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o ESPAÇO DO ARQUIVO Arquivos Pessoais e Arquivos Institucionais: para um Entendimento Arquivístico Comum da Formação da Memória em um Mundo Pós-Moderno Terry Cook o presente artigo explora uma questão fundamental da teoria ar quivística: os princípios e conceitos arquivísticos rradicionais, que foram desen volvidos para os documentos de instiruições, são também relevantes para os arquivos de indivíduos, famílias e grupos? Em caso afinnativo, como isso afeta a tarefa do arquivista? Desta análise emergirão também algumas reflexões sobre a perspectiva metodológica que o arquivista deve adotar hoje, especialmente na avaliação de documentos para a inclusão em instiruições de arquivo, e na sua descrição. Este texto é essencialmente teórico, não prático - uma tentativa de Nota: Este trabalho éa venão revista de uma palestra proferida duas vezes durante o Seminário Internacional sobre Arquivos Pessoais, realizado no Rio de Janeiro (17-18 de novembro de 1997) e em São Paulo (20-21 de novembro de 1997). O seminário teve o patrocfnio do CPDOC-FGV c do IEB-USP. Além desses patrocinadores, quero agradecer, por Suas muitas gentilezas durante minha visita ao Brasil e por sua calorosa hospitalidade, a: Ana Maria de Almeida Camargo, Heloísa Liberalli Bcllouo, Dirce de Paula e Silva Mendes, Célia Costa, Priscila Fraiz e Luciana Heymann. Esta tradução é de Paulo M. Garchet, revista por Luciana Hcymann e Priscila Fraiz. 129 130 estudos históricos. 1998 - 21 obter uma perspectiva atualizada dos princípios arquivísticos básicos válida para o final do século XX. Diante da natureza interdisciplinar do Seminário Interna cional sobre Arquivos Pessoais, do qual este trabalho fez parte e, agora, com a publicação dos trabalhos ali apresentados, talvez seja importante lidar primeiro com conceitos e princípios, e não com metodologias específicas, para que os não arquivistas possam participar do diálogo no nível do "por que" os arquivistas adotam certas estratégias, em vez de "o que" eles realmente fazem no dia-a-dia e "como" o fazem. O argumento deste trabalho é bastante radical, mas, espero, não porque eu esteja sendo desnecessariamente provocador, e sim porque estou já há muitos anos lidando com arquivos eletrônicos e, conseqüentemente, estou vis lumbrando o tipo de futuro que os arquivistas logo estarão enfrentando em todas as partes do mundo. l Entre esses dois tipos de arquivos, o público e o pessoal, o oficial e o individual, existe em muitos países uma divisão incômoda, ou mesmo uma tensão. Em grande parte da literatura arquivística dos Estados Unidos, por exemplo, há referências a duas partes distintas da profissão: a tradição dos manuscritos históricos ver:rus a tradição dos arquivos públicos. 2 Na Austrália, é revelador o titulo do periódico nacional dos arquivistas: Archives andManuscripts, que ressalta a nítida dualidade que lá encontrei, com alguns arquivistas de arquivos públicos na verdade ignorando seus colegas que coletam manuscritos, não os considerando arquivistas, e sim profissionais mais próximos, em seu trabalho e em sua visão dos documentos, dos bibliotecários ou dos curadores de museus. Em boa parte da Europa e em muitas de suas antigas colônias, os arquivos nacionais, via de regra, não recolhem papéis pessoais de indivíduos particulares (exceto de políticos e burocratas) em bases iguais às dos documentos oficiais do governo nacional. Esse padrão se repete nos níveis dos governos e arquivos estaduais, provinciais, regionais e locais ou municipais. Quanto ao destino dos arquivos pessoais ou dos manuscritos privados, na maioria dos países são adquiri dos pela biblioteca nacional, pelas bibliotecas regionais, ou pelas principais universidades e até mesmo por museus e por institutos de pesquisa ou documen tação temáticos ou especializados. Assim é que os diversos domicílios institucio nais dos arquivos públicos e pessoais reforçam suas diferenças, tanto quanto o fazem suas distintas origens e estruturas legislativas. Uma exceção marcante nessa situação geral é o Canadá, com seu conceito, há muito implantado, de "arquivos totais". 3 De acordo com essa abordagem de "arquivos totais", virtualmente todas as instituições arquivísticas do país, com a Única e lógica exceção dos arquivos de empresas ou corporações privadas, mas incluindo o arquivo nacional, os arquivos provinciais, regionais, os arquivos das cidades, das universidades e das igrejas, todos adquiriram, em proporções basi camente iguais de capital próprio e de recursos alocados, os arquivos oficiais de seus Arquivos Pessoais e Arquivos Institucionais organismos produtores e os manuscritos ou outras mídias pessoais de indivíduos, famílias e grupos paruculares. Enquanto em alguns países os arquivos nacionais ou institucionais oficiais servem, às vezes, como repositórios passivos de certas categorias de papéis pessoais que estariam de outra forma ameaçados de perda ou destruição, no Canadá tais papéis pessoais são ativa e agressivamente procura dos pelos arquivistas, além dos documentos ou arquivos oficiais. O documento-proposta do Seminário Internacional sobre Arquivos Pessoais reconhece duas similaridades importantes entre os arquivos pessoais e os públicos. Primeiro, ambos são artefatos de registro derivados de uma ativi dade; os arquivos são evidências das transações da vida humana, seja ela organi zacional, e por conseguinte oficial, seja individual, e portanto pessoal. Diver samente de livros, programas de televisão ou obras de arte, eles não são inten cionalmente criados por motivos próprios, com a possível exceção dos textos autobiográficos, mas surgem, antes, dentro de um contexto, como parte de alguma outra atividade ou necessidade, seja pessoal, seja institucional. Em segundo lugar, os arquivistaS, tanto nos arquivos públicos quanto nos pessoais, freqüentemente usam procedimentos técnicos e métodos práticos semelhantes, em termos de como acessam, descrevem, armazenam fisicamente e conservam os arquivos e os colocam à disposição para fins de pesquisa. Contudo, no nível mais profundo dos princípios e conceitos da ciência arquivística, bem como no âmbito dos diversos tipos de instituições de arquivos públicos e pessoais e, por conseguinte, das diferentes tradições históricas a que me referi acima, essas similaridades técnicas parecem se dissolver em divergên cias mais fundamentais de perspectiva. O documento-proposta do Seminário pergunta, por exemplo, "até que ponto pode a acumulação de documentos de um indivíduo ser comparada com a acumulação por uma instituição como resultado natural e necessário de suas atividades?" O simples fato de essa pergunta ser colocada indica que existem dúvidas sobre sua resposta - e, portanto, sobre a possibilidade de uma estrutura conceitual comum para arquivos públicos e arquivos pessoais. O documento do Seminário afilma também que os arquivos públicos, ou institucionais, ou oficiais, são acumulações "naturais e necessárias", subprodutos orgânicos da atividade administrativa, enquanto os arquivos pes soais, conquanto possam ter tal qualidade, freqüentemente são - de novo nas palavras do documento do Seminário - "produtos de um desejo de perpetuar intencionalmente uma certa imagem", um "(propósito) concebido que, na ver dade, se destina à 'monumentalização' do próprio indivíduo ... " Essa idéia da diferença fundamental entre arquivos públicos e arquivos pessoais é muito difundida no pensamento arquivístico tradicional e na maior parte da literatura sobre o assunto. Os arquivos públicos ou institucionais são apresentados (e seus defensores sempre afirtnam que é isso o que acontece) como 131 132 estudos históricos. 