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2018 - 09 - 04 Direito Civil: Curso Completo - Edição 2016 CAPÍTULO XIX. DIREITO DE FAMÍLIA Capítulo XIX. DIREITO DE FAMÍLIA 1. Introdução A ideia de família é um tanto quanto complexa, uma vez que variável no tempo e no espaço. Em outras palavras, cada povo tem sua ideia de família, dependendo do momento histórico vivenciado. No Ocidente, a família e tudo o que gira em torno dela nem sempre foram como hoje. Para traçar parâmetro, devemos retroagir no tempo em busca de nossas raízes greco- romanas. Tanto na cultura grega quanto em sua continuadora, a cultura romana, a ideia de família era bastante diferente da atual. Para nossos antepassados culturais, a família era corpo que ia muito além dos pais e dos filhos. Sob a liderança do pai, a família era o conglomerado composto da esposa, dos filhos, das filhas solteiras, das noras, dos netos e demais descendentes, além dos escravos e clientes.1 As filhas e netas que se casassem se transferiam para o poder do marido ou do sogro, se fosse vivo. O paterfamilias2 era, assim, senhor absoluto da domus.3 Era o sacerdote que presidia o culto aos antepassados; era o juiz que julgava seus subordinados; era o administrador que comandava os negócios da família. Com o passar dos séculos, o poder desse paterfamilias deixou de ser tão absoluto. Não obstante, a estrutura familiar continuou sendo extremamente patriarcal. A adoção do catolicismo em nada mudou essa estrutura. Muito pelo contrário, adicionou a ela toda uma carga de patriarcalismo puritano, herança direta do judaísmo pauliano. Com o tempo, porém, o patriarcalismo ocidental vê suas estruturas se balançarem, principalmente após as revoluções modernas e a vitória do livre pensar nos países democráticos. O golpe crucial é desferido pela Revolução Industrial, que tem início já no século XVIII. Com ela, a mulher se insere no mercado de trabalho, e a revolução na família começa. O golpe fatal ocorre nos idos de 1960, com a chamada Revolução Sexual, em que a mulher reclama, de uma vez por todas, posição de igualdade perante o homem. Reclama, enfim, um lugar ao sol. É também a Revolução Sexual que põe em xeque os padrões morais da sociedade ocidental. Os gregos e, principalmente, os romanos, berço de nossa civilização, podem, de um modo geral, denominar-se liberais relativamente aos costumes e à religião. Em poucas palavras, a cultura antiga praticava o ecumenismo religioso e era muito liberal em termos de costumes, isso se comparada à cultura puritana que prevaleceu desde a Idade Média até a Revolução Sexual dos anos 60. A adoção do catolicismo introduziu dois elementos estranhos: o puritanismo judaico e a ditadura religiosa. O puritanismo judaico, fruto talvez da doutrina de São Paulo,4 censurou os costumes, procurando alinhar os homens dentro de estritos limites morais. O resultado, como podemos nós mesmos verificar, foi o império absoluto da hipocrisia. O homem era e é instigado ao sexo, enquanto a mulher era instigada ao puritanismo. A contradição é óbvia. Como poderia o homem praticar o sexo em abundância, como era instigado desde a infância a fazer, se à mulher eram proibidos o prazer e o sexo fora do casamento? Com quem haveria o homem de se deitar? A resposta é evidente: com prostitutas ou com outros homens. Mas tanto a prostituição quanto o homossexualismo eram severamente censurados. Quanta complicação, quanto tabu, quanto preconceito, quanta hipocrisia em torno de algo tão simples e natural: o sexo. Foi somente após a Revolução Sexual dos anos 60 do século XX que as coisas começaram a melhorar. Em primeiro lugar, a Igreja Católica começa a rever sua doutrina em busca do verdadeiro cristianismo; aquele do amor ao próximo e da responsabilidade. A única regra moral é a do amor ao próximo. Tudo o que não ferir esta norma é moral, é permitido ou, quando nada, tolerado. O ser humano é responsável por seus atos e por seu destino. Cada indivíduo tem livre-arbítrio sobre sua vida e seus caminhos. Talvez por isso mesmo, por estar se voltando para o verdadeiro cristianismo, dando aos homens a oportunidade de se amarem livremente e atribuindo-lhes toda a responsabilidade por seu destino, talvez por isso a Igreja Católica venha perdendo adeptos para igrejas de perfil medieval, como as que vemos proliferar a todo momento, em todo canto. Parece que as pessoas não conseguem viver livres, sem a sombra do pecado, sem os grilhões do demônio. Em certos cultos, fala-se mais do diabo que de Deus. Fato é, porém, que a família contemporânea mudou, apesar das forças reacionárias. Embora continue patriarcal a sociedade, o homem, hoje, já não exerce mais a liderança absoluta em sua casa. O papel da mulher se torna cada vez mais ativo e importante. O sustento do lar é provido por ambos; os papéis ativo e passivo se revezam. Em outras palavras, ora manda o homem, ora manda a mulher. Depende do assunto e do momento. Daí, pode-se muito bem conjecturar que, na atualidade, masculino e feminino sejam, talvez, antes de tudo, papéis exercidos por cada um de nós, em diferentes conjunturas. Na verdade, se levarmos em conta que masculino é o que manda, o ativo, e feminino o que obedece, o passivo, verificaremos que nem sempre será o homem a exercer o papel masculino e a mulher, o feminino. Muitas das vezes, pode observar-se certo revezamento de papéis. Ora manda o homem, ora a mulher. Há também, e ainda, as distorções, ou seja, há casais em que o homem sempre manda e a mulher sempre obedece, ou vice-versa. Com base nessa tese de que masculino e feminino, ativo e passivo, respectivamente, são na verdade papéis exercidos por homens e mulheres de modo alternado, com base nisso, a concepção de família vem mudando. Há ordenamentos jurídicos, inclusive o nosso, que já reconhecem a união entre indivíduos do mesmo sexo como entidade familiar, conferindo-lhe proteção legal adequada. Devemos ter em mente que, se por um lado, o sexo genital é o mesmo, por outro, os papéis desempenhados pelo casal são diferentes, ou seja, masculino e feminino, alternadamente, ora por um, ora por outro.5 No Brasil, muito já se avançou desde a laicização do Direito. A Constituição Federal de 1988 considerou célula familiar a união estável entre homem e mulher ou entre qualquer um dos pais e seus descendentes. Com isso, deu-se o pontapé inicial para a nova visão de família. Em outras palavras, o primeiro passo foi dado: desvinculou-se família de casamento. Dado o primeiro passo, o terreno tornou-se fértil para novos avanços, e o legislador não perdeu tempo. Duas novas leis, uma em 1994 e outra em 1996, foram editadas para regulamentar e dar proteção à união estável ou concubinato puro, não adulterino. O Código Civil também disciplina a matéria. O STF reconheceu a união homossexual como família, sendo-lhe atribuíveis todos os efeitos da união heterossexual. O STJ já admite o casamento entre pessoas do mesmo sexo, bem como a adoção por casais homossexuais. Outras leis e decisões ainda virão, em seu devido tempo, a despeito da ferrenha oposição de alguns retrógrados e de outros tantos falsos profetas. Com a Constituição de 1988, atentou-se para um fato importante: não existe apenas um modelo de família, como queriam crer o Código Civil de 1916 e a Igreja Católica. A ideia de família plural, que sempre foi uma realidade, passou a integrar a pauta jurídica constitucional e, portanto, de todo o sistema. Reconhecem-se hoje não só a família modelar do antigo Código, formada pelos pais e filhos, mas, além dela, a família monoparental, constituída pelos filhos e por um dos pais; a família fraterna, consistente na vida comum de dois ou mais irmãos; até mesmo as famílias simultâneas, dentre outras, são reconhecidas. É óbvio que, na esfera da simultaneidade, podem ocorrer ilicitudes, como a de homens que mantêm dois lares com mulher e filhos em cada um. Em relação aos filhos, não há problemas; em relação às mulheres, entretanto, pode ser o caso de bigamia, o que levaria ao adultério e ao concubinato, ambos, direta ou indiretamente, ainda repudiados peloDireito. A família pode ser entendida como o núcleo estrito, constituído por pais e filhos, mas também como célula maior, constituída por todos os parentes, descendentes da mesma linha ancestral. Fala-se, aí, em família extensa ou ampliada. Há casos de difícil solução, como o de um diplomata muçulmano que traz suas esposas e filhos para o Brasil. O Direito Brasileiro deverá reconhecer a situação conjugal poligâmica ou não? Em verdade, pode-se argumentar ponderavelmente em favor da afirmativa ou da negativa. Por força dessa visão plural de família, criou-se o modismo de denominar-se o Direito de Família de “Direito das Famílias”. Em minha opinião, apesar da boa intenção de seus adeptos, no sentido de frisar esse pluralismo, a nova expressão não se justifica. A língua portuguesa é muito mais rica que isso. A terminologia tradicional “Direito de Família” já confere à família suficiente tônus de pluralidade. O emprego da preposição indefinida “de” (Direito de Família), em vez da preposição “de” conjugada com o artigo definido “a” (Direito da Família), já confere ao termo “Direito de Família” a necessária amplitude para atribuir à família conceito aberto e plural. A expressão “Direito das Famílias” não passa de bem intencionada invencionice, não se justificando, quer do ponto de visto linguístico, quer do ponto de vista jurídico. Por fim, na atualidade, alguns juristas criaram a ficção da família unipessoal, composta por uma pessoa apenas. Esta ficção jurídica vem sendo invocada para a proteção do imóvel residencial da pessoa que vive só. Como já vimos anteriormente, no capítulo referente ao estudo das várias classes de bens, não é necessária a ficção para esse fim. Para uns, bastaria invocar o princípio da dignidade humana e o consequente direito constitucional à moradia, para se lograr o mesmo resultado protetivo. Para outros, talvez com mais razão, a própria Lei 8.009/1990 traria em seu texto a possibilidade de