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PRÁTICAS DE LEITURA NA ALFABETIZAÇÃO DE CRIANÇAS: O que dizem os livros didáticos? O que fazem os professores? MARÍLIA DE LUCENA COUTINHO PRÁTICAS DE LEITURA NA ALFABETIZAÇÃO DE CRIANÇAS: O que dizem os livros didáticos? O que fazem os professores? Dissertação apresentada ao curso de Mestrado em Educação, do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Educação. Orientadora: Profª Drª Eliana Borges Correia de Albuquerque RECIFE 2004 AGRADECIMENTOS A minha orientadora, Eliana: Gostaria de fazer um agradecimento muito especial, não apenas pelo constante interesse, incentivo, confiança em mim e neste trabalho, mas, principalmente, pela incrível disponibilidade, não importando a “hora nem o local” dos nossos encontros acadêmicos, mesmo que isso lhe tomasse o tempo de estar com os seus familiares. A Luiz e à pequena Alice, meus agradecimentos, mas, também, minhas desculpas por ter “roubado” tanto Eliana de vocês! A Yarany, por ter me recebido de portas abertas em sua sala, pela disponibilidade de sempre, pela confiança, por ter compartilhado comigo oito meses de muita aprendizagem e por ter se tornado uma grande parceira. A Conceição, por ter aceitado participar desta pesquisa, demonstrando confiança no trabalho de uma pesquisadora ainda iniciante, o que possibilitou que eu conhecesse mais de perto seu ótimo trabalho como professora. A Luziara, que, muito embora não tenha sido citada nesta pesquisa, me recebeu, sempre com muita atenção e cuidado, em sua sala de aula, ajudando- me a conhecer melhor o seu cotidiano, não muito diferente do de muitas professoras de nossas escolas. Ao Colégio Marista São Luís, representado por Tereza Cahú, Ir. Ailton, Lucrécia e Ana Cristina, pela compreensão nos momentos de ausência e pelo incentivo para que eu participasse de atividades que, muitas vezes, aconteciam no período das aulas. A Jô, especialmente, pelo incentivo na participação de congressos, capacitações, bem como pelo cuidado da organização dos horários para que eu pudesse freqüentar as aulas no Curso de Mestrado. A Tânia, pelos momentos em que esteve em minha sala, assumindo tão bem a função de professora, para que eu pudesse me afastar, mais tranqüilamente. Aos meus amigos Marcus, Bel, Heise e, em especial, Rose e Andréa, que compartilharam, de perto, as angústias e “delícias” vividas durante a realização deste trabalho. A Jaque, grande incentivadora para a realização deste Curso de Mestrado: leitora atenta do anteprojeto e que, com muito interesse, “descobriu” um orientador interessado na minha pesquisa. Aos alunos das professoras observadas e, sobretudo, aos meus alunos, por todo o carinho demonstrado no dia-a-dia, através de sorrisos e dos constantes bilhetinhos de “amor”, que me fazem sentir como é bom ser “professora de crianças”. A Alda, por todo apoio e paciência que teve comigo. A Dalmo, pelo “orgulho” em ter uma namorada que fazia mestrado, pela compreensão nos momentos de minhas faltas e, principalmente, pela paciência, cuidado, perfeccionismo e maravilhosas sugestões feitas no momento da formatação desta dissertação. A minha mãe, por sempre ter acreditado no meu potencial, por ter ficado ao meu lado nos momentos mais difíceis de minha vida e por ter sido grande incentivadora em minha trajetória pessoal e profissional. A meu pai, que, mesmo estando distante, nunca deixou de estar próximo, incentivando-me, orgulhando-se de minhas conquistas e me considerando uma professora “especial”. A Bruno, meu irmão, que mesmo à distância esteve sempre interessado em entender e conhecer o que eu fazia, torcendo para o meu sucesso. LISTA DE TABELAS E GRÁFICOS Tabela 1 – Freqüência e Percentagem de Atividades de Leitura...... 70 Gráfico 1 – Atividades de leitura/Projetos........................................... 70 Tabela 2 – Freqüência e Percentagem de Materiais Textuais por Unidade/Projeto............................................................... 74 Gráfico 2 – Material Textual/Por projeto............................................. 75 Tabela 3 – Freqüência e Percentagem dos Modos de Leitura por Unidade/Projeto............................................................... 81 Gráfico 3 – Orientações para leitura/projeto...................................... 81 Tabela 4 – Explicitação dos Gêneros nas Atividades de Leitura por Unidade/Projeto............................................................... 87 Gráfico 4 – Orientação para leitura por gêneros/projetos................... 87 Tabela 5 – Explicitação das Finalidades de Leitura por Unidade/Projeto............................................................... 91 Gráfico 5 – Finalidades de leitura/projetos......................................... 91 Tabela 6 – Freqüência de Estratégias de Leitura por Unidade/Projeto............................................................... 94 Gráfico 6 – Estratégias de leitura/projetos........................................ 94 Tabela 7 – Atividades de Apropriação do Sistema de Escrita Alfabético......................................................................... 100 Gráfico 7 – Atividades de Apropriação do Sistema de Escrita Alfabético/ Projetos.......................................................... 101 Tabela 8 – O Que se Lia na Sala de Aula de Yarany (total de 22 aulas observadas)........................................................... 152 Gráfico 8 – Divisão de atividades Yarany........................................... 153 Tabela 9 – O Que se Lia na Sala de Aula de Conceição (total de 7 aulas observadas............................................................. 156 Gráfico 9 – Divisão de Atividades Conceição..................................... 156 Tabela 10 – Para Que se Lia na Sala de Aula de Yarany................... 160 Gráfico 10 – Objetivos de Leitura Yarany............................................. 160 Tabela 11 – Para Que se Lia na Sala de Aula de Conceição.............. 167 Gráfico 11 – Objetivos de Leitura Conceição....................................... 167 Tabela 12 – Quem Lia na Sala de Aula de Yarany.............................. 172 Gráfico 12 – Modos de Leitura Yarany................................................. 172 Tabela 13 – Quem Lia na Sala de Aula de Conceição........................ 176 Gráfico 13 – Modos de Leitura Conceição........................................... 176 SUMÁRIO AGRADECIMENTOS LISTA DE TABELAS E GRÁFICOS SUMÁRIO RESUMO ABSTRACT INTRODUÇÃO........................................................................................... 12 CAPÍTULO 1 – MARCO TEÓRICO......................................................... 16 1.1 – Transposição Didática........................................ 17 1.2 – A Construção dos Saberes na Ação................... 20 1.3 – A Fabricação do Cotidiano................................. 23 1.4 – Concepção de Língua/Linguagem...................... 26 1.5 – Alfabetização e letramento................................. 30 1.6 – Ensino de Leitura e as Estratégias de Leitura.... 38 1.7 – Algumas reflexões sobre as mudanças nos livros didáticos de alfabetização......................... 42 1.8 – Objetivos............................................................. 50 1.8.1 – Objetivo Geral...................................... 50 1.8.2 – Objetivos Específicos........................... 50 CAPÍTULO 2 – METODOLOGIA E TRATAMENTO DOS DADOS......... 52 2.1 – Sujeitos................................................................53 2.2 – Procedimentos Metodológicos............................ 57 2.2.1 – Observação das aulas......................... 57 2.2.2 – Análise documental.............................. 58 2.2.3 Entrevistas........................................ 58 2.3 – As professoras como leitoras.............................. 60 CAPÍTULO 3 – ANÁLISE DO LIVRO DIDÁTICO.................................... 65 3.1 – Apresentação do livro didático Letra, Palavra e Texto................................................................... 66 3.2 – O que os alunos lêem?....................................... 69 3.2.1 – Quais textos os alunos lêem?.............. 73 3.3 – Colaboração para a construção da leitura.......... 79 3.3.1 – Como os alunos lêem?........................ 79 3.3.2 – Com qual explicitação de gênero os alunos lêem?........................................ 85 3.3.3 – Para que os alunos lêem?................... 90 3.3.4 – Estratégias de leitura exploradas......... 93 CAPÍTULO 4 – ANÁLISE DO USO DO LIVRO ...................................... 104 4.1 Uso não seqüenciado do livro............................. 107 4.2 – Leitura dos textos das unidades trabalhadas e de alguns enunciados......................................... 108 4.3 – Exploração de estratégias de leitura................... 116 4.4 – Realização de atividades de apropriação do sistema de escrita propostas no livro.................. 128 4.5 – Realização de outras atividades de apropriação do sistema a partir do livro............................................... 136 4.6 – Contextualização das atividades do livro didático................................................................ 141 CAPÍTULO 5 – PRÁTICAS DE LEITURA NA ALFABETIZAÇÃO: além do livro d idático .................................................. 149 5.1 – O que se lia em sala de aula?............................. 150 5.2 – Para que se lia em sala de aula?........................ 159 5.3 – Quem lia?............................................................ 171 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................... 