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Japiassu - A revolucao cientifica moderna OCR

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HILTON JAPIASSÚ 
A REVOLUÇÃO 
CIENTÍFICA MODERNA 
De Galileu a Newton 
li 
� Hilton Japiassú
Equipe de Realização
Editor: Carlos José Linardi Supervisão Gráfica: Waldenes Ferreira Japyassú Assistente Editorial: Carlos Alberto Carmignani LinardiRevisão: Peppino D' Ardis
Composição e Fotolitos: Página Um
------------�---�-----,------�.,.,
Ficha Catalográfica
. 
, 
Japiassú, Hilton
Hilton Japiassú - A Revolução Científica ModernaSão Paulo, SP.
Editora Letras & Letras, 1997.
Bibliografia 
1. Epistem.ologia
2. Filosofia
Apoio 
@CNPq 
Editora Letras & Letras
Atendimento ao consumidor
Av. Ceei, 1945 - Planalto Paulista Telefax: (011) 577-5746 - Cep 04065-003
São Paulo - SP
Colabore com a produção científica e cultural. Proibida a reprodução total ou parcial desta obrasem autorização do editor.
INTRODUÇÃO 
Se não podemos interpretar a revolução científica como 
uma resposta direta às "necessidades" econômicas de 
uma classe burguesa em expansão, tampouco temos o 
direito de explicá-la como a expressão de puras 
exigências da Razão, como uma instituição 
transcendente à sociedade, compreensível apenas como 
busca desinteressada da Verdade. 
11 
INTRODUÇÃO 
O objetivo do presente livro (l) é o de elaborar uma análise histórico-crítica, 
nãosomentedo solo epistemológico sobre o qual se constituiu a ciência 
no século XVII, mas do modo como sua emergência vinculou-se ao 
desenvolvimento da sociedade comercial, industrial e técnica 
inscrevendo-se no programa prático do racionalismo burguês. 1rata-se 
de uma história epistemológica. Mas não apenas numa perspe­
ctiva teoricista. Porque o projeto da ciência moderna foi forjado num 
contexto de revolução ao mesmo tempo científico intelectual e sócioe­
conômico-cultural. Todo o sistema de pressupostos intelectuais her­
dado dos Gregos e canonizado pelos medievais foi demolido e substi­
tuído por outro sistema propondo uma reavaliação completa de todos 
os valores, devendo eles se ordenar em função da inteligência hu­
mana segundo normas de conhecimento racional e experimental. A 
velha imagem qualitativa, contínua, limitada e religiosa do mundo 
(Cosmos) foi substituída por uma imagem quantitativa e infinitamente 
extensa do Universo. E tudo isso, em condições sócioeconômicas e 
político-ideológicas bastante precisas. A revolução científica se deu 
num momento de mutação total das formas de conhecimento em 
vigor. Ruíram como um castelo de areia. Novas formas surgiram, 
desta feita, científicas no sentido moderno. Mas surgiram condi­
cionadas por objetivos ideológicos e por finalidades sociais. Nesta 
revolução, a filosofia desempenhou um papel importante. Não como 
forma de funcionamento das novas produções científicas. Mas como 
ponte de ligação entre essas produções e os novos valores intelectuais 
e práticos: se antes associava a concepção greco-medieval da teoria e da 
12 A REVOLUÇÃO CENTÍFICA MODERNA 
ordem sócio-religiosa numa visão unitária, agora instaura a con­
cepção do trabalho matemático como olhar empírico. 
Tentaremos mostrar que o nascimento da ciência não pode estar 
dissociado da história do saber. Mas na medida em que esta se 
converte na história crítica da descoberta das condições reais de 
produção, de funcionamento e de estruturação das formas da racionali­
dade científica moderna. Porque a história dessa racionalidade e a do 
pensamento filosófico não podem ser reduzidas, respectivamente, a 
uma coletânea de fatos e de idéias: ambas tendem a definir atitudes 
mentais, modelos de inteligibilidade e determinadas visões de mundo. 
Por exemplo, desde sua origem, a ciência moderna tem hesitado entre 
um modelo de inteligibilidade matemático e um modelo biológico. 