1998 - 21 acumulações naturais, orgânicas, inocentes, transparentes, que o arquivista pre serva de modo imparcial, neutro e objetivo. Essa é a teoria arquivística clássica. No mundo anglófono, ela é representada por Sir Hilary Jenkinson e seus muitos discípulos. Em contraste,os arquivos pessoais são apresentados (e os arquivistas públicos, seus detratores, enfatizam isso) como mais artificiais, antinaturais, arbitrários, parciais, algo realmente mais próximo de um material de biblioteca, publicado, como as autobiografias e as memórias, do que de documentos de arquivos oficiais e públicos. Na verdade, os arquivistas que trabalham com arquivos pessoais são vistos como mais próximos dos bibliotecários, documen talistas e historiadores do que do clássico encarregado de registros públicos jenkinsoniano. Essa disparidade de perspectivas, verdadeira ou não, é largamente assumida como verdadeira pelos arquivistas do mundo inteiro, o que é um problema, pois essas diferenças percebidas levaram, na melhor das hipóteses, a uma divisão passiva e, na pior, a um acirrado debate entre arquivistas das duas tradições. Meu propósito neste trabalho é sugerir que essas afilmativas fundamen tais da ciência arquivística tradicional, com suas dicotomias resultantes, são falsas. Na verdade, da maneira como foram articuladas, nunca foram comple tamente verdadeiras - mesmo no caso dos arquivos públicos - dentro do contexto de seu próprio tempo, e agora, no final do século XX, são extremamente enganosas. Baseado nas mudanças fundamentais na natureza das instituições governamentais e empresariais, nos meios dos registros e na natureza dos processos de geração e manutenção de arquivos; e considerando, ainda, o con texto pós-moderno em que vivemos e os novos conhecimentos que estão sendo desenvolvidos sobre a história e o caráter da memória, irei contestar neste trabalho a idéia tradicional de arquivos públicos, ou do arquivista institucional como encarregado neutro, objetivo e passivo dos arquivos, especialmente devido às novas exigências, tanto para a avaliação quanto para a organização e descrição de arquivos institucionais, que agora surgem para lidar com os registros eletrôni cos, ou gerados por computadores. Meu argumento é que a própria natureza dessas mudanças conceituais transfolma a tarefa dos arquivistas, tanto dos arquivos institucionais quanto dos pessoais, e oferece uma perspectiva compar tilhada sobre arquivos que, por sua vez, pode levar a uma nova unidade nos esforços da arquivística, centrada na formação da memória da sociedade. Da maneira como foram articulados, há exatos cem anos, no famoso manual holandês de 1898 - que subseqüentemente influenciou os livros-marcos sobre teoria e metodologia arquivísticas de Sir Hilary Jenkinson, Eugenio Casanova e Theodore SchelJenberg, na primeira metade do século XX -, os princípios tradicionais da arquivística derivaram quase que exclusivamente das experiências pessoais dos autores como custodiadores de arquivos institucionais Arquivos Pessoais e Arquivos Institucionais de governos, e dos problemas com que se defrontaram na organização e descrição de tais documentos. Os arquivos eram tradicionalmente criados pelo Estado, para servir ao Estado, como parte da estrutura hierárquica e da cultura organizacional do Estado. Assim, a teoria, os princípios e as metodologias arquivísticas popu larizadas ao redor do mundo por esses autores pioneiros (e por seus inúmeros seguidores) refletiram de modo nada surpreendente a natureza inerente dos documentos governamentais e de seus criadores institucionais oficiais, com os quais os autores estavam intimamente familiarizados. Com exceção, em parte, de Schellemberg, os arquivos pessoais foram, conseqüentemente, largamente igno rados por esses autores. O professor de arquivística italiano Oddo Bucci comentou recente mente, com muita sensibilidade, o trabalho de Eugenio Casanova, cujo grande livro sobre arquivística foi lançado em 1928. Os comentários de Bucci são igualmente aplicáveis a J enkinson, que escreveu seis anos antes, ou aos três autores do manual holandês ou, na verdade, a seus predecessores franceses e alemães. 4 Todos esses pioneiros da arquivística refletiram em seus trabalhos as correntes intelectuais do século XIX e do início do século XX e, por isso, Bucci diz que eles "deram à disciplina (arquivística) sua abordagem empírica, cons truíram-na como uma ciência descritiva e a ela aplicaram o imperativo da historiografia positivista, que visava à acumulação de fatos em vez da elaboração de conceitos ... " Mas a historiografia positivista e o empirismo "factual" estão há muito desacreditados neste final do século XX. Bucci observa que novas mudanças estruturais da sociedade "solapam", fundamentalmente, "os hábitos e normas de conduta, acarretando uma quebra dos princípios que há muito governavam os processos pelos quais os registros arquivísticos são criados, ·transmitidos, conservados e explorados. Está claro" - continua ele - "que ino vações radicais na prática arquivística estão se tornando cada vez mais incom patíveis com a persistência de uma doutrina que tenta permanecer fechada por trás dos bastiões de seus princípios tradicionais". Resumindo, Bucci está dizendo que os princípios arquivísticos não foram estabelecidos para sempre, e sim, como a visão da própria história, ou da literatura e da filosofia, refletem o espírito de seu tempo, sendo reinterpretados pelas sucessivas gerações. A ciência ar quivística, ou a teoria tradicional da arquivística não são, apesar do que alguns arquivistas de documentos públicos ainda gostam de afumar, nem verdade universal, nem realidade fundamental aplicável a todas as circunstâncias e meios arquivísticos em qualquer tempo e lugar. Voltemos cem anos no tempo para revisitar o clássico manual holandês. 5 Lembremo-nos de que o título do livro holandês era Manualfor lhe aTTangement and description of archives. Os autores holandeses escreveram que o arranjo dos arquivos sob custódia da instituição arquivística "tem de ser baseado na organi- 133 134 • estudos hist6ricos e 1998 - 21 zação original da coleção arquivística, que corresponde, de modo geral, à organi zação do órgão administrativo que a produziu". Observem o tempo passado de "produziu", um ponto ao qual irei retornar. Os autores holandeses consideravam essa recriação da ordem original, ou o respeito por ela, "a mais importante de todas as regras ... da qual todas as outras derivam". Acreditavam que respeitando, ou recriando, a organização dos sistemas originais de registro dos documentos, o arquivista poderia deixar claro para os pesquisadores o contexto administrativo em que os documentos foram originariamente criados. E, se o contexto adminis trativo fosse assim esclarecido, as funções e atividades desse órgão seriam também evidenciadas na descrição da proveniência de tal órgão ou agência, pois, nesse mundo weberiano mais simples, a coincidência entre função e estrutura hierár quica (ou organizacional) era quase completa. Do mesmo modo, atentemos cuidadosamente para o uso similar que J enkinson fez do tempo pretérito quando definiu seu grupo de arquivos como a totalidade dos registros "do trabalho de uma administração que era um todo orgãnico", ilustrando que seu foco, quando escreveu 24 anos mais tarde, em 1922, assim como o do trio holandês, estava em documentos da Idade Média e do início da modernidade, com suas séries completas e fechadas, seus criadores estabeleci dos e há muito falecidos, e seu status de documentos herdados do passado. 