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1 www.g7juridico.com.br INTENSIVO I Flávio Tartuce Direito Civil Aula 17 ROTEIRO DE AULA Teoria geral dos contratos (CC, arts. 421 a 480) 1. Conceito de contrato - Conceito clássico x conceito contemporâneo Tanto o Código Civil de 1916 como o Código Civil de 2002 não conceituaram o contrato, relegando a matéria para a doutrina. a) Conceito clássico (ainda prevalece): utiliza como parâmetro o Código Civil italiano (art. 1.321). ✓ É um conceito seguido, entre outros, por Darcy Bessone, Álvaro Villaça e Maria Helena Diniz. O contrato é um negócio jurídico bilateral ou plurilateral que visa à criação, à modificação ou à extinção de direitos e deveres com conteúdo patrimonial. Todo contrato, sem exceção, é negócio jurídico pelo menos bilateral, por envolver duas pessoas ou duas vontades. Questão: A doação é negócio jurídico bilateral? Sim, pois é um contrato (CC, art. 5381). Porém, trata-se de um contrato unilateral, em regra, pois traz deveres para apenas uma das partes. O contrato é o negócio jurídico “inter vivos” por excelência, não se confundindo com os negócios jurídicos “mortis causa”. Exemplo: testamento. 1 CC, art. 538: “Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra.” 2 www.g7juridico.com.br Essa separação consta do artigo 426 do Código Civil2: não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva (nulidade absoluta do pacto sucessório ou “pacta corvina”). ➢ Na visão clássica, o contrato tem conteúdo patrimonial (patrimonialidade). Seguindo essa visão, o casamento não é um contrato, pois o seu conteúdo é mais que do patrimonial. O casamento visa a uma comunhão plena de vida (CC, art. 1.5113). Observação: aqui estão (na patrimonialidade) as principais críticas à visão clássica. b) Conceito contemporâneo (Paulo Nalin – UFPR - Obra: “Contrato: conceito pós-moderno”). O contrato é uma relação intersubjetiva, baseada no solidarismo constitucional, e que traz efeitos existenciais e patrimoniais não somente em relação às partes contratantes, mas também em relação a terceiros. O contrato também traz efeitos existenciais relativos à tutela da pessoa humana. Exemplos: • 1º - Uma cláusula ou um contrato que viola a dignidade humana é antissocial e, portanto, nulo (a) de pleno direito – Ilicitude do objeto (CF, art. 1º, III e CC, arts. 421 e 166, II). • 2º - Enunciado n. 411 – V Jornada de Direito Civil - “O descumprimento de um contrato pode gerar dano moral quando envolver valor fundamental previsto na Constituição Federal de 1988”. Exemplos: moradia e saúde (CF, art. 6º) - contratos de aquisição da casa própria e contratos de plano de saúde. 2. Princípios contratuais no Código Civil de 2002 Veremos cinco princípios: • Autonomia privada. • Função social do contrato. o Força obrigatória do contrato. • Boa-fé objetiva. o Relatividade dos efeitos contratuais. Enunciado n. 167 – III Jornada de Direito Civil4: este enunciado cita uma aproximação principiológica entre o Código Civil de 2002 e o CDC em matéria contratual, pois ambos são incorporadores de uma nova teoria geral dos contratos (princípios sociais: autonomia privada, função social do contrato e boa-fé objetiva). 2 CC, art. 426: “Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva”. 3 CC, art. 1.511: “O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges.” Legenda: o Princípios clássicos. • Princípios contemporâneos ou sociais. 3 www.g7juridico.com.br 2.1. Princípio da autonomia privada Este princípio substituiu o modelo liberal puro da autonomia da vontade por três razões: • “Crise da vontade”: “crise do contrato” (Grant Gilmore). • Dirigismo contratual: intervenção da lei nos contratos. Exemplos: CDC e CC. • Prevalência dos contratos de adesão. “Império dos contratos-modelo” (Enzo Roppo). O contrato de adesão é aquele em que o estipulante impõe o conteúdo do negócio, restando à outra parte, o aderente, duas opções: aceitar ou não (“take it or leave it”, como dizem os americanos). Fórmula: Autonomia da vontade + certa intervenção = autonomia privada Observações: • O contrato de adesão é aquele em que o estipulante impõe o conteúdo do negócio, restando à outra parte (aderente) duas opções: aceitar ou não – “take it or leave it”. • O oposto de contrato de adesão é o contrato paritário, que é aquele amplamente negociado pelas partes. ✓ Obs.: a Lei 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica – origem: MP 881/2019 - LLE) é especialmente dirigida ao contrato paritário empresarial. • O contrato de adesão não necessariamente será um contrato de consumo (Enunciado n. 171 – III Jornada de Direito Civil5). Exemplo: franquia. A autonomia privada é a soma da autonomia da vontade com uma certa intervenção – Respeito a normas de ordem pública (Lei 13.874/2019, art. 3º, V e VIII). Lei 13.874/2019, art. 3º, V e VIII: “São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal: (...). V - gozar de presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, para os quais as dúvidas de interpretação do direito civil, empresarial, econômico e urbanístico serão resolvidas de forma a preservar a autonomia privada, exceto se houver expressa disposição legal em contrário; (...). VIII - ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública”. ✓ A autonomia privada foi positivada pela Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019) no art. 3º, V. 4Enunciado 167,III JDC: “Com o advento do Código Civil de 2002, houve forte aproximação principiológica entre esse Código e o Código de Defesa do Consumidor no que respeita à regulação contratual, uma vez que ambos são incorporadores de uma nova teoria geral dos contratos”. 5 Enunciado 171, III JDC: “O contrato de adesão, mencionado nos arts. 423 e 424 do novo Código Civil, não se confunde com o contrato de consumo.” http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm#art170p 4 www.g7juridico.com.br A autonomia privada é o direito que a pessoa tem de regulamentar os seus próprios interesses (direito de autorregulamentação contratual), o que encontra limites em normas de ordem pública (art. 3º, VIII, Lei 13.874/2019). No plano contratual, a autonomia privada se desdobra em duas liberdades: a) Liberdade de contratar: momento + parte. b) Liberdade contratual: conteúdo (cláusulas contratuais). A autonomia privada é também retirada do art. 425 do CC6 (além do art. 3º, V da Lei 13.874/2019), que prevê que é lícita a criação de contratos atípicos (sem regulamentação legal mínima), desde que observadas as regras do Código Civil e de outras leis. Exemplo: contrato de estacionamento: contrato atípico e misto (prestação de serviços + depósito). Porém, em contrato de estacionamento, é nula a cláusula de não indenizar (“placa”). Fundamentos: • CDC, art. 51, I: “São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis;”. • CC, art. 424: “Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultanteda natureza do negócio”. • CC, art. 422: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. • CC, art. 421: “A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. (Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019). Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)”. • Súmula 130 do STJ: “A empresa responde, perante o cliente, pela reparação de dano ou furto de veículo ocorridos em seu estacionamento”. 2.2. Princípio da função social do contrato (CC, arts. 421 e 2.035, parágrafo único) Miguel Reale: o contrato não deve atender apenas aos interesses das partes contratantes, mas de toda a sociedade (efeitos externos). Segundo Orlando Gomes, a palavra “função” representa a finalidade e a palavra “social” representa o coletivo. 6 CC, art. 425: “É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código.” http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13874.htm#art7 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13874.htm#art7 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13874.htm#art7 5 www.g7juridico.com.br Conceito do professor Flávio Tartuce: Função social do contrato é princípio contratual de ordem pública (CC, art. 2.035, parágrafo único7) pelo qual o contrato deve ser, necessariamente, interpretado e visualizado de acordo com o contexto da sociedade. Principal efeito: mitigação ou relativização da força obrigatória do contrato (“pacta sunt servanda”). CC, art. 421 – Redação corrigida pela Lei da Liberdade Econômica: A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. ✓ A função social do contrato limita o conteúdo das cláusulas. ✓ Essa redação já era proposta por Junqueira, Villaça, Giselda Hironaka e Flávio Tartuce. CC, art. 421, parágrafo único (incluído pela Lei 13.874/2019) – O dispositivo cita o princípio da intervenção