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PATOLOGIAPATOLOGIA ALESSANDRA MORITAALESSANDRA MORITA 18 Fígado e Trato Biliar JAMES M. CRAWFORD • CHEN LIU ! O FÍGADO Aspectos Gerais da Doença Hepática Padrões de Lesão Hepática Insuficiência Hepática Cirrose Hipertensão Portal Icterícia e Colestase Formação da Bilirrubina e da Bile Fisiopatologia da Icterícia Colestase Distúrbios Infecciosos Hepatite Viral Vírus da Hepatite A Vírus da Hepatite B (HBV) Vírus da Hepatite C Vírus da Hepatite D Vírus da Hepatite E Vírus da Hepatite G Síndromes Clinicopatológicas da Hepatite Viral Infecções Bacterianas, Parasitárias e Helmínticas Hepatite Autoimune Doença Hepática Induzida por Drogas e Toxinas Doença Hepática Alcoólica Doença Hepática Metabólica Doença Hepática Gordurosa não Alcoólica (DHGNA) Hemocromatose Doença de Wilson Deficiência de !1-Antitripsina Colestase Neonatal Doença do Trato Biliar Intra-hepático Cirrose Biliar Secundária Cirrose Biliar Primária (CBP) Colangite Esclerosante Primária (CEP) Anomalias das Árvores Biliares (Incluindo Cistos Hepáticos) Distúrbios Circulatórios Prejuízo do Fluxo Sanguíneo para o Fígado Comprometimento da Artéria Hepática Obstrução e Trombose da Veia Porta Prejuízo do Fluxo Sanguíneo pelo Fígado Congestão Passiva e Necrose Centrolobular Peliosis Hepatis Obstrução do Fluxo Venoso Hepático Trombose da Veia Hepática e Trombose da Veia Cava Inferior Síndrome da Obstrução Sinusoidal (Doença Veno-oclusiva) Complicações Hepáticas dos Transplantes de Órgãos ou Medula Óssea Doença do Enxerto versus Hospedeiro e Rejeição Hepática Doença Hepática Associada à Gravidez Pré-eclâmpsia e Eclâmpsia Fígado Gorduroso Agudo da Gravidez (FGAG) Colestase Intra-hepática da Gravidez Nódulos e Tumores Hiperplasias Nodulares Neoplasias Benignas Adenoma Hepático Tumores Malignos Hepatoblastoma Carcinoma Hepatocelular (CHC) Colangiocarcinoma (CCA) Tumores Metastáticos 841 842 CAPÍTULO 18 Fígado e Trato Biliar O fígado adulto normal pesa de 1.400 a 1.600 g, constituindo aproximadamente 2,5% do peso corporal. O fígado possui um suprimento sanguíneo duplo: a veia porta fornece 60% a 70% do fl uxo sanguíneo hepático e a artéria hepática fornece 30% a 40%. A veia porta e a artéria hepática entram no fígado pelo hilo, também chamado de porta hepatis, que é uma fi ssura transversa na superfície inferior do fígado. No interior do fígado, os ramos das veias porta, artérias hepáticas e os ductos biliares seguem paralelamente em tratos portais, ramifi cando-se de modo variável até 17 a 20 ordens de ramos. A terminologia da microarquitetura hepática é baseada em dois conceitos diferentes: o lóbulo hepático e o ácino hepático. De acordo com o modelo lobular, o fígado é dividido em lóbulos hexagonais de 1 a 2 mm de diâmetro orientados ao redor das tributárias terminais da veia hepática (veias hepáticas terminais), com tratos portais na periferia do lóbulo. Os hepatócitos vizinhos à veia hepática terminal são chamados de “centrolobulares”; aqueles situados próximos ao trato portal são “periportais” (Fig. 18-1). No modelo acinar, os hepatócitos próximos às veias hepá- ticas terminais constituem os ápices distais de ácinos grosseira- mente triangulares, cujas bases são formadas pelas vênulas septais penetrantes da veia porta que se estendem para fora dos tratos portais.1 No ácino, o parênquima é dividido em três zonas, onde a zona 1 está mais próxima do suprimento vascular, a zona 3 está em contato com a vênula hepática terminal e mais distante do suprimento sanguíneo aferente, e a zona 2 é intermediária. Inde- pendentemente do modelo usado, a divisão do parênquima em zonas representa um conceito importante em razão do gradiente de atividade exibido por muitas enzimas hepáticas e da distribui- ção zonal de certos tipos de lesão hepática. Embora o modelo acinar descreva melhor as relações fi siológicas entre os hepatóci- tos e seu suprimento vascular, a histopatologia do fígado geral- mente é discutida com base em uma arquitetura lobular. Os hepatócitos são organizados em lâminas ou “placas” cribri- formes, anastomosantes, que se estendem dos tratos portais até as veias hepáticas terminais. Entre as placas de hepatócitos estão os sinusoides vasculares. O sangue atravessa os sinusoides e passa para as veias hepáticas terminais por numerosos orifícios na parede da veia. Desse modo, os hepatócitos são banhados dos dois lados por uma mistura de sangue venoso portal e arterial hepático, o que faz com que os hepatócitos estejam entre as células mais ricamente perfundidas do organismo. Os sinusoides são revestidos por células endoteliais fenestradas e descontínuas. Profundamente às células endoteliais, está localizado o espaço de Disse, para o qual ocorre a protrusão de abundantes microvilosidades dos hepatóci- tos. Células de Kupffer dispersas, do sistema mononuclear fagocí- tico, são fi xadas à face luminal das células endoteliais, e células ! O TRATO BILIAR Anomalias Congênitas Distúrbios da Vesícula Biliar Colelitíase (Cálculos de Vesícula) Colecistite Colecistite Aguda Colecistite Crônica Distúrbios dos Ductos Biliares Extra-hepáticos Coledocolitíase e Colangite Ascendente Atresia Biliar Cistos do Colédoco Tumores Carcinoma da Vesícula Biliar O FÍGADO VP Lóbulo Ácino V as os p en et ra nt es 3 2 1 Zonas CV AH DB FIGURA 18–1 Anatomia microscópica do fígado; os dois modelos, o modelo lobular hepático e o modelo acinar, estão ilustrados. No modelo lobular, a veia hepática terminal (CV) está no centro de um “lóbulo,” enquanto os tratos portais (VP) estão na periferia. Os pato- logistas se referem às regiões do parênquima como “periportal e centrolobular.” No modelo acinar, com base no fluxo sanguíneo, três zonas podem ser definidas, onde a zona 1 é a mais próxima ao supri- mento sanguíneo e a zona 3 é a mais distante. DB, ducto biliar; AH, artéria hepática. CAPÍTULO 18 Fígado e Trato Biliar 843 estreladas hepáticas (HSCs) contendo gordura são encontradas no espaço de Disse. Entre os hepatócitos contíguos estão os canalícu- los biliares, que são canais de 1 a 2 µm de diâmetro formados por sulcos nas membranas plasmáticas de hepatócitos situados em oposição e separados do espaço vascular por junções compactas. Esses canais drenam para os canais de Hering, estruturas ductula- res que conectam os canalículos biliares a dúctulos biliares na região periportal. Os dúctulos esvaziam nos ductos biliares termi- nais no interior dos tratos portais.2 O fígado também contém linfócitos, incluindo número relativamente grande de células natural killer e células NK-T (Cap. 6). Aspectos Gerais da Doença Hepática O fígado é vulnerável a uma grande variedade de insultos meta- bólicos, tóxicos, microbianos, circulatórios e neoplásicos. As prin- cipais doenças primárias do fígado são a hepatite viral, a doença hepática alcoólica, a doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA) e o carcinoma hepatocelular (CHC). A lesão hepática também ocorre secundariamente a algumas das doenças mais comuns em humanos, como descompensação cardíaca, câncer disseminado e infecções extra-hepáticas. A enorme reserva fun- cional do fígado mascara o impacto clínico da lesão hepática leve, mas, com a progressão de doença difusa ou interrupção do fl uxo biliar, as consequências da perturbação da função hepática podem causar risco de morte. Com a rara exceção da insufi ciência hepática fulminante, a doença hepática é um processo insidioso no qual a detecção clínica e os sintomas de descompensação hepática podem ocorrer semanas, meses ou muitos anos após o início da lesão. As fl utuações da lesão hepática podem ser imperceptíveis para o paciente e detectáveis apenas por exames laboratoriais anormais (Tabela 18-1), e lesão e cura do fígado também podem ocorrer sem detecção clínica. Assim, os indivíduos com anormalidades hepáticas que são encaminhados para hepatologistas mais frequentemente apresentam doença he- pática crônica. Os estudos de vigilância nos Estados Unidosdocu- mentam uma incidência anual de doença hepática crônica recém-diagnosticada de 72 indivíduos por 100.000 na população.3 A doença hepática é responsável por mais de 27.000 mortes por ano nos Estados Unidos (1,1% de todas as mortes). PADRÕES DE LESÃO HEPÁTICA O fígado possui um repertório relativamente limitado de respos- tas celulares e tissulares à lesão, independentemente da causa. As mais comuns são: Degeneração de hepatócitos e acúmulos intracelulares. Necrose e apoptose de hepatócitos. Infl amação. Regeneração. Fibrose. Clinicamente, ocorrem algumas síndromes comuns consequen- tes a muitas doenças diferentes. Antes de considerarmos as doenças específi cas, discutiremos algumas dessas síndromes, que incluem insufi ciência hepática, cirrose, hipertensão portal e perturbações do metabolismo da bilirrubina, que causam icterícia e colestase. INSUFICIÊNCIA HEPÁTICA A consequência clínica mais severa da doença hepática é a insu- fi ciência hepática. Ela pode ser o resultado de uma destruição hepática súbita e maciça (insufi ciência hepática fulminante), que responde por cerca de 2.000 casos por ano nos Estados Unidos ou, mais frequentemente, representa o estágio fi nal de uma lesão crônica progressiva do fígado. A doença hepática em estágio ter- minal pode ocorrer por destruição insidiosa dos hepatócitos ou por ondas distintas e repetitivas de lesão parenquimatosa. Em casos de disfunção hepática severa, a insufi ciência hepática muitas vezes é desencadeada por doenças intercorrentes. Qualquer que seja a sequência, 80% a 90% da capacidade funcional hepática deve ser perdida antes que a insufi ciência hepática ocorra. Quando o fígado já não consegue manter a homeostasia, o transplante oferece a melhor esperança de sobrevida; a mortalidade da insu- fi ciência hepática sem um transplante de fígado corresponde a aproximadamente 80%. As alterações que causam insufi ciência hepática são divididas