180 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................ 190 ANEXOS...................................................................................................... 195 RESUMO A presente pesquisa pretendeu investigar as práticas de leitura realizadas por duas professoras, que lecionavam no 1º ano do 1º ciclo do Ensino Fundamental, da Secretaria de Educação da Cidade do Recife. Buscamos analisar como as docentes construíam e desenvolviam as atividades de leitura na perspectiva do letramento e como o livro didático adotado pela Rede (Letra, Palavra e Texto) era utilizado por elas. Como procedimentos metodológicos, realizamos a análise do referido livro, fizemos entrevistas com as docentes e, também, observações semanais de suas práticas de ensino. A análise do livro constatou uma presença de um variado repertório textual, contemplando diferentes gêneros que circulam na sociedade, mas, em relação às atividades de leitura, muitas vezes não havia indicação de como o texto deveria ser lido e havia pouca exploração de estratégias de leitura. No entanto, no que diz respeito à dinâmica de sala-de-aula das professoras, ambas utilizavam o livro didático como um dos materiais de apoio à organização do trabalho pedagógico, mas, percebemos que, muitas vezes, elas re-construíam as atividades propostas, modificando-as ou mesmo acrescentando outras, de acordo com as necessidades de suas práticas. Essas modificações estavam relacionadas, sobretudo, com a necessidade de complementar as atividades do livro didático no que se referia à exploração de estratégias de leitura e à apropriação do sistema de escrita. Palavras-chave: alfabetização/letramento/livro didático/construção da prática/atividades de leitura ABSTRACT The following research has investigated the reading practices of two teachers during the first cycle of the first year of the fundamental level from “Secretaria de Educação da Cidade do Recife”. We have analysed how the teachers have constructed and developed the reading activities from the perspective of literacy and how the adopted book (Letra, Palavra e Texto) was used by them. As methodological procedures, we have analysed the referred book, interviewed the teachers and made weekly observations on their teaching practices. The book analyses have found a diversified textual repertory, with different genres that circulates among the society. Several times there were no instructions about how the reading practices should occur and almost no exploration of reading strategies. Referring to the class dynamics of the teachers, both of them have used the book as support material to organize the pedagogic work. Several times we also perceived that, they have reconstructed the purposed activities, modifying them and even adding new activities according to their necessities. Those modifications complemented the didactics books helping to explore reading, strategies and the appropriation of the writing. Key words: alphabetization/literacy/didactics books/practices construction/reading activities INTRODUÇÃO O Censo Escolar1 do ano de 2000 revelou que o fracasso escolar no 1º ano do 1º Ciclo do Ensino Fundamental, no estado de Pernambuco, representou cerca de 25%, ou seja, uma em cada quatro crianças repetiu a classe inicial, por não ter conseguido (na grande maioria dos casos) construir sua base alfabética. Mas, o que, exatamente, traduzem esses dados? Embora a escola tenha aumentado suas taxas de escolarização nos últimos anos, por qual motivo não consegue vencer o desafio de alfabetizar os alunos? As contribuições advindas das áreas educacional, sociológica, psicológica, lingüística e outras, apontaram que o fracasso escolar não mais poderia estar condicionado ao alunado, mas, sim, à própria escola, que se mostrou ineficiente na garantia de permanência e de sucesso dos alunos: os fracassos seriam “produzidos pela escola reprodutora” (MORTATTI, 1999, p. 262). Esse fracasso também teria relação direta com as práticas de leitura realizadas nas nossas escolas. 1 Censo Escolar 2000 – Estatística da Educação Básica 2000-CIBEC/INEP 13 Como bem coloca Côco (2001), as transformações ocorridas na humanidade em seu percurso rumo a uma sociedade do letramento, as implicações políticas na democratização do conhecimento e as relações sociais que se estabelecem, ratificam a leitura como componente da vida social. Lerner (1993) acrescenta que o atual desafio configura-se em combater a discriminação que a escola opera, não apenas quando gera o fracasso explícito daqueles que não conseguem se alfabetizar, mas, também, quando impossibilita aos outros – que aparentemente não fracassam – chegarem a ser leitores de textos competentes e de apropriarem-se da leitura como ferramenta essencial no progresso cognitivo e uso social. Vencer esse desafio implica gerar mudanças e levá-las à prática. Essa não é uma tarefa fácil para as escolas. Segundo Mortatti (1999), foi só a partir do final dos anos 80 e início da década de 90 que conclusões resultantes de investigações sobre o conhecimento e evolução psicogenética da aquisição da língua escrita surgiram no cenário educacional, fazendo uma verdadeira revolução conceitual, refutando as antigas práticas tradicionais de alfabetização, seus “métodos”, materiais didáticos utilizados e, principalmente, deslocando do eixo da discussão de como se ensina para como se aprende. Assim, o sujeito que aprende passou a ser visto comoum sujeito cognoscente, ativo e competente lingüisticamente, capaz de construir seu conhecimento na interação com o próprio objeto de conhecimento. Essa perspectiva de aprendizagem contribuiu também para o abandono de uma visão adultocêntrica do processo de alfabetização, da falsa idéia de que é o método que alfabetiza, que cria 14 conhecimento, que o professor é o único informante autorizado e que a atividade escolar deveria privilegiar o ensino em função da aprendizagem. As cartilhas, até então tidas como materiais de referência no processo de aquisição da leitura e escrita, foram amplamente criticadas e acabaram por cair em desuso, exatamente porque se mostraram inadequadas na irrelevância das informações que traziam, pela monotonia dos exercícios que propunham e pela falta de sentido nas atividades sugeridas. Novas questões, então, surgiram: Como realizar uma prática diferenciada? Que materiais utili zar? E mais, com qual ob jetivo ensinar a ler e escrever? Segundo Albuquerque (2002), mudanças na prática dos professores passaram a ser exigidas. Os documentos oficiais (propostas curriculares, por exemplo), como textos prescritivos, no geral, criticam as práticas tradicionais de alfabetização e propõem novas perspectivas teórico-metodológicas, embora não haja um consenso em relação às suas denominações e interpretações (MARINHO, 1998). Por outro lado, presenciamos, na última década, um processo de reformulação dos livros didáticos com vistas a contemplarem as novas perspectivas teóricas de alfabetização. Silva (1996) aponta-nos que a escola concebe o livro (didático ou não) como um instrumento básico, um complemento primeiro das funções pedagógicas exercidas pelo professor. Lajolo (1996) reafirma essa concepção e acrescenta que, apesar do livro didático não ser o único material de que os professores e alunos irão valer-se no processo de ensino-aprendizagem, ele pode ter muita influência na qualidade do aprendizado resultante das atividades 15 escolares, principalmente em nossa sociedade, uma vez que, no decorrer de sua utilização, o livro didático acabou determinando conteúdos, condicionando estratégias de ensino e marcando, de forma bastante incisiva, o que se ensina e como se ensina em nossas escolas. Logo, questionar os livros didáticos é questionar o próprio ensino que neles está cristalizado. Compreendendo a importância desse material e percebendo a necessidade urgente de serem feitas reformulações nos livros didáticos (pois muitos apresentavam trabalho bastante diferente do sugerido nas novas perspectivas de ensino, erros grosseiros, além de posições muitas vezes preconceituosas e discriminadoras), o MEC passou a desenvolver, desde 1995, o PNLD2, caracterizado pelo trabalho de análise e avaliação pedagógica dos livros didáticos das diferentes áreas de ensino, seguindo, como parâmetros, critérios cuidadosamente estabelecidos e de acordo com as novas perspectivas educacionais (ALBUQUERQUE, 2002). Dessa forma, este projeto propõe-se a analisar as práticas de leitura de professoras em turmas de alfabetização e como tais práticas relacionam-se com as orientações presentes nos livros didáticos recomendados pelo PNLD. 2 O Programa Nacional do Livro Didático é uma iniciativa do MEC e seus objetivos básicos são a aquisição e distribuição, universal e gratuita de livros didáticos para os alunos das escolas públicas do Ensino Fundamental. Desde 1995, esse objetivo foi ampliado e o PNLD passou, também, a avaliar os livros didáticos inscritos no programa. Em 1996 foi publicado o 1º Guia do Livro Didático, contendo pareceres e recomendações sobre os livros inscritos. CAPÍTULO 1 – MARCO TEÓRICO Pensamos ser importante, inicialmente, tomarmos como eixo de discussão a teoria da Transposição Didática, uma vez que, para analisar as práticas de ensino de leitura das professoras de língua portuguesa/alfabetização, precisaremos considerar as transformações ocorridas no ensino, nessa área, e em como elas estão sendo transpostas para os “textos do saber” (entre eles, o livro didático) e desses para a sala de aula. 1.1 – Transposição Didática Como forma