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Capítulo 1 – A GÊNESE DO SERVIÇO SOCIAL Trecho do trabalho de conclusão de curso de graduação de Letícia Pereira Dourado O presente estudo pretende abordar inicialmente a trajetória histórica do Serviço Social, que está ligada a um contexto, uma realidade social, econômica e política que sempre esteve em movimento, e que por isso, nem sempre será possível analisar os acontecimentos a partir de uma ordem cronológica retilínea, uma vez que o principal objetivo não é a periodização exata dos fatos, mas a apreensão de seus significados na trajetória da profissão. Julga-se pertinente ainda, considerar o fato de que se faz necessário explanar, mesmo que de forma breve e a título de contextualização, a respeito da ascensão da sociedade capitalista, uma vez que este fato está intimamente relacionado à gênese da profissão, seu desenvolvimento e constituição. Assim, através de um resgate da trajetória histórica da profissão busca-se aqui se apossar dos subsídios teóricos necessários para a análise do objeto em questão, ou seja, a prática profissional do assistente social. A partir da sociedade de classes e o surgimento da pobreza, sempre existiu algum tipo de ajuda ou assistência aos pobres e mais necessitados. Na Antiguidade Clássica, século VIII a.C. até meados do século V d.C, além dos escravos que eram totalmente despossuídos, havia também pessoas livres e pobres, sendo que a pobreza existia de forma mais visível apenas entre as viúvas e as crianças abandonadas. Todavia, com exceção destes segmentos, não havia pobreza tal como se conhece hoje, uma vez que a economia baseada na agricultura e pecuária de subsistência oferecia possibilidade de sustento à maioria das pessoas. A assistência a esses pobres, velhos e abandonados era exercida pela própria família, tribo, parentes e amigos sem nenhum tipo de regulamentação, sendo que as ações existiam de acordo com a necessidade. A sociedade mítica e lendária desta época acreditava que a miséria era castigo dos deuses, e a idéia de prevenção e reabilitação era praticamente desconhecida. Os governos não se responsabilizavam pelas pessoas pobres, e não realizavam nenhum tipo de ação assistencial, exceto nos períodos de catástrofes e calamidade pública. Em 312 d.C. o Cristianismo foi definido como a religião oficial pelo Império Romano em seus domínios, a sociedade deixa de ser mítica e lendária e se torna religiosa, trazendo a ideia de que todos os homens são irmãos, independentes da nacionalidade ou raça. A Igreja difundia a caridade entre os ricos como salvação, incentivando a prática da assistência, se justificando através da idéia de fazer o bem para que quando precise encontre quem o ajude, e pregando a caridade como uma virtude que lhe renderia méritos para a vida eterna. Um dos organizadores da doutrina assistencial da Igreja ainda no século XIII foi Tomás de Aquino, que desenvolveu a filosofia Tomista onde Deus é a fonte de todos os seres humanos, o homem é formado de corpo e alma e se distingue dos outros seres pela sua racionalidade, dignidade e capacidade de escolha, assim, o homem é considerado um ser perfeito e superior que com sua inteligência buscará as virtudes, o bem e o fim último que é Deus. Posteriormente a filosofia Tomista seria apropriada pelo Serviço Social como o Neotomismo, sendo uma nova roupagem do pensamento de Tomás de Aquino (AGUIAR, 1995). No século XV o início da ciência e a descoberta de novos continentes representavam a aurora dos tempos modernos. O enfraquecimento do sistema feudal favoreceu o desenvolvimento urbano, com o crescimento do comércio e da industrialização houve um grande movimento de migração dos trabalhadores do campo para os grandes centros industriais, a população aumentou e o número de necessitados também, impelindo o sistema a organizar formas concretas de socorro aos pobres. O fato mais significativo para as alterações que vinham ocorrendo não só na técnica do trabalho, mas principalmente na economia, no âmbito social e político eram as Revoluções Industriais, que segundo Bottomore (2001, p.53) tiveram início com o aparecimento de máquinas movidas por energia não- humanas, surgiram na Inglaterra nas indústrias de algodão e posteriormente se expandiram por outras indústrias e continentes, universalizando principalmente o uso da máquina a vapor. Seus maiores efeitos na sociedade foram percebidos