mínima, o que causa dúvidas entre os civilistas. Entretanto, trata-se de desdobramento do princípio da autonomia privada e, desse modo, está submetido ao art. 3º, VIII da Lei 13.874/2019. ✓ Âmbito de aplicação – contratos empresariais paritários. CC, art. 421-A8 (incluído pela Lei 13.874/2019) – O dispositivo traz uma presunção relativa (“iuris tantum”) de que os contratos civis e empresariais são paritários e simétricos (igualdade entre os contratantes). ✓ Nos contratos civis empresariais que possuem simetria, as partes podem estabelecer parâmetros para interpretação, revisão e resolução. ✓ Os riscos contratuais devem ser respeitados. ✓ A revisão contratual é excepcional. Obs.: Tudo isso é possível desde que não se contrarie nenhuma norma de ordem pública (art. 3º, VIII, Lei 13.874/2019). 7 CC, art. 2.035, parágrafo único: “Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”. 8 CC, art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)” http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13874.htm#art7 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13874.htm#art7 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13874.htm#art7 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13874.htm#art7 6 www.g7juridico.com.br Segundo o entendimento majoritário, a função social do contrato tem dupla eficácia: • Eficácia interna: entre as partes contratantes (Enunciado n. 360 – IV Jornada de Direito Civil9). • Eficácia externa: além das partes contratantes (Enunciado n. 21 – I Jornada de Direito Civil10). a) Eficácia interna: seis aplicações. a.1) Tutela da pessoa humana no contrato (Enunciado n. 23 – I Jornada de Direito Civil11). a.2) Nulidade de cláusulas antissociais, tidas como abusivas (CC, art. 166, II12). Exemplo: Súmula 302 do STJ: em contrato de plano de saúde, é nula a cláusula que limita no tempo a internação do segurado. a.3) Vedação da onerosidade excessiva ou desequilíbrio contratual. Exemplo: CC, art. 41313: redução equitativa da cláusula penal. a.4) Conservação contratual ou do negócio jurídico (Enunciado n. 22 – I Jornada de Direito Civil14). Exemplo: Teoria do Adimplemento Substancial. a.5) Proteção do vulnerável contratual. • CDC: consumidor. • CC/2002: aderente contratual - aquele a quem o conteúdo do contrato é imposto (contratos de adesão). ✓ CC, art. 42315: prevê a interpretação “pro aderente”, havendo cláusulas ambíguas ou contraditórias. 9 Enunciado n. 360, IV JDC: “O princípio da função social dos contratos também pode ter eficácia interna entre as partes contratantes”. 10 Enunciado n. 21, I JDC: “A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito”. 11 Enunciado 23, I JDC: “A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana”. 12 CC, art. 166, II: “É nulo o negócio jurídico quando: (...) II - for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto;” 13 CC, art. 413: “A penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio”. 14Enunciado 22, I JDC: “A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas”. 7 www.g7juridico.com.br ✓ CC, art. 42416: prevê a nulidade de cláusulas de renúncia antecipada a direito resultante da natureza do negócio. A Lei da Liberdade Econômica ampliou a proteção do aderente (art. 113, § 1º, IV, CC17) – “Interpretatio contra proferentem” ou “contra stipulatorem” (interpretação contra aquele que redigiu o documento). a.6) Frustração do fim do contrato ou desaparecimento da causa (Enunciado n. 166 – III Jornada de Direito Civil18). Quando o contrato perde a sua razão de ser, deve ser reputado extinto sem imputação de culpa. Exemplo: aluguel de casa para acompanhar o carnaval e, posteriormente, ele é cancelado. b) Eficácia externa: o contrato também gera efeitos perante terceiros. b.1) Tutela dos direitos difusos e coletivos Ex.: função socioambiental do contrato. Situação: contrato para extração de areia de um rancho que, apesar de ser um instrumento justo e equilibrado, regula uma atividade que causa desequilíbrio ecológico. Nesse caso, é possível dizer que o contrato é nulo ou ineficaz, pois contraria a função socioambiental do contrato. b.2) Tutela externa do crédito (Enunciado n. 21 da I Jornada de Direito Civil19- Exceção ao princípio da relatividade dos efeitos). Exemplo: CC, art. 608: Teoria do Terceiro Cúmplice. Prevê a responsabilização do terceiro aliciador. ➢ Aplicada ao caso Zeca Pagodinho. 