenitude da cidadania.” (FILHO, 2004, p. 186) Nesse sentido, os autores percebem que aceitar tal divisão na literatura pode contribuir para a permanência do preconceito, pois é uma forma de marginalizar tais literaturas, atribuindo-lhes escalas de valores. Na verdade, o que acreditamos é que a literatura pode ser um importante instrumento de legitimação e singularização das diferentes culturas que compõem a nação brasileira, sendo que, para isso: É preciso, entretanto, ter sempre em mente que a arte literária compromissada precisa ser arte literária antes de ser compromissada, sob pena de descaracterizar-se e perder seu poder de repercussão mobilizadora. Essa posição benjaminiana não pode ser desprezada, quando consideramos a contribuição literária dos negros e dos descendentes de negros que trazem para seus textos a preocupação com a etnia. Há que considerar a literatura como lugar de afirmação e singularização de identidades múltiplas e várias, mas integradas no tecido da arte literária brasileira e universal. (FILHO, 2004, p. 187). Portanto, fica claro que a criação da lei foi um importante passo para o redimensionamento do papel da história e da cultura dos povos indígena e africano no espaço escolar; no entanto, percebemos que ainda estamos distantes de sua efetivação. Isso porque ainda nos deparamos com entraves preliminares, tais como o desconhecimento e a desvalorização da literatura produzida por escritores indígenas e africanos. Entraves estes que precisam ser superados urgentemente para que possamos contribuir para a formação de leitores multiculturais, já que a literatura é um importante instrumento de construção de identidades, conforme afirma Abreu: O poder da história (...) pode ter muito interesse ler e estudar literatura, pois ela pode favorecer o encontro com a Alteridade (alteridade de temas, alteridade de modos de se expressar, alteridade de critérios de avaliação). Não se encontrou, até hoje, nenhum povo que não contasse histórias ou que não cantasse, mas cada povo, ou cada grupo, tem um jeito próprio de fazer isso e uma maneira peculiar de apreciar estas produções. (2006, p. 111). Precisamos, pois, inserir a literatura produzida por indígenas e por africanos em nossas salas de aula para que possamos permitir que crianças e jovens não indígenas e não africanos possam (re)conhecer o valor da história e da cultura do outro, desconstruindo preconceitos e estereótipos e dando espaço, assim, ao multiculturalismo. O ensino das culturas indígena e africana ainda não se faz de forma efetiva no livro didático, visto que, como vimos na obra analisada, o espaço dado à literatura africana ainda é muito pequeno. Além disso, a literatura indígena sequer aparece. É fato que não há livros didáticos completos, que não careçam da intervenção do professor, e provavelmente os autores esperam do mediador uma atuação que complemente o material didático. Contudo, diante do que já está posto sobre os problemas na formação, a alta carga horária e falta de formações contínuas para os professores da rede pública, talvez essa intervenção não se dê de forma fácil ou de forma a suscitar um ensino com vistas à efetiva compreensão dessas literaturas por parte dos estudantes. Por isso, se faz necessário que o lugar dessas literaturas no livro didático seja (re)pensado, ganhando, assim, a visibilidade necessária para que, de fato, possamos descontruir os preconceitos e os estereótipos acerca dos povos indígenas e africanos. Referências bibliográficas ABREU, Márcia. Cultura letrada: literatura e leitura. São Paulo: UNESP, 2006. CÂNDIDO, Antônio. “Literatura de dois gumes”. In: A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 2009. CÂNDIDO, Antonio. “O direito à literatura”. In: Vários escritos. Rio de Janeiro: Duas Cidades, 2004. FILHO, Domício Proença. “A trajetória do negro na literatura brasileira”. Revista Estudos Avançados. v. 18, p. 161-193, 2004. OLIVEIRA, Juliana Pires de; GOULART, Treyce Ellen. “História e cultura afro-brasileira e indígena em sala de aula: a implementação da Lei 11.645/08 nas escolas”. Aedos, n. 11, v. 4, set./2012. ROJO, R. H. R. (Org.); BATISTA, A. A. G. (Org.). Livro didático de língua portuguesa, letramento e cultura da escrita. Campinas: Mercado de Letras, v. 1, 1. ed., 2003, p. 320. SANTOS, Josefa Maria dos; COSTA, Maria Alcione Gonçalves da. (Re)pensando o lugar da literatura africana e indígena no livro didático do Ensino Médio. SARTESCHI, Rosângela. “A Lei 11.645/08 e o ensino de literatura afro-brasileira em perspectiva: cuti e sua poética do confronto”. Comunicação apresentada no XI Congresso Luso- afro-brasileiro de Ciências Sociais (CONLAB). Salvador, 2011. TAUKANE, Darlene. A história da educação escolar entre os Kurâ-Bakairi. Cuiabá: Darlene Taukane, 1999. Diversidade cultural no Brasil Os principais disseminadores da cultura brasileira são os colonizadores europeus, a população indígena e os escravos africanos. Posteriormente, os imigrantes italianos, japoneses, alemães, poloneses, árabes, entre outros, contribuíram para a pluralidade cultural do Brasil. Região Sul Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul O Sul apresenta aspectos culturais dos imigrantes portugueses, espanhóis e, principalmente, alemães e italianos. ü Festas e danças • “Festa da uva” (italiana) e “Oktoberfest” (alemã). • O fandango, de influência portuguesa; a tirana e o anuo, de origem espanhola; a festa de Nossa Senhora dos Navegantes, a congada, o boi-de-mamão, a dança de fitas, o boi-na-vara. ü Culinária • Churrasco, chimarrão, camarão, pirão de peixe, marreco assado, barreado (cozido de carne em uma panela de barro), vinho. Região Sudeste São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas Gerais Os principais elementos da cultura regional são: ü Festas e danças • Festa do divino, festejos da Páscoa e dos santos padroeiros, congada, cavalhadas, bumba-meu-boi, carnaval, peão de boiadeiro, dança de velhos, batuque, samba de lenço, festa de Iemanjá, foliade Reis, caiapó. ü Culinária: • Moqueca capixaba, pão de queijo, feijão-tropeiro, carne de porco, feijoada, aipim frito, bolinho de bacalhau, picadinho, virado à paulista, cuscuz paulista, farofa, pizza, etc. Apresenta grande diversidade pela forte influência do índio, do escravo e dos diversos imigrantes europeus e asiáticos. Região Centro-Oeste Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Distrito Federal A cultura do Centro-Oeste brasileiro é bem diversificada, recebendo contribuições principalmente dos indígenas, paulistas, mineiros, gaúchos, bolivianos e paraguaios. ü Festas e danças • Em Goiás: a cavalhada e o fogaréu • Em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul: o cururu ü Culinária: • Arroz com pequi, sopa paraguaia, arroz carreteiro, arroz boliviano, maria- isabel, empadão goiano, pamonha, angu, curau, peixes do Pantanal (pintado, pacu, dourado, entre outros). Cavalhada – Festa do Divino • Cururu • Arroz carreteiro Região Nordeste Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe. Entre as manifestações culturais desta região estão: ü Festas e danças Bumba-meu-boi, maracatu, caboclinhos, carnaval, ciranda, terno de zabumba, marujada, reisado, frevo, cavalhada e capoeira. ü Algumas manifestações religiosas: Festa de Iemanjá e a lavagem das escadarias do Bonfim. ü Literatura de cordel é outro elemento forte da cultura nordestina. ü Artesanato: rendas. ü Pratos típicos: • Carne de sol, peixes, frutos do mar, buchada de bode, sarapatel, acarajé, vatapá, cururu, feijão-verde, canjica, arroz-doce, bolo de fubá cozido, bolo de massa de mandioca, broa de milho verde, pamonha, cocada, tapioca, pé-de-moleque, entre tantos outros. Carnaval de Olinda Candomblé Roda de capoeira Lavagem das escadarias do Bonfim Os três Reis Magos Região Norte Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins. Essa é a maior região brasileira em extensão territorial (3.853.397,2 km²), corresponde a aproximadamente 42% do território nacional e seu contingente populacional é de 15 milhões de habitantes, composto por indígenas e imigrantes: gaúchos, paranaenses, paulistas, nordestinos, africanos, europeus e asiáticos. Entre as manifestações culturais desta região estão: ü Festas e danças • O carimbó, o congo ou congada, a Folia de Reis e a Festa do Divino. No entanto, as duas maiores festas populares do Norte são o Círio de Nazaré, em Belém (PA), e o Festival de Parintins, a mais conhecida festa do boi-bumbá do país, que ocorre em junho, no Amazonas. ü Culinária • Carne de sol, tucupi (caldo da mandioca cozida), tacacá (espécie de sopa quente feita com tucupi), jambu (um tipo de erva), camarão seco e pimenta-de-cheiro. (A influência indígena é fortíssima na culinária do Norte, baseada na mandioca e em peixes). Festa de Parintins Celebração indígena Artesanato com capim dourado Stuart Hall A identidade cultural na pós-modernidade – três concepções: Sujeito do Iluminismo: ideia de que o sujeito nascia, já tinha uma ideia única e assim se desenvolvia. Não se permitia o diferente, com concepção individualista. Sujeito sociológico – é fruto do mundo moderno, sujeito visto como um ser social. A identidade acaba sendo entendida como formada entre o “eu” e a sociedade. Sujeito pós-moderno – sujeito modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais exteriores, e as identidades que esses mundos oferecem. Passa a ser compreendido com várias identidades, um ser fragmentado, contraditório. Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos currículos Para Gomes (2012), vivemos um momento ímpar no campo do conhecimento. O debate sobre a diversidade epistemológica do mundo encontra maior espaço nas ciências humanas e sociais. É nesse contexto que a educação participa como um campo que articula de maneira tensa a teoria e a prática. Podemos dizer que, embora não seja uma relação linear, os avanços, as novas indagações e os limites da teoria educacional têm repercussões na prática pedagógica, assim como os desafios colocados por essa mesma prática impactam a teoria, indagam conceitos e categorias e questionam interpretações clássicas sobre o fenômeno educativo que ocorre dentro e fora do espaço escolar. Esse processo atinge os currículos, que, cada vez mais, são inquiridos a mudar. Os dilemas para os formuladores de políticas, gestores, cursos de formação de professores e para as escolas no que se refere ao currículo são outros: adequar-se às avaliações “standartizadas” nacionais e internacionais ou construir propostas criativas que dialoguem, de fato, com a realidade sociocultural brasileira, articulando conhecimento científico e os outros conhecimentos produzidos pelos sujeitos sociais em suas realidades sociais, culturais, históricas e políticas? Compreender o currículo como parte do processo de formação humana ou persistir em enxergá-lo como rol de conteúdos que preparam os estudantes para o mercado ou para o vestibular? E onde entra a autonomia do docente? E onde ficam as condições do trabalho docente, hoje, no Brasil e na América Latina? Como lidar com o currículo em um contexto de desigualdades e diversidade? O art. 26-A da LDB e os Conselhos de Educação A atuação do TCE-RS e o papel dos Conselhos de Educação na fiscalização do cumprimento do art. 26-A da LDB Os Conselhos de Educação têm papel fundamental na regulamentação e fiscalização da implementação das ações definidas nas Leis n° 10.639/03 e n° 11.645/08. Conforme o plano nacional de implementação das diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico- raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, são procedimentos indispensáveis para os Conselhos de Educação: Conselhos de Educação a) Articular ações e instrumentos que permitam aos conselhos nacional, estadual, municipal e distrital de educação o acompanhamento da implementação das diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana; b) Articular com a UNCME e Fórum Nacional dos Conselhos Estaduais de Educação para ampliar a divulgação e orientação que permita o acompanhamento da implementação das Leis n° 10.639/03 e n° 11.645/08 pelos conselhos estaduais e municipais de educação; Assegurar que em sua composição haja representação da diversidade étnico- racial brasileira comprometida com a implementação da Lei n° 10.639/03, das diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, assim como da Lei n° 11.645/08; d) Orientar as escolas na reorganização de suas propostas curriculares e pedagógicas fundamentando-as com as diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro- brasileira e africana estabelecidas no Parecer CNE/CEB n° 03/2004; Recomendar às instituições de ensino públicas e privadas a observância da interdisciplinaridade, tendo presente que: I – Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística, de Literatura e História brasileiras; II – O ensino deve ir além da descrição dos fatos e procurar constituir nos(as) alunos(as) a capacidade de reconhecer e valorizar a história, a cultura, a identidade e as contribuições dos afrodescendentes na construção, no desenvolvimento e na economia da nação brasileira. O papel dos Conselhos de Educação Os conteúdos programáticos devem estar fundados em dimensões históricas, sociais e antropológicas referentes à realidade brasileira, com vistas a combater opreconceito racial, o racismo e a discriminação racial que atingem negros e negras em nossa sociedade; IV – A pesquisa, a leitura, os estudos e a reflexão sobre este tema, introduzido nas Leis n° 9.394/96, n° 10.639/03 e n° 11.645/08, têm por meta fundamentar políticas de reparações, de reconhecimento e valorização e de ações afirmativas que impliquem justiça e iguais direitos sociais, civis, culturais e econômicos, bem como a valorização da diversidade. Cumprimento do art. 26-A da LDB nas escolas municipais do RS: obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena Por meio do levantamento realizado (questionário), buscou-se colher elementos que comprovassem: i. a inserção do tema nos projetos pedagógicos; ii. a destinação de recursos orçamentários para a viabilização do cumprimento do art. 26-A da LDBEN; e iii. a realização de ações de formação específica dos profissionais de educação. O papel fiscalizador dos Conselhos de Educação Sugestões de ações de fiscalização da implementação das regras legais a serem realizadas pelos Conselhos: • Analisar a previsão de recursos orçamentários para a formação de professores e material bibliográfico e de outros materiais didáticos; • Verificar se na estrutura organizacional da Secretaria de Educação existe unidade ou equipe técnica permanente encarregada da coordenação, articulação e monitoramento para os assuntos relacionados à diversidade, incluindo a educação das relações étnico-raciais (secretaria, coordenadoria, setor ou serviço); • Verificar se a estrutura organizacional da unidade administrativa encontra-se definida em ato normativo, descrevendo as competências, áreas de atuação e respectivas atribuições; • Verificar se a unidade possui estrutura e recursos humanos em quantidade e com a qualificação adequadas para a realização das ações; • Verificar quais ações foram desenvolvidas para dar apoio às escolas na implementação das Leis nº 10.639/2003 e 11.645/2008, principalmente na reorganização das propostas curriculares e pedagógicas; • Verificar como a Secretaria da Educação está promovendo a formação dos quadros funcionais do sistema educacional (forma sistêmica e regular); • Os programas deverão contemplar a oferta de formação continuada presencial e/ou semipresencial em educação das relações étnico-raciais e história da África e cultura afro- brasileira, africana e indígena; • Verificar a carga horária dos cursos disponibilizados. A carga horária mínima para professores deverá totalizar 180 horas, e para gestores e demais profissionais da educação, 120 horas; (Contribuições para a implementação da Lei 10.639/2003 – Grupo de trabalho interministerial instituído por meio da Portaria Interministerial MEC/MJ/ SEPPIR nº 605, de 20 de maio de 2008) • Verificar se o plano municipal de educação contempla a implementação da educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira, africana e indígena nas escolas municipais; • Verificar se os projetos político-pedagógicos estão adequados ao ensino de história e cultura afro-brasileira, africana e indígena; e • Verificar se há, por parte da Secretaria de Educação, o estímulo à interdisciplinaridade para disseminação da temática no âmbito escolar. Presidência da República Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos LEI Nº 10.639, DE 9 DE JANEIRO DE 2003 Mensagem de veto altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “história e cultura afro-brasileira”, e dá outras providências. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1º da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B: Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre história e cultura afro-brasileira. § 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à história do Brasil. § 2º Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras. § 3º (VETADO) 3o As disciplinas História do Brasil e Educação Artística, no ensino médio, deverão dedicar, pelo menos, dez por cento de seu conteúdo programático anual ou semestral à temática referida nesta Lei. Art. 79-A. (VETADO) Os cursos de capacitação para professores deverão contar com a participação de entidades do movimento afro-brasileiro, das universidades e de outras instituições de pesquisa pertinentes à matéria. Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’. Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 9 de janeiro de 2003; 182º da Independência e 115º da República. LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque Resolução nº 1 de 17 de junho de 2004. CNE/Conselho Pleno Institui diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro- brasileira e africana. Art. 1° A presente resolução institui diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, a serem observadas pelas instituições de ensino, que atuam nos níveis e modalidades da educação brasileira e, em especial, por instituições que desenvolvem programas de formação inicial e continuada de professores. § 1° As instituições de ensino superior incluirão nos conteúdos de disciplinas e atividades curriculares dos cursos que ministram, a educação das relações étnico-raciais, bem como o tratamento de questões e temáticas que dizem respeito aos afrodescendentes, nos termos explicitados no Parecer CNE/CP 3/2004. § 2° O cumprimento das referidas diretrizes curriculares, por parte das instituições de ensino, será considerado na avaliação das condições de funcionamento do estabelecimento. Art. 2° As diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africanas constituem-se de orientações, princípios e fundamentos para o planejamento, execução e avaliação da educação, e têm por meta promover a educação de cidadãos atuantes e conscientes no seio da sociedade multicultural e pluriétnica do Brasil, buscando relações étnico- sociais positivas, rumo à construção de nação democrática. § 1° A educação das relações étnico-raciais tem por objetivo a divulgação e produção de conhecimentos, bem como de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos quanto à pluralidade étnico-racial, tornando-os capazes de interagir e de negociar objetivos comuns que garantam, a todos, respeito aos direitos legais e valorização de identidade, na busca da consolidação da democracia brasileira. § 2º O ensino de história e cultura afro-brasileira e africana tem por objetivo o reconhecimento e a valorização da identidade, história e cultura dos afro-brasileiros, bem como a garantia de reconhecimento e igualdade de valorização das raízes africanas da nação brasileira, ao lado das indígenas, europeias e asiáticas. § 3º Caberá aos Conselhos de Educação dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios desenvolver as diretrizes curriculares nacionais instituídas por esta Resolução, dentro do regime de colaboraçãoe da autonomia de entes federativos e seus respectivos sistemas. Art. 3° A educação das relações étnico-raciais e o estudo de história e cultura afro-brasileira, e história e cultura africana será desenvolvida por meio de conteúdos, competências, atitudes e valores, a serem estabelecidos pelas instituições de ensino e seus professores, com o apoio e supervisão dos sistemas de ensino, entidades mantenedoras e coordenações pedagógicas, atendidas as indicações, recomendações e diretrizes explicitadas no Parecer CNE/CP 003/2004. § 1° Os sistemas de ensino e as entidades mantenedoras incentivarão e criarão condições materiais e financeiras, assim como proverão as escolas, professores e alunos, de material bibliográfico e de outros materiais didáticos necessários para a educação tratada no caput deste artigo. § 2° As coordenações pedagógicas promoverão o aprofundamento de estudos, para que os professores concebam e desenvolvam unidades de estudos, projetos e programas, abrangendo os diferentes componentes curriculares. § 3° O ensino sistemático de história e cultura afro-brasileira e africana na Educação Básica, nos termos da Lei 10.639/2003, refere-se, em especial, aos componentes curriculares de Educação Artística, Literatura e História do Brasil. Art. 5º Os sistemas de ensino tomarão providências no sentido de garantir o direito de alunos afrodescendentes de frequentarem estabelecimentos de ensino de qualidade, que contenham instalações e equipamentos sólidos e atualizados, em cursos ministrados por professores competentes no domínio de conteúdos de ensino e comprometidos com a educação de negros e não negros, sendo capazes de corrigir posturas, atitudes, palavras que impliquem desrespeito e discriminação. Art. 6° Os órgãos colegiados dos estabelecimentos de ensino, em suas finalidades, responsabilidades e tarefas, incluirão o previsto o exame e encaminhamento de solução para situações de discriminação, buscando-se criar situações educativas para o reconhecimento, valorização e respeito da diversidade. Parágrafo único: Os casos que caracterizem racismo serão tratados como crimes imprescritíveis e inafiançáveis, conforme prevê o Art. 5º, XLII da Constituição Federal de 1988. Ações educativas de combate ao racismo e a discriminações O princípio encaminha para: • a conexão dos objetivos, estratégias de ensino e atividades com a experiência de vida dos alunos e professores, valorizando aprendizagens vinculadas às suas relações com pessoas negras, brancas, mestiças, assim como as vinculadas às relações entre negros, indígenas e brancos no conjunto da sociedade; • a crítica pelos coordenadores pedagógicos, orientadores educacionais, professores, das representações dos negros e de outras minorias nos textos, materiais didáticos, bem como providências para corrigi-las; • condições para professores e alunos pensarem, decidirem, agirem, assumindo responsabilidade por relações étnico-raciais positivas, enfrentando e superando discordâncias, conflitos, contestações, valorizando os contrastes das diferenças; • valorização da oralidade, da corporeidade e da arte, por exemplo, como a dança, marcas da cultura de raiz africana, ao lado da escrita e da leitura; • educação patrimonial, aprendizado a partir do patrimônio cultural afro-brasileiro, visando a preservá-lo e a difundi-lo; • o cuidado para que se dê um sentido construtivo à participação dos diferentes grupos sociais, étnico-raciais na construção da nação brasileira, aos elos culturais e históricos entre diferentes grupos étnico-raciais, às alianças sociais; • participação de grupos do Movimento Negro e de grupos culturais negros, bem como da comunidade em que se insere a escola, sob a coordenação dos professores, na elaboração de projetos político-pedagógicos que contemplem a diversidade étnico-racial. Fundamentos históricos: lutas de indígenas e negros pela educação No Brasil, o século XIX foi marcado por profundas alterações sociais, políticas e econômicas. A questão racial apresentou-se como um dos elementos determinantes para as configurações da sociedade e do Estado brasileiro. O Estado brasileiro se caracterizou, por muito tempo, pelo colonialismo/escravismo. Suas regras foram ditadas por Portugal e tudo o que se produzia era para o sustento da Metrópole. Dessa maneira, os indígenas, inicialmente, e os negros, posteriormente, foram escravizados e coisificados, sendo excluídos do acesso à riqueza produzida no país. Uma das consequências dessa constituição histórica é que o Brasil tornou-se um dos países com a pior distribuição de renda e com a maior desigualdade racial do planeta e, o mais grave, com a perpetuação dessa condição até o século XXI. Entretanto, para além desse “racismo residual”, conforme nomeado por Florestan Fernandes (1978), o que vemos é a permanência de exclusão racial e atitudes preconceituosas ressignificadas no cotidiano, corroborando a manutenção da miserabilidade das populações negras. De outra parte, pois há especificidades, os povos