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1 ATUAÇÃO COM GRUPOS EM SÁUDE 1 SUMÁRIO FACULESTE ............................................................................................ 2 Introdução ................................................................................................ 3 A Psicologia Social da Saúde .............................................................. 5 A prática do psicólogo na atenção primária ......................................... 8 1) Saúde Reprodutiva ....................................................................... 9 2) Saúde das crianças .................................................................... 10 3) Adolescentes .............................................................................. 10 4) Idosos ......................................................................................... 10 A atuação do psicólogo em grupos terapêuticos ................................ 12 Práticas grupais e atenção primária à saúde ..................................... 14 Da necessidade de superação de algumas tradições em saúde .... 17 Recursos e ferramentas para conversas dialógicas ....................... 19 Autonomia e dependência na promoção da saúde......................... 22 REFERÊNCIAS ..................................................................................... 28 2 FACULESTE A história do Instituto FACULESTE, inicia com a realização do sonho de um grupo de empresários, em atender à crescente demanda de alunos para cursos de Graduação e Pós-Graduação. Com isso foi criado a FACULESTE, como entidade oferecendo serviços educacionais em nível superior. A FACULESTE tem por objetivo formar diplomados nas diferentes áreas de conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua formação contínua. Além de promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos que constituem patrimônio da humanidade e comunicar o saber através do ensino, de publicação ou outras normas de comunicação. A nossa missão é oferecer qualidade em conhecimento e cultura de forma confiável e eficiente para que o aluno tenha oportunidade de construir uma base profissional e ética. Dessa forma, conquistando o espaço de uma das instituições modelo no país na oferta de cursos, primando sempre pela inovação tecnológica, excelência no atendimento e valor do serviço oferecido. 3 Introdução O grupo como objeto de estudos ganhou densidade na psicologia social durante a segunda guerra mundial, com Kurt Lewin (1890-1947), considerado por muitos autores como fundador da psicologia social. A Dinâmica de Grupo ou ciência dos pequenos grupos, é para alguns autores o objeto e método da psicologia social, limita-se porém ao estudo empírico da interação dentro dos grupos. Sendo porém relevantes as suas contribuições sobre a estrutura grupal, os estilos de liderança, os conflitos e motivações, espaço vital ou o campo de forças que determinam a conduta humana possuem diversas aplicações e entre elas a psicologia infantil e a modificação de comportamentos seja para benefícios dietéticos (estudos de pesquisa – ação realizados com Margareth Mead) seja para melhor a produtividade e desempenho nos ambientes de trabalho. A Psicologia Social pode ser entendida como o estudo das relações humanas a partir de um viés individual até uma perspectiva mais ampla, ou social, sendo que este ramo enfoca mais o indivíduo. Trata-se de uma ponte entre a Psicologia e a Sociologia, agregando valores dessas duas áreas científicas. Assim sendo, este ramo considera o indivíduo como influenciado pelo meio que o forma e também o sujeito como elemento que altera o ambiente em que vive. 4 A necessidade da atuação desse ramo está no fato de que as relações sociais influenciam a conduta e os estados mentais dos indivíduos. Por outro lado, a consciência coletiva de uma sociedade é um campo fértil para estudos, como assinala Regader (2015). Portanto, Cherry (2016) ressalta que a Psicologia Social não observa apenas as influências do meio, mas também estuda as percepções desse meio, tratando-o como uma entidade, visando compreender o comportamento social; e analisa as interações que compreendem a sociedade. Cherry (2016) escreve que é comum o fato de que a Psicologia Social seja confundida com a sabedoria popular, Psicologia da personalidade e a Sociologia, e expõe as diferenças entre elas. Enquanto a sabedoria popular, que também pode ser chamada de senso comum, é baseada em observações anedóticas e interpretações subjetivas, a Psicologia Social emprega métodos científicos e estudos empíricos sobre os fenômenos sociais. Os pesquisadores não apenas fazem suposições sobre como as pessoas se comportam, eles planejam e fazem experimentos que permitem destacar a relação entre diferentes variáveis. Ao contrário da Psicologia da personalidade, que estuda os traços individuais, características e pensamentos, a Psicologia Social estuda situações cotidianas, estando interessada sobre o impacto dos ambientes sociais e interações sobre atitudes e comportamentos. Em relação à Sociologia, que se interessa pelo impacto de instituições e cultura sobre o comportamento dos indivíduos, a Psicologia Social considera variáveis situacionais que afetam o comportamento social. Portanto, percebe-se que estas duas áreas têm tópicos similares, mas analisam essas questões a partir de perspectivas diferentes. Há quem veja psicologia social em todos as áreas dos estudos do comportamento humano. Sobre isso, a psicóloga Lauriane dos Santos ressalta: 5 A Psicologia Social da Saúde A psicologia social, tendo como arena de atuação a complexa relação entre a esfera individual e a social, tem necessariamente uma vocação interdisciplinar, sendo suas fronteiras permeáveis às contribuições de uma variedade de outras disciplinas afins (Spink, 2003). “Cabe à psicologia social recuperar o indivíduo na intersecção de sua história com a sociedade. Abandonar, portanto, a dicotomia