6 Essa correlação próxima ou, na verdade, exata, feita pelos autores holan deses e por J enkinson, entre estrutura organizacional e sistema de registro de documentos não é mais verdadeira na maioria das organizações modernas. Hoje existem numerosos sistemas de atmazenamento de informações, em muitos meios, em muitas subseções ou subsubseções de uma mesma instituição, que não mais "correspondem" de perto à organização estrutural interna e às múltiplas funções do órgão criador que, por sua vez, é cada vez mais complexo, desorgani zado, descentralizado, transitório e, até mesmo, de caráter virtual, quando coo pera, compartilhando funcionários,com outras organizações na realização de um trabalho. Tampouco os arquivistas lidam mais primordialmente com séries fechadas completas de documentos antigos, e sim com acréscimos de documen tos vindos de séries correntes, abertas. As revoluções da informática e das telecomunicações da última década aceleraram radicalmente essa descentrali zação, difusão e desorganização, a um ponto tal que as ligações entre uma série fechada ou fixa de cocumentos, como tradicionalmente se compreende, e uma estrutura administrativa particular, estável, estão freqüentemente apagadas. As funções operacionais, os processos empresariais e as atividades de trabalho das agências cruzam, hoje, todos os tipos de fronteiras estruturais ou organizacionais, gerando documentos na medida em que o fazem. O trabalho é feito, agora, tanto horizontalmente quanto verticalmente nas organizações, e os documentos são, por conseqüência, criados e mantidos de formas diferentes. Infelizmente, a Arquivos Pessoais e Arquivos Institucionais ciência arquivística apenas lentamente está reconhecendo o impacto fundamen tal dessas mudanças sobre os princípios tradicionais, que foram desenvolvidos para documentos e organizações em uma época bem mais simples. Podemos certamente acreditar no "respeito aos fundos", mas qual é o "fundo" que devere mos respeitar neste novo mundo? Há 11m quarto de século, Peter Scott, da Austrália, demonstrou convin centemente que a premissa arquivística tradicional de lima relação lIm-para-um entre um registro e a administração que o cria não era mais válida como base para a descrição arquivística, mas poucos arquivistas fora de seu país lhe deram ouvidos até recentemente? Scott demonstrou claramente que as próprias admi nistrações não eram mais, em estrutura ou função, weberianas, ou mono-hierár quicas, e sim complexos dinâmicos sempre em mutação, assim como seus sistemas de arquivos. A solução de Scott(ampliada por sucessores tais como Chris Hurley) foi se afastar da descrição dos registros arquivísticos organizados em um único grupo, ou fundo, para um criador único de documentos, e passar, ao invés, a uma descrição das múltiplas inter-relações entre numerosos criadores e várias séries de documentos, suas motivações funcionais e seus contextos mais amplos. Tais inter-relaçoes não são relações fixas, de um-para-um, como nas abordagens arquivísticas tradicionais de arranjo e descriçao; elas são, antes, relações de muitos-para-um, um-para-muitos e muitos-para-muitos: são, por exemplo, re lações entre várias séries e um criador, entre vários criadores e uma série, entre muitos criadores e muitas séries, entre criadores e outros criadores, entre séries e outras séries e entre séries e criadores para funções e vice-versa, entre funções correntes e suas predecessoras ou sucessoras, entre agências mais antigas e documentos de suas sucessoras - uma infinita riqueza de quase todo tipo concebível de inter-relacionamento contextual entre documentos, criadores e funções. O que os australianos fIZeram foi levar a descrição arquivística, da catalogação estática, para um sistema de inter-relacionamentos dinâmicos. Fize ram-no com a intenção explícita de enfatizar o princípio da proveniência, isto é, enriquecendo a compreensão do complexo contexto da criação de documentos. Os insighlS de Scott estão sendo ressuscitados agora, tanto para o mundo dos documentos eletrônicos quanto para a descrição arquivística de hipertextos interligados aos sites da Internet. Em um nível mais profundo da teoria ar quivística, a abordagem australiana abala a visão clássica do arranjo e descrição arquivísticos e deve, portanto, fazer-nos questionar também a santidade de vários. outros conceitos arquivísticos tradicionais para arquivos públicos que se basea ram nessas abordagens mais antigas. A teoria moderna de avaliação também reforça os insights de Scott sobre o mundo da descrição e reflete igualmente o impacto dos documentos eletrônicos sobre o pensamento arquivístico. Como há agora bilhões de documentos de 135 136 estudos hist6ricos e 1 998 - 21 multimídia para avaliar; como fal avaliação deve, freqüentemente, ser feita no estágio de desenho do sistema de computador, antes que um único documento tenha sido criado; como as organizações criadoras de documentos são fluidas, instáveis, poli-hierárquicas e interligadas horizontalmente em rede; e como os registros das unidades de serviço agora duplicados ou armazenados em um arquivo do servidor central (ou computador centralizado) não têm, geralmente, nenhuma divisão interna significativa por estrurura, função, assunto ou atividade empresarial, as abordagens de avaliação mais recentes estão centradas na apre ciação das funções, programas e atividades do criador de documentos e daqueles que com ele interagem, em vez de enfocar os documentos individuais ou grupos de documentos e seus possíveis usos, codificando então os resultados da avaliação diretamente nos sistemas de operação e softwares do computador, para classificar os registros arquivísticos, separando-os dos demais, que podem ser destruídos. A nova estrurura analítica para a avaliação rejeita, assim, os princípios arquivísti cos tradicionais de arranjo e descrição, que preconizam uma congruência exata entre a função criadora, a estrutura criadora e seu sistema de armazenamento de informações. Ao invés, a nova abordagem reconhece que as funções agora são multi-institucionais e que dentro de cada instituição há numerosos sistemas de armazenamento de informações, com uso de vários meios. 8 A nova macro avaliação funcional-estrutural de que o Canadá foi pioneiro, e que está agora sendo implantada em vários países, enfatiza o valor arquivístico da posição, local ou funcionalidade da criação de documentos, em lugar do valor dos documentos por eles mesmos. Permitam-me explicar isso em detalhe. Os documentos seguem funções; são criados como produto do trabalho em várias atividades ou transações. No antigo, e muito mais simples, mundo dos arquivos de papéis, uma subseção particular dentro de uma instituição tinha a si atribuída a competência total para a execução de alguma função, subfunção ou atividade, e seus arquivos refletiam a totalidade dessa função. Agora, nas com plexas e instáveis burocracias de nossos dias, especialmente com seus sistemas eletrônicos computadorizados, não há "arquivos" criados naruralmente nesses computadores para os inúmeros trabalhadores que estejam contribuindo para uma deternlÍnada atividade, ou "arquivo". Os "arquivos", portanto, têm de ser "gerados". Como? A abordagem sugerida ao arquivista é que faça uma pesquisa cuidadosa sobre a funcionalidade de uma instituição (isto é, que identifique suas funções, subfunções ou subsubfunções, seus programas e atividades, tanto os rotineiros quanto os especiais, e a natureza de suas transações, de sua clientela e de suas (mutantes) estruturas internas); que analise, então, quais funções, pro gramas, atividades, transações ou tipos de clientes, ou de interações com os clientes etc., têm significância arquivística; que trabalhe, então, com os pro gramadores de computador para elaborar inslI1.\ções de software que levem os Arquivos Pessoais e Arquivos Institucionais computadores a criar arquivos virtuais para as funçoes e atividades que julgue de valor permanente, de modo tal que o computador passe automaticamente a salvar esses registros (e-mails, correspondência, relatórios, tabelas, gráficos etc.) como "arquivos" que são organizados, auto-indexados e auto-separados para preser vação arquivística. Espera-se, é claro, que a instituição que cria os arquivos aplique a lógica dessa metodologia a todos os seus registros, e nao apenas àqueles com valor arquivístico, gerando assim eficiência administrativa e memória • corporativa. Essa nova abordagem da avaliaçao, ou macroavaliação, como a descrevi, requer, evidentemente, que os arquivistas pesquisem esses fenômenoscom extremo cuidado, de modo a assegurar às instituições (ou a seus segmentos funcionais) a capacidade de criar registros de valor arquivístico de uma forma global, em vez de tentar avaliar diretamente, uma por uma, as dezenas de milhares de séries de documentos, bases de dados e coleções de mídia que qualquer jurisdição de porte conterá e, muito menos, os bilhôes de arquivos, documentos ou imagens, ou seus ainda mais impalpáveis equivalentes ou substitutos eletrôni cos. No novo mundo dos documentos eletrônicos, essa análise funcional e as decisões de avaliação dela resultantes devem ser incorporadas desde cedo ao processo de criação de documentos, idealmente no estágio de desenho do sistema de computador, antes mesmo que o primeiro documento tenha sido criado, e não tempos depois da criação e uso do documento, quando pode haver o benefício de uma visão retrospectiva e de Qma perspectiva histórica ao se decidir sobre a avaliação. Porque, no caso dos registros eletrônicos, com seus documentos transitórios e virtuais, suas bases de dados relacionais e de propósitos múltiplos, e suas redes de comunicação informais, e não hierarquizadas, que englobam várias instituições, nenhum registro confiável chegará sequer a sobreviver para ficar à espera de que o arquivista o preserve "após o fato" - a menos que o arquivista intervenha na vida ativa do documento, de modo semelhante ao que sugeri acima, influenciando assim o comportamento organizacional dos criadores de registros, suas culturas de trabalho e o desenho de seus sistemas de computadores ou estratégias de implementação, preferivelmente antes que o primeiro documento tenha sido de fato criado. 