indígenas frequentemente se veem às voltas em conflitos acirrados na defesa de suas formas de sobrevivência e cultura, que exigem do Estado brasileiro uma intervenção qualificada nas disputas por terras. Dados divulgados na pesquisa de Pinheiro et. al. (2008, p. 33) mostram que: No caso dos diferenciais de raça, os indicadores usualmente adotados captam bastante bem as desigualdades entre brancos e negros, retornando rendimentos per capita sistematicamente inferiores para estes últimos. Tomando-se as informações para 2007, temos que 20% da população branca situava-se abaixo da linha de pobreza, enquanto mais do dobro, ou 41,7%, da população negra encontrava-se na mesma situação de vulnerabilidade. No caso de indigência, a situação é tão ou mais grave: enquanto 6,6% dos brancos recebem menos de 1/4 de salário mínimo per capita por mês, esse percentual salta para 16,9% da população negra, quase três vezes mais. Isso significa 20 milhões a mais de negros pobres do que brancos e 9,5 milhões de indigentes negros a mais do que brancos. Com isso, as populações negras e indígenas no Brasil sofrem preconceitos raciais e encontram-se impedidas de acessar bens e serviços, tais como: saúde, educação, segurança e emprego. Os números do Censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que, em diversos municípios do Brasil, há grande parte da população indígena em extrema pobreza – sem renda própria. O Censo mostra, ainda, que a população indígena representa apenas 0,4% dos brasileiros, contudo representa 2,9% da população em extrema pobreza. É na posição de base da pirâmide social, como revelam os dados do IPEA e do IBGE, em que o negro e o indígena se encontram. Para Henriques (2002, p. 11), a desigualdade resulta de um acordo excludente que não reconhece a cidadania para todos, na qual a cidadania dos incluídos é distinta da dos excluídos e, em decorrência, também são distintos os direitos, as oportunidades e os horizontes espaciais e temporais dos brasileiros. Portanto, compreende-se que, de todos os setores sociais básicos dos quais o negro é excluído, a educação é o que contribui de forma decisiva para a mobilidade social dos indivíduos. A educação, quando pautada nos princípios da promoção da igualdade e do respeito às diferenças, pode influenciar nas chances de integração dos indivíduos, de diferentes raças/etnias, na sociedade e na transformação da situação desigual em que se encontram. Mobilidade social Portanto, compreende-se que, de todos os setores sociais básicos dos quais o negro é excluído, a educação é o que contribui de forma decisiva para a mobilidade social dos indivíduos. A educação, quando pautada nos princípios da promoção da igualdade e do respeito às diferenças, pode influenciar nas chances de integração dos indivíduos, dediferentes raças/etnias, na sociedade e na transformação da situação desigual em que se encontram. A Constituição Federal A sociedade brasileira tem revelado, nos últimos tempos, o surgimento e o crescimento de novas forças sociais nascidas nas décadas de 60/70, influenciada pelo consenso mundial de que os direitos humanos devem ser os princípios fundamentais de uma sociedade livre, harmônica e justa. Assim, a Constituição Federal de 1988 configura-se como a expressão dos anseios de liberdade, das lutas pela democracia de todo o povo brasileiro e instrumento legítimo de consagração, com força jurídica, das aspirações por justiça social e proteção da dignidade humana. O processo democrático estabelecido na Constituição brasileira, relativamente às populações negra e indígena, historicamente excluídas no que diz respeito à educação, passa a ser regulamentado na LDB, em seus artigos 26-A e 79-B. Essa legislação estabelece a obrigatoriedade do ensino sobre história e cultura afro- brasileira e indígena no âmbito de todo o currículo escolar, resgatando sua contribuição decisiva para o desenvolvimento social, econômico, político e cultural do país. O Estado brasileiro passa a se reconhecer racista a partir das lutas e reivindicações dos Movimentos Sociais e, em 21 de março de 2003, institui a Secretaria de Política de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). Com essa instituição, estados, municípios e o Distrito Federal passam a se organizar rumo ao estabelecimento de políticas de inclusão educacional. Histórico da luta dos negros e dos índios pelo acesso à educação de qualidade e pela permanência na escola Ao longo da história do Brasil, que se deu hegemonicamente por meio da colonização, a escravidão e o autoritarismo contribuíram para a introjeção, no imaginário social, do sentimento de incapacidade das populações negras e indígenas brasileiras. O negro brasileiro foi, desde sua chegada ao Brasil, o grande responsável pelas resistências à escravidão e às lutas pelo acesso à educação. Foram eles, também, que se organizaram e criaram os movimentos sociais negros: “Falar de Movimento Negro implica no tratamento de um tema cuja complexidade, dada a multiplicidade de suas variantes, não permite uma visão unitária. Afinal, nós, negros, não constituímos um bloco m o n o l í t i c o , d e c a r a c t e r í s t i c a s r í g i d a s e imutáveis” (GONZALEZ, 1982, p. 18). As formas de perceber o mundo com suas subjetividades, abarcando necessidades individuais e ou coletivas, que representam diversas identidades e os simbolismos, mobilizam e legitimam um movimento social. Tais visões passam a ter influência no pensamento de um coletivo social, na medida em que expressões, sentimentos e atitudes passam a ser externadas. Pensar o movimento social negro brasileiro é viabilizar um conjunto de vozes que ecoam clamando por ideais comuns, porque, ao contrário do que muitos pensam, os movimentos sociais não são apenas fontes de conflitos e climas de tensões, mas é a partir deles que surgem agendas e encaminhamentos de políticas sociais e públicas que provocam transformação social. A ideia de que, no Brasil, a situação dos negros, descendentes de africanos que foram escravizados, teve um desfecho pautado na harmonia e na fraternidade é uma visão do senso comum. A sociedade brasileira resistiu à aceitação da nova condição dos negros, que passaram de escravizados a libertos, gerando um clima de animosidade na relação entre os antigos senhores de engenho e os ex- escravizados. Desde o início da história educacional brasileira, o acesso à educação foi pensado de forma excludente, preconceituosa e racista, pois os interesses do grupo étnico europeu foram alimentados por meio de ações institucionalizadas. Esse fato fez com que se perpetuassem, até o momento, o preconceito e o racismo, individualizados e institucionalizados. Uma série de leis brasileiras relacionadas à educação permitiu a exclusão de parcelas da população do acesso aos bancos escolares. Em 22/12/1837, a Lei Municipal nº 14, em São Leopoldo/RS, proibia terminantemente escravos e pretos, embora livres ou libertos, de frequentarem as aulas públicas. Em 1838 foram proibidos de frequentar escola pública, pelo governo de Sergipe, os negros e portadores de doenças contagiosas. Em 17/02/1854, a Lei nº 1.331 estabeleceu a proibição de ingresso de escravos jovens na escola. A Lei nº 7.031-A, de 6/09/1878, estabeleceu que os negros só podiam estudar em cursos noturnos, contudo não havia luz nas escolas. Em 1893, institutos de educação católicos, em São Paulo, instituíram o Regulamento do Seminário Episcopal cujo art. 10º prescrevia que, para ter lugar entre os gratuitos e meio-pensionistas do seminário, o pretendente não poderia ser de cor preta. Em 1899, surgiram as primeiras leis a respeito da obrigatoriedade do ensino fundamental. Os negros e os índios não foram contemplados. Em 1910, os barões do café se tornaram os primeiros construtores de escolas nas zonas rurais para benefício da própria família. Os imigrantes brancos se beneficiaram da iniciativa. Todo esse processo de exclusão dos negros gerou, para além da libertação oficial, a assinatura da Lei Áurea, pois era urgente a luta pela garantia de direitos e oportunidades. Isso estabeleceu uma trajetória incansável de busca por acesso a bens e serviços e por visibilidade nas políticas públicas. O processo de luta e resistência negra tomou outros rumos e encontrou diversos obstáculos. A mobilização, a reação e a resistência tiveram essencial significado