O caráter inconciliável desses dois modelos ( os números ou a vida, o 
mecanismo ou o finalismo, a quantidade ou a quantidade) sempre 
culminando em conflitos epistemológicos, constitui uma das cara­
cterísticas fundamentais da história das ciências. Tais conflitos foram 
desenvolvidos e magnificados indevidamente po:r um dualismo bas­
tante irreconciliável, por uma espécie de contradição não-superável, 
mas que se encontra na base mesma da constituição e do desen­
volvimento da ciência moderna. Um dos momentos mais decisivos 
desse conflito reside na opção clara, produzida no século XVII, pela 
matematização ou geometrização da realidade� cujo momento in­
augural é bem-estudado por Alexandre Koyré C2,.
Não podemos negar certas implicações mais ou menos diretamente 
anti-religiosas acompanhando esse movimento ideológico, cujo primeiro 
gesto consiste na anulação da diferença entre o Céu e a Terra. Estes 
dois elementos se dissolvem na infinidade de um espaço euclidiano. 
E Deus fica expulso do mundo da ciência. Esta se liberta da tutela 
teológica. Mas houve uma segunda implicação, não menos essencial: 
a linguagem matemática, através da qual se produz a ciência moderna, 
bem como o espaço geométrico (infinito, homogêneo e não orien­
tado), no qual a ciência passa a construir sua cosmologia, vão provo­
car, como uma espécie de contrapartida, o eclipse do sujeito, quer 
seja considerado no nível vital, no psicológico ou no epistemológico. 
É por isso que se diz que a ciência moderna veio substituir a antiga 
oposição homem,A)eus pela simples oposição sujeito,,úbjeto. No 
mundo por ela elaborado não há mais lugar para o homem nem 
tampouco para a vida. A ideologia mecanicista encarregar-se-á de 
dissociá-los do mundo da racionalidade científica. São banidas do 
domínio do conhecimento as questões antropológicas. Instaura-se o 
reino do pensamento matemático. 
13 
Neste contexto, enfrentaremos, entre outras questões, as seguintes: 
Como nascem e se transformam os saberes? Por que a ciência nasceu 
em determinado momento histórico? Que condições a tornaram possível? 
Por que se discute tanto sobre questões que desaparecem sem solução? 
No momento, porém, precisamos reconhecer que o estatuto do saber, 
além de não ser unívoco, tampoucoéevidente.Eleéenigmático.Emcertos 
domínios, constituíram-se esses conjuntos coerentes de princípios e de 
leis, seguros da precisão de seus métodos e da eficácia de suas 
aplicações, que denominamos ciências. Tais conhecimentos supõem, 
sem dúvida, a unidade da Razão. Disporíamos, assim, de um saber 
acumulativo, desenvolvendo-se e reestruturando-se, de modo linear 
e homogêneo, através dos séculos. Na outra extremidade, cita-se o 
saber cotidiano e espontâneo, transportado por uma linguagem e 
inserido no mundo da ação. Tal saber basta à maioria dos homens, 
que não tem necessidade das razões lógicas e ignora quase tudo das 
ciências. Entre esses dois tipos de saber, elaboram-se outros as­
sumindo as formas de doutrinas, de ideologias ou de hipóteses mais 
ou menos coerentes e empíricas. Constituem os objetos de nossas 
crenças, de nossas opiniões, de nosso conhecimento espontâneo ou 
de nossas "razões". Agrupam-se em torno da ética, da política, da 
estética, da literatura e da filosofia. Seu principal objeto de investi­
gação seria o homem em suas mais variadas manifestações. Todo esse 
conjunto fornece o material de disciplinas reflexivas recentemente or­
ganizadas: história das ciências, história das idéias, psicologia do 
conhecimento, sociologia do saber, etc. 