indivíduo-sociedade” (Spink, 2003, p. 40). A psicologia (social) comunitária utiliza-se do enquadre da psicologia social, privilegiando o trabalho com os grupos, buscando colaborar para a formação da consciência crítica e “para a construção de uma identidade social e individual orientadas por preceitos eticamente humanos” (Freitas, 1996, p. 73). Segundo Ronzani & Rodrigues (2006), “a psicologia comunitária constitui um importante campo teórico-prático para o trabalho em Atenção Primária à Saúde (APS), uma vez que pode possibilitar uma maior aproximação das questões de relevância social das comunidades. Costa e Lopez (1989) afirmam que é através da atuação da Psicologia Comunitária que programas de saúde podem ser aplicados ao âmbito local de cada comunidade. A Psicologia da Saúde e a Psicologia Comunitária estabeleceriam, assim, uma relação na qual esta última se converteria em um instrumento de implementação dos programas que envolvem conceitos da primeira. Seria através da Psicologia Comunitária, propõem Costa e López (1989), que os programas de saúde se tornariam ágeis e integrados ao tecido social em que os processos de saúde, adoecimento e morte se dão, e é justamente nesse nível que a intervenção preventiva deveria ocorrer. Entretanto, o que se deve tentar obter da comunidade é que a mesma analise e modifique seus comportamentos tentando torná-los favoráveis à saúde. Assim, a Psicologia Comunitária seria um ponto de ligação entre o sistema de saúde e a comunidade, numa configuração dinâmica e móvel. 6 A Psicologia Social da Saúde configura-se como um campo de conhecimento e prática que trata das questões psicológicas com enfoque mais social, coletivo e comunitáriovoltado para a saúde. Segundo Marín (1995, apud Camargo-Borges e Cardoso, 2005), caracteriza-se pela interlocução da Psicologia Social – com seus conhecimentos e técnicas – com o âmbito da saúde e destaca a interação como ponto fundamental do processo saúde-doença. A interação refere-se tanto ao homem e seu ambiente quanto aos diversos atores sociais presentes no cuidado com saúde. O autor ainda salienta que todas as atividades da Psicologia Social da Saúde centram-se mais na busca de uma saúde integral e não somente na saúde mental. Para Spink (2003), a psicologia social da saúde é como um campo ampliado de atuação do psicólogo nas instituições de saúde. Essa ampliação ocorreria, principalmente, em relação ao referencial de trabalho utilizado e exercido, pois, segundo a autora, a intervenção deve ser contextualizada, ou seja, é importante compreender toda a história e o contexto da instituição na qual será implementada uma ação, assim como as pessoas que compõem essa instituição. Faz-se necessário compreender que cada organização tem sua realidade local, sua cultura de relações e as histórias específicas das pessoas que recorrem a esses serviços. A autora explica o que seria a Psicologia Social da Saúde: A primeira característica é o compromisso com os direitos sociais pensado numa ótica 7 coletiva. Foge, portanto, das perspectivas mais tradicionais da psicologia voltadas à compreensão e processos individuais ou intra-individuais. Dialoga com teorias e autores que pensam as formas de vida e de organização na sociedade brasileira contemporânea. Tende a pesquisar e atuar em serviços de atenção primária, em contextos comunitários, em problemas de saúde em que pesam a prevenção à doença e a promoção da saúde ou onde há necessidade de acompanhamento continuado (como as doenças crônicas e a saúde mental). Tende ainda a atuar na esfera pública (2003, p. 27). Ainda a mesma autora coloca que a Psicologia Social da Saúde tem como características principais a atuação centrada em uma perspectiva coletiva e o comprometimento com os direitos sociais e com a cidadania. Rompe, portanto, com enfoques mais tradicionais centrados no indivíduo. A atuação se dá principalmente nos serviços de atenção primária à saúde, focaliza a prevenção da doença e a promoção da saúde, e com extrema importância o incentivo dos atores sociais envolvidos para a geração de propostas de transformação do ambiente em que vivem. Trata-se, portanto, de um processo de transformação crítica e democrática que potencializa e fortalece a qualidade de vida (Spink, 2003). A Psicologia Social da Saúde objetiva trabalhar dentro de um modelo mais integrado, reconhece a saúde como um fenômeno multidimensional em que interagem aspectos biológicos, psicológicos e sociais e caminha para uma compreensão mais holística do processo saúde-doença-cuidado. Dessa maneira sua inserção na atenção primária pode ser útil para contribuir na transformação das práticas em saúde rumo à integralidade (Camargo-Borges e Cardoso, 2005). Traz conceitos potentes e propostas de ação que muito se aproximam aos pressupostos de trabalho da atenção primária. Vemos que os dois discursos se organizam em torno de eixos que apostam na construção do fazer conjunto, coletivo e valorizam a localidade e as interações dela decorrentes. Os pressupostos da Psicologia Social da Saúde ecoam, nesse modo de organização do trabalho, à medida que têm como ponto fundamental também a contextualidade e a interação com ações construídas coletivamente a partir das imprevisibilidades do cotidiano. Assim, tanto a ESF (estratégia de saúde da família) como esse campo da psicologia privilegiam o processo de produção de 8 conhecimento e a construção das intervenções a partir das práticas sociais, dos processos interativos e da cultura. A proposta, portanto, é a de que qualquer entendimento do processo saúde-doença-cuidado possa ser analisado e referido a partir de seu contexto, ou seja, a partir da compreensão de uma pessoa, pertencente à determinada família, inserida numa comunidade específica, e assim por diante (Camargo-Borges e Cardoso, 2005, p. 30). Assim, a Psicologia Social da Saúde viria ao encontro da Atenção Primária à Saúde (APS), especificamente do Programa de Saúde da Família (PSF), no objetivo de construir um modelo de atenção à saúde pertinente à realidade local e gerador de interlocuções entre equipe de saúde e comunidade. Nesse sentido, a parceria pode ser útil para pensar discursos, na saúde, que propiciem a construção de espaços viabilizadores de acolhimento e a construção do vínculo, contribuindo para a reflexão e a problematização dessas práticas que se propõem coletivas. A prática do psicólogo na atenção primária Martinez Calvo (1994) coloca que a promoção de saúde se origina nas ciências que se ocupam do comportamento social. Se nas propostas da atenção primária objetiva-se trabalhar com promoção, o interesse para a psicologia é evidente. As ações promocionais, segundo Calatayud, necessitam apoiar-se em conceitos puramente psicológicos, tais como: hábitos, atitudes, motivação, interações pessoais e familiares e habilidades. Faz algumas recomendações para o trabalho dos psicólogos: 1) identificar os problemas que requerem atenção prioritária; 9 2) para esta identificação, as informações sobre a comunidade são a fonte para a tomada de decisões; 3) trabalhar em equipe com profissionais de outras disciplinas, compartilhando conhecimentos; 4) estimular a participação dos membros da comunidade, levando em conta sua opinião na definição das prioridades e as estratégias, tornando-os multiplicadores (Calatayud, 1999). Segundo Calatayud (1999), há um conjunto de temas que geralmente aparecem como prioritários para a psicologia na atenção primária, “e este caráter prioritário se deve ao fato de que são temas que mais afetam o estado de saúde das pessoas, os quais se recebem a correta atenção, podem conduzir a melhorias importantes na saúde da população (Calatayud, 1999, p. 169). Como veremos adiante, cada um destes temas relaciona-se com aspectos biológicos, sociais e psicológicos. Estes últimos nos servirão de pauta para guiar o trabalho do psicólogo na atenção primária. 1) Saúde Reprodutiva Alguns problemas que afetam a saúde reprodutiva e podem ser abordados pela psicologia: - práticas sexuais que conduzem a gravidez indesejada, ou contágio de doenças sexualmente transmissíveis; - gravidez na adolescência; - aborto induzido; - comportamento de risco para o bom desenvolvimento da gravidez (álcool, drogas, etc.); - preparação insuficiente da gestante e da família para os cuidados físicos e emocionais do recém-nascido; 10 - insuficiente conhecimento de comportamentos paternos que propiciem a satisfação das necessidades psicológicas do bebê no primeiro ano de vida. Segundo o autor (op. cit., p. 172), tais questões podem ser trabalhadas com grupos para adolescentes, gestantes, grupos com familiares das gestantes, grupos com mães a respeito das necessidades do primeiro ano de vida da criança, entre outros. 2) Saúde das crianças Alguns problemas frequentes que afetam as crianças e que podem ser abordados pela psicologia: - ambiente doméstico prejudicial; - maus-tratos à criança; - dificuldades de aprendizagem. Tais dificuldades podem ser abordadas, segundo Calatayud (1999), através de grupos com as crianças, para que elas coloquem suas dificuldades, intervenção junto aos familiares, identificação de ambientes familiares prejudiciais, entre outros. 3) Adolescentes Os adolescentes constituem um grupo que abre espaço para várias possibilidades de trabalho. Podem ser abordados os seguintes temas, através de grupos, palestras, ou, se necessário, individualmente: início da vida sexual,gravidez indesejada, drogas, álcool, dificuldades familiares etc. 4) Idosos Também os idosos são citados pelo autor como um grupo potencial de trabalho. Vários aspectos podem ser abordados. Entre eles: distância dos familiares, solidão, morte do cônjuge ou amigos, aumento das limitações físicas, tempo ocioso, diminuição da autoestima, depressão etc. 11 Pelo que vimos até o momento, podemos considerar que existem diversos pontos em comum entre os princípios norteadores do PSF e aqueles que devem também subsidiar o trabalho do psicólogo, como, por exemplo, o atendimento da demanda de acordo com as necessidades dos indivíduos (e não de cima para baixo); a busca do resgate da autonomia, da autoestima e da cidadania; a ênfase na criação de vínculo entre o profissional e o cliente; a valorização dos saberes individuais e grupais; o respeito às diferenças; a relação de compromisso e corresponsabilidade dos profissionais com os usuários; a visão do humano como ser integral e não exclusivamente biológico; a valorização de ações de prevenção, promoção e manutenção da saúde, e não somente cura e reabilitação; o enfoque centrado nas potencialidades para o crescimento e não apenas na erradicação do sintoma ou da doença; a valorização do contexto social, histórico, cultural, ambiente familiar e psicológico dos indivíduos, além da dimensão orgânica e fisiológica (Soares, 2003). A finalidade do PSF, como já visto, é o acompanhamento da clientela, dentro do seu contexto sociocultural, de forma a aproximar a família, a comunidade e os profissionais, com vistas principalmente à promoção da saúde para melhoria da qualidade de vida da população. A inserção do psicólogo na equipe de saúde da família também deve visar à promoção da saúde da população, no que concerne à atenção para os aspectos psicológicos, tanto em termos de prevenção quanto de promoção (Cardoso & Santos, 2000). Cardoso (2002, p. 4) aponta como objetivos gerais da atuação do psicólogo no PSF, independente da clientela atendida, os de atuar junto à comunidade, fornecendo e difundindo informações sobre saúde mental; identificar pessoas portadoras de doenças orgânicas crônicas com comprometimentos emocionais que demandem assistência psicológica; possibilitar espaço terapêutico de trocas de experiências, com vistas ao desenvolvimento das potencialidades das pessoas para atender às próprias necessidades, proporcionando, além da melhora do quadro clínico, a da sua qualidade de vida; atuar junto aos profissionais da equipe do PSF, para integrar esforços, estimular a reflexão e a troca de informações sobre a população atendida e facilitar a avaliação e a evolução clínica. 