proteger o imóvel da pessoa solteira, ao se referir a dívidas de qualquer membro da família. Para outros ainda, com muito mais razão, a Lei 8.009/1990 protege apenas a família, não a pessoa solteira. Mais sobre tema, falaremos infra. Família é, pois, agrupamento de no mínimo duas pessoas. Não existe de fato família unipessoal, tampouco é necessária a ficção. Atualmente, tornou-se moda nos meios familiaristas uma visão romântica da família, fundada no amor e no afeto. A família, por este prisma, seria o locus do afeto, sendo o ambiente mais adequado para a promoção do ser humano. De fato, a família ainda é, como regra, o ambiente mais adequado para o desenvolvimento do ser humano, mas não por ser necessariamente um local de amor e de afeto. Dentre outras razões, é por ser o ambiente em que nascemos e no qual nos sentimos naturalmente mais protegidos. Seguramente, há amor e afeto no âmbito familiar, mas não só; há também ódio, rivalidades e violência (física e moral). A família, na melhor das hipóteses, é um agrupamento de neuróticos, que se fazem bem uns aos outros, mas que também se fazem muito mal. Muitas vezes, é melhor para a criança ser afastada do locus familiar, que só lhe traz malefícios. É importante frisar tudo isso, porque, já vi alguns magistrados, com base nessa visão romântica e irreal de família, como o locus do afeto, inserirem crianças em lares adotivos, sem uma pesquisa adequada, a fim de se constatar se os adotantes têm, realmente, condições de criar filhos. Eventualmente, esse romantismo piegas pode levar um juiz a inserir uma criança num lar de psicóticos perigosos, que só farão projetar suas perversões no pobre filho adotivo. Melhor será deixá-lo no orfanato, por pior que seja. Família não é locus de amor e afeto. Família é um agrupamento de seres humanos reais, neuróticos quando nada, que se amam, mas se odeiam, que se fazem bem, mas se fazem mal. Família é locus de amor, mas também de violência e de desafeto. Essa é a família da vida real. A se falar em família como locus de afeto, só pode ser no sentido psicanalítico, não no sentido vulgar. Para a psicanálise, afeto é um dos estados emocionais, cujo conjunto constitui a gama de todos os sentimentos humanos, do mais agradável ao mais insuportável.6 Neste sentido, até se pode admitir a ideia de que família seja locus de afeto, jamais, porém, no sentido coloquial, em que afeto é sinônimo de amor, de carinho. Não é só amor e carinho o que se vê no ambiente familiar. Há que tomar cuidado com esse modismo bem intencionado, mas meio infantil, principalmente nas adoções, mas não só nelas, por óbvio. Hoje em dia, por exemplo, com base nessa pieguice romântica, fala-se em indenização por abandono afetivo, o que não se justifica, por nenhum prisma, como veremos abaixo, ao estudar as relações paterno-filiais. Mas qual seria o futuro da família ocidental? Responder a essa pergunta é impossível. As injunções históricas são as mais sub- reptícias, mudando o curso de todas as previsões que se possa fazer. As inovações e descobertas médicas revolucionam o mundo moderno a cada instante.7 O tema deve ser analisado, porém, da forma mais aberta possível, sem preconceitos ou falsos critérios religiosos. O amor ao próximo deve ser a única regra a nos guiar nesses meandros tão conturbados.8 2. Principiologia do Direito de Família 2.1 Nota preliminar De plano, é interessante relembrar aqui o que seja princípio. Princípios são, em palavras bem simples, normas gerais e fundantes que fornecem os pilares de determinado ramo do pensamento científico ou do ordenamento jurídico. Informam, portanto, o cientista ou o profissional do Direito. Daí o nome, princípios informadores, porque informam os fundamentos dos quais devemos partir. São gerais porque se aplicam a uma série de hipóteses, e são fundantes, na medida em que deles se pode extrair um conjunto de regras, que deles decorrem por lógica. Assim, do princípio do pluralismo, pode-se deduzir a regra de que a família baseada na união estável deve receber o mesmo tratamento que a família baseada no casamento. Do princípio da igualdade, extrai-se a regra de que pai e mãe exercem com iguais direitos e deveres o poder familiar. Obviamente, as regras que se deduzem de um princípio, ou já estão positivadas em lei, como esta última, ou se deduzem de inferência lógica, sem que se possa, evidentemente, extrair detalhes que não sejam dedutíveis por processo lógico imediato. Em outras palavras, o intérprete não pode deduzir detalhes de um princípio, que só ao legislador seja lícito positivar. Por exemplo, do princípio do melhor interesse da criança, pode-se inferir a regra de que seja melhor inseri-la numa escola interna, do que deixá-la nas ruas, a Deus dará. Mas, definitivamente, não se pode daí inferir que a escola interna deva ser necessariamente estadual, ou federal, enfim, não se podem inventar detalhes normativos, que não sejam dedução imediata do princípio, por meio de um processo lógico-racional. Dito isso, vejamos os princípios mais importantes do Direito de Família. 2.2 Princípio da dignidade humana A família deve ser, em tese, o ambiente para o desenvolvimento fisiopsíquico saudável do ser humano. É junto à família que nos sentimos bem, protegidos, embora nem sempre o meio familiar seja de todo saudável. Uma família normal é, na melhor das hipóteses, um agrupamento de neuróticos, que podem se fazer muito bem, podem se amar intensamente, mas podem também se odiar e se fazer muito mal. É importante que se diga isso, para não ficar nenhum mal-entendido. Família não é locus de amor e de afeto, pelo menos não só. A família, bem ou mal, é o local em que melhor se desenvolve a personalidade. Lembremos que toda pessoa humana é um ser em formação e em transformação. Cada um de nós é idêntico a si mesmo, por si só um fim. Pelo princípio da dignidade humana, a família passa a ser vista como o ambiente para o livre desenvolvimento da personalidade. Pode ser invocado em muitas situações diferentes no Direito de Família. Pode-se invocá-lo, por exemplo, para garantir ao filho de proveta o direitode saber sua paternidade biológica; para garantir, aos filhos, pensão alimentícia adequada; para inserir um órfão em família substitutiva e assim por diante. 2.3 Princípio da função social da família O princípio da função social é derivado do princípio da dignidade humana. Função social é função e é princípio. A família desempenha uma função, qual seja, servir de amparo ao desenvolvimento da pessoa. Já o princípio da função social da família dita que esta função social deverá ser preservada, a fim de garantir a cada um dos membros da família a possibilidade de promover sua personalidade, o que, sem dúvida, ocorre melhor no ambiente familiar. É, por exemplo, com fundamento no princípio da função social da família, que a Lei 8.009/1990 garante à célula familiar a impenhorabilidade do imóvel residencial. É também com fundamento no princípio da função social da família que um menor abandonado é reencaminhado a seus pais, devendo o Estado prestar-lhes assistência, para que esta família se mantenha, de um modo ou de outro. 2.4 Princípio do pluralismo Até muito recentemente, a família era objeto de estrito enquadramento jurídico, moral e religioso. Só se considerava família legítima aquela constituída pelo casamento. Mesmo a família em sentido mais amplo, constituída pelos parentes ligados por um vínculo ancestral comum, mesmo essa família só seria legítima se permeada pelas justas núpcias. A partir de meados do século XX, a Revolução Industrial começa a afetar a moral familiar. Nos anos 60, ocorre a chamada Revolução Sexual. As relações sexuais deixam de ser consideradas pecaminosas e erradas. As pessoas começam a se despir de muitos preconceitos religiosos. Outras formas de família começam a ser aceitas. No Brasil, de suma importância foi a Constituição de 1988, que consagrou a família plural, desvinculando a célula familiar do casamento e admitindo expressamente outras modalidades de família. A união estável, por exemplo, só foi amplamente aceita a partir do texto constitucional de 1988. Dito isso, o princípio do pluralismo dita que há várias formas de família e, desde que nos limites da Lei, têm que receber proteção legal e respeito da coletividade. É, por exemplo, com base no princípio do pluralismo que o STF julgou ser família a união estável de pessoas do mesmo sexo. É com base nesse princípio, que, hoje em dia, começa a ser questionado um outro princípio, o da monogamia. 2.5 Princípio da solidariedade Em palavras bem simples, de acordo com o princípio da solidariedade, cada membro da família deve prestar amparo aos demais, deve respeitar o outro e a forma que elegeu para promover sua personalidade, desde que lícita. Obviamente, ninguém tem que aceitar que um membro da família seja traficante de drogas ou pedófilo. A solidariedade se assenta na tolerância e no amor ao próximo. O tema é muito controverso, porém. Seria condenável a família que não aceite o filho travesti? É muito fácil falar, quando não tenhamos que vivenciar a situação. É fácil exigir tolerância dos outros. E o simples fato de A, B ou C aceitarem, não significa que seja muito fácil para todos os demais. Vencer as barreiras sociais e, principalmente, as psicológicas é muito difícil. A solidariedade serve até para isso, ajudar a cada um e a todos nessa luta por derrubar muralhas milenares de preconceitos e fobias. O princípio da solidariedade pode ser invocado em várias situações. É com base nele, por exemplo, que o cônjuge ou o companheiro detém até o fim da vida o direito de pedir pensão do outro, mesmo que já há muito separados. 