9 , E importante lembrar que a própria avaliação é uma mudança impor tante no cerne do pensamento arquivístico ocorrida depois de 1898 ou, na verdade, a partir de Jenkinson, em 1922. O manual holandês virtualmente silencia sobre esse assunto. O próprio Jenkinson disse que, uma vez que os documentos eram os subprodutos naturais da administração, nenhuma inter ferência do arquivista após sua criação poderia ser admitida, sob pena de ver-se abalado seu caráter de evidência imparcial. Desejando-se preservar as alegadas inocência e transparência dos documentos, em um contexto arquivístico, 137 138 estudos históricos. 1 998 - 21 qualquer avaliação do arquivista seria, para J enkinson, totalmente inadequada. Um tal exercício de "julgamento pessoal" pelo arquivista, que Jenkinson sabia estar inevitavelmente envolvido, macularia a imparcialidade da evidência dos arquivos, como o faria também, é claro, qualquer consideração de preservar os arquivos de um modo que atendesse às necessidades, reais ou projetadas, de seu uso pelos pesquisadores. Para J enkinson, o papel do arquivista seria manter, não selecionar arquivos. Essa visão, conquanto compreensível quando aplicada a pequenos volumes de documentos raros da Idade Média e do início da Era Moderna, que tinham, primordialmente, uma natureza legal ou de titularidade, , é completamente inadequada ao mundo moderno. E até irresponsabilidade do arquivista adotar tal posição diante dos grandes volumes e da frágil natureza eletrônica dos documentos deste final do século XX . A própria avaliação, espe cialmente nas novas formas com vem sendo atualmente concebida, desafia, assim, fundamentalmente, a teoria arquivística tradicional. 10 Essas mudanças que estão ocorrendo nos conceitos e metodologias arquivísticas para trato com documentos públicos e institucionais (que são os únicos com que lidei até o momento) indicam uma imponante alteração na fonte da teoria arquivística. Há um século, os princípios arquivísticos derivavam de uma análise de documentos individuais baseada na diplomática ou, como já vimos, das regras criadas pelos autores holandeses, por J enkinson, Casanova e outros, para o arranjo e descrição de séries fechadas de ·documentos oficiais recebidos por arquivos, oriundos de instituições governamentais estáveis e mono-hierárquicas. Nenhuma seleção ou redução da totalidade dos documentos originariamente criados era bem-vinda, e ficava por conta do criador ou, nas palavras de Jenkinson, "administrador", sendo feita muito antes de os documen tos chegarem à instituição arquivística, sem qualquer envolvimento de um arquivista na avaliação. O que se precisa agora é de uma perspectiva teórica bem diferente: já que, como acabamos de observar, existem bilhões de séries correntes de registros em multimídia a serem avaliadas dentro de organizações instáveis; já que a avaliação, freqüentemente, deve ocorrer no estágio de desenho do sistema de computador, antes que um único documento tenha sido sequer criado, e já que a descrição, cada vez mais, reflete ou incorpora meta dados de sistemas de computador que atravessam antigas fronteiras estruturais ou de "séries" e, na verdade, antes inter-relaciona de várias maneiras do que cataloga suas infor mações, o enfoque da teoria arquivística deslocou-se, por conseguinte, do próprio registro para seu contexto, ou processo funcional de criação; do artefato físico para a "a ação e O ato em si mesmos" que fizeram com que aquele anefato fosse criado. A teoria arquivística se inspira agora, ponanto, mais na análise dos processos de criação de documentos do que no arranjo e descrição de produtos documentados em arquivos. Como concluiu Eric Ketelaar, que até este ano foi Arquivos Pessoais e Arquivos Institucionais diretor do Arquivo Nacional da Holanda, "a ciência arquivística funcional substitui a ciência arquivística descritiva, ... é apenas através de uma interpretação funcional do contexto que cerca a criação de documentos que se pode entender a integridade do fundo e as funções dos documentos arquivísticos em seu contexto original".lI Todas essas mudanças fundamentais no mundo real das organizações e dos sistemas de álmazenamento de documentos têm um impacto significativo sobre as tarefas e responsabilidades do arquivista. Como sua intervenção ativa nos processos de manutenção de documentos é agora exigida para que fique assegurado que as propriedades de evidência confiável existam para os documen tos, como disso resulta, na base da moderna avaliação (e posterior descrição), a necessidade de que o arquivista investigue e compreenda a natureza complexa de funções, estruturas, processos e contextos, e interprete sua importância rela tiva, por tudo isso, a idéia tradicional da imparcialidade do arquivista não é mais aceitável - se é que algum dia o foi. Os arquivistas, inevitavelmente, injetarão seus próprios valores em todas essas atividades, bem como na própria escolha que terão de fazer, nesta era de recursos limitados, sobre quais criadores, quais sistemas, quais funçoes, quais programas, quais atividades, quais documentos, na verdade, irão receber atenção arquivística parcial ou total e quais serão simplesmente abandonados. Assim, os arquivistas mudaram no último século, passando, dos custodiadores jenkinsonianos passivos da totalidade.dos resíduos documentais deixados por seus criadores, a ativos confolmadores da herança arquivística. Evoluíram de uma suposta posição de guardiães imparciais de pequenas coleções de documentos herdados da Idade Média, para tomarem-se agentes intervenientes que estabelecem os padrões de arquivamento e deliberam sobre qual pequena fração do universo de infolmações registradas será se lecionada para a preservação arquivística. Tomaram-se, assim, construtores muito ativos da memória social. Na verdade, afillllaria até que se tomaram o principal agente de formação da memória, sem esquecer das imponantes con tribuições, nessa tarefa, de seus colegas dos museus, bibliotecas, e cultura mate rial. Essa perspectiva que venho desenvolvendo é conscientemente, embora implicitamente, pós-moderna, assim como os princípios arquivísticos tradicio nais que estou questionando estão profundamente enraizados no modernismo, ou até no pré-modernismo.Pelmitam-me esboçar mais explicitamente algumas formulações pós-modernistas, visando, é claro, suas implicações documentais e, por conseguinte, arquivísticas.12 O pós-moderno desconfia da idéia de verdade absoluta baseada no racionalismo e no método científicos. 