12 O psicólogo pode abarcar ainda, além do atendimento individual, avaliação da demanda, estudos de caso e o incentivo para facilitação da comunicação entre a comunidade e a equipe de saúde, já que muitas vezes os pacientes revelam dados nem sempre acessíveis à equipe. O teatro informativo pode ser utilizado para fornecer informações sobre o que é a psicologia e o trabalho do psicólogo, tais como seus objetivos, a questão do sigilo, a composição dos grupos, esclarecimento sobre as concepções errôneas a respeito da psicoterapia e do psicólogo. A visita domiciliar é outra atividade que auxilia na divulgação do trabalho, ajuda a conhecer um pouco da realidade das pessoas atendidas e, quando necessário, a prestar assistência psicológica a pacientes impossibilitados de sair de sua residência (Cardoso, 2002, pp. 05-06). Dentro desta mesma ideia, Ronzani acrescenta que uma das funções do psicólogo pode ser o acolhimento dos novos pacientes, fazendo encaminhamentos, quando necessário, intervenção psicossocial, desenvolvendo oficinas terapêuticas, atendendo a pacientes graves, fazendo visitas domiciliares e proporcionando suporte familiar, especialmente para aqueles portadores de transtornos mentais (Ronzani, 2001, p. 40). Duran-Gonzáles (1995 apud Ronzani, 2002) apontam que o profissional de APS deve estar capacitado para proporcionar mudanças de atitudes da população; entrar em contato com indivíduos que possam influenciar diretamente nas práticas de saúde da população. O psicólogo então se torna um ator importante na medida em que pode promover a participação da comunidade no autocuidado e ainda ser o ponto de intersecção entre a população e a equipe de saúde. A atuação do psicólogo em grupos terapêuticos A vida humana sempre se processou em grupos. Os indivíduos nunca deixaram de se transformar, de acordo com as condições – geográficas, históricas, técnicas, culturais. Da mesma forma, a ideia que a pessoa tem de si mesma, de seu grupo e da relação entre ambos, está sempre se transformando. 13 De acordo com Zimermam (2004), no início de 1948, Bion organizou os seus grupos unicamente terapêuticos, a partir dos quais fez importantes observações e contribuições que permanecem vigentes e inspiradoras na atualidade. Dentre as concepções originais acerca da dinâmica do campo grupal vale a pena destacar as seguintes: cultura do grupo, grupo de trabalho (GT), o grupo e os mecanismos psicóticos e a contratransferência do grupoterapeuta, entre outros. Em trabalhos com grupos, de acordo com Bechelli (2005), a atuação do psicólogo caracteriza-se em manter o foco na fala do grupo, apoiar os participantes que se sentem embaraçados, mediar conflitos e assegurar o cumprimento das regras estabelecidas, bem como, promover sentimentos positivos que venham a auxiliar em seus processos interpsíquicos e interpessoais através de seus comportamentos e reações, facilitando a tomada de decisão e certo controle sobre os medos e ansiedades que porventura possam surgir na dinâmica grupal. Desse modo, o psicólogo enquanto facilitador grupal, deve ater-se a uma postura criativa, coerente com o grupo, flexível, espontânea, de modo a facilitar a interação de seus membros. Tal postura adquire-se através de um profundo contato com o aporte teórico de terapias de grupo, e também através das vivências grupais, as quais são ricas fontes de experiência e aprendizado. O 14 termo facilitador é utilizado para denominar o profissional que possibilitará que o processo do grupo se desenvolva. A ideia de agir desse profissional é de que este não irá dirigir ou determinar o processo do grupo, mas tão somente proporcionar condições facilitadoras para o seu desenvolvimento. O facilitador não tem nenhum programa a priori para o grupo, ele não chega com algo pronto e lança para o grupo. O que interessa à sua proposta é que as pessoas, as realidades existenciais presentes no grupo efetivamente se encontrem, e que os membros dos grupos possam se descobrir uns aos outros e a si . Neste sentido, o papel do facilitador não será de dirigir o grupo, impor regras, ou normas, mas de viabilizar o processo de desenvolvimento do grupo, dentro do seu próprio ritmo (MOREIRA, 1999). No âmbito específico do hospital, o psicólogo irá atuar de acordo com os pressupostos citados acima, e respeitando a especificidade do ambiente; sua atuação terá também especificidades próprias. Inicialmente poderá fazer um levantamento nos prontuários, buscando visualizar aqueles pacientes que não poderão estar presentes devido a impedimentos que o impossibilite, e também visualizar aqueles com uma maior demanda emocional (VERONEZE & BENFICA, 2010). De acordo com Silva Filho (2006), citado por Veroneze & Benfica (2010), as dimensões que englobam a inter-relação entre cultura, sociedade e biologia demandam do psicólogo um olhar holístico que busque abranger tais aspectos, ultrapassando aquele oriundo de uma única disciplina. A atuação do psicólogo em grupos terapêuticos é de fundamental importância, pois viabiliza a elaboração psicossocial de seus participantes, fortalece sua autoestima, cria vínculos afetivos,diminui a resistência das relações interpessoais, possibilitando a expressividade dos mesmos. Práticas grupais e atenção primária à saúde Como alternativa à oferta de atendimento na modalidade de psicoterapia individual, os espaços grupais de assistência têm sido incentivados na APS. 15 Todavia, em muitos casos, repetem-se, nos grupos, algumas posturas criticadas pela filosofia do sistema de saúde. Psicólogos de todo o país mencionam, em estudo realizado pelo Conselho Federal de Psicologia, que os grupos realizados na APS terminam, muitas vezes, sendo espaço para detecção de doenças e para orientação dos usuários sobre como eles devem viver suas vidas