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João Vitor Freire – MEDUNIME 2019.1 Sífilis INTRODUÇÃO A sífilis, também denominada lues, é uma doença infectocontagiosa, com manifestações cutâneas e sistêmicas, evolução crônica e transmissão predominantemente sexual. A transmissão congênita ocorre por via transplacentária ou hematogênica e, com menos frequência, através de transfusões sanguíneas ou inoculação acidental. O homem é o único reservatório conhecido. O agente etiológico é o Treponema pallidum, bactéria que pode simular várias doenças e processos autoimunes, sendo, por esse motivo, conhecida como “a grande imitadora”. A doença é classificada em primária, secundária, latente e tardia, ou terciária (Em geral, adota-se a classificação como recente, quando tem até um ano de evolução, e tardia, após esse período). Na maioria dos casos, a sífilis inicia-se com lesão ulcerosa na genitália ou na região anal. Como todas as doenças de transmissão sexual, essa ulceração é muito importante na transmissão dos vírus da imunodeficiência adquirida (HIV) e das hepatites B e C. De acordo com alguns autores, a sífilis pode acelerar o desenvolvimento da imunodeficiência pelo HIV, levando à progressão mais rápida para neurossífilis e complicações associadas ao acometimento do sistema nervoso central (SNC). A sífilis materna não tratada pode resultar em aborto, prematuridade, morte neonatal ou manifestações tardias, como surdez, déficit do desenvolvimento e deformidades ósseas. A sífilis é mais frequente em adultos sexualmente ativos. A doença não tem predileção racial ou de gênero; associa-se a fatores socioeconômicos, condições higiênicas precárias e, principalmente, comportamento sexual de risco. PATOGÊNESE Treponema pallidum, o agente etiológico da sífilis, é uma bactéria gram-negativa. 1. O treponema penetra através das mucosas ou da pele, principalmente quando houver soluções de continuidade, e atinge a corrente sanguínea e os vasos linfáticos, disseminando-se com rapidez. 2. Depois de período de incubação de 10 a 90 dias (média de três semanas), surge a lesão primária, designada cancro duro, que, em geral, regride espontaneamente depois de 30 dias. 3. O quadro clínico que caracteriza o período secundário surge 4 a 10 semanas depois do início do cancro. Os pacientes podem apresentar mal-estar, febre, mialgia, artralgia, rash generalizado, lesões papulosas, papuloescamosas, queda de pelos e cabelos, lesões mucosas e linfadenopatia. Nesse período, mais de 30% dos pacientes apresentam líquido cefalorraquidiano (LCR) com valores anormais, evidenciando acometimento precoce do SNC. As manifestações do secundarismo desaparecem sem tratamento. 4. Em média, seis meses após a involução das manifestações do secundarismo, os pacientes entram em período de latência, durante o qual a sorologia é positiva – não há evidencias clínicas da enfermidade e o doente pode permanecer assintomático por toda a vida. 5. Em outros pacientes, podem surgir lesões gomosas, cardiovasculares e/ou neurológicas – estas são as manifestações clássicas do terciarismo luético. A sífilis é, também, classificada em duas fases: a recente, com duração aproximada de um ano, compreendendo as manifestações primárias e secundárias e o início da latência, e a fase tardia, caracterizada pela latência tardia e pelos quadros clínicos da sífilis terciária. QUADRO CLÍNICO SÍFILIS RECENTE: O cancro duro, ou sífilis primária, é a lesão inicial da sífilis, que surge cerca de 10 a 90 dias após o período de incubação e caracteriza-se por ulceração indolor, com base rasa e limpa, bordas elevadas e induradas. Nas mulheres, o canal vaginal, colo uterino, os grandes e pequenos lábios, a uretra e o períneo são as localizações mais comuns do cancro. O cancro extragenital é encontrado mais