na história do negro brasileiro e a marcou profundamente. A compreensão de que a população negra nunca aceitou passivamente a condição de desigualdade a que foi e é submetida é imprescindível para o reconhecimento do valor dessa população. Ao buscar a conquista pela dignidade, homens e mulheres negros travaram lutas com muito derramamento de sangue. O Movimento Negro do Brasil é dividido em três fases: • Primeira fase (1889-1937) • Segunda fase (1945-1964) • Terceira fase (1978-2000) As três fases desses movimentos apresentam como premissa básica a luta pelos direitos dos negros, diferenciando-se apenas na dimensão dos temas e na organização dos integrantes dos grupos. O movimento negro no Brasil • Na primeira fase, são estabelecidos métodos de luta, com a criação de agremiações negras, palestras, atos públicos e publicações de jornais. • Na segunda fase, há um foco no teatro, na imprensa, nos eventos acadêmicos e nas ações que visam à sensibilidade da elite branca para os problemas enfrentados pelos negros no país. • Já na terceira fase ocorre a apoderação de manifestações públicas, imprensa, formação de comitês de base e movimentos nacionais. Nesse cenário, quatro movimentos de resistência merecem destaque: 1) Revolta da Chibata – Ocorreu em 1910, na Baía da Guanabara, Rio de Janeiro, com mais de dois mil marujos exigindo a extinção dos castigos corporais. O Decreto nº 03, de 16 de novembro de 1889, assinado um dia após a Proclamação da República, extinguiu os castigos corporais na armada, contudo, em novembro do ano seguinte, o Marechal Deodoro da Fonseca tornou a legalizá-los, prevalecendo o seguinte texto: “Para as faltas leves, prisão e ferro na solitária, a pão e água; faltas leves e repetidas, idem, por seis dias; faltas graves, 25 chibatadas”. Em novembro de 1910, o marinheiro Marcelino Rodrigues foi penalizado com 250 chibatadas. A imprensa demonstrou-se insatisfeita com o desfecho da revolta, publicando notas de repúdio ao fato de o governo ter cedido à reivindicação dos marinheiros que exigiam a extinção dos castigos corporais. Os participantes da revolta foram perseguidos e João Cândido acabou preso com mais dezessete marinheiros numa masmorra na Ilha das Cobras. 2) Imprensa Negra – Surgiuem meados da década de 1920. Seu principal objetivo era superar e desmistificar a ideia de que a população negra sempre foi analfabeta e desorganizada. O conhecimento da história da Imprensa Negra é essencial, pois ela foi a ferramenta com a qual os negros colocaram em destaque suas ideias por meio da publicação de jornais, tais como: o Xauter (1916-1916), o Bandeirante (1918-1919), o Menelik (1915-1916), o Alfinete (1918-1921), o Tamoio (1923-1923), e outros. 3) Frente Negra Brasileira (FNB) – Fundada em 1931 por meio de uma forte organização centralizada e composta por 20 membros, além de milhares de associados e simpatizantes. A FNB, com grande representatividade política e social, passou a figurar como partido político. A nova fase durou pouco tempo, estendeu-se até 1937, devido à decretação do Estado Novo. 4) Teatro Experimental Negro (TEN) – Tinha como proposta inicial a formação de um grupo de atores negros. Foi responsável pela publicação do jornal Quilombo, pela inauguração de um centro de pesquisa e de promoção de conferências, congressos e concurso de beleza. Criou um museu. Após a abolição da escravatura, um setor mais organizado da população negra criou vários tipos de associações, onde estavam entre seus iguais e tinham direito ao lazer em clubes, centros cívicos, grêmios literários, sociedades recreativas e dançantes. Posteriormente, essas associações se tornaram das “pessoas de cor”, e a organização no sentido da conscientização da população negra e do acesso aos direitos de cidadão iniciou-se por meio de publicações de jornais e de ações sócio-político-culturais. Lutas da população negra brasileira Diante das práticas discriminatórias relacionadas ao negro, a Inspetoria Geral da Instrução Primária e Secundária da Corte autorizou o funcionamento de “escola destinada para meninos de cor”, sob a direção de um professor negro. A história do Movimento Negro pode ser vista em uma linha do tempo a seguir, baseada no trabalho de Mestrado de Adriana Maria P. da Silva, citada na proposta elaborada pela Secretaria de Política de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (SEPPIR/PR) para o Plano Nacional de Educação (PNE) 2011-2020. Histórico do Movimento Negro 1889 – Carta da Comissão de Libertos do Vale do Paraíba endereçada ao futuro ministro da justiça, Rui Barbosa, reivindicando direito à educação para seus filhos. 1927 (SP) – Centro Cívico Palmares foi uma entidade negra muito importante, quer pela proposta de elevação política, moral e cultural, quer pelo grau de organização e capacidade de penetração na comunidade negra. Ele foi articulado por um grupo de ativistas que estavam dispostos a encampar a luta contra o “preconceito de cor” em uma perspectiva mais política, sem recorrer às atividades recreativas, como os bailes dançantes. Em 1929, houve a sua extinção. 1931 (SP) – Frente Negra Brasileira destacou-se pelo maior tempo de existência, quantitativo de adeptos, pela visão empreendedora na execução dos projetos e por ter um olhar sensível quanto à inclusão das mulheres negras na luta. Vale destacar que as mulheres ficavam excluídas dos espaços decisórios, não tendo ficado nenhum registro da participação feminina nos grandes conselhos. 1945-1946 – Convenção Nacional do Negro foi realizada em 1945 em São Paulo e em 1946 no Rio de Janeiro. Essa convenção apresentou um “Manifesto à Nação Brasileira”, que foi enviado a todos os partidos da época. O manifesto tinha seis reivindicações que deveriam constar na elaboração de uma nova constituinte: 1) Que se torne explícita, na Constituição de nosso país, a referência à origem étnica do povo brasileiro, constituído das três raças fundamentais: a indígena, a negra e a branca; 2) Que se torne matéria de lei, na forma de crime de lesa- pátria, o preconceito de cor e raça; 3) Que se torne matéria de lei penal o crime praticado nas bases do preceito acima, tanto nas empresas de caráter particular como nas sociedades civis e nas instituições de ordem pública e particular; 4) Enquanto não for tornado gratuito o ensino em todos os graus, que sejam admitidos brasileiros negros, como pensionistas do Estado, em todos os estabelecimentos particulares e oficiais de ensino secundário e superior do país, inclusive nos estabelecimentos militares; 5) Isenção de impostos e taxas, tanto federais como estaduais e municipais, a todos os brasileiros que desejam estabelecer-se com qualquer ramo comercial, industrial e agrícola, com o capital não superior a CR$ 20.000,00; 6) Considerar como problema urgente a adoção de medidas governamentais visando à elevação do nível econômico, cultural e social dos brasileiros. 1954 (SP) – Associação Cultural do Negro (ACN). A entidade tinha departamentos de cultura, esporte, estudantil e feminino. Responsável pela publicação do jornal O Mutirão e a edição de cadernos de cultura. Patrocinou um ciclo de conferências intitulado de “Os encontros de cultura negra”. Montou uma biblioteca e articulou projetos educacionais. 1971 (RS) – Grupo Palmares (primeiro ato evocativo de celebração do 20 de novembro). 1974 (BA) – Fundação do bloco afro do Ilê Aiyê, em Salvador, com o objetivo de preservação da tradição cultural africana e afirmação positiva da identidade negra na Bahia. É um bloco carnavalesco que aceita somente integrantes negros. 1974 (RJ) – Sociedade de Intercâmbio Brasil – África (SINBA) foi criada com o objetivo de promover relações comerciais e culturais com países africanos de língua oficial portuguesa. Criação do grupo de Dança Olorum Babamim como um suporte financeiro da entidade. Edição do Jornal SINBA em 1977, com a distribuição em quatro estados, e tinha como característica um cunho de crítica social na transcrição de textos e discursos de intelectuais e pensadores africanos. 1977 (SP) – Centro de Cultura e Arte Negra (CECAN). Um grupo formado por estudantes e artistas negros. 1978 (SP) – Festival Comunitário Negro Zumbi (FECONEZU) e criação do Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR). O movimento culminou com uma grande manifestação entre os companheiros do Rio de Janeiro e de São Paulo após o assassinato de um motorista de táxi em uma delegacia de São Paulo, em abril de 1978. Em 7 de julho do mesmo ano, os companheiros do movimento leram uma movimento social. 