2.6 Princípio da proteção especial O princípio da proteção especial refere-se precipuamente às relações paterno-filiais, mas não só; também os idosos hão de ser sujeitos passivos dessa proteção, além dos doentes e deficientes mentais, enfim, de todos aqueles que não tenham condições de gerir sua própria vida, seja no aspecto patrimonial, seja no aspecto existencial. As relações familiares devem pautar-se pelo melhor interesse dessas pessoas, o que significa que a família deve fornecer-lhes, na medida do possível, condições para que tenham vida digna, para que possam promover sua personalidade. São subprincípios da proteção integral o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, bem como o princípio da parentalidade responsável. Toda decisão concernente à vida (patrimônio e existência) de uma criança ou de um adolescente deve ser tomada tendo em conta seu melhor interesse. Como vimos, esse princípio também se aplica aos idosos, doentes e deficientes mentais. Por outro lado, o nascimento de um filho implica para os pais obrigações na esfera patrimonial e existencial, no sentido de garantir o bem-estar e a vida digna da criança. Este é o princípio da parentalidade responsável. O não cumprimento dessas obrigações pode importar a suspensão ou mesmo a perda do poder parental. Concluindo, deve ser ressaltado que o princípio da proteção especial tem muito a ver com o princípio da solidariedade. 2.7 Princípio da igualdade O princípio da igualdade diz respeito tanto aos sexos, quanto aos filhos. Assim, homens e mulheres são iguais em direitos e deveres, bem como os filhos também o são, pouco importando sua origem, se do casamento ou não. A igualdade entre homens e mulheres aplica-se evidentemente às relações entre marido e mulher, companheiro e companheira. Em relação a este princípio, é fundamental que se esclareçam alguns pontos. Em primeiro lugar, muitas vezes será necessário tratar desigualmente os desiguais, exatamente para os igualar. O juiz não poderá ponderar com os mesmos pesos e medidas a situação do homem e da mulher, numa relação conjugal, sob pena de deixar a mulher, como regra, em condições muito piores. Por isso mesmo, é que por vezes, são decretados alimentos temporários, até que a mulher possa se estabelecer e tenha condições de se manter por si mesma. Logicamente, se ficar comprovado que o homem é sustentado pela mulher, pode ser o caso, se bem que raro, de ser ele o detentor do direito a alimentos. Por óbvio que o princípio da igualdade não se aplica pura e simplesmente nas relações conjugais. Sua aplicação dependerá da Lei e do bom senso. O juiz não poderá, como regra, se imiscuir nas relações íntimas ou cotidianas (domésticas) do casal, para aí impor a igualdade. É óbvio que esse princípio não tem aplicação nas relações afetivas, sexuais, íntimas. Essa é uma esfera em que o princípio da autonomia privada deve prevalecer sobre o princípio da igualdade. Há que lembrar que a liberdade é tão direito fundamental quanto a igualdade. Nas relações pais e filhos, o princípio da igualdade aplica-se com cautela também. Assim, não pode haver discriminação entre filhos, sejam havidos no casamento ou não. Mesmos os filhos incestuosos são filhos e têm os mesmos direitos que os demais, sendo vedada qualquer designação que possa sugerir sua origem (incestuoso, natural, adulterino etc.). Nem os filhos adotivos podem receber tratamento diferenciado. Uma vez concedida a adoção, o adotado se torna filho como outro qualquer, com os mesmos direitos e deveres. Apesar disso, não se aplica o princípio da igualdade nas relações de afeto. A Lei não pode obrigar os pais a gostar de todos com a mesma intensidade. Até admite o tratamento desigual na distribuição da parte disponível da herança, por exemplo, como fruto dessa legítima desigualdade afetiva. Por vezes, nem se cuidará propriamente de predileção pura e simples. Os pais podem, por exemplo, se preocupar mais com um filho do que com o outro. De todo modo, essa é uma esfera de autonomia privada, em que não se aplica o princípio da igualdade. Seria o cúmulo do absurdo falar pura e simplesmente em eficácia horizontal do princípio da isonomia nas relações paterno-filiais. Se a Constituição fala em igualdade entre filhos, seguramente não é neste sentido, mas no de que não possam ser discriminados os filhos do casamento, em relação aos demais; no sentido de que não possam receber partes desiguais da herança legítima. Não no sentidode que não possam ser tratados desigualmente nas relações afetivas. Infelizmente, as preferências dos pais por um ou outro filho ocorrem mesmo. Fazem parte da humanidade. Não é o dinheiro que resolverá os traumas causados ao preterido e ao predileto, que, por vezes, sofre danos maiores que o preterido. O Código Civil, aliás, permite o tratamento hereditário desigual, na medida em que os pais possam atribuir a parte disponível da herança a apenas um dos filhos. Nada há de ilegítimo nisso, nem nada que os demais possam fazer. Se há relações desiguais por excelência, são elas as filiais. Como exigir que os pais tratem os filhos da mesma maneira? Pais são seres humanos, por natureza imperfeitos. Por um lado, a exigência de um tratamento cegamente igualitário entre os filhos poderia até desigualá- los, uma vez que são naturalmente diferentes. Um é mais propenso a esportes, o outro às artes, o outro às línguas estrangeiras. Como é que aquele que tinha toda a propensão para os esportes poderá exigir indenização de seus pais, por não o terem matriculado no mesmo curso de alemão, que propiciaram ao outro filho? A ideia por si não convence. Questões como esta não podem e não devem ser objeto de ação judicial. A Justiça simplesmente não é o ambiente adequado para solucioná-las, tampouco será uma soma em dinheiro que resolverá o problema. Por outro lado, não se pode admitir tratamento desigual em relação ao dever de amparo, de cuidado. Não se pode admitir que um filho seja criado como príncipe, enquanto o outro como escravo. Um estuda na melhor escola, faz intercâmbio no exterior, anda de carro com motorista, veste as melhores roupas, come filé mignon e camarão, enquanto o outro estuda em escola pública, anda de ônibus, veste as roupas mais baratas e come angu com carne de segunda. É o conto de Cinderela se realizando na vida real. E o pior é que isso ocorre, principalmente quando os pais se separam. Pode ocorrer que o pai venha a se casar novamente e que os filhos do segundo casamento recebam esse tratamento de luxo, enquanto os filhos da primeira união recebam uma magra pensão. Como no conto de Cinderela, pode ser que a mãe não tenha sequer forças para lutar por um aumento da pensão, e o tratamento desigual permaneça por toda a vida. No conto infantil, Cinderela foi compensada pela fada madrinha. Na vida real, porém, não há fadas. Quem haverá de compensar esse filho? O Judiciário, por óbvio. Nesse sentido, aliás, a decisão da Min. Nancy Andrighi, no REsp 1.159.242-SP. “Danos morais. Abandono afetivo. Dever de cuidado. O abandono afetivo decorrente da omissão do genitor no dever de cuidar da prole constitui elemento suficiente para caracterizar dano moral compensável. Isso porque o non facere que atinge um bem juridicamente tutelado, no caso, o necessário dever de cuidado (dever de criação, educação e companhia), importa em vulneração da imposição legal, gerando a possibilidade de pleitear compensação por danos morais por abandono afetivo. Consignou-se que não há restrições legais à aplicação das regras relativas à responsabilidade civil e ao consequente dever de indenizar no Direito de Família e que o cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento pátrio não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas concepções, como se vê no art. 227 da CF. O descumprimento comprovado da imposição legal de cuidar da prole acarreta o reconhecimento da ocorrência de ilicitude civil sob a forma de omissão. É que, tanto pela concepção quanto pela adoção, os pais assumem obrigações jurídicas em relação à sua prole que ultrapassam aquelas chamadas necessarium vitae. É consabido que, além do básico para a sua manutenção (alimento, abrigo e saúde), o ser humano precisa de outros elementos imateriais, igualmente necessários para a formação adequada (educação, lazer, regras de conduta etc.). O cuidado, vislumbrado em suas diversas manifestações psicológicas, é um fator indispensável à criação e à formação de um adulto que tenha integridade física e psicológica, capaz de conviver em sociedade, respeitando seus limites, buscando seus direitos, exercendo plenamente sua cidadania. A ministra relatora salientou que, na hipótese, não se discute o amar – que é uma faculdade – mas sim a imposição biológica e constitucional de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerar ou adotar filhos. Ressaltou que os sentimentos de mágoa e tristeza causados pela negligência paterna e o tratamento como filha de segunda classe, que a recorrida levará ad perpetuam, é perfeitamente apreensível e exsurgem das omissões do pai (recorrente) no exercício de seu dever de cuidado em relação à filha e também de suas ações que privilegiaram parte de sua prole em detrimento dela, caracterizando o dano in re ipsa e traduzindo-se, assim, em causa eficiente à compensação. Com essas e outras considerações, a Turma, ao prosseguir o julgamento, por maioria, deu parcial provimento ao recurso apenas para reduzir o valor da compensação por danos morais de R$ 415 mil para R$ 200 mil, corrigido desde a data do julgamento realizado pelo tribunal de origem – REsp 1.159.242-SP, j. 24.04.2012, rel. Min. Nancy Andrighi.” Embora se mencione abandono afetivo, trata-se efetivamente de inadimplemento do dever de cuidado, ou, por outro lado, como fica muito claro no acórdão, atentado ao princípio da igualdade, com a reprodução do conto de Cinderela na vida real. No caso, a fada madrinha foi o Judiciário, que compensou a filha desprestigiada com uma indenização em dinheiro. Na história infantil, Cinderela também foi recompensada com bens materiais (roupas, carruagem, criados e, por fim, um belo provedor e um castelo). O acórdão deixa bem claro que não se discute o amor, o afeto, mas o dever de cuidar. Não podemos admitir a reprodução do conto da Gata Borralheira na vida real. Neste sentido, está corretíssima a decisão do STJ. Sua falha é falar em abandono afetivo, quando disso não se trata. Nas relações de afeto, não se pode exigir igualdade. 