para manterem-se saudáveis, mantendo-se a tradição de medicalização da saúde. O atendimento em grupo é positivamente avaliado pelos psicólogos participantes do estudo no que concerne à possibilidade de envolvimento dos usuários e de integração com os profissionais de saúde. Ferreira Neto e Kind, em seu estudo sobre práticas grupais e promoção da saúde, apontam a relevância do investimento em grupos que se distanciem do modelo de normatização em saúde, com abertura para o trabalho coletivo. Os autores destacam como positivos os grupos que ultrapassam o formato educativo e que não trazem orientações prontas sobre como as pessoas devem ser ou agir, com pouco espaço para acolher os saberes populares. Em sua pesquisa, os referidos pesquisadores perceberam que os grupos com avaliação satisfatória de seus coordenadores e participantes são aqueles que foram construídos em respostas às demandas locais dos usuários, deixando para segundo plano as referências teóricas e técnicas no campo da dinâmica de grupo. Muitos profissionais entrevistados afirmaram que estar em grupo com os usuários do serviço permite uma maior aproximação com a sua vida cotidiana, fortalecendo vínculos instituição-comunidade. Além disso, os entrevistados afirmaram que os atendimentos em grupo possibilitam melhor escuta, reflexão e diálogo entre profissional e usuário do que ocorre nos atendimentos individuais. Outro benefício da proposta de grupos para promoção de saúde é evitar que a necessidade de detecção de uma doença seja a única forma das pessoas receberem cuidado. Sendo assim, nos grupos, as pessoas não precisam tecer narrativas de problemas para terem espaços de acolhimento, suporte, convivência e sociabilidade. Por fim, os grupos mais destacados positivamente foram aqueles que mantinham uma atitude avaliativa com relação ao seu trabalho. Importantes questionamentos têm sido levantados sobre a prática grupal e APS. O primeiro deles é: como superar o foco na patologia com a proposição 16 de grupos homogêneos? Nessa pergunta, os autores convidam à reflexão sobre a composição grupal, mostrando que, muitas vezes, os grupos homogêneos não apenas mantêm formatos prescritivos, como servem para diminuir a demanda e otimizar os atendimentos. Nesse sentido, a aposta não é no potencial das trocas estabelecidas entre coordenador e participantes para co-construção da saúde. O atendimento permanece focado em “indivíduos em grupo”, com orientações em massa. Outro questionamento é sobre a garantia do potencial participativo em um grupo, o que os autores chamam de protagonismo autogestivo dos usuários das instituições de saúde. Em seu estudo, os referidos pesquisadores perceberam elementos de sujeição nos grupos realizados no âmbito da Estratégia Saúde da Família (ESF). Como enfatizam os autores, o termo participação muitas vezes é pensado como apenas a postura do coordenador de convidar os usuários a falarem sobre os atendimentos oferecidos, em uma atitude paternalista. Diferentes graus de co-condução dos grupos na ESF são identificados, com a convivência da valorização do saber técnico especializado e a abertura às decisões comunitárias. Os coordenadores entrevistados acreditam que as 17 práticas poderiam ser mais participativas, considerando que os usuários têm muito a ensinar aos profissionais. Já os usuários mencionaram que participar das decisões é importante, mas que também desejam receber informações dos profissionais. O terceiro questionamento levantando é sobre como evitar uma noção de autonomia individualista, ou seja, como evitar que o grupo seja espaço para controle sobre a vida das pessoas? O desafio aqui é o reconhecimento do saber popular, do empoderamento do usuário e da superação da dependência do saber técnico. Por exemplo, alguns psicólogos entrevistados mencionaram ter dificuldade em validarem os grupos de convivência e atividades físicas, dando maior valor aos grupos com foco na palavra, como as terapias de grupo, ainda que a população atendida mencionasse maiores ganhos com outras modalidades grupais que, em alguns casos, inclusive, prescindiam da presença de um profissional na coordenação. Pensar novas propostas de grupos em saúde a partir desses questionamentos pode propiciar práticas grupais em maior consonância com os princípios do SUS. Porém, para tanto, algumas tradições em saúde precisam ser superadas. Da necessidade de superação de algumas tradições em saúde A primeira tradição é a da especialidade profissional, que promove a valorização do conhecimento científico especializado em detrimento do conhecimento popular. Nessa tradição, o jogo de posicionamento mais comum é do profissional de saúde como aquele que detém o conhecimento e poder sobre o outro (usuário) e do usuário como alguém passivo frente às decisões tomadas que o envolvem. Nessa tradição, o diálogo pode ser obstruído quando o profissional entende que existe apenas uma verdade sobre o que acontece com o usuário – a verdade “científica”, e que, portanto, qualquer entendimento que o usuário tiver sobre seu corpo e sua vida que seja distinto da lógica científica deverá ser 18 ignorado ou modificado. Importante ressaltar que não se trata de má intenção do profissional, mas de entender que suas ações respondem a discursos em saúde que legitimam essa forma de agir como cuidado ao outro. Diferentes discursos sustentam diferentes práticas. A partir do discurso construcionista social, saúde é considerada como construção social, portanto, os sentidos sobre o que é saúde e como promovê-la, propagados pelos discursos científicos, não são tomados como a verdade última sobre como as coisas são, mas como produções contextualizadas histórica e socialmente. Aqui, tomamos construção social como a matriz na qual a ideia de saúde é formada, incluindo discursos, sentidos, instituições e condições materiais de produção. A segunda tradição é a da neutralidade afetiva do profissional, que entende que seu conhecimento