de fazer chegar à escola as novas direções apontadas para o ensino de língua portuguesa, precisamos pensar em um processo de transformação de saberes, denominado por Chevallard (1991) de transposição didática. Essa teoria baseia-se na distinção entre o saber científico (saber “sábio”), o saber a ser ensinado (encontrado nos textos do saber) e o saber efetivamente ensinado. Nessa perspectiva, o saber científico, decorrente de resultados de pesquisas que a comunidade científica realiza, passa por um processo de 18 transformação de objetos de conhecimento em objetos de ensino- aprendizagem e, só então, eles são introduzidos no contexto escolar. Henry (1991) define o saber científico como o conjunto de conhecimentos socialmente disponíveis, que, geralmente, é encontrado em publicações científicas ou em comunicações reconhecidas pela comunidade e, como já havíamos citado anteriormente, até a chegada na sala de aula, transformações e adaptações alteram esse saber inicial. Segundo Chevallard (1991, p. 45): um conteúdo de saber, tendo sido designado como saber a ensinar, sofre então um conjunto de transformações adaptativas que vão torná-lo apto a tomar lugar entre os “objetos de ensino”. O trabalho que, de um objeto de saber a ensinar faz um objeto de ensino, é chamado de transposição didática. “No desenvolvimento de toda prática educativa, sempre se faz necessário estabelecer prioridades na condução dos procedimentos pedagógicos” (PAIS, 1999, p. 16). Um dos pontos também importantes trata da seleção dos conteúdos que constam nos programas escolares (ou, grades curriculares) e que têm como fonte original o saber científico. É importante salientarmos que não é a totalidade do saber científico que será ensinado na escola. O sistema social (também denominado de noosfera) encarrega-se de “indicar”, dentre os conhecimentos historicamente acumulados, aqueles que são pertinentes para o ensino. Essa indicação de pertinência vai depender de fatores diversos, tais, como: tipo de sociedade, contexto social, político e econômico, entre outros. 19 Sendo assim, é importante, segundo Pais (1999), deixar claro que os conteúdos escolares não podem ser considerados apenas como uma simplificação do saber científico: possuem linguagem, propósitos e objetivos absolutamente diferentes dos utilizados inicialmente. Henry (1991) acrescenta que, muitas vezes, da escolha do saber a ensinar até a sua adaptação ao sistema, é possível que se criem novos conhecimentos e é só a partir dessa adaptação que se pode determinar o conteúdo a ser ensinado. Lerner complementa: A escola tem por objetivo comunicar às novas gerações o conhecimento elaborado pela sociedade, então, o objeto de conhecimento – o saber científico ou as práticas que se tenta comunicar – converte-se em ‘objeto de ensino’. Ao transformar- se em objeto de ensino, o saber ou a prática para ensinar modificam-se: é necessário selecionar algumas questões em lugar de outras, é necessário privilegiar certos aspectos, tem- se que distribuir as ações no tempo, tem-se que determinar formas de organizar os conteúdos. Sendo assim, a necessidade de comunicar o conhecimento leva a modificá-lo (LERNER, 1993, p. 6). Assim, o saber científico sofre modificações ao ser transformado em saber a ser ensinado e sofre, também, alterações na intervenção do professor. De acordo com Henry (1991), o professor tem a função de administrar essa transposição didática, adaptando os objetos a ensinar a seus próprios conhecimentos já construídos, transformando-osem saberes efetivamente ensinados. No entanto, sabemos que, para melhor compreendermos esse movimento de adaptação dos objetos a serem ensinados a conhecimentos já construídos, precisaremos considerar um outro referencial teórico que se apóia 20 nas práticas profissionais e nos mecanismos que as caracterizam, ajudando a melhor compreender a natureza das mudanças ocorridas nas práticas de ensino dos professores: a construção dos saberes na ação. 1.2 – A Construção do s Saberes na Ação Segundo Albuquerque (2002), pesquisadores, que analisam as práticas dos professores e os processos de mudanças nelas ocorridos, têm observado que as mudanças didáticas e/ou pedagógicas não são frutos de uma apropriação realizada diretamente de algo que se divulga por meio de cursos, revistas, livros, etc. Para esses autores, os saberes não são o fruto de uma transmissão, mas, sim, de uma fabricação onde a formação do professor tomará não o aspecto de uma transferência de conhecimentos descontextualizados, mas uma re-interpretação de um discurso pedagógico, de acordo com as conjunturas das diversas culturas. De acordo com Chartier (1998), os professores constroem suas práticas a partir do que está sendo discutido no meio acadêmico e transposto para os textos do saber, porém, sempre considerando o que é possível e pertinente de ser feito em sala de aula, a partir de uma re-interpretação dessas discussões, a qual pode ser compreendida por meio de dois modelos: o primeiro defende que a difusão dos saberes é necessária para orientar as escolhas didáticas e as práticas pedagógicas; o segundo propõe que a formação dos professores se faz, principalmente, por “ver fazer e ouvir dizer” e que o ponto principal dessa 21 apreensão dos saberes é sua pertinência em relação ao trabalho na classe. Sendo assim, entendemos que os professores não se apropriariam da teoria e das prescrições oficiais, como, por exemplo, as contidas nos livros didáticos, de forma a aplicá-las diretamente, como os pesquisadores/especialistas pensaram-na, mas, sim, dentro do que é possível de se fazer, dentro de suas condições de trabalho. Ao analisar a prática de ensino da escrita de uma professora, Chartier (1998) observou que ela utilizava um dispositivo específico – os ateliers de escrita – para poder iniciar as crianças nas atividades de escrita. Dois ateliers – o de grafismo e o de escrita dirigida – eram realizados com a sua orientação/supervisão e priorizavam aspectos como coordenação motora e aprendizagem dos traçados das letras. Eles pareciam se constituir em atividades que vinha desenvolvendo há alguns anos e possuíam um objetivo pedagógico que extrapolava a aprendizagem da escrita, se relacionando com o desenvolvimento de outros conhecimentos, como os comportamentos/atitudes escolares. Já o atelier de escrita livre foi iniciado durante o período de realização da pesquisa em sua sala de aula e extrapolava a ênfase na escrita enquanto “produção material”, por envolver a produção intelectual de um texto que deveria ser lido por um adulto (professora/estagiários/pesquisadora). Esse atelier parecia corresponder a uma inovação didática: tentativa de aplicação pedagógica de reflexões teóricas recentes sobre a escrita, mais especificamente retomada em protocolos de pesquisas elaborados por Emília Ferreiro. Foi por sugestão da pesquisadora e com a ajuda dela que a professora aceitou realizar esse atelier. 22 Ainda segundo Chartier (1998), a professora pesquisada tinha consciência de que essas atividades se referiam a uma grande variedade de modelos. Ela sabia, por exemplo, que os dois primeiros correspondiam a práticas tradicionais de ensino da escrita: aquisição de habilidades motoras finas, iniciação de modelos, uso da letra de imprensa (embora o texto oficial propusesse a cursiva). Já o atelier de escrita livre se referia a outros modelos teóricos que tratavam a escrita em sua dimensão de saber “lingüístico” e de código simbólico. Ela assumia o ecletismo desses modelos, uma vez que conseguia desenvolver cada atelier sem que um interferisse no bom desenvolvimento do outro. Assim, eles não apareciam como contraditórios, mas como “dispositivos em coexistência pacifica”. Se, do ponto de vista teórico, esses ateliers são incompatíveis, eles aparecem, do ponto de vista dos “saberes da ação”, como um sistema dotado de forte coerência pragmática. Para a referida autora, as práticas pedagógicas dos professores são constituídas de um conjunto de dispositivos, empregados por eles, para o ensino dos conteúdos relacionados às diferentes áreas de conhecimento, os quais constituem o “saber-fazer” dos professores e podem envolver procedimentos os mais rotineiros e, também, aqueles propostos como inovadores. A prática pedagógica dos professores englobaria, assim, as disposições incorporadas por cada sujeito, os esquemas de ação e a fabricação de suas práticas profissionais, privilegiando, principalmente, as informações que são diretamente utilizáveis, o “como fazer” melhor do que o “por que” fazer. 23 Como vemos, as práticas escolares cotidianas são permeadas por apropriações, não ocorrendo por meio de um ato passivo de recebimento de algo pronto e acabado, mas, sim, constituem-se em um processo ativo de “re- construção” de práticas já existentes. Chartier (2000) ajuda-nos, mais uma vez, a refletir sobre as mudanças nas práticas de ensino de professores, apontando que elas podem ocorrer tanto nas definições dos conteúdos a serem ensinados – que constituem as mudanças de natureza didática – ou, então, dizem respeito a mudanças relacionadas à organização do trabalho pedagógico (material pedagógico, organização dos alunos em classe, avaliação, etc.), e que ambas também são partes constituintes da fabricação do cotidiano escolar. É preciso, então, refletirmos sobre a relação entre esses dois aspectos. Faremos isso com base na perspectiva de fabricação do cotidiano escolar de Certeau. 