2.8 Princípio da dissolubilidade do vínculo Em substituição ao antigo princípio da indissolubilidade do casamento, vigora hoje, em sentido diametralmente oposto, o princípio da dissolubilidade do vínculo, seja matrimonial, seja decorrente da união estável. Não havendo mais vontade ou interesse de manter a vida a dois, não pode o casal ser obrigado a viver maritalmente. É com base neste princípio, por exemplo, que é possível que ocorra o divórcio, mesmo sem a partilha de bens, que pode se dar em momento posterior. A terminologia aqui é difícil. Não se pode falar em vínculo matrimonial, uma vez que o princípio também se aplica à união estável. O adjetivo conjugal tampouco serve, por dizer respeito ao casamento. Na falta de expressão melhor, sugiro esta mesmo: dissolubilidade do vínculo, afinal, se o casamento ou a união estável se desfazem, pressupõe-se que seja por não haver mais qualquer affectio no sentido de manter o casamento ou a união estável. Se os cônjuges ou os companheiros não mais desejam o conúbio, por que haveria a Lei de obrigá-los? As razões seriam (e sempre foram) de exclusivo caráter religioso, o que hoje não se justifica mais. 2.9 Princípio da afetividade Muitos falam em princípio da afetividade. Mas seria mesmo um princípio? Afeto é sentimento. Para a psicanálise afeto é o conjunto de fenômenos psíquicos que se manifestam sob a forma de emoções, sentimentos e paixões. É o estado emocional ligado à realização de uma pulsão.9 É sentimento intenso.10 Para Roland Chemama, afeto é um dos estados emocionais, cujo conjunto constitui a gama de todos os sentimentos humanos, do mais agradável ao mais insuportável.11 Neste sentido, até se poderia dizer que família seja locus de afeto, aí incluídos sentimentos como o desamor e até o ódio. Na linguagem vulgar, porém, afeto é sinônimo de simpatia, amizade, amor.12 Por tudo isso, vê-se que afeto não é dever, é sentimento. Nas palavras de Walsir Edson Rodrigues Júnior e de Renata Barbosa de Almeida,afeto é fato jurídico, porque provoca consequências no mundo deôntico, do dever-ser (na órbita do Direito). Evidentemente deve ser levado em consideração, não como norma, mas como fato gerador de condutas que, evidentemente, interessam ao Direito.13 A afetividade, embora mereça atenção jurídica, não é norma, mas fato que pode estar presente nas relações familiares, digo “pode”, porque o afeto num sentido positivo (amor, carinho) nem sempre será presença constante no seio da família. Lá podem imiscuir-se sentimentos de ódio, inveja e desamor, tão graves quanto os de amor. Uma família normal é um conglomerado de seres humanos, na melhor das hipóteses neuróticos, que podem se amar e se odiar com a mesma intensidade. Podem fazer-se bem, mas podem fazer-se muito mal. Não fosse assim, não haveria a possibilidade de suspensão ou mesmo de perda do poder familiar. Transformar um sentimento em norma é algo, senão inviável, indesejável. É exigir que todo ser humano seja perfeito ao conduzir seus sentimentos. O legislador não deve entrar nessa esfera íntima, a não ser para coibir a violência e os abusos. Concluindo, por ser o afeto um sentimento, não pode ser alçado à condição de norma (princípio é norma), menos ainda de norma imperativa, como se alguém pudesse ser obrigado a sentir afeição. Afeto, portanto, não é princípio. 2.10 Princípio da monogamia A monogamia seria um princípio? Efetivamente, no estado atual de nosso Direito, ninguém pode contrair núpcias se já estiver casado, mesmo que separado de fato. Só as pessoas solteiras, viúvas ou divorciadas podem casar-se. A norma tem óbvia origem religiosa e há de ser questionada em nossos tempos de Direito laico. Ademais: “(…) se não é mais razoável que o Direito eleja um padrão de entidade familiar ou que pretenda impor certas balizas, que necessariamente devem por esta ser observadas, corolário disso é não poder relegar comportamentos supostamente desviantes, no propósito de lhe negar efeitos. Isso alcança maior destaque, ainda, quando se percebe que a afetividade – um dos pilares que geralmente sustenta a edificação familiar – é fluida quanto às maneiras de se consubstanciar. Isso pode alcançar, diretamente, o parâmetro da monogamia como um dever-ser”.14 A monogamia não se sustenta filosoficamente num Estado laico, como o nosso. Por que proibir quem queira de constituir família poligâmica? A cultura árabe por acaso é pior do que a nossa? Seguramente não, na visão deles. Por que impedir que um muçulmano tenha várias esposas? Se por ventura um xeique mudar-se para o Brasil com suas seis esposas, seu casamento não seria lícito? Por quê? Porque o nosso Direito, por razões religiosas e costumeiras, proíbe? Porque tal fato ofenderá o pudor público? Ofenderá por quê? Por puro preconceito, que devemos combater ferrenhamente, se desejamos um Estado plural e democrático. As respostas que tradicionalmente se dão, data venia, não são suficientes num Estado laico, em que a norma jurídica deve ter fundamentação racional. O fato de ser permitida a poligamia, não significa que todos devam a ela aderir. É apenas mais um modelo lícito de família, incluído na esfera jurídica. Adote-o quem o desejar. Os tempos mudaram e com eles a conformação da família. Apegar-se ao modelo católico tradicional de família do século XIX, como se fosse o único possível, é deixar à margem da legalidade um grande número de pessoas, que nenhum mal fazem; que merecem tanta dignidade quanto qualquer indivíduo, em qualquer outra das várias possibilidades de modelo familiar. Além de não se sustentar filosófica e racionalmente, é de se indagar sobre a natureza dessa norma que impõe a monogamia. A meu sentir, dado o grau de sua especificidade, está muito mais para regra do que para princípio. 3. Casamento 3.1 Definição Família e casamento são instituições distintas. Se no passado a família se alicerçava no casamento, hoje a realidade aponta, quiçá, para outro norte. Apesar disso, tão só por amor à tradição, iniciaremos pelo casamento nosso estudo do Direito de Família. Não vai nisso nenhum juízo de valor. Família é família, e, baseada ou não no casamento, merece a mesma proteção legal. Segundo nosso Direito em vigor, casamento é a união estável e formal entre duas pessoas naturais, com o objetivo de satisfazer-se e amparar-se mutuamente, constituindo família. É estável, diferenciando-se de simples namoro ou noivado, situações que não vinculam o casal. É formal, com rito de celebração prescrito em lei, diferenciando-se da união estável, que é união livre, embora também receba tratamento legal. Até a decisão do STF, de maio de 2011, a ideia predominante, salvo doutrina mais arrojada, era a de que só era possível a união estável entre pessoas de sexo oposto. Quanto ao casamento, aí mesmo é que nem se pensava em outra hipótese, mesmo na doutrina mais à esquerda. Em maio de 2011, o STF, ao julgar a ADIn 4.277 e a ADPF 132, reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo. As ações foram ajuizadas, respectivamente, pela Procuradoria Geral da República e pelo governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. A ideia do relator, Min. Ayres Britto, foi a de dar interpretação conforme a Constituição Federal, a fim de excluir qualquer significado do art. 1.723 do CC que impeça o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. De fato, o art. 1.723 do CC define união estável como a união entre homem e mulher. O Min. Ayres Britto argumentou que o art. 3.º, IV, da CF veda qualquer discriminação em virtude de sexo, raça, cor e que, nesse sentido, ninguém pode ser diminuído ou discriminado em função de sua preferência sexual. “O sexo das pessoas, salvo disposição contrária, não se presta para desigualação jurídica”, observou o ministro, para concluir que qualquer depreciação da união estável homoafetiva colide, portanto, com o inc. IV do art. 3.º da CF. Sendo assim, numa interpretação conforme, o art. 1.723 do CC seria inconstitucional, na parte em que impõe a diversidade de sexo, para a constituição da união estável. Os Mins. Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso, bem como as Mins. Cármen Lúcia Antunes Rocha e Ellen Gracie, acompanharam o entendimento do Min. Ayres Britto, pela procedência das ações e com efeito vinculante, no sentido de dar interpretação conforme a Constituição Federal para excluir qualquer significado do art. 1.723 do CC que impeça o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. A ADIn 4277 foi protocolada na Corte inicialmente como ADPF 178. A ação buscou a declaração de reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Pediu, também, que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis fossem estendidos aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo. Já na ADPF 132, o governo do Estado do Rio de Janeiro (RJ) alegou que o não reconhecimento da união homoafetiva estaria a contrariar preceitos fundamentais como igualdade, liberdade (da qual decorre a autonomia da vontade) e o princípio da dignidade da pessoa humana, todos da Constituição Federal. Com esse argumento, pediu que o STF aplicasse o regime jurídico das uniões estáveis, previsto no art. 1.723 do CC, às uniões homoafetivas de funcionários públicos civis do Rio de Janeiro. Se é inconstitucional a imposição de diversidade de sexo para a união estável, será também para o casamento, pelas mesmas razões. Por que num caso não se admitir a discriminação e no outro se a admitir? Ademais, segundo a decisão do STF, aplicam-se à união estável entre pessoas do mesmo sexo, as mesmas normas e efeitos que se aplicam à união entre homem e mulher. Como a conversão em casamento deve ser facilitada, tratando-se de união heterossexual, sê-lo-á também na união homossexual, sob pena de se discriminar em função da opção sexual, o que contraria frontalmente a Constituição. Assim, as disposições do Código Civil que pressupõem a diversidade de sexo para o casamentosão discriminatórias e inconstitucionais. Por outro lado, nem o Código Civil, nem a Constituição proíbem expressamente o casamento entre homossexuais. O fato de o Código Civil se referir a homem e mulher ao tratar do casamento não gera, por si só, proibição explícita ao casamento gay. Outra não foi a decisão do STJ, no REsp 1.183.348/RS. A 4.