Por outro lado, precisamos estar conscientes de que pensar, em seu 
sentido mais amplo, consiste em ordenar a desordem de nossas idéias 
e de nossas experiências. Consiste ainda num trabalho de transfor­
mação do saber de nossa experiência imediata, do não-sabido, num 
saber produzido e compreendido mediante a atividade reflexiva. Não 
podemos conhecer o heteróclito em seu estado puro. Mas há diversos 
modos de ordenar e de escolher o que se ordena, segundo as semelhanças 
ou dessemelhanças, as afinidades ou diferenças. Convencionamos 
chamar de episteme o campo no qual, num determinado momento, 
determinam-se os a priori históricos, as condições de possibilidade e os 
princípios de ordenação do saber. Este campo não é o mesmo nas 
diversas épocas de nossacultura. A episteme constitui uma estrutura, 
um sistema coerente. Trata-se de um processo epistemológico que se 
realiza no tempo. Enquanto processo cultural, realiza-se em grande 
escala, implicando durações seculares. Se quiséssemos esquematizar 
o devir epistemológico culminando na emergência da ciência moderna,
teríamos o seguinte quadro:
14 A REVOLUÇÃO CENTÍFICA MODERNA
A ciência e sua 
globalidade própria 
A totalidade cultural 
pré-científica 
B+---------
Tudo o que não é ciência 
As linhas vertical A e horizontal B designam os dois cortes 
epistemológicos bem como a superação dos obstáculos exigida para 
que o saber em geral tenha acesso à cientificidade e ao seu regime 
próprio(3) . Antes do estádio propriamente científico, instaurado pela
revolução galileana, mas que só se solidifica com a síntese newtoni­
ana, dois outros precisavam ser superados: a) o antigo e medieval, 
iniciado com a primeira constituição da ciência grega enquanto uni­
verso das mathemata platônicas (distintas da episteme ou saber das 
essências), pode ser chamado de estádio da intuição, época da 
dominância constitucional do intelecto; b) o estádio da representação, 
que se inicia no início do Renascimento e se estende até o final do 
século XVIII, constitui a época da dominância constitucional da 
Razão. É neste período que se forma a ciência moderna. A partir de então 
(início do século XIX), começa a instaurar-se o entendimento pro­
priamente científico (a Razão operando nas ciências), época da as­
similação científica em valores de positividade. Inicialmente grega, em 
seguida européia, a ciência se converte no entendimento geral do 
homem. É pela época da dominância constitucional da Razão que 
começaremos nossa análise. Tentaremos mostrar o que ela possui de mais 
característico ao examinar sua irrupção e sua instauração geral em 
condições sócio-históricas bem determinadas. 
O primeiro capítulo tenta elucidar a indissociabilidade de duas 
histórias, a das ciências e a do saber. Mais precisamente, trata-se de 
uma história epistemológica ou de uma epistemologia histórica da 
ciência moderna. Os três capítulos seguintes tratam da Revolução 
Científica instaurada por Galileu, cada um abordando-a de um ponto 
de vista, embora os três enfoques estejam intimamente inter-relacionados 
e sejam complementares. O capítulo segundo tenha detectar, nessa 
revolução, a nova síntese epistemológica vindo eliminar e substituir 
a precedente. O capítulo terceiro visa elucidar dois modos de se 
conceber ou de se interpretar essa revolução, duas maneiras de se fazer 
15 
a história do nascimento da ciência moderna: o modo internalista e 
o externalista. O quarto constitui uma análise das condições sócioe­
conômico-cul turais que a tornaram possível. Destacaremos o papel
motriz desempenhado pela técnica e pelos engenheiros, as ambições
sócioculturais dos novos "empresários" e o vasto programa prático
da ciência moderna: o mecanismo. No último capítulo, daremos outro
exemplo ilustrativo do modo· como poderá ser feita uma história
sociológica ou externalista sem negar a dinâmica interna da ciência.
Assim, veremos certas condições externas interferindo decisi­
vamente na formação da síntese newtoniana.
Nossa preocupação fundamental consiste em mostrar que não foi a 
"'razão pura" nem tampouco nenhum "espírito absoluto" que, na 
aurora a modernidade, estabeleceram o vasto programa de expli­
cação mecanicista da natureza e do homem, mas a livre determinação 
de uma burguesia ascendente de dominar o mundo e de sobre ele 
exercer sua ação e seu poder. De forma alguma defendemos a idéia 
segundo a qual a revolução científica moderna foi o resultado de um 
simples triunfo da "Razão" contra os "preconceitos" e as" superstições". 