em três categorias:4 1. Insufi ciência hepática aguda. É defi nida como uma doença hepática aguda que está associada a encefalopatia dentro de 6 meses após o diagnóstico inicial. A condição é conhecida como insufi ciência hepática fulminante, quando a encefalopatia se desenvolve rapidamente, dentro de 2 semanas após o início de icterícia, e como insufi ciência hepática subfulminante, quando a encefalopatia se desenvolve dentro de 3 meses após o início de icterícia. A insufi ciência hepática aguda é causada por necrose hepática maciça, na maioria das vezes induzida por drogas ou toxinas (discutidas mais tarde). A ingestão acidental ou deliberada de acetaminofeno (Cap. 9) é responsável por quase 50% dos casos nos Estados Unidos. A exposição a halo- tano, medicamentos antimicobacterianos (rifampina, isonia- zida), antidepressivos inibidores da monoamina oxidase, TABELA 18–1 Avaliação Laboratorial da Doença Hepática Categoria do Teste Medida Sérica* Integridade dos hepatócitos Enzimas hepatocelulares citosólicas† Aspartato aminotransferase (AST) sérica Alanina aminotransferase (ALT) sérica Desidrogenase láctica (DHL) sérica Função excretora biliar Substâncias normalmente secretadas na bile† Bilirrubina sérica Total: não conjugada mais conjugada Direta: apenas conjugada Delta: ligada covalentemente à albumina Bilirrubina urinária Ácidos biliares séricos Enzimas da membrana plasmática (resultantes de lesão do canalículo biliar)† Fosfatase alcalina sérica "-Glutamil transpeptidase sérica 5’-Nucleotidase sérica Função dos hepatócitos Proteínas secretadas no sangue Albumina sérica‡ Tempo de protrombina† (fatores V, VII, X, protrombina, fibrinogênio) Metabolismo de hepatócitos Amônia sérica† Teste de exalação de aminopirina (desmetilação hepática)‡ Eliminação de galactose (injeção intravenosa)‡ *Os testes mais comuns estão em itálico. † Uma elevação implica doença hepática. ‡ Uma diminuição implica doença hepática. 844 CAPÍTULO 18 Fígado e Trato Biliar agentes químicos industriais como o tetracloreto de carbono e envenenamento por cogumelos (Amanita phalloides) coleti- vamente são responsáveis por outros 14% dos casos. A infec- ção pelo vírus da hepatite C (HAV) representa um adicional de 4% dos casos, e a infecção por hepatite B (HBV), de 8%. Hepatite autoimune e causas desconhecidas (15% dos casos) explicam os casos restantes. A infecção por hepatite C (HCV) apenas raramente causa necrose hepática maciça. O meca- nismo da necrose hepatocelular pode consistir em dano tóxico direto (p. ex., acetaminofeno, toxinas de cogumelos), porém na maioria das vezes consiste em uma combinação variável de toxicidade e destruição de hepatócitos mediada imunologica- mente (p. ex., infecção pelo vírus da hepatite).5 2. Doença hepática crônica. Esta é a via mais comum para insufi - ciência hepática e constitui o ponto fi nal de uma hepatite crônica inexorável terminando em cirrose, descrita mais adiante. 3. Disfunção hepática sem necrose evidente. Os hepatócitos podem ser viáveis, porém incapazes de desempenhar sua função meta- bólica normal, como ocorre na toxicidade por tetraciclina e no fígado gorduroso agudo da gravidez. Aspectos Clínicos. Os sinais clínicos de insufi ciência hepática são basicamente os mesmos, independentemente da causa, e são o resultado da incapacidade de os hepatócitos executarem suas funções homeostáticas. Icterícia é um achado quase invariável. Hipoalbuminemia, que predispõe ao edema periférico, e hipera- monemia, que desempenha um papel importante na disfunção cerebral, representam evoluções preocupantes. Fetor hepaticus é um odor corporal característico variavelmente descrito como “bolorento” ou “agridoce”. Está relacionado à formação de mer- captanos, pela ação das bactérias gastrointestinais sobre o amino- ácido metionina, que contém enxofre, e ao desvio do sangue esplâncnico da circulação portal para a sistêmica (shunt portos- sistêmico). O prejuízo do metabolismo estrogênico e a conse- quente hiperestrogenemia constituem as supostas causas do eritema palmar (um refl exo da vasodilatação local) e de angiomas de tipo “spider” na pele. Cada angioma consiste em uma arteríola dilatada, central, pulsante, a partir da qual são irradiados pequenos vasos. No sexo masculino, a hiperestrogenemia também provoca hipogonadismo e ginecomastia. A insufi ciência hepática acarreta risco à vida porque, com uma função hepática severamente prejudicada, os pacientes fi cam muito susceptíveis a encefalopatia e falência de múltiplos sistemas orgânicos. Insufi ciência respiratória com pneumonia e sepse combinada com insufi ciência renal tira a vida de muitos indivíduos com insufi ciên- cia hepática. Há o desenvolvimento de uma coagulopatia, atribuída a um prejuízo da síntese hepática de vários fatores de coagulação sanguínea. Esses defeitos podem causar um sangramento gastroin- testinal maciço. A absorção intestinal do sangue gera uma carga metabólica adicional para o fígado, o que agrava a extensão da insufi ciência hepática. Um curso de deterioração rápida é usual, e a morte ocorre dentro de semanas a poucos meses. Alguns poucos mais afortunados sobrevivem a episódios agudos de insufi ciência hepática, e a função hepática pode ser restaurada por regeneração hepatocelular, se o fígado não apresentar fi brose avançada. Como observado, o transplante de fígado pode salvar vidas. Três complicações particulares associadas à insufi ciência hepá- tica merecem uma consideração separada, uma vez que têm implicações graves. A encefalopatia hepática é manifestada por um espectro de per- turbações da consciência, variando de anormalidades compor- tamentais sutis, passando por confusão acentuada e estupor, até coma profundo e morte. Essas alterações podem progredir durante horas ou dias na insufi ciência hepática aguda ou mais insidiosamente em uma pessoa com função hepática marginal decorrente de doença hepática crônica. Os sinais neurológicos fl utuantes associados incluem rigidez, hiper-reflexia e asterixe: movimentos de extensão-fl exão rápidos e não ritmados da cabeça e das extremidades, observados mais facilmente quando os braços são mantidos em extensão com os punhos em dorso- fl exão. A encefalopatia hepática é compreendida como um distúr- bio da neurotransmissão no sistema nervoso central e no sistema neuromuscular e parece estar associada a uma elevação dos níveis de amônia no sangue e no sistema nervoso central, o que preju- dica a função neuronal e promove edema cerebral generalizado.6 Na maioria dos casos, existe apenas alterações morfológicas mínimas no cérebro, como tumefação de astrócitos. A encefalopatia é rever- sível se a condição hepática subjacente puder ser corrigida. A síndrome hepatorrenal refere-se ao aparecimento de insufi - ciência renal em indivíduos com doença hepática crônica severa nos quais não existem causas morfológicas ou funcio- nais intrínsecas para a insufi ciência renal. Retenção de sódio, prejuízo da excreção de água livre e diminuição da perfusão renal e da taxa de fi ltração glomerular constituem as principais anormalidades funcionais renais.7 A incidência desta síndrome corresponde a aproximadamente 8% por ano entre pacientes que apresentam cirrose e ascite. Vários fatores estão envolvidos no seu desenvolvimento, incluindo diminuição da pressão de perfusão renal devida a vasodilatação sistêmica, ativação do sistema nervoso simpático renal com vasoconstrição das arte- ríolas renais aferentes e maior síntese de mediadores vasoati- vos renais, que diminuem ainda mais a fi ltração glomerular. O início desta síndrome tipicamente é anunciado pela queda do débito urinário associada a uma elevação da ureia e creatinina no sangue. O rápido desenvolvimento de insufi ciência renal em geral está associado a um fator de estresse precipitante, como infecção, hemorragia gastrointestinal ou um procedi- mento cirúrgico de grande porte. O prognóstico é ruim, com uma sobrevida mediana de apenas 2 semanas, na forma de início rápido, e de 6 meses, na forma de início insidioso. O tratamento de escolha é o transplante de fígado. A síndrome hepatopulmonar (SHP) é caracterizada pela tríade clínica de doença hepática crônica, hipoxemia e dilatações vas- culares intrapulmonares (DVIP).8 As possíveis causas da hipo- xemia são: desequilíbrio da relação ventilação-perfusão (a causa predominante) decorrente da ausência de um fl uxo san- guíneo uniforme na presença de ventilação alveolar estável; limitação da difusão do oxigênio (defeito de “difusão-perfu- são”), que ocorre porque existe um período de tempo inade- quado para troca de oxigênio na junção alveolocapilar, em virtude do rápido fl uxo de sangue nos vasos dilatados; e o desvio do sangue das artérias pulmonares para as veias pul- monares. Muitas substâncias vasoativas foram implicadas na patogenia desta síndrome, embora o aumento da produção de óxido nítrico (NO) pelo pulmão pareça ser o principal media- dor. Clinicamente, os pacientes podem apresentar redução da saturação arterial de oxigênio e aumento da dispneia ao pas- sarem da posição supina para a ereta (condições conhecidas, respectivamente, como ortodeoxia e platipneia); spider nevi cutâneos podem estar presentes em pacientes com DVIP. A maioria dos pacientes responde à terapia com oxigênio, embora o transplante de fígado seja o único tratamento curativo. CAPÍTULO 18 Fígado e Trato Biliar 845 Cirrose A cirrose é a 12ª causa de morte mais comum nos Estados Unidos, sendo responsável pela maioria das mortes relacionadas ao fígado. As causas mais importantes de cirrose no mundo todo são o abuso de álcool, a hepatite viral e a esteato-hepatite não alcoólica (EHNA). Outras etiologias incluem doença biliar e sobrecarga de ferro. A cirrose, como estágio fi nal da doença hepática crônica, é defi nida por três características morfológicas principais: Fibrose em ponte dos septos na forma de faixas delicadas ou amplas cicatrizes