ª Turma reconheceu que um casal de mulheres também tem direito de casar. Por maioria, em 25.10.2010, os ministros deram provimento ao Recurso Especial no qual duas mulheres pediam para serem habilitadas ao casamento civil. “Por consequência, o mesmo raciocínio utilizado, tanto pelo STJ quanto pelo STF, para conceder aos pares homoafetivos os direitos decorrentes da união estável, deve ser utilizado para lhes franquear a via do casamento civil, mesmo porque é a própria Constituição Federal que determina a facilitação da conversão da união estável em casamento”, concluiu o Min. Luiz Felipe Salomão. Em seu voto, o Min. Marco Buzzi destacou que a união homoafetiva é reconhecida como família. Se o fundamento de existência das normas de família consiste precisamente em gerar proteção jurídica ao núcleo familiar, e se o casamento é o principal instrumento para essa proteção, seria despropositado concluir que esse elemento não possa alcançar os casais homoafetivos. Segundo ele, intolerância e preconceito não se mostram admissíveis no atual estágio do desenvolvimento humano. Aliás, nesse sentido, a Lei 12.852/2013 ou Estatuto da juventude contribuiu sobremaneira para o avanço das relações homoafetivas. Segundo seu art. 17, o jovem tem direito à diversidade e à igualdade, não podendo ser discriminado em razão da orientação sexual. Ora, pelo princípio constitucional da isonomia, se o jovem não pode ser discriminado em razão da orientação sexual, ninguém mais o será. O objetivo do casal será, como regra, o de obter satisfação e amparo recíprocos. A constituição de família é consequência inexorável, haja filhos ou não. Há quem entenda que só se pode falar em família havendo filhos. Na realidade, o que se pode dizer é que o termo família admite duas acepções: uma ampla e uma estrita. Lato sensu, família é a reunião de pessoas descendentes de um tronco ancestral comum, incluídas aí também as pessoas ligadas pelo casamento ou pela união estável, juntamente com seus parentes sucessíveis, ainda que não descendentes. Stricto sensu, família é a reunião de pai, mãe e filhos, ou apenas de um dos pais com seus filhos.15 Sendo assim, é nos dois sentidos que se diz ser objetivo do casamento a constituição de família. Mesmo não havendo filhos, a união de duas pessoas forma uma família, principalmente se levarmos em conta o Direito das Sucessões, dentre outros fatores psíquicos e socioeconômicos. 3.2 Natureza jurídica Definido o casamento em seus principais contornos, qual seria sua natureza? Com que outro instituto jurídico se afeiçoaria o casamento? Seria ele contrato? Seria instituição social? Ou teria outra natureza? Duas correntes principais se delineiam no Direito Ocidental. Os primeiros defendem a natureza institucionalista do casamento. Para eles, casamento é instituição social, na medida em que é conjunto de regras aceitas por todos para regular as relações entre esposos. Os segundos defendem a natureza contratual do casamento enquanto convenção. O fato de ter disciplina diferente dos demais contratos de Direito Privado não o torna menos contrato, mas contrato especial, sui generis. Outros há ainda que dizem ter o casamento duas naturezas: enquanto celebração, é contrato; enquanto vida comum, é instituição social. Na realidade, o casamento se vê muito mais como contrato ao longo da vida comum, do que na celebração propriamente dita. É ao longo do quotidiano que o casal estabelece regras de vida comum, no exercício de sua autonomia privada. É neste plano que se pode ver com muito mais clareza a contratualidade do casamento. No momento da celebração, há contrato também, embora contrato sui generis, com muito pouco espaço para a autonomia dos nubentes. Se o casamento é instituição, seguramente o é como a compra e venda, a locação e o mandato o são. A teoria institucionalista de Hauriou, a partir da qual se começa a classificar o casamento como instituição, considera todos os institutos jurídicos instituições jurídico-sociais. Assim são instituições os contratos, dentre eles o casamento, o testamento, a propriedade, a família etc. Dizer que o casamento é instituição social não importa dizer que não seja contrato. De todo modo, embora contenha um lado patrimonial, em sua essência, é contrato de natureza existencial, que não se submete às normas do Direito das Obrigações; possui regramento especial. 3.3 Caracteres jurídicos No Direito Brasileiro, o casamento é ato formal, plurilateral, intuitu personae, dissolúvel, realizado entre duas pessoas naturais. Formal porque sua celebração é solene. Se preterido algum requisito de forma, o casamento se considerará inválido ou mesmo inexistente. Plurilateral por exigir a participação de duas vontades que não se contrapõem, mas, pelo contrário, caminham na mesma direção, rumo ao mesmo norte. É intuitu personae, pois se baseia precipuamente na confiança e nos laços afetivos do casal. É dissolúvel, uma vez que pode ser desfeito por ato contrário, qual seja, o divórcio. Por fim, deve ser realizado entre pessoas naturais, de vez que não se admite casamento com ou entre pessoas jurídicas ou casamento com ou entre animais. 3.4 Finalidades Com o atual desenvolvimento do Direito de Família, as finalidades jurídicas do casamento se tornam cada vez mais difíceis de detectar. Segundo o Cânone 1.013 do Código de Direito Canônico da Igreja Católica Romana, são finalidades do casamento, num primeiro plano, a procriação e a educação da prole. Num segundo plano, a mútua assistência e a satisfação sexual. Devemos ter em mente que a Igreja não admite o sexo e a procriação fora do casamento, que para ela é sacramento instituído por Jesus. Fora da esfera religiosa, podemos apontar finalidades sociais para o casamento, que ainda é importante, conferindo ao casal certa respeitabilidade. Mas, nos estritos limites do Direito, diminuíram as finalidades do casamento. A procriação não é mais, uma vez que ocorre independentemente de casamento. Satisfação sexual tampouco, pelo mesmo motivo. Constituir ou legitimar a família não é mais. A Constituição de 1988 conferiu legitimidade à família, que pode constituir-se independentemente de casamento. A mesma posição adota o art. 1.723 do CC, que reconhece a união estável como entidade familiar. Dar tratamento adequado aos filhos, protegendo seus direitos, também não é mais finalidade jurídica do casamento, visto que a Constituição de 1988 e o art. 1.596 do CC concedem aos filhos, havidos ou não na constância do casamento, a mesma proteção e as mesmas prerrogativas. Apesar disso, o casamento ainda possui algumas prerrogativas em relação à união estável. Várias consequências só decorrem dele, por exemplo, podemos citar a possibilidade de os cônjuges adotarem o nome um do outro; os privilégios sucessórios; a amplitude da regulamentação dos regimes matrimoniais; o dever de fidelidade, cujo desrespeito ainda é punido como adultério na esfera civil; dentre outras. 3.5 Casamento civil e religioso Consagra o texto constitucional de 1988 o princípio de que é válido civilmente o casamento religioso. Este o conteúdo do art. 226, § 2.º, da CF. O Código Civil recepciona, expressamente, a norma constitucional no art. 1.515. Não obstante ter o casamento religioso validade legal, devemos esclarecer que a Lei não dispensa os trâmites cartorários que antecedem a cerimônia nupcial. O que a Lei dispensa é a celebração de duas cerimônias, uma civil e outra religiosa. Basta uma, embora na prática seja comum ver a celebração das duas. Esta regra vigora desde a Constituição de 1937, que admitia o casamento religioso com efeito civil, desde que corresse em cartório o processo para a verificação dos impedimentosmatrimoniais. Celebrado o casamento, a certidão fornecida pela Igreja seria, depois, registrada em cartório, que emitiria a certidão de casamento. A Lei 1.110/1941 veio consolidar e regulamentar o princípio, mais uma vez consagrado pela Constituição de 1988 e pelo Código Civil. Observe-se que para que o casamento religioso tenha valor, é necessário que seja celebrado por ministro de religião organizada e reconhecida. Uma vez realizada a cerimônia nupcial religiosa, deverá ser promovido o registro civil do casamento religioso, no prazo de 90 dias, desde que haja sido homologada, previamente, pelo Oficial do Registro, a habilitação para o casamento. Se o prazo não for cumprido, haverá necessidade de nova habilitação. O casamento religioso, na medida do possível, deverá cumprir as formalidades de celebração impostas pela Lei Civil, aliás, de origem canônica. Caso isto não ocorra, ainda assim será possível o registro, no prazo de 90 dias, desde que haja prévia habilitação. 