Queremos apresentá-la de modo crítico, como um acontecimento 
problemático e não completamente elucidado, através das tomadas 
de posição e dos textos de seus principais protagonistas. Ademais, 
não nos concentraremos nos aspectos estritamente "científicos" dessa 
revolução, pois os enraizaremos, sempre que possível, em seu con­
llexto sóciocultural. O que não nos impede de mostrar a interação 
oonstante e sempre fecunda entre os argumentos técnicos "internos", 
defendidos por alguns historiadores, e as razões ou convicções "ex­
llracientíficas" sustentadas por outros. Ao apresentar os grandes debates 
m1. tomo dessa "revolução", não podemos deixar de lado o impacto 
r vezes decisivo das instituições sociais, políticas e religiosas sobre 
- diversas interpretações da realidade natural propostas por uns e
r outros. Esforcei-me por fornecer informações técnicas suficiente­
aE.n.te precisas para fazer justiça à originalidade da revolução científica 
erna. Mas de um modo a que os argumentos e os debates "técni­
- não viessem tomar o presente livro inacessível aos não-cientistas. 
orque não se dirige a um público de especialistas. 
16 A REvOLUÇÃO CENTÍFICA MODERNA 
NOTAS , 
1. Constitui uma nova edição revista e ampliada. Esta retomada, signi­
fica que meu desejo de pesquisa continua. Se a revolução científica
moderna já foi feita, permanece inacabada a história de suas causas.
Permanece também interminável a história de seus efeitos. Nãó pre­
tendo concluir nem uma nem outra. Se na história das ciências sempre
é possível a existência de erros, creio que a persistência nos que não
conhecemos impede-nos de retificá-los. Quando nos silenciamos so­
bre eles, justificamos sua persistência. Por isso, a história das ciências,
quando epistemologicamente interrogada, permite-nos ver que as
verdades científicas que hoje possuímos constituem o produto de
erros retificados. Daí meu interesse por continuar estudando essa
época em que a ciência, não somente desmontou uma representação
do mundo, mas provocou uma verdadeira subversão do mundo. O
desafio filosófico que se coloca é o seguinte: o projeto da ciência
moderna, que se instaurou com a Revolução Galileana e se solidificou
com a Smtese Newtoniana, não dá espaço para o homem: este desa­
parece do campo da verdade.
2. Ao recusar Aristóteles, Galileu se torna o herdeiro legítimo de
Arquimedes. Dois conflitos se destacam: um concei tual, outro
epistemológico. Para a cosmologia aristotélica, o movimento de um
corpo para baixo ou para cima exprime uma qualidade intrmseca
desse corpo, referida a uma ordem do mundo em que cada coisa
possui, uma vez por todas, seu lugar natural: o corpo pesado cai, o
leve sobre. Arquimedes mostra que o pesado e o leve possuem um
sentido relativo, o movimento para cima e para baixo designando apenas
uma relação geometricamente caracterizável entre elementos analisados
fora de toda referência a uma ordem suposta do Cosmos. Por outro lado,
Aristóteles não precisava da matemática para explicar os fenômenos do
movimento no mundo sublunar: são impensáveis, em seu sistema
17 
conceituai, as noções de trajetória de um projetil e de aceleração. Os 
modelos geométricos só são admitidos para explicar os movimentos 
circulares dos corpos celestes. A mecânica arquimediana, ao contrário, 
torna matematicamente inteligíveis os fenômenos elementares de 
nosso mundo. Ela faz da construção matemática um modo constitutivo do 
saber objetivo. Galileu generaliza esse método. Ele estende ao conjunto 
da natureza, ao conjunto dos corpos em movimento, as formas da 
racionalidade geométrica e o rigor demonstrativo ;o discurso 
matemático. 