1.3 – A Fabricação do Cotidiano Para que possamos melhor compreender como se dá o processo de construção do cotidiano escolar, consideramos importante tomar como referencial teórico a Fabricação do Cotidiano de Certeau. Essa teoria defende o cotidiano como uma compreensão do ambiente onde se formalizam as práticas sociais, mas que, também, sofre influências exteriores. Essas relações sociais, por sua vez, são formadas por práticas construídas, “fabricadas”, a partir das diversas atividades que se exercem na vida cotidiana e que são produzidas e recriadas pelos sujeitos. 24 Ferreira (2004) acrescenta que a lógica das práticas cotidianas não se apresenta apenas no que é realizado em um determinando ambiente, mas é uma “rede de operacionalização nas quais estão envolvidas as relações de força, que se constituem em construções de táticas e de ações ‘próprias’, desenvolvidas pelos sujeitos (FERREIRA, 2004, p. 6). Ainda segundo a autora, Certeau esteve muito mais centrado na busca da compreensão das estratégias e táticas das práticas cotidianas dos sujeitos sociais do que na identificação e estruturação dos conceitos das múltiplas realidades. Certeau (1985, p. 15) define estratégia como “o cálculo ou a manipulação de relações que se tornam possíveis a partir do momento em que um sujeito de vontade ou poder é isolável e tem um lugar de poder ou saber (próprio)”. Desse modo, as pessoas que racionalizam sobre um determinado espaço, elaborando normas, leis, conceitos, saberes científicos e/ou a serem ensinados (como, por exemplo, os especialistas responsáveis pela elaboração de documentos oficiais e livros didáticos) estão construindo estratégias de operacionalização de um determinado espaço, que serão “fabricadas” nas práticas cotidianas por meio das táticas, as quais, por sua vez, são “a ação calculadaou a manipulação da relação de força quando não se tem lugar ‘próprio’ ou melhor, quando estamos dentro do campo do outro”. Assim, as táticas surgem muito mais sutis porque são dependentes do tempo, dos momentos, das oportunidades. Ainda, segundo Certeau (1985), quando não estamos no nosso terreno, aproveitamos a conjuntura, as circunstâncias, para 25 dar um “golpe”, porém não no sentido de enganar os outros, mas, no desejo de resguardar a sobrevivência dos sujeitos. Ferreira (2003) define as estratégias, de acordo com Certeau, como dominantes de seu espaço de ação, possuindo relação de força, capitalizando resultados, definindo projetos e impondo programas. Já as táticas, ao contrário, estariam relacionadas à forma com a qual as pessoas tomam os enunciados de uma língua e conversam em função dos encontros; cada ator impõe a sua maneira o que lhe foi dado a fazer, compreender ou viver. Entretanto, o ator não é dono do espaço no qual se move, ele divide as cartas com quem encontra (FERREIRA, 2003). O que diferencia as estratégias das táticas, de acordo com Certeau (1985), são os tipos de operação, uma vez que as estratégias são capazes de produzir, mapear e impor regras, ao passo que as táticas só podem utilizá-las, manipulá-las ou alterá-las. Elas não obedecem a uma lei (podemos entender “lei” como as prescrições contidas nos livros didáticos, por exemplo), mas são operações que as re-constroem. Retomando a perspectiva da transposição didática, consideramos importante destacar que as mudanças nos saberes científicos são transpostas para os “textos do saber”, transformando-se em “saberes a serem ensinados”. O professor, no entanto, não se apropria dessas mudanças, de modo a realizá-las na forma como aparecem estrategicamente nos textos do saber (propostas oficiais, livros didáticos). Ele re-cria o que está posto, a partir da construção de táticas. O nosso interesse reside, justamente, em identificar e 26 analisar as táticas de uso do livro didático, apreendendo como as professoras estão se apropriando das novas concepções e como isto tem sido efetivado em suas práticas de sala de aula. Portanto, consideramos importante refletirmos, na próxima parte deste trabalho, sobre as alterações ocorridas nos últimos anos nas orientações de ensino de Língua Portuguesa, mais especificamente, no ensino de leitura. 1.4 – Concepção de Língua/Linguagem Fazendo uma revisão sobre o ensino de Língua Portuguesa, Soares (1998a) enfatiza que, até meados da década de 50, o ensino era basicamente destinado às camadas privilegiadas da sociedade, pois estas eram as únicas que tinham acesso assegurado à escolarização. Os seus alunos já chegavam à escola com um razoável domínio do dialeto de prestígio (ou, a chamada norma padrão culta) e, ensinar, nessa perspectiva, estava diretamente relacionado ao reconhecer as normas e regras de funcionamento dessa variedade lingüística. A língua era percebida como um sistema, e ensinar português era ensinar a conhecer/reconhecer o sistema lingüístico. Ainda segundo a autora supracitada, nos anos 60 o país vivenciava um regime ditatorial e buscava o desenvolvimento do capitalismo mediante a expansão industrial. Surgiu a necessidade de ampliar o acesso à escolarização, como um meio de garantir o fornecimento de recursos humanos para a expansão desejada. A partir daí, chegou às escolas um novo público – 27 as camadas populares – e, junto com ele, variantes lingüísticas bastante diferentes daquelas anteriormente encontradas nesse espaço. Logo, as novas condições sócio-político-educacionais acarretaram a revisão do ensino de Língua. Sob bases teóricas que oportunizavam o desenvolvimento de um trabalho com esse novo alunado, a concepção de linguagem como sistema, a partir daquele momento, foi substituída por uma perspectiva de língua como instrumento de comunicação, articulada ao caráter instrumental e utilitário do ensino. Tratava-se de não se levar mais ao conhecimento do sistema lingüístico, mas ao desenvolvimento de habilidades de expressão e compreensão das mensagens. Deslocava-se o eixo de saber a respeito da língua para o uso da língua. Conforme a revisão realizada por Soares (1998a), o referencial acima citado perdurou até o início da década de 80. No entanto, mais uma vez, questões de natureza sócio-político-educacionais contribuíram para o redimensionamento da perspectiva descrita e forneceram dados para que, então, uma nova concepção de linguagem fosse utilizada. Por volta dos anos 80/90 do século XX, a intensificação das pesquisas e os estudos avançaram e, sob a influência da Lingüística Textual, da Análise do Discurso, da Psicologia Cognitiva, da Psicolingüística, entre outros, passou-se a repensar a linguagem e o ensino da língua escrita sob novas bases. De acordo com Rangel (2001), é nesse período que se percebe uma “virada pragmática” no ensino de língua materna, buscando uma mudança na concepção do que se considera “ensinar língua”, fundamentada em um novo 28 conjunto articulado de orientações teóricas e metodológicas: os aspectos sócio- interacionais da linguagem passam, então, a ser considerados e a linguagem deixa de ser encarada apenas como conteúdo escolar, passando a ser concebida como processo de interlocução. Isso se deu, entre outras coisas, porque o conhecimento paulatinamente construído pelas ciências da aprendizagem a respeito do q ue é aprender propiciou um amplo e variado questionamento das práticas e concepções até então sustentadas. Era necessário fazer das situações de ensino um momento de intercâmbio planejado, onde o objeto de conhecimento e os parceiros de aprendizagem pudessem interagir (RANGEL, 2001). Não havia mais espaço para ignorar as crenças e as hipóteses do aprendiz, exatamente porque é com base nelas que o sujeito elabora o seu conhecimento. Santos (1999) também chama a nossa atenção para o fato de que os educadores passaram a ser alertados para a realidade de que a linguagem não existe por causa da escola: ela é objeto de ensino porque existe fora desse espaço, no dia-a-dia das pessoas e só se realiza por meio das interações. Logo, o ensino de língua precisaria acontecer no espaço de interlocução: (...) Desloca-se o eixo do ensino, voltado para a memorização de regras da gramática de prestígio e nomenclaturas, para um ensino cuja finalidade é o desenvolvimento da competência lingüístico-textual, isto é, o desenvolvimento da capacidade de produzir e interpretar textos em contextos sócio-históricos verdadeiramente constituídos (SANTOS, 1999, p. 19). 29 Marcuschi (1996) também explicita a língua como uma atividade constitutiva (com a qual construímos sentidos), cognitiva (com a qual podemos expressar nossos sentimentos, idéias, ações e representar o mundo), ação (pela qual interagimos com os outros) e que, sendo assim, se manifesta nos processos discursivos e se concretiza nos usos textuais mais diversos. É mais do que um instrumento de comunicação, código ou estrutura. Dessa forma, pressupostos teóricos e metodológicos que não contemplavam os conhecimentos prévios e as hipóteses infantis sobre a natureza e o funcionamento da linguagem, bem como não validavam as habilidades e competências da leitura e produções de texto como reflexões sistemáticas, passaram a ser refutados (pelo menos, teoricamente). Nesse sentido, o ensino de Português não mais poderia ignorar as condições sócio- interacionais e os mecanismos cognitivos envolvidos no processo de aquisição e desenvolvimento da linguagem: era necessário “um ensino que proporcionasse o (inter) agir” (RANGEL, 2001, p. 10). Essas teorias começam a chegar às escolas, adaptadas e aplicadas ao ensino da língua materna, alterando, reestruturando e contribuindo na reformulação da perspectiva de língua e de linguagem(SMOLKA, 1988). Com isso, esta passou a ser entendida: como uma forma de interação humana, produzida e atuante sobre um fundo de discurso e não de silêncio, e que utilizar a língua é bem mais do que representar o mundo: é construir sobre o mundo uma representação, é agir sobre o outro e sobre o mundo, constituindo-se o sujeito do discurso como o lugar de uma constante dispersão e aglutinação de vozes (MORTATTI, 1999, p. 30). 