3.6 Habilitação para o casamento Habilitação para o casamento é processo que corre perante o oficial do Registro Civil e que tem por fim evidenciar a aptidão dos nubentes para o casamento. Na verdade, o processo de habilitação visa verificar se os noivos não são impedidos para o casamento, se realmente podem casar-se. Esse processo compreende quatro etapas: documentação, proclamas, certificado e registro. Desenrola-se segundo os arts. 1.525 a 1.532 do CC e arts. 67 a 69 da Lei de Registros Públicos. a. Documentação Nessa primeira etapa, o cartório requisitará dos noivos uma série de documentos, de acordo com o Código Civil. Assim é que deverão ser apresentados, por cada nubente, certidão de nascimento; declaração de estado civil, domicílio e residência dos contraentes e seus pais; autorização dos responsáveis, se forem menores de 18 anos; declaração de duas testemunhas capazes, que atestem não haver impedimentos matrimoniais; atestado de óbito ou certidão de divórcio, conforme seja um dos noivos viúvo ou divorciado etc. A apresentação dos documentos deverá ser feita pessoalmente pelos noivos. Apresentados e verificados os documentos, inicia-se a segunda etapa, qual seja, os proclamas. b. Proclamas É o edital, que será afixado por quinze dias no mural do cartório, após a apresentação dos documentos. O objetivo dos proclamas é o de comunicar ao público em geral a intenção dos noivos de contrair núpcias. Assim, qualquer pessoa poderá opor-se ao casamento, se souber de algum impedimento. Para tanto, basta apresentar-se perante o oficial do Registro e provar a existência do impedimento. Os proclamas serão também publicados em jornal local, se houver. Entregues os documentos com o requerimento de habilitação, o processo será encaminhado ao Ministério Público, que sobre ele opinará. Havendo impugnação do Ministério Público ou do próprio oficial do Registro, a habilitação será submetida ao juiz. Caso contrário, não. O juiz poderá dispensar os proclamas, em caso de urgência (por exemplo, enfermidade de um dos nubentes). Para tanto, é necessário requerê-lo e apresentar prova da urgência. O Ministério Público será ouvido. Os proclamas, como visto, ficarão afixados no mural do cartório durante quinze dias. Para a publicação dos proclamas não é necessário se esperar o parecer do Ministério Público nem a homologação judicial, uma vez que o art. 1.527 exige apenas que os documentos estejam em ordem. Após o período de publicação dos proclamas, e homologada a habilitação pelo juiz, será emitido o certificado de habilitação para o casamento. c. Certificado O certificado de habilitação para o casamento será emitido com o encerramento dos proclamas e após a homologação judicial. Terá validade de 90 dias, após os quais caducará, perdendo sua validade. Em outras palavras, os noivos terão 90 dias para celebrar suas núpcias. Se este prazo transcorrer in albis, ou seja, sem que se celebre o casamento, o certificado perderá a validade e o processo de habilitação deverá ter início outra vez. d. Registro O processo de habilitação se encerra realmente com o registro dos editais (proclamas) no cartório que os haja publicado. 3.7 Impedimentos matrimoniais Impedimentos matrimoniais são causas que tornam o casamento impossível para ambos ou um só dos noivos. Há impedimentos de duas categorias. A primeira categoria congrega os chamados impedimentos dirimentes. Por que dirimentes? Porque impedem a realização do casamento e, se por acaso ele ocorrer, torna- o inválido, pondo-lhe fim. Os impedimentos dirimentes podem ser públicos ou privados. A segunda categoria é a dos impedimentos meramente impedientes. Impedientes porque impedem a realização do casamento; mas se ele por acaso ocorrer, será válido, sofrendo sanção indireta, que veremos mais adiante. O Código Civil denomina estes impedimentos impedientes de causas suspensivas do casamento, uma vez que apenas suspendem a capacidade nupcial. Cessado o impedimento, o casal poderá convolar núpcias normalmente. Estudemos cada uma dessas categorias. a. Impedimentos dirimentes a.1 Impedimentos dirimentes públicos Incesto – Incesto é união entre certos parentes. Para o Direito, é considerada incestuosa a união dos parentes em linha reta, ou seja, pais, avós, bisavós, filhos, netos, bisnetos etc. Estes parentes não podem se casar entre si, ainda que o parentesco seja por adoção, uma vez que os filhos adotivos se equiparam aos filhos consanguíneos. A mesma proibição se estende ao casamento entre o adotado e o ex-cônjuge do adotante e ao casamento entre o adotante e o ex-cônjuge do adotado. Tampouco podem casar-se os afins em linha reta como, por exemplo, o sogro com a nora, a sogra com o genro, ainda que sejam viúvos ou divorciados. Também se considera incestuoso o casamento entre irmãos, mesmo que um deles ou ambos tenham sido adotados. Por fim, os parentes em linha colateral até o terceiro grau, inclusive, isto é, tios e sobrinhos, não podem contrair núpcias. Há quem entenda que continue valendo o Dec.-lei 3.200/1941, no que diz respeito à possibilidade de colaterais de terceiro grau se casarem. De fato, o referido Decreto-lei passou a permitir o casamento desses parentes, reformando o Código Civil de 1916, que o proibia expressamente. Ocorre que, com o Código civil de 2002, a proibição se renovou, também de forma expressa. Alegam os defensores da vigência do Decreto-lei, que não teria sido revogado, nem de forma expressa, nem de forma tácita. Efetivamente, não houve revogação expressa. Mas não teria havido revogação tácita, naquilo em que contrarie o Decreto-lei? O argumento desses autores, para embasar uma resposta negativa é o princípio da especialidade. Sendo o Código Civil norma geral, e o Dec.-lei 3.200, norma especial, aplicar-se-ia o segundo, em detrimento do primeiro. De fato, o Dec.-lei 3.200/1941 destina-se à proteção e à organização da família, sendo, sem dúvida nenhuma, norma especial. E de fato não foi revogado expressamente pelo Código Civil de 2002, nem por qualquer outra lei posterior a 1941. A questão gira em torno de saber se teria havido revogação tácita, uma vez que o Código de 2002 é incompatível com o Dec.-lei 3.200 nesse particular. Aplicar-se-ia, in casu, o princípio da especialidade? Não seria o Código Civil, nesse ponto específico, norma tão especial quanto o referido Decreto-lei? O entendimento da doutrina majoritária é em sentido negativo, ou seja, o Dec.-lei 3.200/1941 é norma especial em relação ao Código Civil e, consequentemente, continua em vigor, pelo princípio da especialidade. Esse foi, inclusive, o teor do Enunciado 98 da I Jornada de Direito Civil do Centro de Estudos do Conselho da Justiça Federal. Sendo assim, é possível o casamento de tios e sobrinhos, parentes colaterais em terceiro grau. É o denominado casamento avuncular, do latim avunculus (tio por parte de mãe).16 Tendo em vista não só o princípio da especialidade, mas também o da autonomia privada, que deve prevalecer na esfera familiar, principalmente quando não contrarie norma deordem pública, e, além disso, tendo em vista nossos costumes secularmente reiterados, entendo, juntamente com a maioria, ser admissível o dito casamento avuncular. Há que respeitar, todavia, a norma do Dec.-lei 3.200/1941 que dispõe ser necessária autorização do juiz competente para a habilitação, que deverá nomear dois médicos de reconhecida capacidade, isentos de suspeição, para examinar e atestar a sanidade dos noivos, afirmando não haver inconveniente, sob o ponto de vista da saúde de qualquer deles e da prole, na realização do matrimônio. Se os dois médicos divergirem quanto à conveniência do matrimônio, poderão os nubentes, conjuntamente, requerer ao juiz que nomeie terceiro, como desempatador. Sempre que, a critério do juiz, não for possível a nomeação de dois médicos idôneos, poderá ele incumbir do exame um só médico, cujo parecer será conclusivo. Sempre que, na localidade, não se encontrar médico que possa ser nomeado, o juiz designará profissional de localidade próxima, aonde deverão se dirigir os nubentes. O exame médico será feito extrajudicialmente, sem qualquer formalidade, mediante simples apresentação do requerimento despachado pelo juiz. O exame poderá concluir não apenas pela declaração da possibilidade ou da irrestrita inconveniência do casamento, mas ainda pelo reconhecimento de sua viabilidade em época ulterior, uma vez feito, por um dos nubentes ou por ambos, o necessário tratamento de saúde. Nesta última hipótese, provando a realização do tratamento, poderão os interessados pedir ao juiz que determine novo exame médico. O atestado será entregue aos interessados, não podendo qualquer deles divulgar o que se refira ao outro. Quando o atestado dos dois médicos, havendo ou não desempatador, ou do único médico, concluir pela possibilidade do matrimônio, poderão os interessados promover o processo de habilitação, apresentando, com o requerimento inicial, a prova de sanidade, devidamente autenticada. No entanto, se o atestado declarar a inconveniência do casamento, prevalecerá, em toda a plenitude, o impedimento matrimonial. Se algum dos nubentes, para frustrar os efeitos do exame médico desfavorável, pretender habilitar-se, ou habilitar-se para casamento, perante outro juiz, incorrerá na pena do art. 237 do CP, que se refere, exatamente, ao crime de contrair núpcias, na ciência de impedimento dirimente público. A pena é de detenção de três meses a um ano. De toda forma, o ideal, para dirimir qualquer dúvida, será alterar a redação do inc. IV do art. 1.521 do CC, a fim de adaptá-lo ao Dec.-lei 3.200/1941 e aos costumes nacionais. Bigamia – Não se podem casar as pessoas já casadas. Homicídio – Ninguém poderá casar-se com quem quer que lhe tenha matado (ou tentado matar) o cônjuge. Por exemplo: João e Maria são casados. Se José mata João, Maria e José não podem se casar. Para que valha o impedimento, o autor do homicídio ou tentativa deverá ter sido por tal condenado criminalmente. a.2 Impedimentos dirimentes privados Os impedimentos dirimentes privados, apesar de não constarem da lista de impedimentos do art. 1.521, que trata apenas dos impedimentos dirimentes públicos, continuam a ser causas impeditivas do casamento, além de o inquinarem de defeito leve, caso venha a ocorrer. Estão previstos no art. 1.550 do CC, dentre as causas que viciam o casamento de defeito leve. Coação – Ninguém poderá casar-se sob coação, seja ela física ou moral. Denunciada a coação, o casamento não se realizará. Incapacidade absoluta ou ausência de idade mínima – A Lei impõe idade mínima para o homem e a mulher se casarem. Tanto um como a outra deverão contar, no mínimo, 16 anos. Abaixo dessa idade, não haverá casamento, nem mesmo com o consentimento dos pais. Somente o juiz poderá consentir, e mesmo assim no caso de gravidez da menor. O Código Civil se refere também à possibilidade de se autorizar o casamento do menor de 16 anos, para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal. Ocorre que o atual Código Penal não mais prevê esta hipótese, o que torna letra morta o disposto na Lei Civil (art. 1.520). Antigamente, ao juiz era concedido o poder de determinar a separação de corpos do casal, mesmo quando autorizasse o casamento, se assim entendesse adequado, a fim de salvaguardar a boa moral do menor. Hoje em dia, essa medida soaria mesmo ridícula; ou bem o juiz autoriza o casamento, ou bem não o autoriza. Se o autorizar, que seja plenamente, por óbvio. Incapacidade (relativa) – Até os 16 anos, a mulher e o homem não podem casar-se, como regra. Mas e entre essa idade e os 18 anos? Poderiam eles contrair núpcias? A resposta é afirmativa. Podem, desde que obtenham o consentimento dos pais ou do tutor. Sem este consentimento, serão considerados impedidos por incapacidade para consentir. Basta a autorização do pai ou da mãe, que exercem solidariamente o poder familiar. Se um consentir e o outro discordar, o caso poderá ser decidido judicialmente. São também incapazes de contrair matrimônio as pessoas que não consigam, por problemas mentais, manifestar seu consentimento. Neste caso, diante das alterações sofridas pelo regime das incapacidades, em 2015, o defeito será leve, mesmo se a enfermidade mental comprometer, radicalmente, o discernimento para os atos da vida civil. O Estatuto da Pessoa com Deficiência revogou expressamente o inc. I do art. 1.548 do CC. Além disso, por força do mesmo Estatuto, dispõe o § 2.