na primeira metade do século XIX, fazendo instituir-se o modo de produção capitalista. O capitalismo surgiu originalmente na Europa Ocidental sendo a denominação de um modo de produção profundamente antagônico e repleto de contradições que consiste em: [...] um modo de produção em que o capital, sob suas diferentes formas, é o principal meio de produção. O capital pode tomar a forma de dinheiro ou de crédito para a compra da força de trabalho e dos materiais necessários à produção, a forma de maquinaria física (capital em sentido estrito), ou, finalmente, a forma de estoques de bens acabados ou de trabalho em processo. Qualquer que seja a sua forma, é a propriedade privada do capital nas mãos de uma classe, a classe dos capitalistas, com a exclusão do restante da população, que constitui a característica básica do capitalismo como modo de produção. [...] produção para a venda e não para uso próprio, por numerosos produtores [...] existência de um mercado onde a força de trabalho é comprada e vendida, em troca de salários em dinheiro (BOTTOMORE, 2001, p.51 – 52). Karl Marx e Friedrich Engels, os principais teóricos a construir uma crítica ao capitalismo, sempre o analisaram em um contexto mais amplo enfatizando a luta de classes como a chave para a compreensão da história e como o principal instrumento de transformação da sociedade. É nesta perspectiva que se pretende analisar a sociedade capitalista e o surgimento do Serviço Social como uma profissão que, inicialmente, tinha o objetivo de controlar e minimizar estas lutas e manifestações. Com a ascensão do capitalismo instituiu-se uma nova sociedade de classes que Martinelli define: [...] como uma forma peculiar de sociedade de classes fundada sob a compra e venda da força de trabalho, revelou desde logo sua força opressora em relação ao proletariado. Com o capitalismo se institui a sociedade de classes e se plasma um novo modo de relações sociais, mediatizadas pela posse privada de bens. O capitalismo gera o mundo da cisão, da ruptura, da exploração da maioria pela minoria, o mundo em que a luta de classes se transforma na luta pela vida, na luta pela superação da sociedade burguesa (MARTINELLI, 2007, p.54). Surgem duas novas grandes classes, a classe proletária formada por trabalhadores que vendem sua força de trabalho, e a classe burguesa formada pelos donos das fábricas, máquinas e capital. A situação de miserabilidade, opressão e exploração a que foi submetida a classe operária, era, por um lado, a garantia de obediência aos patrões e de execução do trabalho sem questionamentos, ao mesmo tempo, representava a possibilidade de emersão de problemas sociais e políticos que ameaçavam a ordem, devido ao descontentamento dos trabalhadores. Esta ameaça, e a iminência de manifestações por parte dos operários fez com que a classe burguesa, recém chegada ao poder, começasse a se preocupar e a dar atenção à situação dos trabalhadores, visando minimizar seus sofrimentos e insatisfações, como forma de defesa do poder e manutenção da ordem. A Igreja Católica que sempre fora tradicionalmente responsável pela caridade enfrentou problemas com a Reforma Protestante, movimento iniciado no século XVI por Martinho Lutero, na Alemanha, através da publicação de 95 teses que questionavam doutrinas e ações da Igreja, e propunha uma reforma religiosa. Lutero estabelecia também que a organização e a prática da assistência deveriam ser também uma responsabilidadedo Estado, que as ações religiosas viriam complementar. O resultado da Reforma foi o rompimento da unidade religiosa e a divisão da Igreja em dois seguimentos, o primeiro da Igreja Católica que permaneceu no exercício da caridade, e o segundo do Protestantismo que se baseava na filantropia e buscava organizar a assistência. A Reforma também resultou na libertação do homem do controle religioso e metafísico para prevalecer sua razão, tornando mais difícil para a Igreja administrar e manter suas obras de caridade (VIEIRA, 1980). Por compartilharem de alguns interesses da burguesia, pela primeira vez, Estado e Igreja assumiram, junto à sociedade, a responsabilidade de manter a ordem. O Estado exerceu sua tarefa através da imposição da paz, ainda que por meio da violência, e a Igreja fez sua parte através de suas obras sociais. Assim surgiram as primeiras manifestações do que mais adiante iria se tornar a profissão Serviço Social. Neste período as ações