técnico não deve ser influenciado por uma proximidade afetiva com o usuário, o que o impediria de formular julgamentos isentos e objetivos em relação à atenção oferecida. Na avaliação da promoção de práticas dialógicas, entende-se que é justamente a proximidade afetiva entre as pessoas que propicia uma escuta genuína. Ao entrevistar usuários e coordenadores de grupo, o estudo capturou relatos de como a afetividade promovida pelas interações e as aproximações entre profissional e usuário no grupo favoreceram a eliminação das estereotipias no relacionamento e mudanças na forma de vida – tanto dos usuários como dos profissionais. Dada a tradição da neutralidade afetiva e da especialidade profissional, é praticamente tabu pensar um atendimento em saúde a partir dos ganhos que ele pode oferecer ao profissional. Todavia, quem vive o cotidiano de uma UBS sabe a importância que esses encontros afetivos têm para incrementar a sensação de potência e a motivação dos profissionais. No diálogo, sentir-se ouvido é uma conquista relacional dependente da sensibilidade e do esforço de todos os agentes envolvidos na conversação. A terceira tradição éa da relação hierarquizada entre profissional e usuário, em uma diferença de posições que garantiria o respeito à autoridade profissional. Nesse jogo de posicionamentos, o profissional é quem, a priori, define as intervenções em saúde a serem implementadas. Ainda que, na atualidade, muito se discuta sobre a participação da população na construção 19 das políticas em saúde, com o advento do controle social, a noção de autonomia, da forma como muitas vezes é entendida nesse cenário, põe nas mãos do profissional a definição sobre quem é ou não autônomo na tomada de decisões em saúde. Especialmente, considerando-se o atendimento de pessoas diagnosticadas com psicopatologias, essa abertura para co-condução do tratamento pode ser ainda menor. Não são poucos os desafios enfrentados por profissionais para considerarem seriamente como propostas terapêuticas alternativas mencionadas pelos usuários, quando elas diferem demais daquilo que o profissional aprendeu como o mais eficaz para o caso em questão. A polêmica aqui guarda relação com a impossibilidade de convivência de múltiplas realidades em saúde, sem que, com isso, se perca a importância do conhecimento profissional especializado. As propostas propagadas pelas políticas públicas em saúde contemporâneas estão na contramão dessas tradições. Elas preconizam a horizontalização e humanização das relações profissional-usuário, da possibilidade da comunidade participar da construção dessas políticas, via controle social. Acreditamos que alguns recursos e ferramentas podem colaborar para a construção de condições objetivas para a superação dessas tradições. Dentre as alternativas, iremos considerar a potencialização dos processos grupais como instrumental para a instauração de uma práxis transformadora. Recursos e ferramentas para conversas dialógicas Ao pensarmos práticas grupais, partimos da crítica da noção de grupo, propagada tradicionalmente pela literatura psicológica, como grupo-essência ou grupo-unidade. Nessa concepção, grupo é tomado tal qual um indivíduo, com fenômenos que se repetem no tempo e uma dinâmica particular. Nessa apostila, tomamos o grupo como construção social, ou seja, grupo como um processo constante de transformação, definido e constituído a partir das práticas discursivas que circunscrevem o para que ele serve, como ele deve ser feito, quem deve participar e como deve ser o papel do seu coordenador. Por entender 20 grupo dessa maneira optamos, nesta apostila, pelo uso do termo “processo grupal” ao invés de “grupo”, para evitar sua essencialização e enfatizar o acontecer grupal em constante transformação e redefinição. Processos grupais em saúde são espaços de constantes negociações entre coordenação e participantes sobre como deve ser esse processo, negociações marcadas por circunscritores que incluem aspectos da própria instituição e dos sentidos que coordenadores e participantes trazem sobre como deve ser um atendimento desse tipo. A perspectiva construcionista social não informa uma técnica grupal a ser seguida, mas, a partir de seus pressupostos, inspira a criação de recursos e ferramentas que podem ser utilizados na busca de conversas dialógicas. Consideramos um processo grupal dialógico aquele no qual duas ou mais pessoas se tornam responsivas ao que acontece entre elas na conversa, de forma a permitir que a diferença apareça, seja legitimada a partir das lógicas discursivas que a sustentam e seja explorada com curiosidade. Uma ferramenta interessante é a das conversas preparatórias pré- processo grupal. Essas conversas foram propostas para participantes que iriam iniciar uma terapia de grupo, todavia, tal recurso pode ser exportado para outros contextos. Nessas conversas o coordenador propõe que a pessoa antecipe sua 21 participação no espaço grupal pensando sobre o que gostaria de conversar nesse espaço e como gostaria que esse processo grupal acontecesse. Entre outros aspectos, essas sessões de preparação permitem, segundo os autores, antecipar as possíveis dificuldades que o participante imagina que possa vivenciar ao estar em relação com os demais participantes, pensando desde esse momento inicial em possíveis estratégias para lidar com elas. Permitem também que se estabeleçam contratos de coresponsabilização sobre como deve ser o processo grupal de forma a atender as expectativas dos participantes. Dessa maneira, o participante é tomado como copartícipe tanto dos sucessos como dos eventuais fracassos do processo grupal. Outra ferramenta útil para proposta de processos grupais é a construção do contexto conversacional, que é a construção colaborativa do contrato grupal. Nesse contrato são mencionados os aspectos inegociáveis (por exemplo, possibilidades de local e horário para o encontro entre as pessoas, número máximo de participantes, quem