que ligam os tratos portais entre si e os tratos portais com as veias hepáticas terminais. A fi brose é a caracte- rística essencial da lesão progressiva do fígado. Como discutido no Capítulo 3, a fi brose é um processo dinâmico de deposição de colágeno e remodelagem.9 Nódulos parenquimatosos contendo hepatócitos circundados por fi brose, com diâmetros variando de muito pequenos (< 0,3 cm, micronódulos) a grandes (vários centímetros, macro- nódulos). A nodularidade resulta de ciclos de regeneração de hepatócitos e cicatrização. Desorganização da arquitetura de todo o fígado. A lesão paren- quimatosa e consequente fi brose são difusas, estendendo-se por todo o fígado. Uma lesão focal sem cicatrização não constitui cirrose, o que vale também para uma transformação nodular difusa sem fi brose. Patogenia. Os processos patogênicos centrais na cirrose consistem em morte dos hepatócitos, deposição de matriz extracelular (MEC) e reorganização vascular.10 No fígado normal, os colágenos inters- ticiais (tipos I e III) estão concentrados em tratos portais e ao redor das veias centrais, e faixas delgadas de colágeno de tipo IV estão presentes no espaço de Disse. Na cirrose, o colágeno de tipos I e III é depositado no espaço de Disse, criando tratos septais fi bróticos. A arquitetura vascular do fígado é distorcida pela lesão e cicatrização do parênquima, com a formação de novos canais vasculares nos septos fi bróticos que conectam os vasos da região portal (artérias hepáticas e veias porta) às veias hepáticas termi- nais, desviando o sangue do parênquima. A deposição de colágeno no espaço de Disse é acompanhada pela perda de fenestrações das células endoteliais dos sinusoidais (capilarização dos sinusoides), prejudicando a função dos sinusoides como canais que permitem a troca de solutos entre os hepatócitos e o plasma (Fig. 18-2). O mecanismo de fi brose predominante é a proliferação de células estreladas hepáticas e sua ativação para células altamente fi brogênicas, porém outros tipos celulares, como fi broblastos portais, fi brócitos e células derivadas de transições epiteliais- mesenquimais, também produzem colágeno. A proliferação de células estreladas hepáticas e sua ativação em miofi broblastos são iniciadas por uma série de alterações, que incluem o aumento na expressão do receptor do fator de crescimento derivado de pla- quetas # (PDGFR-#) nas células estreladas. Ao mesmo tempo, as células de Kupffer e os linfócitos liberam citocinas e quimiocinas que modulam a expressão dos genes nas células estreladas envol- vidos na fi brogênese. Estas incluem o fator de crescimento trans- formador # (TGF-#) e seus receptores, a metaloproteinase 2 (MMP-2) e inibidores tissulares das metaloproteinases 1 e 2 (TIMP-1 e 2). Quando são convertidas em miofi broblastos, as células liberam fatores quimiotáticos e vasoativos, citocinas e fatores de crescimento. Os miofi broblastos são células contráteis, capazes de comprimir os canais vasculares sinusoidais e aumentar a resistência vascular no interior do parênquima hepático; sua contração é estimulada pela endotelina-1 (ET-1). Os estímulos para ativação das células estreladas podem ter origem em diversas fontes (Fig. 18-2): (a) infl amação crônica, com produção de cito- cinas infl amatórias como o fator de necrose tumoral (TNF), lin- fotoxina e interleucina 1# (IL-1#) e produtos de peroxidação lipídica; (b) produção de citocinas e quimiocinas por células de Hepatócitos Células endoteliais Espaço de Disse Canalículo biliar FÍGADO NORMAL FIBROSE HEPÁTICA Célula estrelada quiescente Sinusoide A célula de Kupffer ativada libera citocinas que promovem: Célula estrelada ativada “Miofibroblasto” Proliferação Contração Quimiotaxia Fibrogênese Proliferação: PDGF TNF Contração: ET-1 Quimiotaxia: MCP-1 PDGF Fibrogênese: TGF-! Célula de Kupffer Fibras de colágeno delicadas Disfunção e morte dos hepatócitos Hepatócito apoptótico FIGURA 18–2 Ativação de células estreladas e fibrose hepática. A ativação da célula de Kupfferprovoca a secreção de múltiplas citocinas. O fator de crescimento derivado de plaquetas (PDGF) e o fator de necrose tumoral (TNF) ativam as células estreladas, e a contração das células estreladas ativadas é estimulada pela endotelina-1 (ET-1). A fibrogênese é estimulada pelo fator de crescimento transformador # (TGF-#). A quimiotaxia das células estreladas ativadas para áreas de lesão é promovida por PDGF e pela proteína quimiotática de monócitos 1 (MCP-1). Ver o texto para detalhes. 846 CAPÍTULO 18 Fígado e Trato Biliar Kupffer, células endoteliais, hepatócitos e células epiteliais do ducto biliar; em resposta à (c) perturbação da MEC; e (d) esti- mulação direta das células estreladas por toxinas. Durante todo o processo de lesão hepática e fi brose no desen- volvimento da cirrose, a regeneração dos hepatócitos sobreviven- tes é estimulada e estes proliferam na forma de nódulos esféricos que confi nam os septos fi brosos. O resultado fi nal é um fígado fi brótico e nodular, no qual o suprimento de sangue para os hepatócitos está severamente comprometido, assim como a capa- cidade de os hepatócitos secretarem substâncias no plasma. A degeneração da interface entre o parênquima e os tratos portais também pode obliterar os canais biliares, levando ao desenvolvi- mento de icterícia. Aspectos Clínicos. Aproximadamente 40% dos indivíduos com cirrose são assintomáticos até um ponto tardio na evolução da doença. Quando sintomáticos, apresentam manifestações clí- nicas inespecífi cas: anorexia, perda de peso, fraqueza e, na doença avançada, os sinais e sintomas de insufi ciência hepática discutidos anteriormente. Uma insufi ciência hepática incipiente ou franca pode se desenvolver, geralmente precipitada por uma carga meta- bólica superposta ao fígado, em geral decorrente de infecção sis- têmica ou hemorragia gastrointestinal. Desequilíbrios do fl uxo sanguíneo pulmonar podem provocar um prejuízo severo da oxi- genação (síndrome hepatopulmonar, já discutida em insufi ciên- cia hepática), aumentando ainda mais o estresse para o paciente. O mecanismo de morte básico na maioria dos pacientes cirróticos consiste em (1) insufi ciência hepática progressiva, (2) uma compli- cação relacionada à hipertensão portal ou (3) o desenvolvimento de carcinoma hepatocelular. Em um pequeno número dos casos, a interrupção da lesão hepática pode permitir o tempo necessário para a reabsorção do tecido fi broso e a “reversão” da cirrose.11 Mesmo nestes casos, a hipertensão portal e o risco de carcinoma hepatocelular permanecem. HIPERTENSÃO PORTAL O aumento da resistência ao fl uxo sanguíneo portal pode desen- volver-se em uma variedade de circunstâncias, que podem ser divididas em causas pré-hepáticas, intra-hepáticas e pós-hepáticas. As principais condições pré-hepáticas consistem em trombose obs- trutiva, estreitamento da veia porta antes de sua ramifi cação no interior do fígado ou esplenomegalia maciça com aumento do fl uxo sanguíneo venoso esplênico. As principais causas pós-hepá- ticas são insufi ciência cardíaca direita severa, pericardite constri- tiva e obstrução do fl uxo da veia hepática. A causa intra-hepática dominante é a cirrose, representando a maioria dos casos de hiper- tensão portal. Causas intra-hepáticas muito menos frequentes consistem em esquistossomose, alteração gordurosa maciça, doenças granulomatosas fi brosantes difusas, como a sarcoidose, e doenças que afetam a microcirculação portal, como hiperplasia nodular regenerativa (discutida posteriormente). A fi siopatologia da hipertensão portal é complexa e envolve a resistência ao fl uxo portal e ao nível dos sinusoides e o aumento do fl uxo portal causado pela circulação hiperdinâmica. A maior resistência ao fl uxo portal ao nível dos sinusoides é causada pela contração de células da musculatura lisa vascular e miofi broblastos e pela interrupção do fl uxo sanguíneo por cicatrização e formação de nódulos parenquimatosos. As células endoteliais sinusoidais contribuem para a vasoconstri- ção intra-hepática associada à hipertensão portal por meio da diminuição da produção de óxido nítrico, da liberação de endotelina-1 (ET-1), angiotensinogênio e eicosanoides.10 A remodelagem sinusoidal e a anastomose entre os sistemas arte- rial e portal nos septos fi brosos contribuem para a hipertensão portal ao impor pressões arteriais sobre o sistema venoso portal de baixa pressão. A remodelagem sinusoidal e as deri- vações intra-hepáticas também interferem com a troca meta- bólica entre o sangue sinusoidal e os hepatócitos. Outro fator importante no desenvolvimento da hipertensão portal é o aumento do fl uxo sanguíneo venoso portal resultante de uma circulação hiperdinâmica.13,14 Isso é causado por vaso- dilatação arterial, primariamente na circulação esplâncnica. O maior fl uxo sanguíneo arterial esplâncnico por sua vez provoca o aumento do efl uxo venoso para o sistema venoso portal. Embora vários mediadores como prostaciclina e TNF tenham sido implicados na causa da vasodilatação arterial esplâncnica, o NO emergiu como o mais signifi cativo. Acredita-se que a produção de NO seja estimulada pela diminuição da elimina- ção de DNA bacteriano absorvido dos intestinos, em virtude de uma redução da função do sistema mononuclear fagocítico e desvio do sangue da circulação portal para a sistêmica, con- sequentemente evitando o enorme pool de células de Kupffer no fígado. Coerentemente com essa hipótese, o tratamento Encefalopatia hepática Angiomas cutâneos de tipo aranhas Varizes esofágicas CIRROSE Linfa hepática Veia porta Esplenomegalia Veia esplênica Cabeça de medusa periumbilical Ascite Hemorroidas Atrofia testicular Desnutrição FIGURA 18–3 Principais consequências clínicas da hipertensão portal no contexto de cirrose, mostradas para o sexo masculino. Em mulheres, oligomenorreia, amenorreia e esterilidade são frequentes, como resul- tado do