30 Geraldi (1999) acrescenta que a linguagem é muito mais do que possibilitar uma transmissão de informações de um emissor a um receptor: ela é um lugar de interação humana, que só tem existência no jogo que se joga na sociedade, na interlocução. Assim, desde os anos 80, é a concepção interacionista de língua que passou a nortear o ensino nessa área. Isso é evidenciado na pesquisa de Marinho (1998), que analisou Propostas Curriculares de diferentes Secretarias e observou que essa era a concepção ”predominantemente” adotada nesses documentos. É sobre o desenvolvimento de um ensino de leitura e escrita – alfabetização – dentro dessa perspectiva de língua que nos deteremos nas próximas etapas deste trabalho. 1.5 – Alfabetização e letramento Entendemos por alfabetização o processo através do qual as pessoas aprendem a ler e a escrever e que vai muito além de técnicas de transcrição da linguagem oral para a linguagem escrita; pressupõe o aumento do domínio da linguagem oral, da consciência metalingüística e repercute diretamente nos processos cognitivos envolvidos nas tarefas que enfrentam (FERREIRO & TEBEROSKY, 1986). No entanto, apesar de já se possuir clareza sobre os 31 processos pelos quais se constrói a leitura e escrita, a alfabetização ainda continua a ser um grande desafio. Tradicionalmente, o ensino da leitura e da escrita tem sido pautado por uma prática pedagógica que tem como base uma concepção de alfabetização entendida como decodificação/codificação e produção grafomotriz. Essa concepção, segundo Cook-Gumperz (1991), surgiu como uma necessidade de controlar e limitar a alfabetização, monitorando as formas de expressão e de comportamento dos sujeitos, ainda nos séculos XVIII e XIX. Alfabetizava-se através de ensinamentos de hábitos de produtividade, economia e, também, por meio de um programa restrito, com pouca escrita e com a leitura de textos religiosos, objetivando treinar socialmente os trabalhadores para transformá-los em força de trabalho operário. Ainda segundo a autora, nesse modelo de alfabetização, as etapas de aquisição do conhecimento eram previamente estabelecidas e a ênfase estava no domínio de determinadas habilidades (entre elas, podemos citar, discriminação auditiva e coordenação motora), sendo a repetição e a memorização os “pontos-chave” desse processo Nessa concepção tradicional, ler seria uma habilidade individualmente adquirida, independente da situação, da época e do grupo social (KLEIMAN, 2001). Quando se pensa em uma perspectiva individual, a atenção dirige-se para a aprendizagem do alfabeto, para a formação de palavras e frases, sem se considerarem os usos e as funções sociais do tipo de texto que se está lendo. 32 Ferreiro & Teberosky (1986) apontam que, tradicionalmente, o problema da leitura tem sido exposto como uma questão de método, e a preocupação seria a de buscar o “melhor e mais eficaz método de ensino de leitura”. Assim, convivemos durante várias décadas (e talvez ainda hoje no espaço de muitas escolas) com dois tipos fundamentais de métodos: os sintéticos (que partiam dos elementos menores das palavras) e os analíticos (que partiam da palavra ou de unidades maiores). Embora houvesse divergência entre os dois, ambos percebiam a aprendizagem da leitura como uma questão mecânica, a aquisição de uma técnica para a realização do deciframento. Como a escrita era concebida como uma transcrição gráfica da linguagem oral, ler significava associar respostas sonoras a estímulos gráficos, ou seja, decodificar o escrito em som. Essas práticas de ensino da língua escrita pressupunham uma relação quase que direta com o oral e as progressões clássicas (começando pelas vogais, depois combinações com consoantes, até chegar à formação das primeiras palavras por duplicação dessas sílabas) marcavam, incisivamente, o ensino de leitura. As autoras supracitadas também apontam que nas décadas de 60/70 surgiram mudanças significativas no que concernia à maneira de compreender os processos de aquisição/construção do conhecimento e da linguagem na criança3. Só a partir de então é que se passou a considerar que a escrita era uma maneira particular de transcrever a linguagem e que o sujeito que iria abordar a escrita já possuía um considerável conhecimento de sua língua materna. Até então, a leitura muito pouco tinha a ver com as experiências de 3 Cf. Piaget, 1961, 1978; Bronckart, 1976; Chomsky 1974, 1976; Pêcheux, 1962 e outros. 33 vida e de linguagem das crianças, estando essencialmente baseada na repetição, memorização e era tida apenas como um objeto de conhecimento na escola (quando, na verdade, sabemos que ela é constitutiva do conhecimento na interação). As novas perspectivas no ensino/aprendizagem da leitura foram apresentadas e discutidas e, assim, percebeu-se que era preciso pensar não apenas em “ensinar” (no sentido de transmitir) a leitura, mas, de usá-la, de fazê-la funcionar como interação, interlocução na sala de aula, experienciando a linguagem nas suas várias possibilidades. Se a expressão alfabetização é antiga conhecida dos meios educacionais, foi na segunda metade da década de 1980 que a expressão letramento surgiu no discurso de especialistas nas áreas de ensino da língua, tornando-se, então, cada vez mais evidente, nas discussões acadêmicas e produções teóricas, a relevância da palavra para o processo de alfabetização. Segundo Soares (1998b), a palavra letramento foi usada pela primeira vez, em português, por Kato (1986), dois anos depois por Tfouni (1988), quando, desde então, se preocupou em definir e diferenciar alfabetização e letramento. Soares (1998b) aponta que a palavra letramento é uma tradução para o português da palavra inglesa literacy, que significa estado ou condição de quem é letrado, transcendendo a concepção de alfabetização, pois para ser letrado é essencial que se possua o domínio da leitura e escrita no cotidiano e que elas sejam usadas, adequadamente, em situações sociais reais de leitura e escrita. 34 A distinção entre os termos alfabetização e letramento foi proposta por Soares (1998b, p. 10): A alfabetização refere-se à aquisição da escrita enquanto aprendizagem de habilidades para leitura, escrita e as chamadas práticas de linguagem. O segundo, por sua vez, focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição da escrita. De acordo com a mesma autora, não basta apenas “codificar e decodificar” signos: é preciso letrar e, apesar dos termos serem duas ações distintas, eles são indissociáveis. O ideal, segundo Soares (1998b), seria alfabetizar letrando, ou seja: "ensinar a ler e a escrever no contexto das práticas sociais da leitura e da escrita, de modo que o indivíduo se torne ao mesmo tempo alfabetizado e letrado” (SOARES, 1998b, p. 47). Kleiman (2001), complementa definindo o termo letramento como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos, extrapolando o mundo da escrita tal qual ele é concebido pelas instituições que se encarregam de introduzir, formalmente, os sujeitos no mundo da escrita. Ela afirma que a escola (a mais importante agência de letramento) preocupa-se não com o letramento enquanto prática social, mas, apenas, com um tipo de letramento:o escolar. A autora, baseada em Street3 (1984), ainda acrescenta que o modelo que determina as práticas escolares de letramento é o modelo autônomo, que considera a aquisição da escrita como um processo neutro, independente de 3 Cf em Kleiman, 2001. 35 considerações contextuais e sociais. A escola, na grande maioria das vezes, promove atividades com o objetivo de, apenas, “desenvolver a capacidade de interpretar e escrever textos abstratos, dos gêneros expositivo e argumentativo, dos quais o protótipo seria o texto tipo ensaio” (STREET, apud KEIMAN, 2001, p. 44). Em contraposição, ao modelo autônomo, e ainda baseada em Street, Kleiman (2001) apresenta o modelo ideológico de letramento e afirma que não existe apenas uma concepção de letramento, mas, sim, práticas de letramentos, que são social e culturalmente determinadas. Dessa forma, os significados específicos que a escrita assume para um grupo social dependem dos contextos e instituições em que ela foi adquirida. A concepção de ensino da escrita como desenvolvimento de habilidades necessárias para produzir uma linguagem abstrata (ou modelo de letramento autônomo) está em contradição à corrente que estamos defendendo neste trabalho: aquisição da escrita enquanto prática discursiva. Para esta tendência, a prioridade do trabalho pedagógico deveria estar colocada nos usos da língua escrita e nas interações que a criança faz com os escritos no seu cotidiano. Na medida em que a linguagem escrita não é vista como um código a ser decifrado, mas muito mais do que isso, como um objeto de conhecimento a ser construído, são enfatizadas atividades que favorecem o convívio da criança com o escrito, e são valorizadas tanto as suas produções quanto as hipóteses explicativas que vai desenvolvendo sobre a escrita. 