comumente nos lábios e na língua. Em homossexuais, a lesão inicial pode ser encontrada no ânus e no reto, apresentando-se em geral como fissuras induradas, sem os aspectos clínicos típicos. Em homens, a lesão é encontrada com mais frequência no sulco balanoprepucial, no prepúcio e na glande (Figura 75.1). Em 15 a 30% dos casos o cancro não é percebido pelo paciente ou pode ser atípico, simulando cancro mole, herpes simples, piodermite e úlceras traumáticas. A presença de linfonodos de maior volume, indolores e com localização unilateral na região inguinal é relativamente frequente. João Vitor Freire – MEDUNIME 2019.1 Quando não tratado, o cancro persiste, em média, 1 a 6 semanas, desaparecendo espontaneamente após esse período. Em cerca de um terço dos pacientes, o cancro deixa cicatriz levemente atrófica com bordas regulares. As lesões da sífilis secundária podem surgir na vigência do cancro ou, com mais frequência, após a sua regressão. O quadro clínico inicial dessa fase caracteriza-se por erupção macular, de coloração rósea (“roséola sifilítica”), lembrando quadro alérgico ou viral. Gradualmente, essa erupção macular evolui para lesões papulosas, papuloescamosas, placas e, às vezes, lesões papulotuberosas ou nodulares (Figuras 75.2, 75.3, 75.4). Lesões anulares, serpinginosas, concêntricas ou circinadas também podem ser encontradas (Figura 75.5). Essas manifestações cutâneas podem simular hanseníase, psoríase, líquen plano, granuloma anular, sarcoidose e outras afecções dermatológicas. A superfície palmoplantar é frequentemente afetada, podendo apresentar lesões papuloceratósicas. As lesões de localização palmoplantar são muito sugestivas de sífilis secundária (Figuras 75.6 e 75.7). Os pacientes com sífilis secundária podem apresentar alopecia do couro cabeludo, da barba e das sobrancelhas. Essas manifestações são encontradas em 3 a 7% dos pacientes e podem consistir nos únicos sinais do estágio secundário. Manifestações oftalmológicas, auditivas, musculoesqueléticas, renais, hepáticas, gástricas e cardiopulmonares podem ser observadas na fase secundária, quando também se observa linfadenopatia em 50 a 80% dos casos. Como foi mencionado anteriormente, na fase secundária pode haver envolvimento do SNC. O paciente pode apresentar cefaleia e, ocasionalmente, desenvolver meningite, seguindo-se paralisia de um ou mais nervos cranianos. A meningomielite com paraplegia é rara. Mesmo sem tratamento, as lesões cutâneas e manifestações sistêmicas desaparecem de modo espontâneo e, a partir desse momento, o paciente entra no estágio latente. SÍFILIS LATENTE: Nesse estágio não ocorrem manifestações clínicas ou alterações radiológicas; somente a sorologia é positiva – os títulos são variáveis, dependendo do tempo de evolução. SÍFILIS TARDIA OU TERCIÁRIA: Cerca de um terço dos pacientes com sífilis latente não tratada desenvolverá sífilis terciária. Os demais enfermos permanecerão latentes por toda a vida. As três principais apresentações clínicas da sífilis tardia são as manifestações cutâneas e cardiovasculares e a neurossífilis. Na sífilis tardia observam-se lesões nodulares e gomosas e envolvimento das mucosas. As lesões tendem a agrupar-se, formando placas com aspecto circinado e podem ser encontradas em qualquer parte do corpo, mas predominam na superfície extensora dos braços, no dorso e na face. As gomas resultam de amolecimento, fistulização e ulceração dos nódulos. O processo é indolor e ocorre, geralmente, nos tecidos subcutâneo, ósseo e/ou muscular. Essas lesões podem simular tuberculose cutânea, leishmaniose, cromomicose, sarcoidose, esporotricose e tumores. Nas mucosas podem ocorrer lesões infiltrativas e gomosas, principalmente no palato, mucosa nasal, língua, tonsilas e faringe. Entre as manifestações cardiovasculares mais importantes