hipogonadismo. CAPÍTULO 18 Fígado e Trato Biliar 847 com antibióticos parece ser benéfi co em modelos experimen- tais de hipertensão portal. As quatro principais consequências clínicas da hipertensão portal são (1) ascite, (2) formação de shunts venosos portossistêmicos, (3) esplenomegalia congestiva e (4) encefalopatia hepática (discutida anteriormente). Estas são ilustradas na Figura 18-3. Ascite. Ascite é o acúmulo de líquido em excesso na cavidade peritoneal. Em 85% dos casos, a ascite é causada por cirrose. A ascite, em geral, é clinicamente detectável quando há acúmulo de, pelo menos, 500 mL. O líquido geralmente é seroso, apresentando menos de 3 g/dL de proteína (em grande parte albumina) e um gradiente de albumina entre o soro e a ascite $ 1,1 g/dL. A con- centração de solutos como glicose, sódio e potássio é semelhante à do sangue. O líquido pode conter um número escasso de células mesoteliais e leucócitos mononucleares. O infl uxo de neutrófi los sugere infecção secundária, enquanto a presença de células san- guíneas aponta para um possível câncer intra-abdominal disse- minado. Na ascite de longa duração, o vazamento do líquido peritoneal pelos linfáticos transdiafragmáticos pode produzir hidrotórax, mais frequentemente do lado direito. A patogenia da ascite é complexa, envolvendo os seguintes mecanismos:11,12 Hipertensão sinusoidal, que altera as forças de Starling e impele o líquido para o espaço de Disse, sendo, então, removido pelos linfáticos hepáticos; este movimento do líquido também é pro- movido pela hipoalbuminemia. Percolação da linfa hepática para a cavidade peritoneal: O fl uxo linfático normal no ducto torácico corresponde a aproxima- damente 800 a 1.000 mL/dia. Com a cirrose, o fl uxo linfático hepático pode atingir 20 L/dia, excedendo a capacidade do ducto torácico. A linfa hepática é rica em proteínas e pobre em triglicerídeos, o que explica a presença de proteína no líquido ascítico. Vasodilatação esplâncnica e circulação hiperdinâmica. Essas condições foram descritas anteriormente, comrelação à pato- genia da hipertensão portal. A vasodilatação arterial na circu- lação esplâncnica tende a reduzir a pressão arterial. Com o agravamento da vasodilatação, a frequência cardíaca e o débito cardíaco não conseguem manter a pressão arterial. Isso desen- cadeia a ativação de vasoconstritores, incluindo o sistema renina-angiotensina, e também aumenta a secreção do hormô- nio antidiurético. A combinação de hipertensão portal, vaso- dilatação e retenção de sódio e água aumenta a pressão de perfusão dos capilares intersticiais, causando o extravasamento de líquido para a cavidade abdominal. Shunts Portossistêmicos. Com a elevação da pressão no sistema portal, o fl uxo é invertido da circulação portal para a sistêmica pela dilatação de vasos colaterais e pelo desenvolvi- mento de novos vasos. Circuitos venosos secundários se desen- volvem em qualquer local onde as circulações sistêmica e portal compartilhem de leitos capilares comuns (Fig. 18-3). Os princi- pais pontos consistem nas veias ao redor e no interior do reto (manifestado como hemorroidas), na junção gastroesofágica (produzindo varizes), no retroperitônio e no ligamento falci- forme do fígado (envolvendo colaterais periumbilicais e da parede abdominal). Embora possa ocorrer sangramento hemorroidário, esse raramente é maciço ou ameaça a vida. Muito mais importan- tes são as varizes gastroesofágicas que aparecem em cerca de 40% dos indivíduos com cirrose hepática avançada e causam hematêmese maciça e morte em aproximadamente metade dos casos. Cada epi- sódio de sangramento está associado a uma mortalidade de 30%. Colaterais da parede abdominal aparecem como veias subcutâ- neas dilatadas, as quais se estendem do umbigo até as bordas das costelas (cabeça de medusa) e constituem uma importante carac- terística clínica típica da hipertensão portal. Esplenomegalia. A congestão de longa duração pode causar esplenomegalia congestiva. O grau de aumento esplênico varia muito e pode chegar a até 1.000 g, mas não está necessariamente correlacionado a outras características da hipertensão portal. A esplenomegalia maciça pode induzir secundariamente anormali- dades hematológicas atribuíveis ao hiperesplenismo, como trom- bocitopenia ou até mesmo pancitopenia. ICTERÍCIA E COLESTASE As causas comuns de icterícia são: a produção excessiva de bilir- rubina, hepatite e obstrução do fl uxo biliar. A bile hepática tem duas funções principais: (1) a emulsifi cação da gordura dietética na luz intestinal pela ação detergente dos sais biliares e (2) a eli- minação de bilirrubina, excesso de colesterol, xenobióticos e outros produtos residuais que não são sufi cientemente hidrosso- lúveis para que sejam excretados na urina. As alterações da for- mação de bile tornam-se clinicamente evidentes como uma coloração amarela da pele e da esclera (icterícia e íctero, respecti- vamente), devida à retenção de bilirrubina, e como colestase, caracterizada pela retenção sistêmica não apenas de bilirrubina, mas também de outros solutos eliminados na bile. Para compreen- der a fi siopatologia da icterícia é importante estar inicialmente familiarizado com os principais aspectos da formação e do meta- bolismo da bile. O metabolismo da bilirrubina pelo fígado con- siste em quatro eventos separados, porém inter-relacionados: captação da circulação; depósito intracelular; conjugação com ácido glicurônico e excreção biliar. Estes são descritos a seguir. Formação da Bilirrubina e da Bile A bilirrubina é o produto fi nal da degradação do heme (Fig. 18-4). A maior parte da produção diária (0,2 a 0,3 g, 85%) é derivada da decomposição de eritrócitos senescentes pelo sistema mononuclear fagocítico, especialmente no baço, no fígado e na medula óssea. A maioria da bilirrubina restante (15%) é derivada do metabolismo de heme ou hemoproteínas hepáticos (p. ex., os citocromos P-450) e da destruição prematura de precursores eri- trocitários na medula óssea (Cap. 13). Qualquer que seja a fonte, a heme oxigenase intracelular oxida o heme em biliverdina (etapa 1 na Fig. 18-4), que é imediatamente reduzida até bilirrubina pela biliverdina redutase. A bilirrubina formada desse modo fora do fígado é liberada e ligada à albumina sérica (etapa 2). A ligação à albumina é necessária para o transporte da bilirrubina, porque a bilirrubina é virtualmente insolúvel em soluções aquosas em pH fi siológico. O processamento hepático da bilirrubina envolve a captação mediada por transportador na membrana sinusoidal (etapa 3), conjugação com uma ou duas moléculas de ácido gli- curônico pela bilirrubina uridina difosfato (UDP)-glicuronil- transferase (UGT1A1, etapa 4) no retículo endoplasmático e a excreção dos glicuronídeos de bilirrubina hidrossolúveis e atóxi- cos na bile. A maior parte dos glicuronídeos de bilirrubina é desconjugada na luz intestinal pelas #-glicuronidases bacterianas e degradada até urobilinogênios incolores (etapa 5). Os urobili- nogênios e os resíduos do pigmento intacto são excretados pri- mariamente nas fezes. Aproximadamente 20% dos urobilinogê- nios formados são reabsorvidos no íleo e no cólon, devolvidos ao 848 CAPÍTULO 18 Fígado e Trato Biliar fígado e reexcretados na bile. Uma pequena quantidade do uro- bilinogênio reabsorvido é excretada na urina. A enzima de conjugação hepática UGT1A1 é um produto do gene UGT1 localizado no cromossomo 2q37. Ela faz parte de uma família de enzimas que catalisam a glicuronidação de uma série de substratos, como hormônios esteroides, carcinógenos e drogas. Em humanos, UGT1A1, gerada a partir do éxon 1A do gene UGT1, é a única isoforma responsável pela glicuronidação da bilirrubina. Mutações em UGT1A1 causam as hiperbilirrubine- mias não conjugadas hereditárias: a síndrome de Crigler-Najjar de tipos I e II e a síndrome de Gilbert. Dois terços dos materiais orgânicos da bile correspondem aos sais biliares, que são formados pela conjugação de ácidos biliares com taurina ou glicina. Os ácidos biliares, os principais produtos do catabolismo do colesterol, constituem uma família de esteróis hidrossolúveis com cadeias laterais carboxiladas. Os ácidos biliares humanos primários são o ácido cólico e o ácido quenodesoxicó- lico. Os ácidos biliares nos sais biliares atuam como detergen tes altamente efi cazes. Seu principal papel fi siológico é a solubiliza- ção de lípides insolúveis em água secretados na bile pelos hepa- tócitos e também a solubilização de lipídeos dietéticos na luz intestinal. Noventa e cinco por cento dos ácidos biliares secreta- dos, conjugados ou não conjugados, são reabsorvidos da luz intestinal e recirculam pelo fígado (circulação êntero-hepática), ajudando assim a manter um grande pool endógeno de ácidos biliares para fi ns digestivos e excretores. Fisiopatologia da Icterícia Tanto a bilirrubina não conjugada quanto a bilirrubina conjugada (glicuronídeos de bilirrubina) podem sofrer acúmulo sistêmico. Existem duas diferenças fi siopatológicas importantes entre as duas formas de bilirrubina. A bilirrubina não conjugada é praticamente insolúvel em água em pH fi siológico e existe na forma de complexos estáveis com albumina sérica. Esta forma não pode ser excretada na urina, mesmo que os níveis sanguíneos estejam elevados. Normal- mente, uma quantidade muito pequena de bilirrubina não conju- gada está presente como um ânion livre de albumina no plasma. Esta fração de bilirrubina não ligada pode se difundir para os tecidos, particularmente o cérebro em lactentes, e produzir lesão tóxica. A fração plasmática não ligada pode aumentar na doença hemolítica severa ou quando medicamentos que se ligam a pro- téínas deslocam a bilirrubina da albumina. Consequentemente, a doença hemolítica do recém-nascido (eritroblastose fetal) pode levar ao acúmulo de bilirrubina não conjugada no cérebro, o que pode causar uma lesão neurológica grave, conhecida como