13 O contexto por trás do texto, as relações de poder que confolmam a herança documental lhe dizem tanto, se não mais, 139 140 estudos históricos • 1998 - 21 que o próprio assunto que é o conteúdo do texto. Nada é neutro. Nada é imparcial. Tudo é confOlmado, apresentado, representado, simbolizado, significado, assi nado, por aquele que fala, fotografa, escreve, ou pelo burocrata governamental, com um propósito definido, dirigido a uma determinada audiência. Nenhum texto é um mero subproduto, e sim um produto consciente para criar umapersona ou servir a um propósito, embora essa consciência, oupersona, ou propósito - esse contexto por trás do texto - possa ser transformado, ou perdido, em padtões inconscientes de comportamento social, em discurso institucional e em fórlllulas padronizadas de apresentação de informações. Os pós-modernistas procuram desnaturalizar o que presumimos natural, o que, por gerações, talvez séculos, aceitamos como normal, natural, racional, provado - simplesmente, o jeito de ser das coisas. O pós-modernista toma tais fenômenos "naturais" - seja o patriarca lismo, o capitalismo, a religião ou, poderia eu acrescentar, a ciência arquivística tradicional - e afilü13 que são "antinaturais", ou "culturais" ou, no mínimo, "construções sociais" de um tempo, lugar, classe, gênero, raça etc. especificos. Mais ainda, os pós-modernistas vêem explicitamente os arquivos como fragmen tos de universos de documentos agora perdidos ou destruídos. Encaram os próprios documentos como espelhos distorcidos que alteram os fatos e realidades passados, mas, ironicamente, consideram que servem como "sinais ... dentro de contextos já semioticamente construídos, contextos que são, eles mesmos, de pendentes de instituições (no caso de registros oficiais) ou indivíduos (se forem relatos de testemunhas oculares)". 14 Se o modernista do século XX criticava a idéia de fato ou verdade histórica, o pós-modernista critica a idéia de documento. J acques Le GofI observa que "o documento não é matéria-prima objetiva, inocente, mas expressa o poder da sociedade do passado (ou da atual) sobre a memória e o futuro: documento é o que fica". O que vale para cada documento vale também, coletivamente, para os arquivos. Não é por coincidência que os primeiros arquivos foram os arquivos reais da Mesopotâmia, do Egito, da China e da América pré-colombiana. A capital torna-se, nas palavras de Le GofI, "o centro de uma política de memória" onde "o rei desenvolve pessoalmente, por todo o território sobre o qual tem controle, um programa de recordação do qual ele próprio é o centro". Primeiro a criação, depois o controle da memória levam ao controle da história, daí à mitologia e, por último, ao poder.15 Essa ênfase inicial persistiu. Os arquivos medievais, como o descobrem agora os acadêmicos, foram coligidos - e com freqüência posterior mente re-selecionados e reconstruídos - não apenas para conservar a evidência das transações legais e comerciais, como também, explicitamente, para servir a propósitos históricos e sacro/simbólicos - mas apenas para os personagens e eventos julgados merecedores de celebração, ou memorialização, no contexto de seus tempos.16 Colocando-se em um ponto de vista oposto, o daqueles que foram Arqllivos Pessoais e Arqllivos ]JlstitllciOl.ais marginalizados pelo empreendimento arquivístico, a historiadora feminista americana Gerda Lerner acompanhou convincentemente, da Idade Média ao nosso século, a exclusão sistemática das mulheres dos instrumentos e instituições de memória da sociedade, dos arquivos inclusiveY Revela-se agora que os arquivos da Primeira Guerra Mundial sofreram manipulações e alterações im portantes para fazer que o marechal de campo Sir Douglas Haig parecesse menos culpado pelo massacre do front ocidental sob seu comando e no qual teve grande responsabilidade.18 E ainda de outro ponto de vista, os arquivistas dos países em desenvolvimento estão agora questionando seriamente se os conceitos clássicos da arquivística, originados na cultura escrita das burocracias européias, são adequados para a preservação das memórias de culturas orais. Em resumo, os pós-modernistas entendem que todos os atos de recordação da sociedade são subordinados à cultura e têm implicações ligadas ao seu tempo. Que significado tem qualquer dessas questões para os arquivistas? Em um certo nível, o pós-modernismo é tranqüilizador para os arquivistas: sua preocupação com "os contextos semioticamente construídos" de criação de documentos espelha claramente a preocupação com a contextualidade há muito manifestada pela arquivística no mapeamento das inter-relações de proveniência entre o criador e o documento, na determinação do contexto pela leitura através e por trás do texto. Contudo, em um nível ainda mais profundo, o pós-moder nismo (e a nova historiografia correlata sobre construção da memória social) deveria incomodar os arquivistas, levando-os a questionar cinco mitos centrais, ou tradições, de sua profissão: 1) o de que os arquivistas são guardiães neutros, imparciais da "Verdade", para usar as próprias palavras de Jenkinson; 2) o de que os arquivos, como documentos e como instituições, são subprodutos desinteres sados das ações e administrações; 3) o de que a proveniência tem raízes em um único órgão de origem ou transmissão, em vez de em um processo de criação; 4) o de que a "ordem" imposta aos arquivos por meio do allanjo e descrição arquivísticos - para não falarmos da avaliação! - é uma recriação isenta de valores de alguma realidade genuína anterior; e 5) o de que a arquivística é uma ciência - pelo menos uma "ciência" como esse termo é tradicionalmente concebido e utilizado pelos arquivistas, produto da idade do racionalismo científico. Restam questões mais profundas, como Le Goff, Lerner e outros historiadores da memória indicam. Quem estamos nós, como arquivistas, memorializando agora? E quem, hoje, marginalizamos e excluímos da memória social por nossas ações e omissões? Desde que Thomas Kuhn escreveu, em 1962, sobre paradigmas cientifi cos - e vários autores desde então, especialmente as críticas feministas -, o conceito de ciência foi radicalmente modificado por um reconhecimento de sua natureza subjetiva, onde antes a ciência fora caracterizada como objetiva, neutra, 141 142 estudos históricos • 1 998 - 21 impessoal e desinteressada.19 A ciência arquivística, em minha opinião, não é diferente. Em qualquer ciência, as opções de projetos, métodos e praticantes, os padrões de excelência e aceitação, e as razões para exclusões e reprovações, as escolhas que faz ao alocar os recursos que tem e treinar seus profissionais, tudo reflete necessidades e interesses atuais e disputas mais profundas de poder social, lingüístico, ideológico, de gênero, de classe, racial, étnico e de padrões emocionais. Há aqui uma importante lição para os arquivistas. Assim como os cientistas, os arquivistas são (e sempre foram) parte importante do processo histórico em que se encontram - e parte importante, também, do legado do racionalismo científico criticado por Foucault e outros pós-modernistas. Minha recomendação é que os arquivistas deveriam aceitar, em vez de negar, sua própria hístoricidade, ou seja, deveriam reconhecer, ao invés de negar, sua própria participação no processo histórico. Não são historiadores, mas fazem parte do processo histórico, em vez de dele estarem distanciados. Deveriam, portanto, reintegrar o subjetivo (isto é, a mente, o processo, a função) com o objetivo (isto é, a matéria, o produto documentado, o sistema de infOImações) em seus cons tructos teóricos e em suas metodologias estratégicas. Então, uma vezlivres dos mitos da objetividade e imparcialidade jenksionianas, deixarão de ter motivos para não integI3c os arquivos públicos e os pessoais dentro de um enfoque teórico comum centrado na construção da memória social e coletiva. Perceberão, então, que os arquivistas de arquivos públicos ou institucionais têm tantas dificuldades e escolhas discricionárias a fazer quanto os arquivistas de arquivos pessoais. Ambos são igualmente arbitrários e artificiais, ao menos de uma perspectiva jenkinsoniana. Ambos, ativamente, criam e confol'mam, filtram e distorcem arquivos, em vez de, passivamente, preservarem arquivos que lhes teriam sido entregues de alguma maneira impossivelmente neutra ou objetiva. Por con seguinte, rompamos as barreiras artificiais - ao menos no nível da teoria e dos conceitos profissionais básicos - que por tempo demasiadamente longo vêm dividindo as tradições de arquivos pessoais e arquivos públicos. Consideremos, ao invés, uma perspectiva de "arquivos totais" - se não dentro de cada instituição arquivística no Brasil, devido talvez