15 CC, art. 423: “Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente.” 16 CC, art. 424: “Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio.” 17 CC, art. 113, §1º, IV: “Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. § 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) (...) IV - for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)” 18 Enunciado 166, III JDC: “A frustração do fim do contrato, como hipótese que não se confunde com a impossibilidade da prestação ou com a excessiva onerosidade, tem guarida no Direito brasileiro pela aplicação do art. 421 do Código Civil”. 19 Enunciado n. 21, I JDC: “A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito”. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13874.htm#art7 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13874.htm#art7 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13874.htm#art7 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13874.htm#art7 8 www.g7juridico.com.br CC, art. 608: “Aquele que aliciar [BRAHMA] pessoas obrigadas em contrato escrito [ZECA PAGODINHO] a prestar serviço a outrem [NOVA SCHIN] pagará a este a importância que ao prestador de serviço, pelo ajuste desfeito, houvesse de caber durante dois anos”. ✓ TJSP – Apelação 911.2793-79.2007.8.26.0000. “EMENTA - INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS, MORAIS E À IMAGEM - Empresa-autora que foi prejudicada pelo aliciamento do principal artista de sua campanha publicitária por parte da empresa-ré - Improcedência da demanda - Inconformismo - Acolhimento parcial - Requerida que cooptou o cantor, na vigência do contrato existente entre este e a autora - Veiculaçâo de posterior campanha publicitária pela ré com clara referência ao produto fabricado pela autora - Não observância do princípio da função social do contrato previsto no art. 421 do Código Civil - Concorrência desleal caracterizada - Inteligência do art. 209 da Lei n° 9.279/96 - Danos materiais devidos - Abrangência de todos os gastos com materiais publicitários inutilizados (encartes e folders) e com espaços publicitários comprovadamente adquiridos e não utilizados pela recorrente, tudo a ser apurado em liquidação - Dano moral - Possibilidade de a pessoa jurídica sofrer dano moral - Súmula 227 do Colendo Superior Tribunal de Justiça - Ato ilícito da requerida que gerou patente dano moral e à imagem da requerente - Sentença reformada - Ação procedente em parte - Recurso parcialmente provido.” (TJSP - Apelação 911.2793-79.2007.8.26.0000, Relator J.L. Mônaco da Silva, 5ª Câmara de Direito Privado, julgado em 12/06/2013, publicado em 25/06/2013). 2.3. Princípio da força obrigatória da convenção e do contrato Continua em vigor o princípio pelo qual o contrato faz lei entre as partes (“pacta sunt servanda”). ✓ Este princípio foi fortalecido pela Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.784/2019, art. 2º20 e art. 3º, V e VIII). 2.4. Princípio da boa-fé objetiva (CC, arts. 113, 187 e 422). Trata-se de uma evolução do conceito de boa-fé, que saiu do plano meramente intencional (boa-fé subjetiva) para o plano concreto de lealdade das partes (boa-fé objetiva) - Menezes Cordeiro. Ver o esquema abaixo, muito importante para entender a matéria. 20 Lei 13.784/2019, art. 2º: “São princípios que norteiam o disposto nesta Lei: I - a liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas; II - a boa-fé do particular perante o poder público; III - a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas; e IV - o reconhecimento da vulnerabilidade do particular perante o Estado.” 9 www.g7juridico.com.br • Boa-fé subjetiva (“Guten Glauben”): ✓ Estado psicológico. ✓ Boa intenção. ✓ Posse (CC, art. 1.20121). • Boa-fé objetiva (“Treu und Glauben” ou“correttezza” ) - Associada aos deveres anexos ou laterais: ✓ Agir com lealdade. ✓ Boa conduta. ✓ Contrato (CC, art. 42222). Três funções da boa-fé objetiva no Código Civil de 2002: ➢ 1ª: Função de interpretação (CC, art. 11323 - Alterado pela Lei 13.784/2019). Critérios: ✓ Boa-fé; ✓ Regras de tráfego ou de mercado; ✓ Vedação do comportamento contraditório; ✓ “Interpretatio contra proferentem”; ✓ Racionalidade econômica, levando-se em conta as informações no momento da contratação; ✓ Regras de interpretação incluídas pelas partes. Obs.: Tudo isso é possível desde que não se contrarie nenhuma norma de ordem pública. 