36 Logo, nessa perspectiva de letramento, o trabalho da alfabetização tem como finalidade a formação de leitores competentes, capazes de compreender os diferentes textos com os quais se defrontam. Para ensinar a ler nesta perspectiva, é importante que os alunos tenham contato com variados tipos de texto e com objetivos de leitura também diferentes desde que iniciam o processo escolar: é o interagir com todo tipo de material escrito, que possua significado na sociedade na qual estão inseridas as crianças. Soares (1998b) afirma serem necessárias algumas condições para que o letramento possa ocorrer, dentre elas, a necessidade de haver material de leitura disponível para os alunos, pois, em muitos casos, alfabetizam-se crianças, mas não lhes dão condições para ler e escrever: não há material impresso posto à disposição, não há livrarias, o preço dos livros e até jornais e revistas é inacessível, há um pequeno número de bibliotecas. Como é possível tornar-se letrado nessas condições? (SOARES, 1998b, p. 58). Morais (2002) atenta para o fato de que a linguagem precisa ser transformada em objeto de ensino-aprendizagem para que seja apropriada pelos iniciantes, dadas as condições de ensino e aprendizagem no âmbito escolar. Pautado em Chevallard (1986) e Brousseau (1991), Morais (2002) afirma que os conhecimentos científicos são inevitavelmente transformados quando os tornamos objetos de ensino-aprendizagem. No entanto, é necessário haver um cuidado com a transformação, a fim de se evitar erros conceituais. Termos, freqüentemente, utilizados, como, escolarização, didatização e mesmo pedagogização, não se identificam com a destruição da 37 língua na escola, mas têm sentido semelhante ao que esse autor chama de transposição didática da linguagem. Como bem afirma Morais, nessa “cadeia de transposição didática” parte das mudanças dos conhecimentos científicos se transformam em textos do saber – livros didáticos e propostas curriculares – que orientam o ensino: o “saber efetivamente ensinado” e as referidas mudanças no interior do saber científico, assim como a mudança de paradigma dos processos de aprendizagem do ler e escrever encontraram legitimação nos textos do saber. Para uma maior compreensão dessa abordagem, é importante definirmos que o termo escolarização (que embora tenha tomado conotação pejorativa quando relacionado a conhecimentos, saberes, produções culturais) nada tem de depreciativo, pois não há como ter escola sem escolarização de conhecimentos, saberes: o surgimento da escola está indissociavelmente ligado à constituição de saberes escolares que se corporificam e se formalizam em currículos, matérias, disciplinas, etc. e tudo isso exigido pela existência de um espaço de ensino e de um tempo de aprendizagem (SOARES, 1999). Assim, observamos que esse processo, o qual chamamos de escolarização, é um processo inevitável porque é da essência mesma da escola; é o processo que a institui e que a constitui. Negar e criticar a escolarização seria negar a própria escola. O importante a ser discutido não é o fato da escolarização existir em si, mas da inadequação da escolarização das práticas sociais de leitura e escrita, fato que, muitas vezes, se traduz em deturpação, falsificação e distorção, resultantes de uma pedagogização mal 38 compreendida que, ao transformar o literário em escolar, o desfigura. Mas, como fazer uma escolarização adequada? Como podemos perceber, as atuais questões sobre a alfabetização para o letramento não podem ser reduzidas a uma questão de métodos, mas de rever o próprio processo, compreendendo-o como construção do conhecimento sobre a língua escrita por parte da criança. Se no enfoque tradicional, o professor (único sujeito “autorizado” a transmitir o conhecimento) questionava qual a seqüência mais adequada de apresentação das letras para formarem sílabas, das sílabas formarem palavras e das palavras formarem frases, no enfoque que valoriza a perspectiva social (conhecido na literatura como relacionado aos estudos do letramento4) a pergunta seria: quais os textos significativos para o aluno e sua comunidade que são importantes para serem trabalhados? 1.6 – Ensino de Leitura e as Estratégias de Leitura Kramer (1986) define o saber ler como “dispor do veículo fundamental de acesso aos conhecimentos da língua nacional, da matemática, das ciências, da história, da geografia e significa possuir o instrumento de expressão e compreensão da realidade física e social” (p.9). Lajolo (1988) acrescenta que ler não é decifrar (como em um jogo de adivinhações) o sentido do texto, mas, sim, a partir dele atribuir-lhe significado, 4 Conferir os trabalhos de Soares (1998), Kleiman (2001), Batista & Galvão (1999), e outros. 39 conseguir relacioná-lo a todos os outros textos significativos. Nessa perspectiva, a leitura também é percebida como um processo de interlocução entre leitor/autor, mediado pelo texto. Ler não é captar um “sentido único do texto”, mas, sim, um processo – está em constante elaboração e reelaboração. Solé (1998) afirma que a leitura é o processo mediante o qual se compreende a linguagem escrita. Nessa compreensão intervém tanto o texto (sua forma e conteúdo) quanto o leitor (suas expectativas e conhecimentos prévios). Logo, para ler, necessitamos, simultaneamente, manejar com destreza as habilidades de decodificação e apontar ao texto nossos objetivos, idéias, experiências prévias e mesmo motivação; a leitura é um processo de (re) construção dos próprios sentidos do texto. É por isso que, segundo Geraldi (1999), podemos falar de leituras possíveis de um mesmo texto. Não estamos aqui querendo dizer que “todas as possibilidades são possíveis”, pois, como bem coloca Possenti (1990) “a leitura errada existe”. Solé (1998) ressalta que, apesar de o leitor construir o significado do texto, isto não quer dizer que o texto não tenha significadoem si, mas, o significado que um escrito tem para um determinado leitor não é uma réplica do significado que o autor quis lhe dar, mas, uma construção que envolve o texto, os conhecimentos prévios e objetivos do leitor que o aborda. Os Parâmetros Curriculares Nacionais na área de Língua Portuguesa (MEC-SFE, 1997), também afirmam que a leitura é um processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de construção de significado do texto, a partir de seus objetivos, do seu conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, sobre 40 tudo o que sabe em relação à língua, seja da característica do gênero, seja sobre o portador, ou mesmo sobre o sistema de escrita. “Ler um texto” não trata simplesmente de extrair a informação da escrita, mas implica, necessariamente, compreensão, através da qual os sentidos começam a ser construídos antes da leitura propriamente dita. Ainda segundo o documento, qualquer leitor mais experiente, que consegue analisar sua própria leitura, constata que a decodificação é apenas um dos procedimentos que utiliza quando lê. Outras estratégias, como a seleção, antecipação, inferência, verificação, são tão importantes que sem elas não é possível ler com rapidez e proficiência. Dessa forma (como nos apontam SOLÉ, 1998; KLEIMAN, 1989, 1998 E SMITH, 1999), a escola tem papel fundamental no ensino de estratégias de leitura. Kleiman (1998) explicita que elas são operações regulares para abordar o texto (não queremos aqui afirmar que o importante é possuir grande repertório de estratégias, mas, sim, saber usá-las; estratégias de leitura não são um fim em si mesmas, mas um meio para se chegar à compreensão), que contribuirão, imensamente, no entendimento do material escrito. Ajudar os alunos a utilizarem estratégias para compreenderem os textos deve ser tarefa primordial no ensino de língua portuguesa desde muito cedo (antes mesmo que as crianças tornem-se alfabetizadas, propriamente ditas) porque o ensino inicial da leitura deve garantir a interação significativa e funcional da criança com a língua escrita, como meio de construir os conhecimentos necessários para poder abordar as diferentes etapas da sua 41 aprendizagem, uma vez que, segundo Smith (1999), iniciamos a aprendizagem da leitura desde a primeira vez que temos qualquer idéia da escrita e aprendemos algo sobre a leitura cada vez que lemos. Logo, é fundamental, como bem coloca Solé (1998), que o texto escrito esteja presente de forma relevante na sala de aula. É importante pensarmos, ainda, que não é apenas o material, mas, também, as atividades e exploração das estratégias de leitura que deles suscitam o que será de importante no ensino de leitura. Assim, ensinar as estratégias de compreensão leitora, aliadas ao domínio das habilidades de decodificação (claro!), torna-se ferramenta essencial se queremos garantir que os alunos possam participar dos usos e funções sociais que a linguagem escrita assume nas sociedades do letramento. Mas, como unir esta perspectiva com as atividades de sala de aula sem cair nos artificialismos de simulação de leituras? Como realizar uma prática diferenciada? Que materiais utilizar? Com qual objetivo ensinar a ler e escrever? Como desenvolver uma prática de leitura de diferentes gêneros com exploração das estratégias? Deve-se iniciar essa prática de leitura quando os alunos estiverem alfabetizados, sabendo ler e escrever? Diante dessas indagações, faz-se fundamental buscar procedimentos didático-pedagógicos adequados ao processo. É preciso perceber que a mediação do adulto nesses eventos de letramento é essencial e que o livro, a escrita, também são elementos significativos nessas interações (KLEIMAN, 42 2001). Sendo assim, questionamos se os livros didáticos recomendados pelo PNLD (2001/2002) têm contemplado as “novas” orientações teórico- metodológicas nessa área. 1.7 – Algumas reflexões sobre as mudanças nos livros didáticos de alfabetização A importância da investigação sobre a temática “livro didático” se