a restrições legislativas e de mandato, então, pelo menos, dentro da malha arquivística global brasileira. O conceito canadense de "arquivos totais" pode servir de modelo aqui, pois integra, em quase todos os tipos de arquivos por todo o país, o papel oficial dos arquivos, como guardiães da continua demanda corporativa de seus patroci nadores pela evidência documentada de suas transações, e o papel cultural dos arquivos, como preservadores da memória social e da identidade histórica, dando a suas coleções, em ambos os casos, um equilíbrio entre os arquivos oficiais e pessoais em todas as foxmas de mídia. Os "arquivos totais" refletem, assim, uma visão mais ampla dos arquivos, sancionada pela sociedade como um todo e reflexo Arquivos Pessoais e Arquivos Institucionais dela, em vez de uma visão conformada a priori, ou por poderosos grupos de interesse dos usuários, ou pelo Estado. No Canadá, os arquivos pessoais são vistos como complemento e suplemento dos fundos de arquivos oficiais ou públicos. Em resumo, a tradição dos "arquivos totais" canadenses está mais voltada para os arquivos de governança que para os arquivos de governo. Arquivos "de gover nança" incluem os documentos que refletem a interação dos cidadãos com o Estado, o impacto do Estado sobre a sociedade e as funções ou atividades da própria sociedade, tanto quanto incluem os documentos das estruturas do gover no e de seus burocratas voltados para dentro. A tarefa arquivística coletiva no Canadá é preservar a evidência documentada da governança da sociedade, não apenas da atividade governante dos governos. 20 Os arquivos são templos modernos- templos da memória. Como insti tuições, tanto como coleções, os arquivos servem como monumentos às pessoas e instituições julgadas merecedoras de serem lembradas. Igualmente, as que são rejeitadas por serem julgadas não merecedoras, têm seu acesso negado a esses templos da memória e estão fadadas, assim, ao esquecimento de nossas histórias e de nossa consciência social. Isso é de vital importância, pois o novelista tcheco Milan Kundera nos lembra que "a luta contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento". O controle do passado, e o controle sobre a criação e preservação do passado pelos arquivos, reflete as lutas de poder do presente e, na verdade, sempre as refletiram. Isso tem implicações relevantes para os arquivistas, tanto de arquivos pessoais quanto de arquivos institucionais, e para a profissão ar- • • • qwvlsnca. Há mil anos, quando a sociedade passou do registro oral para o escrito, o enfoque dos arquivistas também mudou, da lembrança da ação para o cuidado dos artefatos escritos que davam testemunho da ação. Agora, à medida que a sociedade passa, junto com um novo milênio, dos documentos escritos fixos para documentos eletrônicos virtuais, e de organizações estáveis para outras, tran sitórias, os arquivistas também precisam mudar o foco primordial de sua atenção, deixando o cuidado daqueles artefatos físicos (os documentos) para passar à pesquisa e ao entendimento das funções e atividades dos criadores de documen tos, e dos processos correlatos de geração de registros, para que os arquivos possam efetivamente ser criados. Se, ao fazerem essa reorientação que lhes é . exigida, vierem também a aceitar, em vez de negar, sua própria historicidade e seu papel ativo na construção da memória social, os arquivistas reconhecerão, então, no nível mais essencial, a natureza comum dos arquivos públicos e pessoais. Ironicamente, essa nova unidade de propósitos não virã se perguntar mos, como os arquivistas tendem a fazê-lo, se os arquivos pessoais podem se confolmar aos tradicionais e sagrados princípios há muito usados para os ar quivos públicos e institucionais, e sim se as instituições arquivísticas e seus 143 144 estudos históricos. 1 998 - 21 arquivistas conseguirem reconhecer a necessidade de modificar vários de seus princípios tradicionais de modo a adotar a mesma perspectiva em relação aos arquivos, à história e à memória que adotam seus colegas dos arquivos pessoais. 21 Nessa idéia da construção da memória coletiva e na necessidade atual de um entendimento mais profundo dos processos funcionais da sociedade e de suas instituições para se empreenderem as novas metodologias de avaliação e des crição, há, parece-me, alguns férteis conceitos, enfoques estratégicos e inspirações • comuns para arquivistas tanto de arquivos institucionais quanto de pessoais. "Recordar", para o indivíduo é, afinal, tanto pessoal quanto social, tanto interno quanto externo, tanto privado quanto público. Assim também deve sê-lo, coleti vamente, para os arquivos que são criados para ajudar a sociedade a lembrar-se de seu passado, de suas raízes, de sua história, que, por definição, combina o público e o pessoal. Esta é uma visão que poderá ser alcançada no século XXI, se os arquivistas deixarem de ser mantidos prisioneiros pelo pesado jugo de suas próprias tradições ultrapassadas. No tas 1. A argumentação apresentada neste trabalho segue, em parte, a de dois outros de minha autoria: "Electronic records, paper minds: the revolutíon in infonnation management and archives in the postcustodial and pasonodemist era", Archives and Manuscripts 22 (nov. 1994), p. 300-29; e "What is past is prologue: a history af archival ideas since 1898, and the furure paradigm shift", Archivaria 43 (primavera de 1997), p. 17-63. Esses ensaios são extensivamente documentados, e os leitores são a eles remetidos para referências mais completas. As notas que acompanham o presente texto pretendem sugerir as melhores leituras sobre os argumentos apresentados, e não formar uma lista exaustiva de todas as fontes possíveis. 2. A melhor visão geral está em Richard C. Berner, A rchival theory and pracúce in lhe Uniled States: a historlcal analysis (Seatde e Londres, 1983). 3. A melhor análise é a de Wilfred I. Smith, "'Total archives': the canadian experience" (texto de 1986), in Tom Nesmith, Canadian archival studies and lhe rediscuvery of provenance (Meruchen, N. J., 1993), p. 133-50. Para uma visão de apoio, mas crítica, do conceito de implantação, ver Terry Cook, "The tyranny of the medium: a camment on 'total archives"", Archivaria 9 (inverno de 1979-80), p. 141-49. Ver também Shirley Spragge, "The abdication crisis: are archivists giving up (heir culrural responsibility?", Archivaria 40, (oUlono 1995), p. 173-81. 4. Para o contexto italiano e o trabalho de Casanova, ver Oddo Bucci, ed.,Archival science on lhe lhreshold of lhe year 2000 (Macerata, Itália, 1992), p. 17-43. As citações são das p. 34-35 e de sua "Introduction", p. 1 1 . 5. S. Muller, J. A. Feith e R. Fruin, Manual for the arrangeme711 and description of archives (1898), rradução (1940) da 2' ed. por Anhur H. Leavitt (Nova Iorque, reeditada em 1968), p. 13-20, 33-35, 52-59.A melhor história do manual em inglês está em Marjorie Rabe Barritt, 'CComing to America: dutch archivistiek and american archival practice", Archival lssues 18 (1993), p. 43-54. Mais recentemente, ver Comelis Dekker, "La Bib1e arch.ivistique néer1andaise et ce qu'il eo est advenu", in Bucci,Archival seience on lhe IhresJwId, p. 69-79. A melhor fonte de informações biográficas sobre o trio holandês, inclusive suas relações . . - ' . I.nterpesso31s oao mtclramcnte agradáveis, é Eric Kcte1aar, "Muller, Freith and Fruin", Archives el Bibliolheques de Belgique 57 (nO 1-2, 1986), p. 255-68. 6. Hilary J enkinson, A manual of archi'lJe administration (Londses, 1968, reedição da 2' ed. revista de 1937), p. 149-55, 190. 7. A melhor exposição do Sistema Australiano de Séries (incluindo uma relevante reconceituação e atualização das idéias de Scott) pode ser encontrada em Sue McKemmish e Michael Piggott, eds., The records continuum: Ian Mac/ean and Australian Archives fim 50 ycan (Clayron, 1994), especialmente nos ensaios de Sue McKemmish e Chris Hurley. Para o núcleo de suas idéias, ver Peter Scott, "The record group concept: a case for abandonment", Amcrican Archivisl 29 (Out 1996), p. 493-504; e sua série em cinco capírulos com diversos co-autores: "Archives and administrative change - some methods and approaches", Archives and Manuscriprs 7 (ago 1978), p.1 l5-27; 7 (abr 1979), p. 151-65; 7 (mai 1980), p. 41-54; 8 (dez 1980), p. 51-69; e 9 (set 1981), p. 3-17. Pasa uma importante expansão australiana da posição de Scolt, ver Chsis Hurley, "Wbat, if anything, is a function",Archives and Manuscripts 2 1 (nov 1993), p. 208-20; e seu "Ambient functions: abandoned children to zoos", Archivaria 40 (outono de 1995), p. 21-39. 