21 CC, art. 1.201: “É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa”. 22 CC, art. 422: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.” 23 CC, art. 113: “Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. § 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: I - for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio; II - corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio; III - corresponder à boa-fé; IV - for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e V - corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração. § 2º As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei.” Boa-fé objetiva no Direito Privado 10 www.g7juridico.com.br ➢ 2ª: Função de controle (CC, art. 18724): aquele que viola a boa-fé objetiva no exercício de um direito comete abuso de direito (ilícito). Consequências: nulidade da cláusula e responsabilidade civil objetiva (Enunciado n. 37 – I Jornada de Direito Civil25). ➢ 3ª: Função de integração (CC, art. 42226) - A boa-fé objetiva deve integrar todas as fases contratuais: • Pré-contratual (Enunciado 25, I Jornada de Direito Civil 27e Enunciado 170, III Jornada de Direito Civil28). • Contratual • Pós-contratual Exemplo n. 1 (pré-contratual): “Caso dos tomates” (TJ/RS, 1990 = CICA): quebra de um ciclo de confiança contratual. ✓ Ver ainda o caso IBM (REsp n. 1.309.972/SP): “RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DICOTOMIA TRADICIONAL. AQUILIANA E CONTRATUAL. REFORMULAÇÃO. RESPONSABILIDADE PELA QUEBRA DA CONFIANÇA. ORIGEM NA CONFIANÇA CRIADA. EXPECTATIVA LEGÍTIMA DE DETERMINADO COMPORTAMENTO. RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL. INEXISTÊNCIA DE CONTRATO FORMAL SUPERADA PELA REPETIÇÃO DE ATOS. JUIZ COMO PERITO DOS PERITOS. COORDENAÇÃO DAS PROVAS. ART. 130 DO CPC/1973. 1. Tradicionalmente, a responsabilidade civil divide-se em responsabilidade civil stricto sensu (delitual ou aquiliana) e a responsabilidade contratual (negocial ou obrigacional), segundo a origem do dever descumprido, contrato ou delito, critério que, apesar de conferir segurança jurídica, mereceu aperfeiçoamentos, à luz da sistemática atual do Código Civil, dos microssistemasde direito privado e da Constituição Federal. 2. Seguindo essa tendência natural, doutrina e jurisprudência vêm se valendo de um terceiro fundamento de responsabilidade, que não se vincula a uma prestação delineada pelas partes, nem mesmo vincula indivíduos aleatoriamente ligados pela violação de um dever genérico de abstenção, qual seja a responsabilidade pela confiança. 3. A responsabilidade pela confiança é autônoma em relação à responsabilidade contratual e à extracontratual, constituindo-se em um terceiro fundamento ou 'terceira pista' (dritte Spur) da responsabilidade civil, tendo caráter subsidiário: onde houver o dano efetivo, requisito essencial para a responsabilidade civil e não for possível obter uma solução satisfatória pelos caminhos tradicionais da responsabilidade, a teoria da confiança será a opção válida. 4. A teoria da confiança ingressa no vácuo existente entre as 24 CC, art. 187: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.” 25 Enunciado 37, I JDC: “A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico”. 26 CC, art. 422: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.” 27 Enunciado 25, I JDC: “O art. 422 do Código Civil não inviabiliza a aplicação pelo julgador do princípio da boa-fé nas fases pré-contratual e pós-contratual.” 28 Enunciado 170, III JDC: “A boa-fé objetiva deve ser observada pelas partes na fase de negociações preliminares e após a execução do contrato, quando tal exigência decorrer da natureza do contrato.” 11 www.g7juridico.com.br responsabilidades contratual e extracontratual e seu reconhecimento se fundamenta principalmente no fato de que o sujeito que dá origem à confiança de outrem e, após, frustra-a, deve responder, em certas circunstâncias, pelos danos causados dessa frustração. A defraudação da confiança constitui o verdadeiro fundamento da obrigação de indenizar. 5. A responsabilidade fundada na confiança visa à proteção de interesses que transcendem o indivíduo, ditada sempre pela regra universal da boa-fé, sendo imprescindível a quaisquer negociações o respeito às situações de confiança criadas, estas consideradas objetivamente, cotejando-as com aquilo que é costumeiro no tráfico social. 