kernicterus (Cap. 10). Em contraste, a bilirrubina conjugada é hidrossolúvel, atóxica e está ligada apenasfrouxamente à albumina. Em virtude de sua solubilidade e fraca associação com a albumina, o excesso de bilirrubina conjugada no plasma pode ser excretado na urina. Na hiperbilirrubinemia conjugada prolongada, uma porção do pig- HEME BILIVERDINA Complexo BILIRRUBINA-albumina Heme oxigenase Biliverdina redutase Sangue Fígado Ductos biliares Duodeno Urobilinogênio Cólon Hepatócito Glicuronídeos de bilirrubina Canalículo biliar Célula mononuclear fagocítica Eritrócitos senescentes 1 2 3 4 5 FIGURA 18–4 Metabolismo e eliminação da bilirrubina. (1) A pro- dução normal de bilirrubina a partir do heme (0,2-0,3 g/dia) é derivada primariamente da decomposição de eritrócitos circulantes senescen- tes. (2) A bilirrubina extra-hepática é ligada à albumina sérica e for- necida ao fígado. (3) A captação hepatocelular e (4) a glicuronidação no retículo endoplasmático geram monoglicuronídeos e diglicuronídeos de bilirrubina, que são hidrossolúveis e facilmente excretados na bile. (5) As bactérias intestinais desconjugam a bilirrubina, decompondo-a até urobilinogênios incolores. Os urobilinogênios e os resíduos de pigmentos intactos são excretados nas fezes, com alguma reabsorção e excreção na urina. CAPÍTULO 18 Fígado e Trato Biliar 849 mento circulante pode ser ligado covalentemente à albumina; isso é chamado de fração de bilirrubina delta. Os níveis séricos de bilirrubina no adulto normal variam entre 0,3 e 1,2 mg/dL, e a taxa de produção sistêmica de bilirrubina é igual às taxas de captação hepática, conjugação e excreção biliar. A icterícia torna-se evidente quando os níveis séricos de bilirrubina aumentam acima de 2,0 a 2,5 mg/dL; níveis de até 30 a 40 mg/dL podem ocorrer com uma doença severa. A icterícia ocorre quando o equilíbrio entre a produção e a eliminação de bilirrubina é pertur- bado por um ou mais dos seguintes mecanismos (Tabela 18-2): (1) produção extra-hepática excessiva de bilirrubina; (2) redução da cap- tação pelos hepatócitos; (3) prejuízo da conjugação; (4) diminuição da excreção hepatocelular; e (5) prejuízo do fl uxo biliar. Os três pri- meiros mecanismos produzem hiperbilirrubinemia não conjugada e os dois últimos produzem hiperbilirrubinemia predominante- mente conjugada. Embora mais de um mecanismo possa estar operando, em geral um mecanismo predomina; portanto, o conhe- cimento da principal forma de bilirrubina plasmática é útil para avaliar as possíveis causas da hiperbilirrubinemia. Duas condições resultam de defeitos específi cos no metabo- lismo hepatocelular da bilirrubina. Icterícia Neonatal. Uma vez que o maquinário hepático para conjugação e excreção da bilirrubina não amadurece completa- mente até cerca de 2 semanas de idade, quase todo recém-nascido desenvolve uma hiperbilirrubinemia não conjugada leve e tran- sitória, chamada de icterícia neonatal ou icterícia fi siológica do recém-nascido. Esta pode ser exacerbada pela amamentação, como resultado da presença de enzimas que desconjugam a bilirrubina no leite materno. Entretanto, uma icterícia que persiste no recém- nascido é anormal, discutida mais adiante em hepatite neonatal. Hiperbilirrubinemias Hereditárias. Múltiplas mutações ge - né ticas podem causar hiperbilirrubinemia hereditária15 (Tabela 18-3). Na síndrome de Crigler-Najjar de tipo I, a UGT1A1 hepática (descrita anteriormente) está completamente ausente, e a bile incolor contém apenas quantidades mínimas de bilirrubina não conjugada. O fígado é morfologicamente normal à microscopia óptica e eletrônica. Contudo, a bilirrubina não conjugada sérica atinge níveis muito elevados, produzindo icterícia e íctero severos. Sem um transplante de fígado, essa condição é invariavelmente fatal, causando a morte secundária a kernicterus dentro de 18 meses após o nascimento. A síndrome de Crigler-Najjar de tipo II é um distúrbio menos severo e não fatal, no qual a atividade da enzima UGT1A1 está grandemente reduzida e a enzima é capaz apenas de formar bilir- rubina monoglicuronidada. Ao contrário da síndrome de Crigler- Najjar de tipo I, a única consequência signifi cativa é a pele extraordinariamente amarela. O tratamento com fenobarbital pode melhorar a glicuronidação da bilirrubina pela indução de hipertrofi a do retículo plasmático hepatocelular. A síndrome de Gilbert é uma condição hereditária, relativa- mente comum, benigna, que se manifesta por hiperbilirrubinemia leve, fl utuante, na ausência de hemólise ou doença hepática. Afeta 3% a 10% da população dos EUA. Na síndrome de Gilbert, a TABELA 18–2 Causas de Icterícia HIPERBILIRRUBINEMIA PREDOMINANTEMENTE NÃO CONJUGADA Produção em excesso de bilirrubina Anemias hemolíticas Reabsorção de sangue de hemorragia interna (p. ex., sangramento no trato alimentar, hematomas) Eritropoiese ineficaz (p. ex., anemia perniciosa, talassemia) Redução da captação hepática Interferência de drogas com os sistemas de transporte das membranas Alguns casos de síndrome de Gilbert Prejuízo da conjugação de bilirrubina Icterícia fisiológica do recém-nascido (diminuição da atividade de UGT1A1, diminuição da excreção) Icterícia do leite materno (#-glicuronidases no leite) Deficiência genética de atividade de UGT1A1 (síndrome de Crigler-Najjar tipos l e II) Síndrome de Gilbert Doença hepatocelular difusa (p. ex., hepatite viral ou induzida por drogas, cirrose) HIPERBILIRRUBINEMIA PREDOMINANTEMENTE CONJUGADA Deficiência de transportadores da membrana canalicular (síndrome de Dubin-Johnson, síndrome de Rotor) Prejuízo do fluxo biliar UGT, uridina difosfato-glicuroniltransferase. TABELA 18–3 Hiperbilirrubinemias Hereditárias Distúrbio Herança Defeitos no Metabolismo da Bilirrubina Patologia Hepática Curso Clínico HIPERBILIRRUBINEMIA NÃO CONJUGADA Síndrome de Crigler-Najjar tipo I Síndrome de Crigler-Najjar tipo II Síndrome de Gilbert Autossômica recessiva Autossômica dominante com penetrância variável Autossômica recessiva Atividade de UGT1A1 ausente Atividade de UGT1A1 diminuída Atividade de UGT1A1 diminuída Nenhuma Nenhuma Nenhuma Fatal no período neonatal Geralmente leve, kernicterus ocasional Inócua HIPERBILIRRUBINEMIA CONJUGADA Síndrome de Dubin-Johnson Síndrome de Rotor Autossômica recessiva Autossômica recessiva Prejuízo da excreção biliar de glicuronídeos de bilirrubina em função de mutação na proteína associada à resistência a múltiplos medicamentos 2 (MRP2) canalicular Diminuição da captação hepática e armazenamento? Diminuição da excreção biliar? Glóbulos citoplasmáticos pigmentados; ? metabólitos de epinefrina Nenhuma Inócua Inócua UGT, uridina difosfato-glicuroniltransferase. 850 CAPÍTULO 18 Fígado e Trato Biliar atividade de glicuronidação da bilirrubina hepática corresponde a aproximadamente 30% do normal, uma redução menos severa que nas síndromes de Crigler-Najjar. Na maioria dos pacientes, ela é causada pela inserção homozigótica de duas bases adicionais na região promotora 5’ do gene de UGT1, provocando redução da transcrição. A hiperbilirrubinemia leve pode não ser descoberta por muitos anos e não está associada a perturbações funcionais. Quando detectada na adolescência ou na vida adulta, tipicamente ocorre em associação com um estresse, como uma doença inter- corrente, exercício extenuante ou jejum. A síndrome de Gilbert em si não tem consequências clínicas, com exceção da ansiedade que um portador de icterícia possa, justifi cavelmente, sofrer com esta condição inócua sob outros aspectos. Contudo, indivíduos que apresentam a síndrome de Gilbert podem ser mais susceptíveis aos efeitos adversos de drogas metabolizadas por UGT1A1. A síndrome de Dubin-Johnson é um distúrbio autossômico reces- sivo caracterizado por hiperbilirrubinemia conjugada crônica. É causada por um defeito na excreção hepatocelular de glicuronídeos de bilirrubina pela membrana canalicular. A base molecular desta síndrome é a ausência da proteína canalicular, a proteínaasso- ciada à resistência a múltiplos medicamentos 2, que é responsável pelo transporte dos glicuronídeos de bilirrubina e ânions orgâni- cos relacionados para a bile.16 O fígado exibe uma pigmentação escura devida a grânulos pigmentados grosseiros no citoplasma dos hepatócitos (Fig. 18-5). A microscopia eletrônica revela que o pigmento está localizado nos lisossomos: ele parece ser com- posto por polímeros de metabólitos de epinefrina. O fígado é normal sob outros aspectos. Com exceção de uma icterícia crônica ou recorrente de intensidade fl utuante, a maioria dos pacientes é assintomática e tem uma expectativa de vida normal. A síndrome de Rotor é uma forma rara de hiperbilirrubinemia conjugada assintomática associada a múltiplos defeitos na capta- ção hepatocelular e excreção dos pigmentos de bilirrubina. A base molecular precisa desta síndrome é desconhecida. O fígado é morfologicamente normal. Como na síndrome de Dubin-John- son, pacientes com a síndrome de Rotor apresentam icterícia, mas têm vida normal sob outros aspectos. Colestase Colestase denota uma condição patológica de prejuízo da formação de bile e do fl uxo biliar, levando ao acúmulo de pigmento biliar no parênquima hepático.17 Pode ser causada por obstrução extra-hepática ou intra-hepática dos canais biliares ou por defeitos da secreção de bile pelos hepatócito. Os pacientes podem apresentar icterícia, prurido, xantomas cutâneos (acúmulo focal de colesterol) ou sintomas rela- cionados a má absorção intestinal, incluindo defi ciências nutricio- nais das vitaminas lipossolúveis A, D ou K. Um achado laboratorial característico é a elevação dos níveis séricos de fosfatase alcalina e "-glutamil transpeptidase (GGT), enzimas presentes nas membranas apicais de hepatócitos e células epiteliais do ducto biliar. Morfologia. Os aspectos morfológicos da colestase depen- dem de sua severidade, duração e causa subjacente. Uma característica comum tanto à