8. Para a reconceituação canadense da teoria e da metodologia da avaliação, os principais trabalhos são: Terry Cook, uMind over matter: towards a new theory of arcbival appraisal", in Barbara L. Arquivos Pessoais e Arquivos Institucionais Craig, The archival imagination: essays in hanour ofHughA. Taylor (Ottawa, 1992), p. 38-70; e Terry Cook, Tlte archival appraisal of records conraining pmonal in/VI mation: a RAMP study with guidelines (paris, 1991). Para a abordagem em si, ver Terry Cook, "Ao appraisal methodology: guidelines for performing an arcbival appraisal", (dez 1991); e Terry Cook, "Government-wide pIan for the disposiúon ofrecords 1991-1996" (out 1990), ambos relatórios para os National Archives. Para uma sofisticação proposta para essas metodologias, embora ainda necessitando estratégias de implantação mais completas, ver o trabalho feito pelo colega de Cook, Richard Brown, "Records acquisition strategy and its theoretical foundation: the case for a concept of archival hermeneutics", Archivaria 33 (inverno de 1991-92), p. 34-56; e Richard Brown, "Macro-appraisal theory and the contcxt ofthe public records creator",Archivaria 40 (outono de 1995), p. 121-72. Inspirações anteriores da abordagem canadense são encontradas, em um nível conceitual e até fLlosófico, em Hans Booms, "Society and the formation of a docurnentary heritage: issues in the appraisal of archival sources",Archivaria 24 (verão de 1987), (original de 1972: tradução de Hermina Joldersma e Richard Klumpenhouwer); e na estratégia de documentação desenvolvida nos Estados Unidos por Helen Samue1s: ver seu "Who controIs the past", American Archivisl 49 (primavera de 1986), p. 109-24. Um artigo posterior atualiza o tema e contém referências cruzadas adicionais; ver Ricbard J. Cox e Helen W Samuels, "Tbe arcbivist's first responsibility: a research agenda to improve the identification and retention ofrecords of enduring value", American Archivisl 51 (inverno-primavera de 1988), p. 28-42. Uma importante revisão do pensamento de Samuels, que se afasta das bases "temáticas", ou "por assunto" da 145 146 estudos históricos • 1 998 - 21 estratégia de documentação e se aproxima da posição "funcional", ou de "proveniência-transação" da abordagem de macroavaliação canadense, está em Helen Wma Sarouels, lffll3i(Y letters: documenting modem ",/leges and universitites (Meruchen, N. J., e Londres, 1992), p. 15 e passim. Ver também sua panorâmica das estratégias de documentação e das análises funcionais in Helen W. Samuels, "Improving our disposition: documentation strategy", Archivaria 33 (inverno de 1991-92), p. 125-40. Para a critica da própria estratégia de documentação, ver David Bearman, Archival methods (Pittsburgh, 1989), p. 13-15; e Terry Cook, "Documentation strategy" , Archivana 34 (verão de 1992), p. 181-91. • 9. E imensa a literatura sobre documentos e arquivos eletrônicos, na qual muitos dos conceitos que mencionei nestas páginas são elaborados. O principal pensador mundial é David Bearman; dez de seus melhores ensaios estão agora coligidos em David Bearman, Electtunic evidence: strategies for managing records in cont.emporary organizations (pittsburgh, 1994); e lima larga gama de seus comentários e análises aparece através de todos os mímeros deArchives and Museum lnfOlmarics, que editou durante lima década (até 1996). A outra voz principal tem sido Margaret Hedstrom: ver seu desbravador manual SAA, Archives and manuscriplS: machine-readable recorlh (Chicago, 1984); e, mais recentemente "Understanding elecrronic incunabula: a framework for research 00 electronic records", American An:hiviJt 54 (verão de 1991), p. 334-54; "Descriptive practices for elecrronic recordo deciding what is essential and imagining what is possible",Archivaria 36 (outono de 1993), 53-62; e, com David Bearman "Reinventing archives for electronic records: altemative service delivery options") in Margaret Hedsrrom, ed., Elecbonic records management program strategies (pinsburgh, 1993), p. 82-98. Um antigo pioneiro do arquivamento eletrônico foi Charles M. Dallar; ver um resumo feito em um ponto avançado de sua carreira em seus Archival tlwory and inlo",aation technoÚJgies: the impact 01 information technoÚJgies on archival principies and methods (Macerara, Itália, 1992); e "Archival theory and practices and informatics. Some considerations", in Bucci, Archival science on the threshold, p. 311-28. Uma das primeiras vozes canadenses foi Harold N augler, The archival approiJal 01 machine-readable records: a RAMP sl1Idy with guidelines (paris, 1984). Os dois - ensaios de Terry Cook mencionados na nota 1 acima são f3m bém relevantes para o tema do arquivamento de registros eletrônicos; ver, ainda, Terry Cook, "Keeping our electronic memory: approaches for securing computer generated records", South African Archives Joumal 37 (1995), p. 79-95. Para lima crítica detalhada dos desvios no arquivamento dê registros eletrônicos à medida que estão se desenvolvendo, bem como para uma análise de seus pontos positivos na afirmação da relevância da arquivística na proteção da evidência em contexto na Era da Informação, ver Terry Cook, "The impact of David Bearman on modem archival thinking: an essay of persanal reflection and critique", Archives andMuseumlnfa,matics 1 1 (1997), p. 15-37. Várias estratégias evoluíram ou, pelo menos, estão sendo recomendadas aos arquivistas, para lidar com os documentos eletrônicos, o que não significa dizer que essas metodologias bem como a estrutura conceitual em que se baseiam - não gerem suas próprias controvérsias, tais como sobre se os arquivos precisam adquirir fisicamente todos os documentos eletrônicos para assegurar sua autenticidade, ou sobre a conexão apropriada com O gerador dos metadados e arquivos de autoridade • arquivística contextualizados. A melhor fonte singular para abordagens estratégicas dos documentos eletrônicos continua sendo Hedsttom, ed., Elecnollic recards managemenl program strategies, que apresenta estudos de casos com análises de fatores críticos para O sucesso e ofracasso dos programas de documentos eletrônicos em níveis internacional (2), nacional (4), estadual (4) e de universidades (I), com uma avaliação global e uma extensa (59 páginas) bibliografia anotada, compilada por Ricbard Cox para que os leitores prossigam com suas explorações. Ver também David Bearman, "Archival sttategies", trabalho discutido na conferência SAA de 1994, e a ser publicado brevemente no American Archivist. 10. Para Jen.kinson sobre isto, ver nota 6 acima. F. Gerald Harn, em Sekcting and appraising archive.s and manuscriplJ (Chicago, 1993), p. 9, e em seus outros trabalhos, é a melhor crítica moderna de JenkinsoD, acompanhando a visão dos anos 50 de T. R. ScheJlemberg. Mesmo os arquivistas que se inclinam para Jenkinson (o que não é o caso de Schellemberg!) se opuseram a seus pontos de vista sobre avaliação; em um fe.stchrift [coletânea 1 em sua homenagem, o principal arquivista do Canadá e da Austrália à época enfatizou as dificuldades da abordagem de Jenkinson: ver W. Kaye Larnb, "The fine art of destruction", p. 50-56, e Ian Maclean, "Ao analysis ofJenkinson's 'Manual of archive administration' in the light of australian experience", p. 150-51, ambos in Alben E. J. Hollaender, ed., Essays in memory qf Sir Hilary Jenkinsan (Chicbester, 1962). 11. Eric Kete!aar, "Archival theory and the Dutch Manual",Archivaria 41 (primavera de 1996), p. 36. 