assistenciais eram realizadas sem nenhuma teorização, regulamentação ou organização, e se justificavam apenas pelas questões religiosas ou ideológicas, e pelos interesses particulares de cada seguimento da sociedade em manter e desenvolver o capitalismo, e evitar perturbações da ordem social tal como ela estava estabelecida. Segundo Estevão (1999) somente a partir da segunda metade do século XIX é que surgiriam as primeiras formas de caridade organizada com um esboço de técnica, uma vez que as formas de assistência existentes se tornaram insuficientes diante das demandas da nova sociedade estabelecida. Esta estrutura social configura o quadro ideal para o surgimento dos chamados precursores do Serviço Social, que buscaram contribuir com a reorganização da assistência após a Reforma Protestante. Um personagem notável dentre os precursores do Serviço Social foi Juan Luis Vives, nascido em 1492 na Espanha. Descendente de família nobre viveu na pobreza durante toda a vida ingressando no mundo das letras escrevendo sobre Filosofia. Vives não foi apreciado nem compreendido em vida, suas idéias eram consideradas muito adiantadas para sua época. Foi o autor do primeiro tratado de Serviço Social, “De subvencione pauperum” ou “Da assistência aos pobres” em 1525, que apresentava a doutrina de que o socorro aos pobres deveria ser baseada na justiça, a esmola não deveria ser esporádica, mas um auxílio para resolver a situação de pobreza do indivíduo, acreditava que a melhor maneira de ajudar o pobre era treiná-lo e dar a ele instrumentos para trabalhar e prover seu próprio sustento, defendia a ideia de que a assistência deveria ser prestada a todos que dela necessitassem de maneira específica e de acordo com a necessidade de cada um, sugeriu a organização de medidas previdenciárias para os trabalhadores em caso de doença, desemprego e velhice, e de medidas que evitassem a mendicância profissional. Vives acreditava que isso só seria possível com um trabalho conjunto de Igreja e Estado, e com a cooperação entre as várias associações de caridade (KISNERMAN, 1983 e VIEIRA, 1980). Vicente de Paulo, que no início do século XVII ainda não era considerado santo pela Igreja Católica, foi outro precursor do Serviço Social. Foi dele a primeira tentativa de organizar a prática da caridade dentro da Igreja Católica a partir de uma convocação aos fiéis para socorrer uma família da comunidade que passava por dificuldades. Foram tantas doações recebidas que Vicente de Paulo percebeu a necessidade de organizar a distribuição para evitar desperdícios e perdas, principalmente dos alimentos. Assim, foram sistematizadas as visitas às famílias carentes e cada uma era assistida conforme suas necessidades. Com a ajuda de Luísa de Marilacc, Vicente de Paulo criou as “Damas de caridade” em 1617 que era uma organização que visava sistematizar a distribuição de socorros e organizar a reabilitação de pedintes com auxílio caridoso das senhoras da sociedade. Essas “damas” tiveram algumas dificuldades com o trabalho de orientação dos pobres durante as visitas que faziam às casas dos necessitados, já que em suas próprias casas tinham muitas serviçais que faziam todo o trabalho. Para resolver esse problema, em 1633, Vicente de Paulo e Luísa de Marilacc tiveram a idéia de recrutar e formar moças camponesas para a assistência aos pobres, criando as “Filhas da caridade” e dando o primeiro passo para a profissionalização do exercício da caridade, sem excluir o aspecto espiritual e religioso (KISNERMAN, 1983 e VIEIRA, 1980). No início do século XVII a mendicância nos países europeus tocados pelo desenvolvimento capitalista aumentara muito. Os mendigos vagavam de cidade em cidade pedindo abrigo, comida, ajudas, e esta prática tornou-se uma profissão. Para assistir aos pobres, várias cidades tomaram iniciativas de criar regras e estabelecerem ações, além de proibir a mendicância. Dentre essas regras e ações destaca-se a Poor’s Law, ou Lei dos Pobres, que Vieira analisa como: Talvez a primeira legislação visando à assistência social, mas certamente a que alcançou maior repercussão foi a Poor’s Law, promulgada em 1601 pela Rainha Elizabeth I, da Inglaterra e pela qual cada município devia tomar conta de seus pobres. Esta lei pretendia restringir a andança dos mendigos profissionais pela Grã-Bretanha e facilitar a repartição e a fiscalização das esmolas. Sua influência se faz sentir até