intensifica quando se constata que ele constitui, muitas vezes, o único material de acesso ao conhecimento, tanto por parte dos professores (que nele buscam a legitimação de seu trabalho e apoio para suas aulas) quanto dos alunos. E a escola, principal responsável pelo ensino do registro verbal (principalmente ler e escrever) da cultura dos dias atuais, concebe o livro (didático ou não) como um instrumento fundamental, um material essencial na realização das funções pedagógicas exercidas pelo professor (Cf. SILVA, 1996; LAJOLO, 1996; CORACINI, 1999). Segundo Batista (1999), os livros didáticos podem ser uma interessante fonte para o estudo do cotidiano e dos saberes escolares. Eles são a principal fonte de informação impressa utilizada por parte significativa de alunos e professores, o que ocorre na proporção em que as populações escolares têm menos acesso aos bens econômicos e culturais. Os livros didáticos são, para significativa parte da população brasileira, o principal impresso em torno do qual sua escolarização e práticas de leitura 43 serão organizadas e constituídas. Ainda segundo Batista (1999), é preciso conhecer melhor esse impresso que se converteu na principal referência para a formação e inserção no mundo da escrita de um expressivo número de docentes e discentes de nosso país e que, como conseqüência, tem auxiliado na construção do fenômeno do letramento no Brasil. Dados também indicam que o impresso didático desempenha um papel bastante importante na produção editorial brasileira geral. Lajolo (1996) comenta que, na sociedade brasileira, os livros didáticos, e também os não didáticos, são considerados centrais na produção, circulação e apropriação de conhecimentos, sobretudo dos conhecimentos por cuja difusão a escola é responsável. Silva (1996, p. 11) acrescenta: Aprender, dentro das fronteiras do contexto escolar, significa atender às liturgias do livro didático: comprar na livraria ou recebê-lo através de programas governamentais no início de cada ano letivo, usar ao ritmo do professor, fazer as lições, chegar à metade, ou aos três quartos dos conteúdos ali inscritos e dizer amém, pois é assim mesmo (e somente) assim que se aprende. Assim, o livro didático, que deveria ser um meio, passa a ser visto e usado como um fim em si mesmo, especialmente no que se refere ao trabalho com a língua portuguesa e, mais especificamente, nas práticas de leitura correntes. No entanto, para compreender um pouco mais a lógica posta nos livros didáticos, entender a trajetória dos mesmos e sua utilização no contexto escolar, é preciso retroceder no tempo e investigar como e por quê eles sugiram. 44 As cartilhas foram consideradas, durante muito tempo, como materiais de referência no processo de aquisição da leitura e escrita, exatamente porque, como aponta Cagliari (1999), as antigas cartilhas trazem uma concepção de língua escrita como uma transcrição da fala: elas supõem a escrita como espelho da língua que se fala. Seus “textos” são construídos com a função de tornar clara essa relação de transcrição. Em geral, são usadas, exaustivamente, “palavras-geradoras” e famílias silábicas, com o objetivo de memorização e repetição, sem qualquer contexto ou sentido. A ênfase destes materiais sempre foi dada à produção escrita pelo aluno. O importante era aprender a escrever e decodificar palavras. A atividade escolar deixou de privilegiar a aprendizagem e passou a cuidar quase que exclusivamente do ensino. Em lugar do alfabeto, apareceram as palavras-chave, as sílabas geradoras e os textos elaborados apenas com palavras já estudadas. Completadas todas as letras, o aluno começava seu livro de leitura, também programado de maneira a ter dificuldades crescentes. Segundo Dietzsch (1996), nas frases soltas e sem sentido,perdia-se o texto e sacrificava-se o leitor. Centrada nessa abordagem, que vê a língua como pura fonologia, a cartilha introduz a criança no mundo da escrita, apresentando-lhe um texto que, na verdade, é apenas um agregado de frases desconectadas. A única ressalva a esses “textos” seria feita caso alguém encorajasse o aluno a brincar com o significante e a jogar com o absurdo para, assim, “desconstruir” e reconstruir outros sentidos. No entanto, não foi com esse propósito que as cartilhas foram exploradas. 45 No Brasil, os livros didáticos assumiram um modelo de livro que se constituiu, entre os anos 60/70, em um modelo de estruturação do trabalho pedagógico em sala de aula, de apoio ao trabalho do professor, caracterizando-se, essencialmente, como fonte de informação para os docentes. Batista (1999), por sua vez, descreve como a década de 80 assistiu ao surgimento de um forte discurso contrário à utilização dos livros didáticos. Por um lado, essa utilização foi apontada como vinculada à desqualificação profissional de professores e, por outro, esses materiais foram criticados por apresentarem erros conceituais, por se constituírem em um campo da ideologia e das lutas simbólicas, revelando um ponto de vista parcial e comprometido sobre a sociedade. Compreendendo a importância desse material, e reconhecendo que muitos deles se distanciavam das atuais propostas curriculares e dos projetos elaborados pela Secretarias de Educação – que, por sua vez, contemplavam as novas concepções relacionadas ao ensino de língua Portuguesa – e por serem também desatualizados e cometerem erros inaceitáveis, o MEC passou a desenvolver e executar, desde 1995, um conjunto de medidas para avaliar sistemática e continuamente o livro didático brasileiro e para debater, com os diferentes setores envolvidos em sua produção e consumo, um horizonte de expectativas em relação a suas características, funções e qualidade (BRASIL - MEC - SEF, 2001, p. 11). 46 Dessa forma, todas as obras a serem adquiridas passariam por um processo de análise e avaliação (de acordo com as áreas de conhecimento). Apenas os livros didáticos não-consumíveis (com exceção dos dirigidos à 1ª série), com qualidades gráficas e editoriais e que não envolvessem mais de uma área do saber, que não exigissem a compra de outros volumes ou satélites, que apresentassem um “guia” para o professor, poderiam ser analisados. Além desses critérios, outros de ordem específica das áreas do conhecimento também foram estabelecidos. Então, desde 1996, os resultados das avaliações foram sendo apresentados através de publicações do Guia de Livros Didáticos, que apresenta informações sobre eles, constituindo-se em um material que deveria orientar a escolha do livro didático pelo professor. Nesse guia, eles são classificados em três grandes categorias: 1- Recomendados com distinção – categoria composta por manuais que se destacam por apresentar propostas pedagógicas mais próximas possíveis do ideal representado pelos princípios e critérios adotados nas avaliações pedagógicas, constituindo-se em materiais elogiáveis, criativos e instigantes. 2- Recomendados – categoria composta por livros que cumprem todos os requisitos mínimos de qualidade exigidos, assegurando a possibilidade de um trabalho didático correto e eficaz por parte do professor. 3- Recomendados com ressalvas – nessa categoria, reúnem-se livros que obedecem aos critérios mínimos de qualidade, mas que, por alguns 47 motivos, não estão livres de ressalvas. Podem subsidiar um trabalho adequado, se o professor estiver atento às observações, consultar bibliografias para revisão e para complementar a proposta. Logo, autores e editoras, “preocupados” em atender às novas exigências surgidas a partir das avaliações dos livros didáticos, apressaram-se em realizar mudanças. As antigas cartilhas vêm sendo substituídas, desde a década passada, por livros que, em seu título, trazem afirmações do tipo: “uma perspectiva construtivista para a alfabetização”. Estes ‘manuais modernos’ começaram a introduzir certos elementos novos, certos ‘truques’ que estão na moda para tornar os livros menos monótonos; assim, é comum encontrarmos histórias em quadrinhos, reproduções de trechos de jornais e revistas, receitas de cozinha etc (CHARMEUX, 1995, p. 25). Mas, será que as propostas dos livros didáticos recomendados pelo PNLD poderiam mesmo superar as antigas práticas usadas nos modelos antigos? Será que esses novos manuais apresentam orientações teórico- metodológicas que possam auxiliar o professor no desenvolvimento de um trabalho baseado nessa nova perspectiva de alfabetização? Será que os professores estão, efetivamente, utilizando esses “novos” livros? Algumas pesquisas buscaram analisar os novos livros de alfabetização, sob diversos aspectos. Bregunci e Silva (2002), ao desenvolverem uma pesquisa financiada pelo MEC sobre a escolha dos livros didáticos, constataram que, do ponto de 48 vista de um grande número de professores, os livros disponibilizados após a implantação do PNLD são considerados melhores do que aqueles distribuídos e utilizados anteriormente, pois, segundo os próprios professores, os novos materiais apresentam conteúdos integrados e uma abordagem interdisciplinar ou conteúdos mais criativos, próximos à realidade dos alunos. Por outro lado, as pesquisadoras destacaram que, para a maioria dos docentes, os livros recebidos na faixa de menções superiores – sobretudo os Recomendados com Distinção – não atendem à sua clientela por trazerem textos longos e complexos, sendo “feitos para crianças que já sabem ler”. São obras reconhecidas como “boas em si mesmas (...) mas difíceis de serem seguidas...” Em geral, nesses casos, os professores procuram textos e exercícios considerados menores e mais acessíveis, mais claros