º do art. 1.550 do CC, que a pessoa com deficiência mental ou intelectual em idade núbia poderá contrair matrimônio, expressando sua vontade diretamente ou por meio de seu responsável (pais ou tutor) ou curador. De acordo com o art. 1.518 do CC, os pais ou o tutor podem revogar a autorização, desde que antes da celebração do casamento. O curador não possui mais esse poder. Seria o caso de recorrer à Justiça, se entender que as núpcias não devam mais se convolar. Se um dos noivos se fizer representar por procurador, cessará a capacidade de representação, se o mandato for revogado. Neste caso, o mandatário não terá poderes para representar o noivo mandante, e o casamento poderá ser impedido de se realizar.17 Incompetência da autoridade celebrante – Não sendo o celebrante autoridade civil ou religiosa competente, o casamento poderá ser impedido de se realizar. A autoridade civil competente é o juiz de paz ou juiz de casamentos. A autoridade religiosa será o ministro de religião organizada e reconhecida. b. Impedimentos impedientes Os impedimentos impedientes, como vimos, são tratados como causas suspensivas do casamento, uma vez que, quando deixam de existir, possibilitam a realização das núpcias. Apesar disso, continuam a ser causas impeditivas do casamento, pelo que deles cuidaremos sob este nome, já consagrado pela doutrina.18 Não concordamos com a tese de que, recebendo o nome de causas suspensivas, não mais impediriam a realização do casamento. Obstam, sim, “à realização do casamento, mas podem deixar de ser aplicadas por autorização judicial, e, de qualquer forma, ainda que infringidas, não constituem motivo para invalidação do ato”.19 Confusão de patrimônios – Está impedida para o casamento a pessoa viúva que não houver partilhado os bens conjugais com os filhos do defunto. O mesmo se diga da pessoa divorciada, enquanto não for efetuada a partilha dos bens do casal. A norma visa evitar que o patrimônio de um casamento se misture com o do subsequente. Confusão de sangue – A mulher cujo casamento tenha sido anulado ou que se tenha enviuvado não poderá convolar novas núpcias antes de dez meses da anulação ou da viuvez. O objetivo é o de evitar que a mulher se case grávida do antigo marido e que o filho venha a ser tido como se fosse do segundo. Contas da tutela ou curatela – Terminando a tutela ou curatela, tanto o tutor quanto o curador devem prestar contas ao juiz e ao Ministério Público. Antes de aprovadas essas contas, estarão impedidos de se casar com o antigo pupilo ou curatelado. A proibição se estende aos ascendentes, descendentes, irmãos, cunhados e sobrinhosdo tutor e do curador. Em qualquer destes casos, ou seja, diante de qualquer um destes impedimentos, poderão os nubentes solicitar ao juiz permissão para o casamento, provando que este não importará prejuízo para o herdeiro, para o ex-cônjuge e para o pupilo ou curatelado. No caso da confusão de sangue, a mulher deverá provar a inexistência de gravidez. c. Oposição dos impedimentos Opor impedimento é apontar uma das causas vistas acima, a fim de ensejar a autoridade competente, seja o oficial do Registro, seja o Ministério Público, seja o juiz ou o celebrante a cancelar o processo de casamento. O impedimento é, assim, oposto antes ou durante a cerimônia nupcial. Uma vez que esta se conclua, o casamento estará realizado, devendo ser anulado, se for o caso. Para melhor estudar a oposição dos impedimentos, respondamos a algumas perguntas. 1.ª) Quem pode opor os impedimentos? Os impedimentos dirimentes podem ser opostos por qualquer pessoa, inclusive de ofício pelo oficial do Registro. O Ministério Público e o juiz também deverão se pronunciar de ofício, uma vez que a eles cabe, respectivamente, proferir parecer e homologar a habilitação para o casamento. Já os impedimentos impedientes só poderão ser opostos pelos parentes em linha reta, seja o parentesco consanguíneo ou civil,20 pelos afins em linha reta, pelos irmãos e cunhados e pelo ex-marido para evitar a turbatio sanguinis (confusão de sangue). Na verdade, o direito do ex-marido é deduzido por interpretação lógica, uma vez que a Lei é omissa a respeito. 2.ª) Quando opor os impedimentos? Na fase dos proclamas, junto ao oficial do Registro Civil. A oposição também será lícita durante a cerimônia nupcial, quando o impedimento será oposto ao celebrante, seja ele o juiz de paz ou o ministro religioso. 3.ª) Como opor os impedimentos? Com base no princípio do contraditório e da ampla defesa, além do princípio da boa-fé, pelo qual se deverá pautar a conduta do oponente, devem ser obedecidos alguns requisitos para a oposição dos impedimentos. O oponente deverá apresentar-se em pessoa, sendo devidamente qualificado. Não é admitida oposição anônima. As alegações serão reduzidas a escrito, devendo o documento ser, em seguida, assinado pelo oponente. É isto que garantirá aos noivos a possibilidade de se defenderem. O oponente deverá provar que é maior e capaz, uma vez que a oposição de impedimento é ato da vida civil. Também deverá provar o que estiver alegando, ou indicar o local onde se encontra a prova. Caso se trate de impedimento impediente, o oponente deverá provar que é pessoa habilitada a realizar a oposição. O escrivão ou celebrante dará aos nubentes a nota do impedimento, com a informação de quem o opôs, bem como a indicação do fundamento e das provas, não se emitindo o certificado de habilitação ou suspendendo a cerimônia. Esta é norma derivada dos princípios do contraditório e da ampla defesa. Aos noivos caberá apresentar prova contrária ao impedimento, perante o juiz competente, que decidirá a questão, em processo judicial próprio. Além disso, poderão os nubentes tomar medidas civis reparatórias e criminais contra o oponente leviano ou de má-fé. 3.8 Celebração do casamento De posse do certificado de habilitação para o casamento, os noivos estarão aptos a requerer ao juiz de paz ou ao ministro religioso que lhes marquem dia, hora e local para que se realize a cerimônia nupcial. A cerimônia ocorrerá a portas abertas, ainda que em casa particular. Deverão estar presentes os noivos e mais duas testemunhas. Serão quatro se em casa particular e se um dos nubentes não souber ou não puder escrever. O celebrante deverá interrogar a cada um dos noivos se é de sua vontade livre receber o outro em casamento. A resposta, seja positiva ou negativa, deverá ser em alta voz. Se positiva, será pura e simples. Em poucas palavras, não se admite aceitação condicional; é sim ou não; não se pode aceitar sob certa condição. Se a resposta for negativa, a cerimônia ficará suspensa, podendo aquele que disse não se retratar vinte e quatro horas depois, quando nova cerimônia se celebrará. Pronunciado o “sim” por ambos os nubentes, o celebrante proferirá a fórmula do art. 1.535 do CC, dando os noivos por casados. Há casos em que a cerimônia deverá ser suspensa. São, a saber, três. Em primeiro lugar, quando houver oposição séria de algum impedimento. Em segundo lugar, quando um dos noivos disser não ou ficar calado diante da pergunta feita pelo celebrante, se seria de seu desejo casar-se com o outro. Por fim, se um dos responsáveis pelo incapaz (pais ou tutor), retirar sua autorização, o que pode ocorrer até o último minuto, antes que o celebrante declare os noivos casados. Celebrado o matrimônio, será lavrado o assento do casamento no livro de registro. Neste assento, que seria uma espécie de ata do casamento, deverá constar a assinatura dos cônjuges, do celebrante, do oficial do Registro e das testemunhas, além do nome, profissão, data de nascimento e endereço dos cônjuges, de seus pais e das testemunhas; a data da publicação dos proclamas e da celebração do casamento; a relação dos documentos apresentados ao oficial do Registro e, por fim, o regime de bens do casamento. Deste livro de registro em que se lavrou o assento, será extraída a chamada certidão de casamento. O casamento poderá ser celebrado mesmo ausente um ou ambos os nubentes. Neste caso, o ausente deverá conferir procuração a alguém, outorgando-lhe poderes especiais para convolar núpcias em seu nome. Este procurador comparecerá à cerimônia, representando o noivo ausente. Caso um dos noivos se encontre gravemente adoentado, o celebrante comparecerá ao local em que estiver e celebrará as núpcias perante duas testemunhas que saibam ler e escrever. A falta ou impossibilidade da autoridade competente para a celebração poderá ser suprida por qualquer um de seus substitutos legais. A falta do oficial do Registro será suprida por outro, nomeado ad hoc pelo celebrante. O termo do casamento assim celebrado será registrado e arquivado em cinco dias, perante duas testemunhas. Enfim, resta falar do casamento nuncupativo. Em alguns casos, há urgência na celebração do casamento. Um dos noivos pode estar em seus últimos momentos de vida, por exemplo. Nesses casos, qualquer pessoa está autorizada a celebrar a cerimônia nupcial, desde que presentes seis testemunhas, as quais não podem ser parentes em linha reta nem irmãos dos noivos. Celebrado o casamento, contar-se-á o prazo de dez dias, dentro do qual será instaurado processo judicial, para o fim de ser o casamento confirmado pelo juiz (art. 76 da Lei de Registros Públicos), que ouvirá as testemunhas e verificará se não há impedimento nupcial. A sentença que julgar procedente o pedido de confirmação será transcrita no Livro de Registro de Casamentos, do qual se extrairá a certidão de casamento. O casamento assim celebrado se denomina nuncupativo. 