estão aortite, aneurisma aórtico, estenose coronariana, insuficiência da válvulaaórtica e miocardite. Os quadros neurológicos mais importantes são: ■ Meningite sifilítica aguda: ocorre no primeiro ano após a infecção. ■ Neurossífilis parenquimatosa: caracterizada por tabes dorsalis, paralisia geral e atrofia óptica. ■ Paralisia geral: caracterizada por sintomas psiquiátricos e/ou neurológicos. SÍFILIS CONGÊNITA: Na ausência de tratamento adequado, as mulheres grávidas podem transmitir a doença para o feto, por via transplacentária ou durante o parto. Em geral, quanto mais avançado for o estágio da gravidez, menor será a possibilidade de transmissão transplacentária. A infecção pelo T. pallidum durante a gravidez pode resultar em parto prematuro, morte intrauterina, morte neonatal ou sífilis congênita, a qual, clinicamente, pode ser dividida em precoce e tardia. As manifestações clínicas da sífilis congênita precoce ocorrem nos dois primeiros anos de vida. As lesões cutâneas são similares às observadas em adultos durante a fase secundária, diferindo somente pelo fato de serem mais infiltradas, com ou sem escamas, localizadas principalmente nas superfícies palmoplantares. Ocasionalmente, as lesões podem ser bolhosas (quadro João Vitor Freire – MEDUNIME 2019.1 denominado “pênfigo sifilítico”) ou ulceradas. Baixo peso ao nascer, dificuldade respiratória, irritabilidade, choro débil, rinorreia sanguinolenta, linfadenopatia, osteocondrite, hepatoesplenomegalia, anemia, icterícia, trombocitopenia e pseudoparalisia de Parrot são algumas das manifestações clínicas que podem ser encontradas. A neurossífilis é observada em 40 a 60% das crianças nessa fase. Já a sífilis congênita tardia ocorre depois dos dois anos de idade. Corresponde à sífilis adquirida tardiamente do adulto, apresentando lesões similares às dessa fase, como sifílides nodulares, goma e periostite. São características dessa fase: ■ Ceratite intersticial: é a manifestação mais comum e mais grave desse estágio. Acomete, geralmente, os dois olhos, causando fotofobia, dor ocular e diminuição da acuidade visual. ■ Articulação de Clutton: caracteriza-se por sinovite indolor, afetando a articulação dos joelhos. O principal achado radiológico é o aumento do espaço intra-articular. ■ Envolvimento ósseo: verifica-se periostite dos ossos longos, principalmente da tíbia, que se torna aumentada de tamanho e apresenta curvatura anteroposterior (“tíbia em lâmina de sabre”). ■ Surdez, por lesão do oitavo par craniano: achado frequente na maioria dos casos; o acometimento é bilateral. ■ Neurossífilis: a principal manifestação é a paralisia geral juvenil, que se inicia entre os seis e 21 anos de idade. Entre os estigmas da sífilis congênita observam-se: fronte olímpica; mandíbula curva; arco palatino elevado; cicatrizes lineares, radiadas, perilabiais e perianais; nariz em sela; e dentes de Hutchinson – deformidade dos dentes incisivos, com entalhes em suas bordas cortantes. A tríade de Hutchinson consiste na presença de dentes de Hutchinson, ceratite intersticial e surdez por lesão do oitavo par craniano. DIAGNÓSTICO SÍFILIS PRIMÁRIA: Os testes treponêmicos atualmente disponíveis são: a) ensaio imunoenzimático (ELISA); b) ensaio imunológico com revelação quimioluminescente e suas derivações (EQL); c) imunofluorescência indireta (FTA-Abs); d) aglutinação (TPPA, TPHA, MHATP); e) imunocromatografia – teste rápido; f) Western-blot (WB). No Brasil, o teste rápido já se encontra disponível na rede pública para situações especiais e para ser manipulado por agentes capacitados (serviços de saúde sem infraestrutura laboratorial ou localizados em regiões de difícil acesso; Centro de testagem e aconselhamento (CTA); segmentos populacionais mais vulneráveis às DST, de acordo com a situação