e mais fáceis para os alunos, em livros que já haviam utilizado anteriormente. Albuquerque (2002) analisou o discurso das professoras sobre os livros didáticos recomendados e a forma como os utilizavam. A pesquisadora observou que os professores usavam o livro como um apoio à prática pedagógica e aproveitavam, principalmente, os textos diversificados, presentes nos novos livros didáticos para a realização de atividades de leitura. Para o desenvolvimento do trabalho de Análise Lingüística, as docentes procuravam, em sua maioria, os livros tradicionais. Silva (2003), Castanheira e Evangelista (2002) investigaram o discurso das professoras no que se refere ao uso dos novos livros didáticos e constataram que elas trocavam os livros recomendados pelo PNLD por outros 49 inferiores, pois sentiam dificuldades de utilizarem os novos livros para alfabetizar, uma vez que eles apresentavam textos complexos e longos. Assim, preferiam livros com textos curtos e com os quais já estavam acostumadas a trabalhar. Nunes-Macedo, Mortimer e Green (2003) desenvolveram um estudo com o objetivo de investigar como alunos e professora construíram a discussão dos textos do LD, evidenciando que o discurso é constituído pelas ações dos sujeitos no processo de interação. Eles observaram que a professora rompia com o uso linear do LD e subvertia a lógica de organização proposta, apropriando-se desse material conforme exigências da própria prática. Essa opção parece indicar uma preocupação da professora em fazer um uso contextual do material, evidenciando uma perspectiva de letramento como uma prática sócio-cultural. Os pesquisadores observaram, ainda, que a experiência de vida da professora foi constitutiva desse processo e isso inclui o fato de ela ser professora há dez anos. A presente pesquisa, por sua vez, buscou analisar as transformações ocorridas nos livros didáticos em função dos novos referenciais teóricos e procurou compreendercomo os professores têm utilizado esse material como um suporte para suas práticas pedagógicas e, ainda, como essa prática tem sido re-inventada a partir das táticas dos professores. As dificuldades de escolha e uso dos livros recomendados pelo PNLD fazem emergir a necessidade de crescente investimento em uma política de 50 formação, que capacite os profissionais das escolas para um trabalho mais consistente com os livros que solicitam e que lhes são destinados. Esperamos, com o desenvolvimento deste trabalho, poder contribuir para a reflexão sobre algumas questões teórico-metodológicas relacionadas às pesquisas que analisam as práticas de ensino dos professores de Língua Portuguesa na alfabetização. Pretendemos demonstrar a possibilidade de uma compreensão diferenciada acerca da prática das professoras, que pode auxiliar na ampliação e na reflexão de como os saberes são fabricados/construídos também a partir de práticas docentes. 1. 8 – Objetivos 1.8.1 – Objetivo Geral: Investigar as práticas de leitura realizadas em duas classes de alfabetização e como tais práticas se relacionaram com as orientações presentes nos livros didáticos recomendados pelo PNLD. 1.8.2 – Objetivos Específicos: • Identificar a concepção de alfabetização e de leitura expressada pelas professoras das turmas estudadas. 51 • Analisar as atividades de leitura propostas nos livros didáticos, observando o que os alunos leram, pra que leram e como leram. • Analisar as atividades de leitura desenvolvidas por professores de alfabetização: como contribuíram para o processo de letramento e como elas se distanciaram/se aproximaram das orientações presentes nos livros didáticos utilizados. CAPÍTULO 2 – METODOLOGIA E TRATAMENTO DOS DADOS 2.1 – Sujeitos A pesquisa foi realizada com duas professoras do 1º ano, do 1º ciclo do Ensino Fundamental, de uma escola da rede pública de ensino da Secretaria de Educação da Cidade do Recife. O critério de escolha dessas professoras baseou-se em quatro aspectos: 1. Professora regente atuando no 1º ano do 1º Ciclo; 2. Utilização do livro didático adotado na rede; 3. Indicações realizadas por colegas de trabalho e pela equipe técnica da Secretaria de Educação, como sendo uma professora que desenvolvia uma prática diferenciada e inovadora de alfabetização; 4. Disponibilidade dos sujeitos em participarem da pesquisa; Optamos pela realização de dois estudos de caso, exatamente porque, segundo Lüdke & André (1986), o estudo de caso se caracteriza por procurar apreender uma realidade, em particular, dentro de um sistema mais amplo, que tem um valor em si mesmo, ainda que posteriormente venham a ficar evidentes semelhanças com outros casos e situações. O interesse incide naquilo que ele tem de único, de particular. 54 Os estudos de caso tiveram durações distintas. O primeiro deles contemplou 22 observações, durante os meses de março a novembro, no ano de 2003. O segundo estudo de caso ocorreu no mesmo ano, no período de outubro a dezembro, correspondendo a um total de 7 observações. A diferença entre o quantitativo de aulas observadas, de ambas as professoras, explica-se pela dificuldade encontrada em localizar uma docente que atendesse ao perfil desejado. A seguir, descreveremos cada um dos nossos sujeitos. É importante salientarmos que a forma como estão sendo denominadas representa uma opção delas: ambas decidiram pela manutenção dos próprios nomes. Yarany trabalhava como professora há 10 anos, havendo ensinado nas redes públicas de ensino; tinha sido professora da rede estadual (e encontrava- se em período de licença sem vencimentos) e no ano da entrevista lecionava na rede municipal. Sua primeira experiência como professora havia sido em uma turma de jovens e adultos também como alfabetizadora. Yarany ensinou essas turmas por cerca de sete anos. Após esse período, ela realizou um concurso para ser professora do município de Recife; lecionou em turmas de terceira série e aquele era o seu primeiro ano com turmas de alfabetização de crianças. Yarany ensinava em uma escola, no turno da manhã, e, à tarde, também, exercia uma função administrativo-pegagógica na Secretaria de Educação do Recife, tendo recebido a indicação para essa função através do 55 assessor de Língua Portuguesa, que se interessou pela sua prática no ano de 2001, quando ela apresentou-lhe um de seus trabalhos. Yarany possuía curso de magistério, realizado entre os anos de 1988 e 1989 em uma escola da rede privada de ensino e, curso superior em Arquitetura e Urbanismo, pela Universidade Federal de Pernambuco (cursado entre os anos de 1991 e 1996). Também havia cursado uma pós-graduação em Informática Educacional, pela Universidade Federal Rural de Pernambuco. Segundo ela, o referido curso foi promovido através de um convênio entre o governo do estado e o MEC, na época em que ela ainda lecionava na rede estadual. Yarany relatou que estudou durante a educação infantil, ensino fundamental e médio em escolas da rede privada de ensino. Sua mãe era professora e embora tivesse feito o curso de direito, não atuava na área, dedicando-se ao magistério. Atuou como professora da rede Estadual de Ensino por vários anos e, no momento da entrevista com Yarany, ela trabalhava como educadora de apoio, na referida rede. Possuía especialização na área educacional, mais precisamente em gestão escolar. Seu pai possuía o curso universitário e também especialização na área de relações públicas, com habilitação em recursos humanos, e atuou, a vida inteira, nesse ramo, encontrando-se, na ocasião da pesquissa, aposentado. 56 Conceição ensinava em uma turma de 1º ano do 1º Ciclo, no turno da manhã, em uma escola situada no bairro de Setúbal. Esse era o seu segundo ano como professora, embora já estivesse em processo de aposentadoria. Ela relatou que, apesar de possuir o curso superior em Letras (pela Universidade Católica de Pernambuco), desde a década de 1980, nunca havia se interessado em lecionar. Quando ainda estava fazendo o curso de graduação, começou a trabalhar na Escola Técnica Federal de Pernambuco, na área administrativa. Depois de concluir seu curso recebeu uma promoção (anteriormente denominada de ascensão funcional) e foi convidada para coordenar o setor, onde chefiou durante 16 anos, até meados do ano 2000. Só após se aposentar foi que ela interessou-se em lecionar e fez o concurso para ser professora da rede municipal de ensino da Secretaria de Educação da cidade do Recife, tendo assumido a função como professora de alfabetização logo após ter realizado a prova (em meados do ano de 2001). Conceição possuía um curso de especialização em supervisão escolar, pela Universidade Salgado de Oliveira (Universo). No período da nossa coleta de dados, ela estava concluindo um curso de aperfeiçoamento na área de língua portuguesa para as séries iniciais, promovido pela Universidade Federal de Pernambuco, em parceria com a fundação Vita. Sua monografia de conclusão intitulou-se Estratégias de leitura nos diversos gêneros, e tinha como objetivo discutir as prováveis causas para o desinteresse dos alunos com relação às atividades de leitura. 57 Conceição também relatou que viveu a infância e a adolescência em uma cidade do interior do estado de Pernambuco, onde estudou numa escola particular religiosa, até o final do ensino médio. Seu pai possuía um engenho e administrava pequenas áreas de terras naquela mesma região, havendo concluído apenas o ensino fundamental. Nesse mesmo engenho funcionava uma escola para os filhos dos trabalhadores, onde sua mãe e suas irmãs lecionavam. Sua mãe possuía o curso de magistério 2.2 – Procedimentos Metodo lóg icos 2.2.1