1979 (RJ) – Aqualtune – Foi criado um grupo de mulheres vinculado ao IPCN, com a perspectiva de congregar as mulheres negras independentes de filiações políticas, partidárias e ideológicas. 1980 – Luiza Mahin – Foi criado o coletivo de mulheres negras que compreenderam que eram vítimas de machismo também por ativistas do movimento negro. 1982 – Programa de Ação do Movimento Negro Unificado (MNU) – Apontava os problemas específicos sofridos pelas mulheres negras numa sociedade machista e racista. O programa elencou em sua agenda os seguintes tópicos: 1) Pela participação da mulher negra na luta de emancipação do povo negro; 2) Contra a exploração sexual, social e econômica da mulher negra; 3) Contra a esterilização das mulheres do Terceiro Mundo; 4) Contra a discriminação da mãe solteira; 5) Pela legalização do aborto; 6) Contra a divisão sexual do trabalho; 7) Por trabalho igual, salário igual; 8) Contra a discriminação da mulher; 9) Contra o machismo. 1983 (RJ) – Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras – O coletivo se estruturava com um trabalho político baseado nos campos de atuação das suas militantes, as quais eram ligadas às associações de moradores, um movimento com muita expressão na época. Atuavam lá as que estavam ligadas a outros campos e atuavam em outros espaços. As atividades eram definidas como frente de trabalho, em que cada uma se desenvolvia quando e como se sentia mais preparada e livre. O nome do coletivo era uma homenagem à Rainha Nzinga da África, uma figura importante na lutacontra o colonizador e, além disso, uma personagem histórica que se converteu em símbolo de luta como “guerreira” e estrategista. O coletivo também tinha como símbolos o pássaro e as cores roxo e amarelo (BARRETO, 2005, p. 27-28). 1983 (SP) – Coletivo de Mulheres Negras tendo como primeira iniciativa a reivindicação da participação da mulher negra no Conselho Estadual da Condição Feminina, órgão instituído pelo governo de São Paulo. 1986-1987 – Durante os anos de 1980, nove escolas da rede estadual de Salvador contaram com a disciplina “Introdução aos Estudos Africanos” em sua grade curricular, uma experiência pioneira de diálogo institucional entre o movimento negro e a Secretaria de Educação. 1986 – Apresentação de um projeto de lei com o foco em educação e políticas de ações afirmativas pelo deputado Abdias Nascimento. 1988 (SP) – GELEDÉS – Instituto da Mulher Negra. Década de 1980 Ao longo dessa década ocorreram 10 encontros regionais de negros, dentre os quais vale ressaltar o VIII Encontro dos Negros do Norte e Nordeste (1988- PE) cujo trabalho foi inteiramente dedicado à educação, sublinhando a prioridade do tema para intervenções de instituições do movimento negro contemporâneo, cem anos após a abolição. 1988 – Criação de várias ONGs em defesa dos direitos da população negra na década de 1990. 2003 – Criação da SEPPIR como órgão do Estado responsável pela elaboração e gestão de ações de combate ao racismo e às desigualdades raciais. Nesse mesmo ano, a LDB foi alterada pela Lei nº 10.639/2003, que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todos os níveis de ensino e áreas de conhecimento. 2004 – O Conselho Nacional de Educação estabelece as diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana (Resolução CNE/CP 01/2004), que foi consubstanciado em 2009, no Plano Nacional de implementação dessas DCN. 2009 – Plano nacional de implementação das diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro- brasileira e africana. Em 2010, foi aprovada a Lei 12.288/2010, que instituiu o Estatuto da Igualdade Racial. A referida lei também é um importante marco legal para orientar a formulação de políticas públicas pelo diferentes entes federados nas mais diversas áreas. 2011 – Com o objetivo de erradicar a discriminação e promover o respeito à diversidade e às heranças culturais, a Organização das Nações Unidas (ONU) decretou 2011 como o Ano Internacional do Afrodescendente como tentativa de combater o racismo e as desigualdades econômicas e sociais, tendo em vista que, segundo o secretár io-geral da ONU, Ban KiMoon, “os afrodescendentes estão entre as comunidades mais afetadas pelo racismo, enfrentando restrições de acesso a serviços básicos, como saúde e educação de qualidade”. Em 1930, o Brasil vive a ocultação do racismo forçado pelo processo de desenvolvimento nacional, adotando um discurso de valorização da mestiçagem, reafirmando uma pseudo-unidade do povo brasileiro como produto das diferentes raças e cuja convivência harmônica permitiu ao Brasil escapar dos problemas raciais vividos em outros países. Como resultado desse movimento de negação interno, em 1940 a imprensa internacional passa a registrar, de forma equivocada, a ideia de democracia racial, apresentando a organização da sociedade brasileira como referência de justiça social. A democracia racial passou de mito a dogma no período dos governos militares. Durante a década de 1970, o ministro das Relações Exteriores declarou que não havia discriminação no Brasil e que, portanto, não havia necessidade de se tomarem quaisquer medidas esporádicas de natureza legislativa, judicial e/ou administrativa para assegurar a igualdade de raças/etnias. Com isso, o debate da questão racial desapareceu da pauta nacional, muito embora fosse o tema central de organizações negras, que redundaram, inclusive, em 1978, no Movimento Negro Unificado, o MNU. O MNU agregou diferentes associações negras, que tinham como foco a denúncia da discriminação racial, a luta por educação e políticas afirmativas. Em virtude desses fatos históricos desconhecidos do grande público, somente com o processo de redemocratização do país, no final de década de 1980, o tema volta à pauta, mas diluído no debate sobre justiça social. A manutenção dos estereótipos e das práticas discriminatórias preocupou acadêmicos que, interpelados por estudos e denúncias feitas pelo movimento negro, passaram a refletir mais sobre a temática racial. Durante as décadas de 1980 e 1990, intensificaram-se as denúncias de discriminação étnico-racial e os movimentos sociais negros cobraram ações do Estado que visassem proteger a população negra e ofertar-lhe condições de desenvolvimento. Vale dizer que o discurso tem sido mais efetivo que a prática, mas, como afirma Romão (2005, p. 60), “para resolver essas questões, é preciso dar dois passos sempre. O primeiro é a lei; o segundo, o estabelecimento de políticas públicas que a efetivem”. Sendo assim, fatores internos, como a Constituição de 1988, a Marcha Zumbi dos Palmares contra o racismo, pela cidadania e a vida, em 1995, e a LDB, de 1996, e externos, como a Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, em 2001, em Durban, África do Sul, contribuíram para o avanço das políticas públicas com o viés racial no Brasil. No governo Lula, a questão racial ganhou visibilidade nos mais diversos setores. A Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), hoje Secre tar ia de Educação Cont inuada , Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), foi criada em julho de 2004, e seu “objetivo é contribuir para a redução das desigualdades educacionais por meio da participação de todos os cidadãos em políticas públicas que assegurem a ampliação do acesso à educação”. Um fato que merece destaque, também, é a educação escolar quilombola, que a partir da Conferência Nacional de Educação (CONAE) ocorrida em Brasília, em 2010, incluiu a educação escolar quilombola como modalidade da educação básica, no Parecer CNE/CEB 07/2010 e na Resolução CNE/CEB 04/2010 que instituem as Diretrizes Curriculares Gerais para a Educação Básica. Isso significa que a regulamentação da educação escolar quilombola nos sistemas de ensino deverá ser consolidada em nível nacional e seguir orientações curriculares gerais da Educação Básica e, ao mesmo tempo, garantir a especificidade das vivências, realidades e histórias das comunidades quilombolas do país. Mesmo sabendo que, conforme dados do MEC, existem comunidades remanescentes de quilombos em quase todos os estados, exceto no Acre, Roraima e Distrito Federal, os estudantes do Distrito Federal têm o direito