hoje nos sistemas de assistência da Inglaterra e dos Estados Unidos, nos quais, para que alguém usufrua determinados benefícios, é necessário que tenha residido na comunidade durante certo número de anos (VIEIRA, 1980, p.40). Após a Poor Law com seu caráter extremamente repressivo, vários outros países legislaram sobre a assistência aos pobres. Essas medidas podem ser consideradas como os primórdios das políticas sociais. Era cada vez maior a demanda por assistência aos pobres, o que resultou na ampliação dessas práticas também por entidades particulares e pela sociedade de leigos, como o jovem Frederico Ozanam na França, que junto a um grupo de companheiros desenvolvia o exercício da caridade através da criação das Conferências de São Vicente de Paulo (KISNERMAN,1983 e ESTEVÃO, 1999). A Igreja, os leigos, o Estado e as entidades particulares, agindo de forma isolada não estavam conseguindo suprir as necessidades do povo, era preciso organizar e administrar a assistência, para isso surgiu a COS - Charities Organization Society, que era a Sociedade de Organização da Caridade, em 1869 na cidade de Londres e em 1877 nos Estados Unidos, tinha o objetivo de organizar e coordenar os trabalhos das obras assistenciais para que não houvesse duplicidade e desperdícios, além da tarefa de formar pessoas para realizarem trabalhos sociais junto às comunidades. A criação da COS representa o início da institucionalização da profissão de assistente social e o surgimento dos primeiros cursos de formação profissional. [...] Nos fins do século XVIII, um fato novo sacode o mundo: surge na Inglaterra a máquina a vapor, marcando o início do que se denominou ‘Revolução Industrial’. A máquina irrompe no cenário social e começa a inundar o planeta com seus produtos. E o primeiro deles é uma nova classe social: a classe operária; entre seus produtos secundários, contam-se a formação dos grandes e superpovoados conglomerados em torno dos centros industriais, a miséria, a exploração... Esta avalanche de problemas sociais fez com que se tornassem irrisórios os meios que, para equacioná-los, apoiavam-se no ‘fazer o bem em nome do bem’. Em face da superação destas formas de ação social, surge (a necessidade) do método, requer-se a técnica (BARREIX apud CASTRO, 2003, p.33). Em 15 de maio de 1891, o Papa Leão XIII promulgou a encíclica Rerum Novarum que pela primeira vez colocava a Igreja Católica em uma discussão que extrapolava oslimites da religião e abordava problemas de ordem social. O texto deste documento centralizava suas idéias nas relações de trabalho e de forma sutil avaliava o papel do Estado e dos católicos na função de conter o avanço das idéias socialistas (CASTRO, 2003). Considera-se importante pensar em como e porque surge uma profissão, para que se possa compreender suas características e particularidades. Para Estevão (1999) uma profissão surge quando se torna socialmente necessária, para que seja instituída como profissão é necessário que ela se legitime pela sua eficácia social e/ou política. Isso aconteceu com o Serviço Social, a prática da assistência se legitimou enquanto profissão a partir da necessidade da sociedade capitalista. Martinelli (2007) discute a identidade atribuída à profissão no contexto de seu surgimento pelo capitalismo, e a alienação dos profissionais e usuários torna-se condicionada por esta identidade: A origem do Serviço Social como profissão tem, pois, a marca profunda do capitalismo e do conjunto de variáveis que a ele estão subjacentes – alienação, contradição, antagonismo –, pois foi nesse vasto caudal que ele foi engendrado e desenvolvido. É uma profissão que nasce articulada com um projeto de hegemonia do poder burguês, [...] produzida pelo capitalismo industrial, nele imersa e com ele identificada (MARTINELLI, 2007, p.66). A autora discute ainda o movimento de negação desta identidade atribuída e de superação da alienação, como um processo de ruptura do Serviço Social com suas origens burguesas, e de estabelecimento de um novo compromisso com uma prática social que se caracteriza pelo questionamento da sociedade e pelo compromisso com as causas dos trabalhadores. Este movimento, denominado Movimento de Reconceituação foi extremamente importante para o processo de maturação e desenvolvimento da profissão, e será discutido com ênfase no segundo capítulo deste estudo.
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