epidemiológica local; população indígena; gestantes e seus parceiros em unidades básicas de saúde, particularmente no âmbito do Projeto cegonha; outras situações especiais definidas pelo Departamento de DST, aids e hepatites virais/SVS/MS para ampliação do diagnóstico da sífilis). O teste rápido não dispensa os testes não treponêmicos, atualmente disponíveis em muitos centros (VDRL; RPR; USR; Trust – os dois primeiros, disponíveis na rede pública). A pesquisa de treponema em campo escuro e o exame histopatológico são os mais importantes para a confirmação do diagnóstico. Infelizmente, esses exames não estão disponíveis na maioria dos serviços de saúde. Por essa razão, muitos pacientes são tratados de acordo com o quadro clínico. O Venereal Disease Research Laboratory (VDRL) torna-se positivo quatro a cinco semanas após a infecção, e o Fluorescent Treponemal Antibody – Absorption test (FTA-Abs) na terceira semana após a infecção. SÍFILIS SECUNDÁRIA, LATENTE E TERCIÁRIA Os exames de triagem são o VDRL e teste de reagina plasmática rápida (RPR). FTA-Abs, ensaio de hemaglutinação de Treponema pallidum (TPHA) e reação de micro-hemaglutinação (MHA-TP) são exames específicos e confirmatórios da sífilis. O teste enzimaimunoensaio (ELISA) apresenta alta sensibilidade (100%) na detecção da sífilis congênita. O VDRL e o RPR são testes úteis e baratos, mas não são específicos, podendo apresentar reação cruzada com hanseníase virchowiana, doença de Lyme, HTLV-1, malária, tuberculose e outras doenças. Em pacientes com quadro clínico suspeito de sífilis e testes inespecíficos com títulos baixos, deverão ser feitos testes treponêmicos, com alta especificidade, como FTA- Abs, TPHA, MHA-TP ou outros. Caso não haja disponibilidade de um desses testes, é aconselhável que o paciente seja tratado como portador de sífilis. Sempre que um paciente tenha resultado de VDRL com títulos baixos – iguais ou menores que 1/8 –, recomendam-se as reações específicas. Como regra geral, deve-se lembrar que quanto mais avançado for o estágio clínico da doença, mais baixo será o título sorológico. Em casos suspeitos de neurossífilis, o exame do liquor deve ser realizado. João Vitor Freire – MEDUNIME 2019.1 TRATAMENTO SÍFILIS ADQUIRIDA: Sífilis primária Administra-se penicilina G benzatina, na dose total de 2.400.000 UI, por via intramuscular, em dose única – faz-se 1.200.000 UI em cada glúteo. Se o paciente for alérgico a penicilina, recomenda-se tetraciclina ou eritromicina, 500 mg por via oral, de 6 em 6 horas, durante 15 dias. Outra alternativa importante para os doentes alérgicos a penicilina é a Ceftriaxona, na dose de 250 mg ou 1 g diário, a cada 2 dias, durante 10 dias. Sífilis secundária Penicilina G benzatina, 2.400.000 UI, por via intramuscular, uma vez por semana, durante duas semanas, na dose total de 4.800.000 UI. A tetraciclina ou a eritromicina, durante 30 dias, é recomendada para pacientes que tenham alergia à penicilina. Sífilis terciária Penicilina G benzatina 2.400.000 UI, por via intramuscular, uma vez por semana, durante três semanas, na dose total de 7.200.000 UI. Neurossífilis O tratamento é hospitalar, com penicilina cristalina, 4 milhões de unidades, por via endovenosa, de 4 em 4 horas, durante 15 dias. SÍFILIS CONGÊNITA: Mulheres grávidas O tratamento é o mesmo recomendado para as não grávidas, exceto as tetraciclinas. Crianças Apresentando sífilis adquirida em: ■ Fase recente: penicilina G benzatina, 50.000 UI/kg, por via intramuscular, em dose única. ■ Fase tardia: 50.000 UI/kg de peso, por via intramuscular. Repete-se a mesma dose depois de três semanas. Se houver alergia à penicilina, administra-se eritromicina, na dose de 50 a 100 mg/kg de peso, durante 15 a 30 dias, se for recente ou tardia.
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