de conhecer a história dessas populações e seus modos de pensar o mundo. O entendimento sobre as políticas específicas que tratam de raça no Brasil passa, necessariamente, pela compreensão de como o racismo se processa no país. Henriques e Cavalleiro (2005) apontam que a dinâmica das relações raciais no Brasil é permeada por “uma lógica de segregação amparada em preconceitos, discriminações raciais disseminados e reproduzidos pelas mais diversas instituições sociais, entre elas a escola” (p. 211). Ideologias que sustentam o racismo Segundo Munanga (2000), três ideologias se tornaram mecanismos de subjugação da classe dominante: a degenerescência do mestiço, o ideal de branqueamento e a “democracia racial”. Esses mecanismos foram produzidos no mundo e permanecem ainda no seio da sociedade, dificultando a ascensão social de negros e negras, pois estes são vistos como negligentes e incapazes intelectualmente. As três ideologiasforam muito bem trabalhadas e disseminadas pelo mundo. De maneira sucinta, a teoria da degenerescência não foge do conceito literal da palavra que quer dizer decaimento, definhamento. A ideia sustentada era de inferioridade do mestiço em todos os aspectos de sua formação. No que se refere à teoria do ideal do embranquecimento, tem- se por princípio hegemônico o da superioridade da pessoa branca, ou seja, indica a brancura como uma situação de privilégio; essa concepção é forte impulsionadora da propagação de fenômenos racistas. Uma das principais características da política de branqueamento que caracterizou o racismo no Brasil foi a geração de estereótipos de inferioridade e/ou superioridade racial. O discurso da ideologia do branqueamento junto com o da “democracia racial” propagaram a não existência de diferenças raciais no país e a falsa visão da convivência harmoniosa e pacífica entre as pessoas, que, por conseguinte, gerava direitos iguais a todas e todos (Freyre, 1933). O autor da expressão “mito da democracia racial”, Florestan Fernandes (1972), dialogava de forma crítica com as obras e as ideias de Gilberto Freyre (1933), desde o início de sua formação acadêmica. Para ele, as circunstâncias histórico-sociais apontadas fizeram com que o mito da “democracia racial” surgisse e fosse manipulado como conexão dinâmica dos mecanismos societários de defesa dissimulada de atitudes, comportamentos e ideais “aristocráticos” da “raça dominante”. Para que sucedesse o inverso, seria preciso que ele caísse nas mãos dos negros e dos mulatos; e que estes desfrutassem de autonomia social equivalente para explorá-lo na direção contrária, em vista de seus próprios fins, como um fator de democratização da riqueza, da cultura e do poder (FERNANDES, 1978 apud GUIMARÃES, 2002, p. 155). O mito da democracia racial é compreendido, segundo Gomes (2006), como uma corrente ideológica que pretende negar a desigualdade racial entre brancos e negros no Brasil como fruto do racismo, afirmando que existe entre estes dois grupos raciais uma situação de igualdade de oportunidades e de tratamento. Esse mito pretende, de um lado, negar a discriminação racial contra os negros no Brasil, e, de outro, perpetuar estereótipos, preconceitos e discriminações construídos sobre esse grupo racial (...). Dessa forma, o mito da democracia racial atua como um campo fértil para a perpetuação de estereótipos sobre os negros, negando o racismo no Brasil, mas, simultaneamente, reforçando as discriminações e desigualdades raciais (p. 56). Nesse sentido, a negação da discriminação racial no Brasil se ancora no mito da democracia racial. Essa negação encontra-se no cerne da difusão da ideologia do embranquecimento, citada anteriormente, pautada na “predominância biológica e cultural branca e o desaparecimento dos elementos não- brancos” (MUNANGA, 2006, p. 56). O conceito de ideologia do embranquecimento está presente e é marcante nos diversos meios de comunicação e na grande mídia, podendo ser identificada naquilo que chamamos de ressignificações cotidianas do racismo no Brasil. A valorização excessiva dos elementos estéticos e culturais não negros produz consequências que levam ao negligenciamento da diversidade étnico-racial do país, fazendo com que os referenciais históricos da população afro-brasileira e africana se tornem invisíveis. O mais grave dessa ideologia diz respeito ao nível psicológico social, que fica inebriado pelas positividades dispensadas à população branca e as negatividades à negra, fomentando, dessa forma, uma sistemática rejeição da aparência de origem africana e, paralelamente, incentivando uma “compulsão social de brancura”. Essas representações sociais se constituem no tecido social e atingem as mais diversas instituições, ficando bem marcadas nas educacionais. O Brasil, assim como outros países, é marcado pela mestiçagem, tanto biológica quanto cultural e social, entendendo, aqui, mestiçagem biológica como as misturas genéticas entre os diversos grupos raciais, que, por consequência, misturam também hábitos e costumes. Isso não significa que haja uma democracia racial em suas relações sociais, visto que as oportunidades são demarcadas pelo fenótipo e, principalmente, pela cor da pele. Portanto, negros e indígenas não foram reconhecidos e valorizados pela diversidade étnica e cultural, nem pela contribuição na formação da identidade nacional, além de ficarem relegados ao segundo plano no que tange ao acesso a bens e serviços, sobremodo em relação às oportunidades educativas. Isso pode ser observado, também, por meio da história educacional indígena traçada a seguir: BREVE HISTÓRICO: EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA BRASILEIRA Durante todo o período que vai desde a chegada dos portugueses até a década de 1970, a educação escolar indígena esteve, na maior parte do tempo, a cargo de entidades religiosas e grupos religiosos, dentre eles os franciscanos, conforme afirma Saviani (2010, p. 40): Mesmo que se demonstrasse que, de fato, a influência dos franciscanos no período colonial teria sido mais penetrante, mais capilar, atestada por ampla receptividade popular, impõe-se a conclusão de que as estratégias acionadas pelos jesuítas e seus admiradores foram eficazes na neutralização daquela força. Desde o século XVI, a partir da chegada dos portugueses ao Brasil, os índios passaram por um processo de catequização e socialização para que fossem “assimilados” pela sociedade brasileira. A tradição indigenista, desde essa época até os anos de 1970, se pautava no estímulo a formas sociais e econômicas que geravam dependência e subordinação da terra e do trabalho indígena a uma lógica de acumulação, conforme demonstram Kahn e Franchetto (1994). Segundo as autoras, “o lema era integrar, civilizar o índio, concebido como um estrato social submetido a uma condição étnica inferior, quando vistos nos moldes da cultura ocidental cristã” (p. 6). A escolarização dos indígenas pelos jesuítas iniciou-se em 1549, quando começou a ser estruturada a primeira escola para índios do Brasil. Isso se deu até 1757, quando o trabalho dos padres deixou de contar com o apoio da Coroa Portuguesa, então interessada em aumentar a produção agrícola da Colônia. Para tal, como reivindicavam os colonos, a escravização e a expropriação dos índios de suas terras eram necessárias. De fato, com a expulsão dos jesuítas do Brasil e a implantação do Diretório dos Índios, a escravização indígena foi intensificada para atender ao aumento da necessidade de braços para atuarem nas atividades domésticas, agrícolas e extrativistas. No entanto, a partir de 1845, com a lei do Diretório, já revogada, os missionários são reintroduzidos oficialmente no Brasil com a responsabilidade de catequizar e escolarizar os índios, com o objetivo de incorporá-los à cultura europeia e cristã. Por volta de 1870, frente à dificuldade de manter os índios nas escolas dos aldeamentos, em algumas províncias ocorreu investimento em institutos de educação, em internatos e, no caso específico de Pernambuco, em orfanatos para crianças indígenas, isto se deu com a finalidade de transformá-las em intérpretes linguísticos e culturais para apoiar os missionários na suposta “civilização” dos seus parentes. Essas instituições localizavam-se fora da área dos aldeamentos e pretendiam oferecer às crianças indígenas não só a instrução primária elementar, mas