colestase obstrutiva quanto à não obstrutiva é o acúmulo de pigmento biliar no interior do parênquima hepático (Figs. 18-6 e 18-7). Tampões verde-acastanhados alongados de bile são visíveis nos canalículos biliares dilatados (Fig. 18-78). A ruptura dos canalículos leva ao extravasamento de bile, que é rapida- mente fagocitada pelas células de Kupffer. Gotículas de pigmento biliar também se acumulam nos hepatócitos, que podem assumir uma aparência fina, espumosa (dege- neração plumosa). A obstrução da árvore biliar, seja intra-hepática ou extra-hepática, causa distensão dos ductos e dúctulos FIGURA 18–5 Síndrome de Dubin-Johnson, exibindo inclusões de pigmentos abundantes em hepatócitos normais sob outros aspectos. PARÊNQUIMA TRATO PORTAL Normal Hepatócitos Células de Kupffer Apoptose Canalículos biliares Ducto biliar Artéria hepática Veia porta Colestase Normal Colestase 1 2 3 4 5 6 7 FIGURA 18–6 Aspectos morfológicos da colestase (direita) e compa- ração com o fígado normal (esquerda). No parênquima (painel superior) os hepatócitos colestáticos (1) estão aumentados, com espaços cana- liculares dilatados (2). Células apoptóticas (3) podem ser vistas, e as células de Kupffer (4) frequentemente contêm pigmentos biliares regur- gitados. Nos tratos portais do fígado obstruído (painel inferior) também ocorrem proliferação de dúctulos biliares (5), edema, retenção de pig- mento biliar (6) e eventualmente inflamação neutrofílica (não mostrada). Os hepatócitos vizinhos (7) estão tumefeitos e sofrendo degeneração. CAPÍTULO 18 Fígado e Trato Biliar 851 biliares pela bile antes do ponto da lesão. A estase biliar e a pressão retrógrada induzem a proliferação de células epiteliais do ducto, e curvatura e reduplicação de ductos e dúctulos nos tratos portais. Os dúctulos labirínticos reabsorvem os sais biliares secretados, para proteger os ductos biliares obstruídos subsequentes da ação deter- gente tóxica dos sais biliares. Os achados histológicos associados incluem edema do trato portal e infiltrados periductulares de neutrófilos. A colestase obstrutiva pro- longada causa não apenas a alteração plasmosa dos hepa- tócitos, mas também uma dissolução focal dos hepatócitos por detergentes, originando lagos de bile preenchidos com resíduos celulares e pigmento. Uma obstrução não aliviada leva a fibrose do trato portal e, finalmente, cirrose biliar. Uma vez que a obstrução biliar extra-hepática frequentemente é passível de alívio cirúrgico, o diagnóstico rápido e correto é imperativo. Em contraste, a colestase derivada de doenças da árvore biliar intra-hepática ou de insufi ciência secretora hepato- celular (coletivamente chamadas de colestase intra-hepática) não se benefi cia com a cirurgia (com exceção de transplante), e a condição do paciente pode ser agravada por um procedimento cirúrgico. Portanto, existe certa urgência em fazer um diagnóstico correto da causa de icterícia e colestase. Colestase Intra-hepática Familiar Progressiva (CIFP). Aqui, discutiremos um grupo notável, porém heterogêneo, de condi- ções colestáticas de herança autossômica recessiva conhecidas como CIFPs.17 A CIFP-1 (também conhecida como doença de Byler, porque foi identifi cada pela primeira vez nos descendentes de Jacob Byler, um paciente Amish), a CIFP-2 e a CIFP-3 são causadas por mutações de três genes diferentes. CIFP-1 e CIFP-2 possuem um fenótipo semelhante, que inclui atividade de GGT normal ou quase normal e ausência de proliferação de dúctulos biliares nos tratos portais. A colestase intra-hepática familiar progressiva 1 (CIFP-1) é caracterizada por colestase que começa na infância, com prurido intenso devido aos níveis séricos elevados de ácidos biliares, e progride inexoravelmente para insufi ciência hepática antes da idade adulta. O defeito genético geralmente consiste em uma mutação no gene ATP8B1 no cromossomo 18q21, que causa pre- juízo da secreção biliar por mecanismos que ainda não foram totalmente elucidados.18 Na forma leve de CIFP-1, chamada de colestase intra-hepática recorrente benigna, ocorrem ataques inter- mitentes de colestase durante a vida, sem progressão para doença hepática crônica. A colestase intra-hepática familiar progressiva 2 (CIFP-2) é causada por mutações na bomba de exportação de sais biliares canaliculares do hepatócito (BSEP), codifi cada pelo ABCB11. BSEP é um membro da família de transportadores de cassete de ligação de adenosina trifosfato (ABC).19 Mutações no gene ABCB11 causam um prejuízo severo da secreção de sais biliares na bile. Os pacientes sofrem de prurido extremo, falha de crescimento e pro- gressão para cirrose na primeira década de vida. Esses pacientes também apresentam maior risco de colangiocarcinoma. A colestase intra-hepática familiar progressiva 3 (CIFP-3) é causada por mutações no gene ABCB4 e é caracterizada por coles- tase com elevação de GGT sérico.20 A proteína codifi cada por ABCB4, MDR3, é uma proteína de transporte canalicular especí- fi ca para o fígado. Em indivíduos com CIFP-3, ocorre a ausência de fosfatidilcolina secretada na bile, o que deixa as superfícies apicais do epitélio da árvore biliar expostas à ação detergente integral dos sais biliares secretados, com resultante destruição tóxica desse epitélio e liberação de GGT na circulação. Distúrbios Infecciosos Os distúrbios infl amatórios do fígado dominam a prática clínica da hepatologia. Isso ocorre em parte porque praticamente qual- quer agressão ao fígado pode destruir os hepatócitos e recrutar células infl amatórias, mas também porque as doenças infl amató- rias frequentemente representam condições crônicas de longa duração. Entre os distúrbios infl amatórios, a infecção viral é de longe a mais frequente. HEPATITE VIRAL Infecções virais sistêmicas podem envolver o fígado, como na (1) mononucleose infecciosa (vírus Epstein-Barr), que pode causar uma hepatite leve durante a fase aguda; (2) infecção por citome- galovírus, particularmente em recém-nascidos ou pacientes imu- A B FIGURA18–7 Histologia da colestase. A, Colestase intracelular exibindo pigmentos biliares no citoplasma; B, tampão de bile mostrando a expansão do canalículo biliar pela bile. 852 CAPÍTULO 18 Fígado e Trato Biliar nossuprimidos; e (3) febre amarela (vírus da febre amarela), que constitui uma causa importante e séria de hepatite em países tropicais. Raramente, em crianças e pacientes imunossuprimidos, o fígado é afetado no curso de infecções por rubéola, adenovírus, herpesvírus ou enterovírus. Contudo, exceto quando especifi cado de outro modo, o termo hepatite viral é aplicado a infecções hepáti- cas causadas por um grupo de vírus conhecidos como vírus hepato- trópicos (vírus das hepatites A, B, C, D e E), que possuem uma afi nidade particular pelo fígado (Tabela 18-4). Inicialmente, apre- sentaremos as principais propriedades de cada vírus hepatotró- pico e, em seguida, discutiremos as características clinicopatológicas da hepatite viral aguda e crônica. Vírus da Hepatite A O vírus da hepatite A (HAV), o fl agelo das campanhas militares desde a antiguidade, é uma doença benigna e autolimitada, com um período de incubação de 3 a 6 semanas. O HAV não causa hepatite crônica ou um estado de portador e apenas raramente causa hepatite fulminante, por isso a taxa de fatalidade associada ao HAV corresponde a aproximadamente 0,1%. O HAV ocorre no mundo todo e é endêmico em países onde a higiene e o sanea- mento estão abaixo dos padrões, nos quais as populações podem apresentar anticorpos detectáveis contra o HAV aos 10 anos de idade. A doença clínica tende a ser leve ou assintomática e é rara após a infância. Nos países desenvolvidos, a prevalência de soro- positividade (indicativa de exposição prévia) aumenta gradual- mente com a idade, atingindo 50% aos 50 anos de idade nos Estados Unidos. Nessa população a HAV aguda tende a ser uma doença febril esporádica. Os indivíduos afetados apresentam sin- tomas inespecífi cos, como fadiga e perda do apetite, e frequente- mente desenvolvem icterícia. Em geral, o HAV é responsável por cerca de 25% dos casos de hepatite aguda clinicamente evidente no mundo todo, e há uma estimativa de 30.000 a 50.000 novos casos por ano nos Estados Unidos. O HAV, descoberto em 1973, é um pequeno picornavírus, não envelopado, de RNA de fi ta positiva, que ocupa seu próprio gênero, Hepatovirus. Ultraestruturalmente, o HAV é um capsídeo icosaédrico de 27 nm de diâmetro e pode ser cultivado in vitro. O receptor para o HAV é o HAVcr-1, uma glicoproteína seme- lhante à mucina integrante da membrana de classe I, com 451 aminoácidos, cuja função normal é desconhecida.21 O HAV é disseminado pela ingestão de água e alimentos contaminados e é eliminado nas fezes em 2 a 3 semanas antes e 1 semana após o aparecimento da icterícia. Portanto, o contato pessoal próximo com um indivíduo afetado ou a contaminação fecal-oral durante esse período é responsável pela maioria dos casos e explica os surtos em ambientes institucionais, como escolas e creches, e as epidemias transmitidas pela água em locais onde as pessoas vivem em condições de aglomeração, sem saneamento. O HAV também pode ser detectado no soro e na saliva. Uma vez que a viremia por HAV é transitória, a transmissão do HAV pelo sangue ocorre apenas raramente; portanto, o sangue doado não é examinado especifi ca- mente para este vírus. Nos países desenvolvidos, infecções esporá- dicas podem ser contraídas pelo consumo de moluscos crus ou cozidos no vapor (ostras, mexilhões, mariscos), que concentram o vírus da água marinha contaminada por esgoto humano. Tra- balhadores infectados na indústria de alimentos também podem representar uma fonte de surtos. O HAV em si não parece ser citopático. A imunidade celular, particularmente as células T CD8+, tem um papel central na lesão hepatocelular durante a infecção por HAV.22 Anticorpos IgM específi cos contra o HAV aparecem no sangue no início dos sintomas, constituindo um marcador confi ável de infecção aguda (Fig. 18-8). A eliminação fecal do vírus termina quando o título de IgM aumenta. A resposta de IgM geralmente começa a decair em alguns meses e é seguida pelo aparecimento de IgG anti-HAV. Esta última persiste por anos, talvez conferindo imunidade vitalícia contra a reinfecção por todas as cepas de HAV. Entretanto, não há testes de rotina disponíveis para IgG TABELA 18-4 Os Vírus das Hepatites Vírus Hepatite A Hepatite B Hepatite C Hepatite D Hepatite E Tipo de vírus ssRNA parcialmente dsDNA ssRNA ssRNA circular defeituoso ssRNA Família viral Hepatovírus; relacionados aos picornavírus Hepadnavírus Flaviridae Partícula subviral na família Deltaviridae Calicivírus Via de transmissão Fecal-oral (água ou alimentos contaminados) Parenteral, contato sexual, perinatal Parenteral; o uso de cocaína intranasal é um fator de risco Parenteral Fecal-oral Período de incubação médio 2 a 4 semanas 1 a 4 meses 7 a 8 semanas Mesmo que o HBV 4 a 5 semanas Frequência de doença hepática crônica Nunca 10% ~80% 5% (coinfecção); ! 