o coordenará, entre outros circunscritores) e negociados os aspectos possíveis de serem ajustados (como os objetivos do processo grupal, o formato das conversas, os temas que animarão os diálogos, entre outros). Em cada processo grupal os aspectos inegociáveis serão distintos, podendo haver maior ou menor flexibilidade de negociação. Na construção do contexto conversacional os participantes são convidados a falarem sobre o que precisam para se sentirem confortáveis nos encontros grupais, sobre quais são suas expectativas, qual seu papel em relação ao da coordenação e como poderão avaliar o êxito do que estão produzindo juntos. Um recurso considerado valioso para a promoção de processos grupais é a reflexividade, tomada do campo das teorias sobre produção de conhecimento, para pensarmos a possibilidade de adoção de uma postura auto- reflexiva dos coordenadores na condução de práticas grupais. Reflexividade é a busca, por parte do coordenador, de avaliar que sentidos sobre o mundo sustentam sua prática, quais são os valores, crenças e formas de vida que ele prioriza e de que forma essa priorização fala de sua história de socialização, de pertença a grupos sociais específicos, de interações ao longo da vida, que vão 22 oferecendo repertórios discursivos específicos para definição de bem-estar e oferta de cuidado. Uma postura auto-reflexiva permite a delimitação dos potenciais e das fragilidades das ações em saúde. A partir da perspectiva construcionista social, essa avaliação sobre quem somos, sobre o para quem endereçamos nossas ações e sobre os contextos de produção de sentidos não é sinônimo de uma análise precisa, verdadeira e final sobre os potenciais e limites da atuação profissional, mas a oportunidade de não se perder de vista a especificidade histórico-cultural de qualquer proposta de assistência. Por fim, outro recurso importante reside na postura apreciativa dos coordenadores em relação às qualidades dos usuários. A partir da perspectiva construcionista social, práticas discursivas participam da construção de realidades, portanto, descrições problemáticas favorecem a produção de realidades problemáticas, podendo manter as pessoas em um estado de impotência e desânimo em relação à sua situação de vida. A perspectiva construcionista social propõe entendermos a identidade como fluida e não estável. Essa posição favorece a exploração da multiplicidade de eus que constituem as pessoas, de modo a aproveitar cada uma de suas habilidades para lidar com diferentes situações. Não se está em pauta a pergunta sobre quem são realmente os participantes do grupo, pois o real, nesse caso, depende das trocas discursivas de definição dos eus dos participantes. A ênfase do coordenador está em quem os participantes podem ser, como querem se colocar em suas relações e o que querem produzir a partir delas. Especialmente em grupos formados por pessoas usualmente descritas nos serviços de saúde a partir de suas doenças, pensaro “eu” como múltiplo é apostar que no grupo possam aparecer as versões de si capazes de enfrentar desafios, de buscar soluções criativas, de criar bons relacionamentos e de se viver a vida de maneira positiva. Autonomia e dependência na promoção da saúde 23 A ação autônoma em saúde, defendida pelos profissionais, pelo Estado e pelas agências internacionais, admite diferentes sentidos, desde os mais libertários que considerem a complexidade, a riqueza e a potencialidade dos seres humanos (SOARES; CAMARGO JR, 2007) a sentidos que reproduzem racionalidades na desprofissionalização e desinstitucionalização do cuidado, com apelo à ajuda mútua e à solidariedade da população para que esta possa resolver seus problemas de saúde (NOGUEIRA, 2003b). Desde Kant, o conceito de autonomia, que tem suas raízes históricas na cultura política grega, é aplicado ao indivíduo e muitas vezes confunde-se com o conceito de liberdade, consistindo na qualidade de um indivíduo de tomar suas próprias decisões, com base em sua razão individual (SCRAMM, 1998). No sentido kantiano, autonomia reveste-se de uma responsabilidade moral de uma elite sobre aqueles acusados de não seguir a norma ou a razão (MARTINS, 2004). Do ponto de vista semântico, autonomia é uma palavra grega que comporta ao mesmo tempo autos que significa “o mesmo, ele mesmo e por si mesmo” e nomos, que significa “uso, lei, convenção, instituição”. Assim, pode ser interpretada como a capacidade apresentada pelos homens de se autodeterminarem frente uma legislação moral estabelecida pela vontade humana. Segundo Schramm (1998, p. 4), o sentido geral da palavra autonomia indica a capacidade dos homens de se darem suas próprias leis e compartilhá- las com seus semelhantes ou "a condição de uma pessoa ou de uma coletividade, capaz de determinar por ela mesma a lei à qual se submeter". Nessa definição, pode-se constatar uma ambiguidade semântica entre a referência à esfera individual e à esfera coletiva ou, ainda, entre um conteúdo ideal - que indica a capacidade de autodeterminação e de um agente moral ser o verdadeiro autor de suas ações - por um lado, e um conteúdo de realidade, por outro, consistente no fato de o ser humano estar vinculado a seus semelhantes por meio de instituições tais como leis, normas, convenções e usos, legitimadas coletivamente (SCHRAMMM 1998, p. 4). Assim, autonomia e heteronomia fazem parte de um conjunto complexo cujos elementos são, em princípio, distinguíveis e inseparáveis. 