também ensino para desempenho de funções identificadas com o desenvolvimento das províncias e com os processos de assimilação da diversidade dos povos indígenas (BRASIL, 2007, p. 12-13). Em linhas gerais, durante todo o Período Imperial (1808-1889), realizaram-se muitos debates em torno do tema educação escolar primária, organizada e mantida pelo poder público estatal, que pudesse atender, principalmente, negros (livres, libertos ou escravos), índios e mulheres,que compunham as chamadas camadas inferiores da sociedade (BRASIL, 2007, p. 13). Entretanto, estar presente nas agendas políticas da época não representou para os índios o atendimento de seus interesses, o que fez com que o Estado recorresse novamente às missões religiosas. Assim, do final do Império até o início do século XX, o Estado dividiu com as ordens religiosas católicas, mais uma vez, a responsabilidade pela educação formal para índios (idem). Nos anos seguintes, com a instauração e consolidação do regime republicano, o Estado iniciou a sistematização de uma política indigenista com a clara intenção de mudar a imagem do Brasil perante a sociedade nacional e mundial. Órgãos governamentais foram criados com as funções de prestar assistência aos índios e protegê-los contra atos de exploração e opressão e de gerir as relações entre os povos indígenas, os não índios e os demais órgãos de governo. A educação escolar, uma das ações de proteção e assistência sob a responsabilidade desses órgãos indigenistas, assume papel fundamental no projeto republicano de integração do índio à sociedade nacional por meio do trabalho. Ela é posta como fundamental para a sobrevivência física dos índios e inclui não só o ensino da leitura e da escrita, mas também de outros conhecimentos como higiene, saneamento, estudos sociais, aritmética. Além de ensinamentos práticos de técnicas agrícolas, marcenaria, mecânica e costura, constituindo uma reserva alternativa de mão de obra barata para abastecer o mercado de trabalho (BRASIL, 2007, p. 13). Nesse espírito, foi criado, em 1910, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), extinto em 1967, quando suas atribuições são repassadas para a Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Frente às dificuldades técnicas encontradas para implantar o ensino bilíngue, decorrentes do escasso conhecimento acerca das várias línguas autóctones, a partir de 1970 a FUNAI estabelece convênios com o Summer Institute of Linguistics (SIL). No entanto, as ações desenvolvidas junto aos indígenas pelos missionários e linguistas vinculados ao SIL não são bem recebidas por instituições de áreas como a linguística e a antropologia, colaborando para que o Ministério da Educação passasse a assumir a responsabilidade de coordenar as ações relativas à educação escolar indígena. Nos anos 1970, ações alternativas às do governo brasileiro passaram a surgir com a emergência mundial de debates em torno dos direitos humanos, possibilitados pelos processos de descolonização e pela tendência à globalização. Paralelamente, os povos indígenas passaram a se articular politicamente para defender seus direitos e projetos de futuro, criando suas próprias organizações e associações, o que culminou na fundação, em 1980, da União das Nações Indígenas, inicialmente Unind e hoje UNI (BRASIL, 2007, p. 15). A partir de então, de acordo com Kahn e Franchetto (1994, p. 6), houve uma revolução nas práticas e rumos da educação indígena brasileira que passa a ser inserida, legitimada e legalizada junto ao poder público. São criadas, então, parcerias entre órgãos governamentais, em âmbito federal, estadual e municipal, e movimentos indígenas, além de organizações pró- índio. Aos poucos, experiências educacionais bem-sucedidas, desenvolvidas por iniciativa própria ou a pedido das comunidades indígenas, passam a ser referência para as agências governamentais na construção de suas políticas (BRASIL, 2007, p. 16). Atualmente, no Brasil, vivem mais de 800 mil índios, cerca de 0,4% da população brasileira, segundo dados do Censo do IBGE de 2010. Eles estão distribuídos entre 683 terras indígenas e algumas áreas urbanas. Existem, ainda, grupos que estão requerendo o reconhecimento de sua condição indígena junto ao órgão federal indigenista. A diversidade étnica e linguística brasileira está entre as maiores do mundo. São cerca de 220 povos indígenas e mais de 70 grupos de índios isolados, sobre os quais ainda não há informações objetivas. No entanto, dentre as cerca de 1.300 línguas diferentes que eram faladas no Brasil há 500 anos, permanecem apenas 180, pertencentes a mais de 30 famílias linguísticas diferentes, número que exclui aquelas faladas pelos índios isolados, que ainda não puderam ser estudadas e conhecidas. Acerca do índio, ainda vigora o estereótipo, sendo que, nas escolas, as questões das sociedades indígenas, frequentemente ignoradas nos programas curriculares, têm sido sistematicamente mal trabalhadas. Dentro da sala de aula, os professores revelam-se mal informados sobre o assunto e os livros didáticos, com poucas exceções, são deficientes no tratamento da diversidade étnica e cultural existente no Brasil. (GRUPIONI, 1992, p. 13). Em princípio, precisamos diferenciar educação indígena e educação para o índio, o que nos remete aos primórdios das conceitualizações sobre educação indígena, que foi estabelecida por Bartolomeu Melià, em 1979, e ampliada por Aracy Lopes da Silva, em 1980 (KAHN, 1994, p. 137). De acordo com Silva (1980 apud KANH, 1994, p. 137), processos tradicionais de controle e reprodução social do grupo, mesmo considerando as mudanças que essas sociedades vêm sofrendo ao longo de sua história de contato. A segunda modalidade, educação para o índio, estaria inevitavelmente orientada “por uma postura básica: ou a crença de que o índio vai/deve desaparecer na sociedade nacional, ou a crença de que ele vai/deve sobreviver”. Em relação à distinção entre educação indígena e educação escolar indígena, Nincao (2003) afirma que educação indígena é intrassocial e acontece no contexto social em que se vive, onde é dispensado o acesso à escrita e aos conhecimentos universais, pois cada povo indígena tem suas formas próprias e tradicionais de educação caracterizadas pela transmissão oral do saber socialmente valorizado. Por outro lado, a educação escolar indígena é uma forma sistemática e específica de implementar a escola entre as comunidades indígenas de tal forma que, a partir das formas de construção do conhecimento próprio de suas comunidades, possam ter acesso aos conhecimentos universais sistematizados pela escola nos conteúdos curriculares e no uso da escrita, porém articulados ao contexto sociocultural indígena de forma reflexiva. Em 2003, tem início, no Ministério da Educação, um movimento para a inserção e o enraizamento do reconhecimento da diversidade sociocultural da sociedade brasileira nas políticas e ações educacionais, que se consolida com a criação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), atual Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), na qual está inserida a Coordenação-Geral de Educação Escolar Indígena (CGEEI). Até a Constituição Federal de 1988, nenhuma outra instância havia feito referência aos povos indígenas, o que ocorreu anteriormente foram algumas ações com vistas à preservação da cultura indígena, como o Serviço de Proteção ao Índio, criado em 1910 pelo Marechal Rondon e substituído em 1967 pela Fundação Nacional do Índio, a FUNAI. A tradição legislativa e administrativa brasileira sempre refletiu uma representação estereotipada do indígena, entendendo-o como categoria étnica e social transitória, contribuindo para o seu desaparecimento histórico e cultural. Contudo, a Constituição Federal de 1988 significou um grande marco pois as políticas públicas voltadas à educação escolar indígena, a partir daí, passaram a se pautar no respeito aos conhecimentos, às tradições e aos costumes de cada comunidade, tendo em vista a valorização e o fortalecimento das identidades étnicas. Assim, em seu artigo 210, fica assegurado aos povos indígenas o direito de utilizarem suas línguas e processos próprios de aprendizagem. Legislação que garante e ampara os direitos dos indígenas • Constituição Federal de 1988: reconhecimento do
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