6. A responsabilidade pela quebra da confiança possui a mesma ratio da responsabilidade pré-contratual, cuja aplicação já fora reconhecida pelo STJ (REsp 1051065/AM, REsp 1367955/SP). O ponto que as aproxima é o fato de uma das partes gerar na outra uma expectativa legítima de determinado comportamento, que, após, não se concretiza. O ponto que as diferencia é o fato de, na responsabilidade pré-contratual, a formalização de um contrato ser o escopo perseguido por uma das partes, enquanto que na responsabilidade pela confiança, o contrato, em sentido estrito, não será, ao menos necessariamente, o objetivo almejado. 7. No caso dos autos, ainda que não se discuta a existência de um contrato formal de compra e venda entre as partes ou de qualquer outra natureza, impossível negar a existência de relação jurídica comercial entre as empresas envolvidas, uma vez que a IBM portou-se, desde o início das tratativas, como negociante, com a apresentação de seu projeto, e enquanto titular deste, repassando à Radiall as especificações técnicas do produto a ser fabricado, assim como as condições do negócio. 8. Com efeito, por mais que inexista contrato formal, o direito deve proteger o vínculo que se forma pela repetição de atos que tenham teor jurídico, pelo simples e aqui tantas vezes repetido motivo: protege-se a confiança depositada por uma das partes na conduta de seu parceiro negocial. 9. Mostrou-se, de fato, incontroverso que os investimentos realizados pela recorrente, para a produção das peças que serviriam ao computador de bordo de titularidade da recorrida, foram realizados nos termos das relações que se verificaram no início das tratativas entre essas empresas, fatos a respeito dos quais concordam os julgadores de origem. 10. Ademais, ressalta claramente dos autos que a própria recorrida estipulou quais os modelos de conectores deveriam ser produzidos pela recorrente e em que quantidade, vindo, após certo tempo, repentina e de maneira surpreendente, a alterar as especificações técnicas daquelas peças, tornando inúteis as já produzidas. 11. O ordenamento processual pátrio consagra o juiz como o perito dos peritos e a ele a lei atribui a tarefa de dar a resposta à controvérsia apresentada em juízo, não importando a que ramo do conhecimento diga respeito. Essa a lição que se extrai do artigo 130 do CPC de 1973, que atribuiu ao juiz a função de ordenar e coordenar as provas a serem produzidas, conforme a utilidade e a necessidade, a postulação do autor e a resistência do réu, podendo determinar a realização de perícia, quando necessária a assessoria técnica para auxiliá-lo no deslinde da questão alvo (arts. 145, 421, 431-B do CPC). 12. Assim, a solução apresentada à controvérsia deve ser fruto do convencimento do Juiz, com base nas informações colhidas no conjunto probatório disponível nos autos, não estando restrito a uma e qualquer prova, especificamente. 13. Recurso especial parcialmente provido, para reconhecer a responsabilidade solidária da IBM - Brasil pelo ressarcimento dos danos materiais (danos emergentes e lucros cessantes) à recorrente” (REsp 1309972/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 27/04/2017, DJe 08/06/2017). 12 www.g7juridico.com.br Exemplo n. 2 (fase contratual): Súmula 308 do STJ29: a boa-fé objetiva “vence” a hipoteca, que deixa de ter efeitos erga omnes e passa a ter efeitos inter partes. Exemplo n. 3 (pós-contratual): Súmula 548 do STJ30: o credor tem o prazo de cinco dias úteis, após o efetivo pagamento da dívida, para retirar o nome do devedor do cadastro de inadimplentes, sob pena de uma responsabilidade pós- contratual (Post pactum finitum). Da função de integração são retirados os conceitos parcelares da boa-fé: • “Supressio” (“Verwirkung”). • “Surrectio” (“Erwirkung”). • “Tu Quoque”. • “Exceptio Doli”. • “Venire contra factum proprium non potest”. • “Duty to mitigate the loss”. • “Nachfrist”. CONTINUAMOS NA PRÓXIMA AULA. 29 Súmula 308, STJ: “A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”. 30 Súmula 548, STJ: “Incumbe ao credor a exclusão do registro da dívida em nome do devedor no cadastro de inadimplentes no prazo de cinco dias úteis, a partir do integral e efetivo pagamento do débito”.
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