24 Telles (1999) admite que a noção de espaço público se qualifica como espaço de deliberação conjunta, por meio da qual os homens se tornam interessados e responsáveis pelas questões que dizem respeito a um destino comum, ou seja, o espaço público se revela e se determina como uma comunidade politicamente organizada. Nessa comunidade, é preciso estabelecer “regras de convivência”, “leis” que expressam as referências a partir das quais cada um pode reconhecer o outro como seu semelhante. Nesse sentido, Nogueira (2003b) explicita que praticamente todas as versões de autonomia do sujeito produzidas repetidamente pelos filósofos desde Kant têm em comum aquilo que se pode chamar de uma opção pela subjetividade o que, em muitos casos, quer dizer liberdade para criar seu próprio futuro com base nas escolhas concretas de cada individuo, dispensando, portanto, a referência de um conteúdo moral predeterminado. Remete a uma pretensão ética que se tornou um princípio ideológico fundamental da modernidade capitalista, assumindo, então, o caráter de condição natural: o princípio de independência original, natural, dos indivíduos (FLEURY-TEIXEIRA, et al, 2008; NOGUEIRA, 2003b). Ante essa concepção cabe problematizar o sentido expresso de autonomia como contrário de dependência, ou como liberdade absoluta, condição impossível de ser alcançada numa sociedade marcada pelo controle social e pela vigilância exercidos pela indústria cultural que produzem uma certa forma de ser, de viver, de pensar, de sentir. Nessa sociedade, entendo autonomia no sentido expresso por Onocko e Campos (2006), como a capacidade do sujeito de lidar com sua rede de dependências, considerando-a como componente de um viver em sociedade no qual há constantemente criação e reinvenção das formas de socialidade e dos estilos de existência. Assim, autonomia e dependência conformam uma oposição recíproca no campo das relações sociais e de saúde. Enquanto a primeira, situada no campo da moral, invoca ações livres e independentes da população em relação à saúde 25 e as formas de obtê-la, a segunda, situada no campo político, pressupõe uma relação de dependência da promoção da saúde para com as formas de organização da sociedade. Vive-se num mundo onde se divulga a autonomia, mas, no entanto, bloqueia-se sua concretização. Os valores contemporâneos têm levado ao cerceamento do direito à cidadania, ou seja, o direito de viver a própria vida, resguardando-se a individualidade de cada um. O mercado parece ser a afirmação viva da liberdade individual e sua teoria e defesa na economia liberal são expressões imediatas dessa realidade (FLEURY-TEIXEIRA et al, 2008). Assim, a autonomia identifica-se com as relações sociais e todo o ordenamento social estabelecido sobre a livre competição entre indivíduos naturalmente independentes. O saber médico desenvolveu-se orientado por uma versão positiva de saúde com um cunho acentuadamente higienista e vitalista em que a saúde é vista como expansão da vitalidade por meio de hábitos sadios, exercícios, regimes alimentares, sentimentos positivos (LUZ, 2005). A saúde, nesse contexto, torna-se o que Luz (2000, 2005) denomina de mandamento, paradigma universal com efeito normalizador, e adquire características de uma utopia. Nesse sentido, o esporte, a dança, a alimentação, a caminhada, o trabalho podem ser vistos como práticas de saúde ou de riscos à saúde dependendo da intenção, da intensidade, da frequência e da quantidade com que ocorrem. Nogueira (2003a) adverte que a promoção, similarmente à disciplina clássica da higiene do final do século XIX, constitui um projeto de medicalização da totalidade da existência humana e não só da doença. Um projeto de medicalização que tem a capacidade de moldar a seus propósitos a cultura 26 contemporânea afetando o modo como as pessoas cuidam de seu corpo e de sua saúde. Entende-se essa “sanitização” da vida como uma nova forma de medicalização social, na qual promover a qualidade de vida e diminuir a vulnerabilidade e riscos à saúde tornam-se finalidades das instituições médicas e não-médicas que, para contrapor a doença como categoria estratégica, assume a saúde como mandamento e como necessidade social (LUZ, 2000, 2005). Esse pensamento sustenta a afirmação de que as construções no campo da promoção da saúde carregam um discurso sobre saúde e cuidado que impõem uma ordenação à vida: “tem que fazer exercícios físicos”, “não pode fumar”, “sexo só com camisinha”, que perpassam as relações na sociedade e atuam como mecanismos de “controle social dos corpos” constituindo o poder das práticas sanitárias na determinação dos modos de vida. Nessa sociedade, a preocupação com a qualidade de vida e a concentração de relevância na busca incessante pela saúde contribui para que as ações de promoção da saúde sejam reduzidas a um conjunto normativo de “novos consumos em saúde” consolidando o que Nogueira (2001) denomina de Higiomania. Para o autor, a adoração da saúde, que é também uma mania coletiva de saúde, é autonomista, no sentido de que ter saúde está ao alcance de todos, desde que sigam a norma correta de estilo de vida, adotem certos hábitos e evitem os riscos sobre os quais são advertidos. Entretanto, quando se toma como objeto de análise a promoção da saúde, comseu conjunto de ações de caráter objetivo e subjetivo, há que se considerar a concepção de autonomia que efetivamente é proposta e construída. No contexto das sociedades capitalistas neoliberais, essa concepção pode carregar uma representação científica e cultural de uma autonomia regulada, estimulando a livre escolha segundo a lógica de mercado, e do consumo de ações e serviços de sanitização da vida, ao mesmo tempo em que diminui a responsabilidade do Estado perante a saúde das populações (CZERESNIA, 2003). 27 Assim, promoção da saúde como um campo das práticas sanitárias exige repensar o significado da autonomia das pessoas em seus modos de vida. Questiona-se a responsabilização dos sujeitos em/por seus processos saúde- doença, mas sem culpabilizá-los e sem negar o papel do Estado na elaboração de políticas e na criação de oportunidades para as escolhas em saúde. 28 REFERÊNCIAS Bechelli, Luiz Paulo de C.; Santos, Manoel Antônio dos. O terapeuta na psicoterapia de grupo. Rev. Latino-Am. Enfermagem v. 13 nº 2. Ribeirão Preto mar./abr. 2005. Calatayud, F. M. (1999). Introducion a la psicología de la salud. 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