70% para superinfecção Nunca Diagnóstico Detecção de anticorpos IgM no soro Detecção de HBsAg ou anticorpos contra HBcAg PCR para HCV RNA; ELISA de 3a geração para detecção de anticorpos Detecção de anticorpos IgM e IgG; HDV RNA no soro; HDAg no fígado PCR para HEV RNA; detecção de anticorpos IgM e IgG no soro dsDNA, DNA de dupla fita; ELISA, ensaio imunoenzimático; HBcAg, antígeno nuclear do vírus da hepatite B; HBsAg, antígeno de superfície do vírus da hepatite B; HBV, vírus da hepatite B; HCV, vírus da hepatite C; HDAg, antígeno do vírus da hepatite D; HDV, vírus da hepatite D; HEV, vírus da hepatite E; IV, intravenoso; PCR, reação em cadeia da polimerase; ssRNA, RNA de única fita. De Washington K: Inflammatory and infectious diseases of the liver. Em lacobuzio-Donahue CA, Montgomery EA (eds): Gastrointestinal and Liver Pathology. Philadelphia, Churchill Livingstone; 2005. CAPÍTULO 18 Fígado e Trato Biliar 853 anti-HAV. A presença deste anticorpo é inferida a partir da dife- rença entre anti-HAV total e IgM. A vacina contra HAV, disponí- vel desde 1992, é efi caz para prevenir a infecção.23 Vírus da Hepatite B O vírus da hepatite B (HBV) pode produzir (1) hepatite aguda com recuperação e eliminação do vírus, (2) hepatite crônica não pro- gressiva, (3) doença crônica progressiva terminando em cirrose, (4) hepatite fulminante com necrose hepática maciça e (5) um estado de portador assintomático. A doença hepática crônica induzida por HBV é um precursor importante para o desenvolvimento de car- cinoma hepatocelular.24 As frequências aproximadas das evoluções clínicas da infecção por HBV estão ilustradas na Figura 18-9. A doença hepática decorrente de HBV constitui um enorme problema de saúde global. Um terço da população mundial (2 bilhões de pessoas) está infectada pelo HBV, e 400 milhões de pessoas apresentam infecção crônica. Setenta e cinco por cento de todos os portadores crônicos vivem na Ásia e na costa do Pacífi co Ocidental. A prevalência global de infecção crônica por hepatite B varia amplamente, sendo elevada (> 8%) na África, na Ásia e no Pacífi co Ocidental, intermediária (2% a 7%) no sul e leste da Europa e baixa (< 2%) na Europa Ocidental, América do Norte e Austrália. Como será discutido adiante, a taxa de porta- dores é determinada, em grande parte, pela idade no momento da infecção, sendo mais alta quando a infecção ocorre em crianças no período perinatal e mais baixa quando adultos são infectados. Nos Estados Unidos, a incidência da infecção por HBV diminuiu dramaticamente; estima-se atualmente que 46.000 novas infec- ções ocorram por ano, com aproximadamente 5.000 casos sinto- máticos agudos. O modo de transmissão do HBV varia com as áreas geográfi cas. Em regiões do mundo com alta prevalência, a transmissão peri- natal durante o parto representa 90% dos casos. Em áreas com prevalência intermediária, a transmissão horizontal,especialmente no início da infância, é o modo de transmissão dominante. Esse tipo de disseminação ocorre por pequenos cortes e lacerações da pele ou das membranas mucosas entre crianças com contato cor- poral próximo. Em áreas de baixa prevalência como os Estados Unidos, a relação sexual heterossexual ou homossexual sem pro- teção e o abuso de drogas intravenosas (compartilhamento de agulhas e seringas) constituem os principais modos de dissemina- ção. A incidência de disseminação relacionada a transfusões decli- nou grandemente nos últimos anos em razão da triagem de sangue doado e HBsAg e da exclusão de doadores de sangue pagos. O HBV tem um período de incubação prolongado (4 a 26 semanas). Ao contrário do HAV, o HBV permanece no sangue até e durante episódios ativos de hepatite aguda e crônica. Nos Estados Unidos, a infecção aguda por HBV afeta principalmente adultos. Aproximadamente 70% apresentam sintomas leves ou até mesmo nenhum e não desenvolvem icterícia. Os demais 30% apresentam sintomas constitucionais inespecífi cos, como anore- xia, febre, icterícia e dor no quadrante superior direito. Em quase todos os casos, a infecção é autolimitada e cede sem tratamento. A doença crônica raramente ocorre em adultos em áreas não 15-45 dias Anticorpos anti-HAV totais IgM–anti-HAV PERÍODO DE INCUBAÇÃO DOENÇA AGUDA ICTERÍCIA SINTOMAS CONVALESCÊNCIA E RECUPERAÇÃO 2-12 semanas Meses HAV Fecal FIGURA 18–8 Sequência de marcadores sorológicos na infecção por hepatite A aguda. HAV, vírus da hepatite A. FIGURA 18–9 Possíveis evolu- ções da infecção por hepatite B em adultos, com suas frequências apro- ximadas nos Estados Unidos. *Recuperação de hepatite aguda refe- re-se à recuperação completa, assim como infecções latentes com manu- tenção da resposta de células T. **Recuperação de hepatite crônica é indicada por um teste negativo para HBsAg. ***O estado de portador saudável é indicado por HBsAg positivo por > 6 meses; HBeAg negativo; HBV DNA sérico < 105 cópias/mL; níveis per- sistentemente normais de AST e ALT; ausência de inflamação significativa e necrose na biópsia hepática. Doença subclínica 30% 70% < 5% > 90% < 0,5% < 2% 30% ou mais? 12%-20% Recuperação* Recuperação** Estado de portador saudável *** Hepatite crônica Cirrose Carcinoma hepatocelular Hepatite fulminante Doença ictérica 6-15% dos pacientes cirróticos INFECÇÃO AGUDA Hepatite aguda 854 CAPÍTULO 18 Fígado e Trato Biliar endêmicas. A hepatite fulminante também é rara, ocorrendo em aproximadamente 0,1 a 0,5% dos casos. O HBV foi relacionado à hepatite pela primeira vez na década de 1960, quando a antígeno Austrália (posteriormente conhecido como antígeno de superfície do HBV) foi identifi cado.25 O vírus é um membro dos Hepadnaviridae, uma família de vírus DNA que causam hepatite em múltiplas espécies animais. Existem oito genótipos de HBV com distribuição geográfi ca ao redor do globo. O vírion de HBV maduro é uma “partícula Dane” de dupla camada, esférica, medindo 42 nm, que possui um envelope super- fi cial externo de proteínas, lípides e carboidratos envolvendo um núcleo elétron-denso, discretamente hexagonal, de 28 nm. O genoma do HBV consiste em uma molécula de DNA parcial- mente circular de dupla fi ta, que possui 3.200 nucleotídeos (Fig. 18-10). O genoma do HBV contém quatro frames de leitura abertos, que codifi cam:26 Uma proteína “central” do nucleocapsídeo (HBcAg, antígeno central da hepatite B) e uma transcrição polipeptídica mais longa com uma região pré-central e central, designada como HBeAg (antígeno “e” da hepatite b). A região pré-central dire- ciona o polipeptídeo HBeAg para a secreção no sangue, enquanto o HBcAg permanece nos hepatócitos para a monta- gem de vírions completos. As glicoproteínas do envelope (HBsAg, antígeno de superfície da hepatite B), que consistem em três proteínas relacionadas: HBsAg grande (contendo Pré-S1, Pré-S2 e S), HBsAg médio (contendo Pré-S2 e S) e HBsAg pequeno (contendo apenas S). Os hepatócitos infectados são capazes de sintetizar e secretar quantidades maciças de proteína de superfície não infecciosa (principalmente HBsAg pequeno). Uma polimerase (Pol) que exibe tanto atividade de DNA poli- merase quanto atividade de transcriptase reversa. A replicação genômica ocorre por meio de um modelo de RNA intermediário, por um ciclo de replicação específi co: DNA % RNA % DNA. A proteína HBx, que é necessária para a replicação viral e pode agir como transativador da transcrição dos genes virais e de uma grande variedade de genes do hospedeiro. Ela foi impli- cada na patogenia do câncer de fígado na infecção por HBV. O curso natural da doença pode ser acompanhado por mar- cadores sorológicos (Fig. 18-11). HBsAg aparece antes do início dos sintomas, atinge o pico durante a doença evidente e então diminui até níveis indetec- táveis em 3 a 6 meses. O anticorpo anti-HBs não aumenta até que a doença aguda tenha passado e geralmente não é detectável por algumas semanas a vários meses após o desaparecimento do HBsAg. Os anticorpos anti-HBs podem persistir por toda a vida, confe- rindo proteção; essa é a base para as estratégias de vacinação atuais usando HBsAg não infeccioso. HBeAg, HBV-DNA e DNA polimerase aparecem no soro logo após HBsAg, e todos indicam replicação viral ativa. A persis- tência de HBeAg é um indicador importante de replicação viral contínua, infectividade e provável progressão para hepa- tite crônica. O aparecimento de anticorpos anti-HBe implica que uma infecção aguda atingiu seu pico e está declinando. IgM anti-HBc torna-se detectável no soro pouco tempo antes do início dos sintomas, simultaneamente à manifestação de elevação dos níveis séricos de aminotransferases (indicativa de destruição de hepatócitos). Ao longo de um período de meses, o anticorpo IgM anti-HBc é substituído por IgG anti-HBc. Como no caso do anti-HAV, não existe um exame direto para IgG anti-HBc, mas sua presença é inferida a partir