3.9 Prova do casamento A prova do casamento pode ser direta ou indireta. Direta e cabal é a prova que se constitui da certidão de casamento, extraída do livro em que se lavrou o assento. Mas e se a certidão e o livro de registro se perderem? O cartório pode não estar informatizado e vir a pegar fogo, por exemplo. Nesses casos, é admitido que se prove o casamento por qualquer meio lícito e moral. Pode-se prová-lo, por exemplo, com a certidão de nascimento dos filhos, em que consta serem os pais casados; por intermédio de testemunhas, principalmente as que atuaram como testemunhas nupciais, vulgarmente denominadas padrinhos de casamento; ou através de qualquer outro meio de prova admitido em Direito (art. 212 do CC). A prova indireta é concedida a todos os interessados que possam se beneficiar da existência do casamento (filhos, netos ou outros herdeiros, por exemplo). É admitida esta prova quando o casal for falecido, quando sofrerem ambos de enfermidade mental ou quando se acharem ausentes, desde que a ausência tenha sido declarada judicialmente. Nestes casos, não dispondo os interessadosda certidão de casamento, nem de nenhum meio de obtê-la, poderão fazer a prova de que o casal era casado pela chamada posse do estado de casados. Possuem estado de casados aquelas pessoas que atendam a três requisitos: nome, tratamento e fama – nomen, tractatus, fama. Por outros termos, a mulher usa o sobrenome do marido, ou um usa o nome do outro; ambos se dispensam, de forma pública, o tratamento de casados e gozam junto à sociedade da fama de casados. Preenchidas as três condições, pode-se dizer que o casal tem a posse de estado. Os interessados podem, então, fazer uso dessa posse de estado para provar que o casal era casado, obtendo com isso os benefícios que a Lei conferir. Hoje em dia, depois que a Constituição de 1988 equiparou os filhos, tenham eles vindo à luz na constância do casamento ou não, perdeu o sentido a prova do casamento pela posse do estado de casados, pelo menos para fins de proteção aos filhos. 3.10 Efeitos do casamento O principal efeito do casamento, até a Constituição de 1988, era o de constituir família legítima ou de legitimá-la, se já existisse. Com o advento da nova Lei Magna, a família se desvinculou do casamento, dele não necessitando para se considerar legítima. A mesma postura adotou o Código Civil de 2002. Não obstante, o casamento continua produzindo outros efeitos. Dentre eles podemos destacar, na esfera pessoal: a) fidelidade recíproca – o adultério, embora não mais seja tipificado como crime pela Lei Penal, continua sendo ilícito civil, na esfera matrimonial. Segundo Luiz Felipe Brasil Santos, “o dever de fidelidade recíproca (inc. I do art. 1.566) é transgredido não apenas pela prática do adultério (art. 1.573, I), como também por meio do chamado quase adultério e da infidelidade virtual. Como notório, adultério somente se configura quando há prova segura das relações sexuais mantidas por um dos cônjuges com terceiro. Entretanto, não havendo comprovação cabal desse fato, poderá vir a se caracterizar o quase adultério, que consiste na demonstração de circunstâncias que apontem veementemente para a ocorrência do adultério, que, no entanto, não fica confirmado pela ausência do flagrante. A inseminação artificial heteróloga (art. 1.597, V) sem o consentimento do cônjuge não caracteriza adultério, por ausente o pressuposto da relação sexual, mas sim injúria grave. Por fim, muito em voga, na atualidade, a prática da infidelidade virtual, por meio de correspondência eletrônica (especialmente por meio de chats), o que, mesmo não chegando a culminar na realização do ato sexual, caracterizará a infidelidade virtual, por alguns indevidamente denominada de adultério virtual”;21 b) cada um poderá acrescer ao seu o sobrenome do outro; c) vida em comum no domicílio conjugal, que não é mais fixado pelo marido, mas pelo casal; d) planejamento familiar, mormente no que toca à procriação. Será ele de livre decisão do casal. Neste ponto, o Código deixa clara sua tendência assistencialista, bem típica do Estado Social, dispondo que ao Poder Público incumbe propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício deste direito. Na verdade, afasta-se com isso o princípio da paternidade responsável, segundo o qual os pais são responsáveis por seus filhos, sua educação e necessidades outras. Ao Estado incumbe tão somente promover uma política de educação, no sentido de instruir as pessoas para o exercício desse modelo de paternidade. Seria do Estado a responsabilidade de sustentar os filhos de pais insensatos, que procriam da maneira mais leviana, ao modo dos animais? É evidente que não. Mesmo porque a experiência histórica vem demonstrando que o assistencialismo não resolve os problemas sociais. Assim, é dever do Estado promover a paternidade responsável por meio de políticas educacionais adequadas. Mais uma vez, pode dizer-se, o Código deve ser interpretado não literalmente, mas de acordo com o paradigma do Estado Democrático de Direito, que não deve promover um assistencialismo canhestro e ineficaz. O § 2.º do art. 1.565, ao tratar do planejamento familiar, focaliza apenas a família formada a partir do casamento. O entendimento corrente, no entanto, é o de que, por analogia, esta norma se aplica à união estável. Esse, inclusive, foi o entendimento esposado no Enunciado 99 da I Jornada de Direito Civil do Centro de Estudos do Conselho da Justiça Federal; e) mútua assistência; f) sustento, guarda e educação dos filhos, se bem que este efeito subsista como dever dos pais, mesmo sem casamento. Seria mais efeito da paternidade, embora não deixe de ser também do casamento. Na esfera patrimonial, os principais efeitos do casamento são: a) assistência pecuniária recíproca e aos filhos. A assistência pecuniária aos filhos é mais efeito da paternidade do que do casamento; b) usufruto dos bens dos filhos menores sob poder familiar. Este também é efeito da paternidade, mais que do casamento, ou seja, ainda que os pais não sejam casados, terão direito ao dito usufruto; c) direitos sucessórios, de que trataremos no próximo capítulo; d) direito real de habitação do cônjuge viúvo sobre o imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único bem imóvel residencial inventariado. A este tema voltaremos mais adiante, quando cuidarmos da sucessão do cônjuge ou companheiro. Quanto aos direitos e deveres dos cônjuges, existe hoje regra geral, instituída pela Constituição de 1988 e pelo Código Civil de 2002. Segundo ambos os diplomas, marido e mulher têm os mesmos direitos e deveres. Foi extinta, assim, a figura do “cabeça” do casal, do chefe da família, do paterfamilias. Toda norma que atente contra esse princípio da igualdade está tacitamente revogada. Observemos, porém, que às vezes a Lei dá tratamento desigual ao homem e à mulher, exatamente para igualá-los, respeitadas suas diferenças naturais. A administração da vida conjugal se baseia, pois, no princípio da igualdade e da solidariedade. Dessarte, qualquer um dos cônjuges pode praticar todos os atos necessários para essa administração, independentemente da autorização do outro. Nesses atos se incluem: a) comprar, ainda que a crédito, as coisas necessárias à economia doméstica, bem como obter empréstimos para a aquisição destas coisas (pelas dívidas assim contraídas respondem ambos os cônjuges solidariamente); b) praticar todos os atos de disposição e administração para o desempenho de suas atividades profissionais; c) administrar os próprios bens; d) reivindicar os bens imóveis gravados ou alienados sem sua autorização; e) rescindir os contratos de fiança, doação ou aval praticados de forma ilegítima pelo outro cônjuge; f) reivindicar os bens comuns, móveis ou imóveis, doados pelo outro cônjuge a seu amante. Se o casal estiver separado de fato, será permitido que cada um deles constitua união estável. Tendo a separação de fato mais de cinco anos, o cônjuge reivindicante deverá provar que os bens reivindicados não foram adquiridos pelo esforço comum dos companheiros. Alguns atos, porém, os cônjuges não podem praticar sem a autorização do outro. Esta autorização se chama outorga uxória,22 se da mulher ao marido, e outorga marital, se do marido à mulher. Genericamente, pode dizer-se vênia ou outorga conjugal. É o que seria adequado nos casamentos gays. Assim, à exceção do regime de separação de bens, em todos os demais regimes, um não pode sem autorização do outro: a) alienar, hipotecar ou gravar de ônus real os bens imóveis ou direitos reais sobre imóveis alheios (a pena é a anulabilidade, podendo o outro pleitear a anulação até dois anos após o término da sociedade conjugal); b) pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens e direitos; c) prestar fiança ou aval (entende-se, neste caso, que a fiança ou o aval não são anuláveis, mas os bens do casal só respondem até a meação. Em outras palavras, se o marido prestar fiança sem a devida vênia uxória, só responderão seus bens pessoais e a metade dos bens comuns. Os bens da mulher não responderão. Conferida a outorga, responderia o patrimônio do casal
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