12. Muito poucos arquivistas no mundo têm discutido de forma sustentada as Arquivos Pessoais e Arquivos Institucionais implicaçóes do ethos pós-moderno (que vem dominando o pensamento acadêmico desde os anos 70, pelo menos) no que conceme à teoria e à prática arquivísticas e, curiosamente, todos que o fiZeram são, quase sem exceção, canadenses. Para uma análise bastante provocadora dos entendimentos e premissas dos arquivistas - muitas das quais falsas e desorientadoras - sobre "ordem" e sobre a natureza de seu próprio trabalho de estabelecimento, recriação e defesa das "ordens", originais e outras, bem como da primeira análise pós-modernista imponante do empreendimento arquivista, ver Brieo Brothman, ''Orders of value: probing the theroretical terms of aremval practice", Archivaria 32 (verão de 1991), p. 78-100. Outras análises pós-modernas são: "The limits oflimits: derridean deconstruction and the archival institution",Archivaria 36 (outono de 1993), p. 205-20; Richard Brown, "Records acquisition strategy and its theoretical foundation: the case for a concept of archival henneneutics", Archivaria 32 (verão de 1991), p. 152-56; e Joan M. Scbwanz, "'We make our toal. and om too18 make us': lessons from photographs for the practice, politics and poetics of diplomarics",Archivaria 40 (outono de 1995), p. 40-74. Minhas próprias análises sobre o pós-modernismo anteriores a este anigo estão restritas a partes de "Mind over matter: towards a ncw theory of archival appraisal", e de "'Electronic recoreis, paper miods: the revolution in information management and archives in the postcustodial and postmodernist era" , ambos citados anteriormente. Para uma importante voz pós-moderna australiana, ver o trabalho de Frank Sue McKemmish e Frank Upward, eds., Archival documenu: plT1viding acwumabili1y through recordkeeping (Melbourne, 1993), p. 41-54; e seu "Strucruring the records continuum. Pan two: Strucruration 147 148 estudos históricos. 1 998 - 21 theory and recordkeeping", A rchives and Manuscripts 25, (maio de 1997), p. 10-35. 13. Não parece de utilidade citar aqui toda uma prateleira de livros pás-modernos. Contudo, além das próprias análise e metodologia históricas de Michel Foucault, minha compreensão dos conceitos pós-modernos se deve, em grande parte, ao trabalho da acadêmica canadense Linda Hutcheon, The policies Df postmodemism (Londres, 1989) eA poetics Df postmodemism: hislory, lheory, fiction (Nova York, 1988). Uma seleção dos melhores trabalbos em várias d.isciplinas é apresentada em Charles J ecks, ed., The posl-modem reader (Londres, 1992). Em Foucault, os trabalhos essenciais para os arquivistas são Tile order Df Ihings: an archaelogy oflhe humon scienees (Nova York, 1970, originalmente em francês, 1966) e Tile archaealogy Df knowúulge (Nova York, 1972, originalmente em francês, 1969). Uma boa introdução a seu pensamento é Gary Gutting, Michel Foucauú's archaeology Df scienlific reason (Cambridge, 1989); ler especialmente p. 231-44 para a análise de Foucault sobre documentos. Para utn exemplo pioneiro da aplicação de alguns dos insights pós-modernistas a registros documentários, ver J. B. Harley, "Deconstrllcting me map", Cartographica 26 (verão de 1989), p. I-20. Harley explora o poderoso contexto social por trás do mapa, bem como observa os elementos metafóricos e retóricos do mapa, onde, antes, os acadêmicos viam apenas topografia e mensuração. Ele demonstra que a cartografia é menos "científica" do que se presumia e reflete as predileçóes funcionais de seus patrocinadores, tanto quanto a superfície da Terra. Para uma análise e conclusão similares sobre o mesmo meio, ver Terry Cook, mA reconstruction ofthe world': George R. Parkin's British Empire map of 1893", Cortographica 21 (1984), p. 53-64. 14. Hutcheon, Poetics Df postmodernism, p. 122. 15. Jacques Le Goff, History and memory, traduzido por Steven Raodall e Elizabeth Claman (Nova York, 1992), p. xvi-xvii, 59-60, e passim. 16. Sobre arquivos medievais e seus propósitos, ver Patrick J. Geary, Phanloms Df remembranee: memory and oblivion aI lhe end Df lhe fim millennium (princeton, 1994), p. 86-87, 177 e especialmente capítulo 3: "Archival memory and the destruction of the past" e passim. 17. As acadêmicas feministas estão bem cônscias dos modos como os sistemas de linguagem, escrita e registro de informações, e de preservação de tais informaçóes uma vez registradas, são baseados na sociedade e no poder, e não neutros, tanto agora quanto em todos os milênios anteriores. Como exemplo, ver Gerda Lerner, Tile crealion Df patriarchy (Nova York, 1986), p. 6-7, 57, 151, 200 e passim; e Riane Eisler The chalice & the blade (São Francisco, 1987), p. 71-73, 91-93. O último livro de Lemer, Tile creal;on Df feminist consciousness: from lhe MiddleAges 10 eigtheen-sl!lJen� (Nova York e Oxford, 1993), detalha cuidadosamente a exclusão sistemática das mulheres dos arquivos e da história, e as tentativas das mulheres, a partir do final do século XIX, para corrigir essa situação através da criação de arquivos de mulheres: ver especialmente o capítulo 1 1, "The search for women's history". 18. Ver Denis Winter, Haig's command: a reassessmenl (Harmondsworth, 1991), especialmente a seção fmal: "FalsifYing the record". 19. Evelyn Fax Keller, Refleetions on gender and scienee (Nova York, 1985), p. 1 1-12, 5-9, 130, e passim. O trabalho pioneiro de ligação dos métodos, teoria e descobertas científicos Clpuros", com seus bem "impuros" contextos sociais e intelectuais, foi o de T. S. Kuhn, The Arquivos Pessoais e Arquivos Institucionais StTUClUre Df Scientific Revolution, que em 1962 demonstrou que a suposta neutralidade da ciência era mais produto de ideologia que realidade. Ver também Carolyn Merchant, The dealh of noture: women, ccology and lhe Scienlijic RewlUlion (Nova York, 1980, 1990), p. xvii-xviü. Ela demonstra que as novas teorias da tennodinâmica e do caos também sustentam conclusões similares do pensamento cODtextual, interdependente, baseado em processo. 20. Sobre governança, ver Ian E. Wilson, "Reflections on archival strategies", AmericanArchivisl 58 (outono de 1995), p. 414,29. 21. Pode-se argumentar, na verdade, que os arquivistas pessoais ou de arquivos privados não enfrentam a complexidade de criadores organizacionais variáveis, nem da computadorização extensiva do arquivamento, nem dos imensos volumes que caracterizam os modernos arquivos institucionais.Isso pode ser verdadeiro, em parte, mas não derruba meu argumento de que as mudanças na estratégia arquivística se aplicam com igual força aos arquivistas pessoais e institucionais. Nos Arquivos Nacionais do Canadá, por exemplo, há cerca de 600 fundos para os documentos do governo canadense e 14.000 fundos para criadores pessoais de arquivos. No Brasil, conquanto possa haver milhares de fundos governamentais e corporativos sob a responsabilidade de instituições arquivísticas, há, potencialmente, 105.000.000 de fundos pessoais a recolher. A complexidade para os arquivistas pessoais está na decisão sobre quais poucos milhares de fundos, dentre as dezenas de milhões que existem, vale a pena preservar; para os arquivistas institucionais, está na decisão sdbre quais dentre os milhões de documentos complexos de um fundo merecem ser preservados. Ambos necessitam abordagens estratégicas baseadas na análise funcional para dar conta desses imensos desafios. Em termos de documentos eletrônicos, os criadores do setor privado estão rapidamente alcançando seus correspondentes institucionais na geração eletrônica de registros, dos rascunhos de novelas de escritores de renome às agendas e aos diários pessoais, que já existem em forma exclusivamente eletrônica, e mais, cerca de 50 milhões de usuários individuais da Internet (que crescem aos milhares todos os dias) que utilizam correspondência eletrônica, abrem web rites pessoais (a declaração autobiográfica de nossos dias?) e se engajam em formas eletrônicas de discussões para criar grupos virtuais de lobbying para todas as causas imagináveis. O desafio, para o arquivista pessoal, de lidar com esse mumdo "internético" de registros é pelo menos tão difícil quanto o que esbocei para O arquivista institucional. Palavras-chave: história da arquivísúca, princípios arquivísúcos, avaliação, documentos eletrônicos, pós-modernismo, memória, Canadá/ arquivos totais. (Recebido para publicação em novembro de 1997) 149