do declínio de IgM anti-HBc em face de níveis crescentes de anti-HBc total. Ocasionalmente, surgem cepas mutantes de HBV, que não pro- duzem HbeAg, mas são competentes para replicação e expressam HBcAg. Nestes pacientes, o HBeAg pode ser baixo ou indetectá- vel, apesar da presença da carga viral de HBV. Um segundo evento sinistro é o aparecimento de mutantes de escape induzidos pela vacina, que se replicam na presença de imunidade induzida por vacina. Por exemplo, em um mutante viral deste tipo, a substitui- ção de arginina no aminoácido 145 de HBsAg por glicina altera signifi cativamente o reconhecimento de HBsAg por anticorpos anti-HBsAg. Apesar da natureza autolimitada da infecção aguda por HBV, estudos recentes mostram que níveis muito baixos de HBV DNA podem ser detectados por análise de PCR no sangue de alguns indivíduos, que podem apresentar anticorpos anti-HBe. Não se tem certeza neste momento se o material viral detectado é com- posto por fragmentos virais, vírus infecciosos ou vírus não infec- ciosos, mas o material persiste por muitos anos. A resposta imunológica do hospedeiro ao vírus é o principal determinante da evolução da infecção.27 Os mecanismos de imu- nidade inata protegem o hospedeiro durante as fases iniciais da infecção, e uma resposta intensa de células CD4+ e CD8+ pro- dutoras de interferon " e específi cas para o vírus está associada à resolução da infecção aguda. Existem várias razões para acreditar que o HBV não cause lesão direta ao hepatócito. Acima de tudo, muitos portadores crônicos possuem vírions em seus hepatócitos sem evidência de lesão celular. Acredita-se que a lesão dos hepa- 5' 5' fita + pré-C C pré-S1 pré-S2 S P 0,7 kb 2,1 kb 2,4 kb 3,5 kb X – FIGURA 18–10 Representação diagramática da estrutura genômica e componentes transcritos do vírion de hepatite B. Os ciclos mais internos representam a fita (+) de DNA e a fita (-) de DNA do vírion. As barras espessas marcadas como P, X, pró-C, C, pré-S1, pré-S2e S indicam os peptídeos derivados do vírion. As linhas mais externas denotam as transcrições de RNAm do vírion. CAPÍTULO 18 Fígado e Trato Biliar 855 tócitos seja resultante da agressão a células infectadas pelo vírus por células T CD8+ citotóxicas. A hepatite B pode ser prevenida pela vacinação e pela triagem de sangue, órgão e tecidos de doadores. A vacina é preparada a partir de HBsAg purifi cado produzido na levedura. A vacinação induz uma resposta protetora de anticorpos anti-HBs em 95% dos lactentes, crianças e adolescentes. A vacinação universal teve um sucesso notável em Taiwan e Gâmbia, mas infelizmente não foi adotada no mundo todo. Vírus da Hepatite C O vírus da hepatite C (HCV) é uma importante causa de doença hepática no mundo todo, com aproximadamente 170 milhões de pessoas afetadas. Aproximadamente 4,1 milhões de norte-america- nos, ou 1,6% da população, apresentam infecção crônica por HCV. Isso faz do HCV a infecção transmitida pelo sangue mais comum, responsável por quase metade de todos os indivíduos com doença hepática crônica nos EUA. Notavelmente, houve uma diminuição na incidência anual de infecção com relação ao seu pico na metade da década de 1980 de mais de 230.000 novas infecções por ano para uma taxa atual de 19.000 novas infecções por ano. Esse bem-vindo declínio foi causado primariamente por uma redução acentuada das causas associadas a transfusão como resultado de procedimen- tos de triagem. Entretanto, o número de pacientes com infecção crônica continuará a aumentar, pela possível persistência da infec- ção por HCV por toda a vida. Em contraste com o HBV, a progressão para doença crônica ocorre na maioria dos indivíduos infectados por HCV, e cirrose eventualmente ocorre em 20% a 30% dos indivíduos com infecção crônica por HCV. Portanto, o HCV é a causa mais comum de doença hepática crônica nos Estados Unidos e a indi- cação mais comum para transplante de fígado. De acordo com dados de 2008 dos Centros para Controle de Doenças nos EUA, os fatores de risco mais comuns para infecção por HCV são: Abuso de drogas intravenosas (54%). Múltiplos parceiros sexuais (36%). Realização de cirurgia nos últimos 6 meses (16%). Ferimento por picada de agulha (10%). Contatos múltiplos com uma pessoa infectada por HCV (10%). Atividade profi ssional na área médica ou odontológica (1,5%). Desconhecido (32%). Atualmente, a transmissão do HCV por transfusão de sangue está próxima a zero nos Estados Unidos; o risco de adquirir HCV por picadas de agulhas é cerca de seis vezes maior que para o HIV (1,8 versus 0,3%). Em crianças, a principal via de infecção é a peri- natal, porém esta é muito menor que para HBV (6% versus 20%). Observe que os pacientes podem apresentar múltiplos fatores de risco (o total dos riscos relacionados anteriormente é > 100%). O HCV, descoberto em 1989, é um membro da família Flavi- viridae. É um vírus RNA pequeno, envelopado, de fi ta única, com um genoma de 9,6 quilobase (kb), que codifi ca uma única poli- proteína com um frame de leitura aberto, que é subsequentemente processada em proteínas funcionais (Fig. 18-12). Revisaremos bre- vemente a estrutura genômica do HCV, porque ela está relacio- nada à patogenia da hepatite C. A extremidade 5’ do genoma codifi ca uma proteína nuclear do nucleocapsídeo altamente con- servada, seguida pelas proteínas de envelope E1 e E2. Duas regiões hipervariáveis (HVR 1 e 2) estão presentes na sequência E2. Acre- dita-se que a proteína p7 funcione como um canal iônico. Na direção da extremidade 3’ estão seis proteínas não estruturais menos conservadas: NS2, NS3, NS4A, NS4B, NS5A e NS5B. NS5B é a RNA polimerase viral dependente de RNA. As sequências 3’ dos RNAs de fi ta positiva e negativa contribuem para funções de ação cis essenciais para a replicação viral. Acredita-se que a estru- tura secundária e as propriedades de ligação a proteínas dessas regiões não translacionadas e altamente conservadas promovam a síntese de HCV RNA e a estabilidade do genoma por meio da ligação de várias proteínas do hospedeiro e do vírus. Em decorrência da fi delidade desprezível da RNA polimerase do HCV (NS5B), o vírus é inerentemente instável, originando múltiplos genótipos e subtipos. Na verdade, em qualquer paciente 4-26 semanas (média 8) Transaminases séricas Marcadores séricos IgM–anti-HBc Anti-HBc total Anti-HBs Anti-HBe PERÍODO DE INCUBAÇÃO DOENÇA AGUDA ICTERÍCIA SINTOMAS CONVALESCÊNCIA E RECUPERAÇÃO 4-12 semanas 4-20 semanas Anos HBeAg HBV-DNA HBsAg 4–26 semanas (média 8) Transaminases séricas Marcadores séricos IgM–anti-HBc Anti-HBc total Anti-HBe PERÍODO DE INCUBAÇÃO DOENÇA AGUDA ICTERÍCIA SINTOMAS DOENÇA CRÔNICA 4–12 semanas Meses a anos HBeAg HBV-DNA HBsAg A B FIGURA 18–11 Sequência de marcadores sorológicos para hepatite viral B demonstrando (A) infecção aguda com resolução e (B) progressão para infecção crônica. 856 CAPÍTULO 18 Fígado e Trato Biliar 2-26 semanas (média 6-12) Transaminases séricas Marcador sorológico Anti-HCV PERÍODO DE INCUBAÇÃO DOENÇA AGUDA ICTERÍCIA SINTOMAS RECUPERAÇÃO 1-3 semanas Meses a anos HCV-RNA Transaminases séricas Marcador sorológico PERÍODO DE INCUBAÇÃO DOENÇA AGUDA ICTERÍCIA SINTOMAS DOENÇA CRÔNICA A B 2-26 semanas (média 6-12) 1-3 semanas Meses a anos HCV-RNA FIGURA 18–13 Sequência de marcadores sorológicos por hepatite HCV. A, Infecção aguda com resolução; B, progressão para infecção crônica. Núcleo Proteínas do envelope E1 E2 P7 Canal iônicoIRES (translação viral) Região 5’ não traduzida Região 3’ não traduzida Protease Proteínas estruturais Proteínas não estruturais (3.011 aminoácidos)340 nucleotídeos 128 nucleotídeos Protease/ helicase RNA polimerase dependente de RNA NS2 NS3 NS4A/NS4B NS5A/NS5B FIGURA 18–12 Representação diagramática da estrutura genômica viral da hepatite C (HCV). O HCV é um vírus RNA de fita (+) que contém duas regiões não traduzidas nas extremidades 5’ e 3’. O vírus codifica um único polipeptídeo, que é processado em múltiplas proteínas virais. A possível função de cada proteína individual é destacada. considerado, o HCV circula como uma população de variantes divergentes, porém intimamente relacionadas, conhecidas como quase-espécies.28 Com o tempo, dezenas de quase-espécies podem ser detectadas em um indivíduo e mapeadas como cepas deriva- das da cepa de HCV original que infectou o paciente. A proteína E2 do envelope é o alvo de muitos anticorpos anti-HCV, mas também é a região mais variável de todo o genoma viral, permi- tindo que cepas virais emergentes escapem dos anticorpos neu- tralizantes. Esta instabilidade genômica e a variabilidade antigênica têm difi cultado seriamente os esforços para desenvolver uma vacina contra o HCV. Em particular, títulos elevados de IgG anti- HCV, que ocorrem após uma infecção ativa, não conferem imuni- dade efetiva de um modo consistente. Um aspecto característico da infecção por HCV, portanto, consiste em surtos repetidos de lesão hepática, resultantes da reativação de uma infecção preexistente ou da emergência de uma cepa endógena que tenha sofrido uma mutação recente. O período de incubação da hepatite por HCV varia de 2 a 26 semanas, com uma média de 6 a 12 semanas. Em aproximada- mente 85% dos indivíduos, o curso clínico da infecção aguda é assintomático e facilmente ignorado. HCV RNA é detectável no sangue por 1 a 3 semanas, coincidindo com as elevações de tran- saminases séricas. Na infecção aguda sintomática por HCV, anti- corpos anti-HCV são detectados em apenas 50% a 70% dos pacientes; nos demais pacientes, os anticorpos anti-HCV surgem após 3 a 6 semanas. O curso clínico da hepatite aguda por HCV é mais leve que com o HBV; raros casos podem ser severos e indistinguíveis da hepatite por HAV ou HBV. Respostas imuno- lógicas potentes envolvendo células T CD4+ e CD8+ estão asso- ciadas a infecções por HCV autolimitadas, mas não se sabe por que apenas uma pequena
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