Koyré é um dos melhores historiadores do pensamento científico, 
desde a chamada "revolução copernicana" até a grande síntese new­
toniana. Ele elucidou, em sua vasta obra (ver bibliografia), com ex­
traordinária segurança e rigor, infelizmente numa perspectiva que 
chamaremos de "internalista", o que considera o grande desafio filosófico 
da ciência moderna: o desaparecimento do homem do campo da 
verdade. A partir de seus trabalhos, tomou-se possível a construção de 
um modelo dando conta da ordem cronológica na história do pen­
samento de uma época na qual se entrecruzam a física, a metafísica e 
a teologia.Estuda uma época da qual o divino se ausenta, os homens 
ficando sozinhos no mundo, dependendo apenas de seus meios de co­
nhecimento. 
3. Para Bachelard, "corte epistemológico" é o momento em que deter­
minada ciência afirma sua autodeterminação, em que constrói o seu
objeto pela destruição dos objetos da percepção comum e dos obstácu­
los que impedem o seu ingresso na científicidade, através de uma
ruptura com as "ideologias da instauração de uma dialética da liqui­
dação do passado, sem chegar jamais a um estado de acabamento,
pois a ciência inclui a consciência de sua própria retificação, quer
dizer, de reformulações em seu corpo teórico como característica de
seu funcionamento. - Esta categoria será explicitada mais adiante.
CAPÍTULO 1 
EPISTEMOLOGIA E HISTÓRIA D
AS CIÊNCIAS
É a iluminação recorrente da epistemologia que impede 
o historiador de tomar persistências de termos por 
identidades de conceitos; invocações de fatos de
observação análogos por parentescos de método e de
questionamento; e de fazer de cientistas passados
precursores de cientistas atuais.
G. CANGUILHEM
EPISTEMOLOGIA E 
HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS 
21 
O objetivo do presente capítulo é o de mostrar, não somente o interesse 
e a necessidade da história das ciências, mas como essa história, quando 
filosoficamente interrogada, constitui uma das modalidades mais fecun­
das da prática epistemológica. Também pretendo elucidar, na 
medida do possível, a indissociabilidade da história da ciência e da 
história do saber. Porque estou convencido de que essas duas histórias 
não podem ser reduzidas, respectivamente, a cemitérios de fatos e de 
idéias, a dois domínios de saber estanquemente justapostos ou sim­
plesmente superpostos. Ambas tendem a definir, implícita ou explici­
tamente, atitudes mentais e quadros de inteligibilidade, conseqüen­
temente, determinadas visões de mundo. 
Até bem pouco tempo, a história das ciências era concebida como 
uma disciplina encarregada de reproduzir a lenta progressão da 
racionalidade científica. Enquanto tal, era a história dos vencedores, 
na medida em que se limitava a relatar as peripécias que os cientistas 
tiveram que atravessar a· fim de chegar à verdade atualmente con­
quistada. Esta história freqüentemente desempenhou um· papel 
ideológico: narrar as grandes realizações dos cientistas para que as 
ciências sejam avaliadas e apreciadas em seu "justo" valor na so­
ciedade. Esta busca das raízes históricas tem uma importante signi­
fic:ação, pois todo ser humano deseja "sentir" a solidez e a profundi­
dade de suas raízes. Elaborada nessa perspectiva, a história das 
ciências foi utilizada por certas nações para promover o espírito 
tivico e patriótico de seus cidadãos. Desprovida de espírito crítico, 
22 A REVOLUÇÃO CENTÍFICA MODERNA 
por vezes esteve envolvida em mistificações. Por outro lado, foi muito 
útil à pesquisa científica, na medida em que mostrou a relatividade 
dos conceitos utilizados, elucidou sua história e o contexto que presidiu 
à sua elaboração, além de mostrar quando e como as trajetórias das 
construções teórico-conceituais das ciências chegaram a pontos de 
bifurcação. Por exemplo, evidencia as linhas de pesquisa inexploradas 
e que poderiam resultar fecundas. Deste ponto de vista, a história das 
ciências constitui um fator de educação da imaginação dos pesquisadores. 
O problema que se põe é o seguinte: corno podemos conceber e 
escrever a história das ciências? Há urna ou várias formas? Como 
apresentá-las? Como disciplina autônoma, ela possui suas especiali­
dades, hesita entre vários estilos, não possui um método unitário, 
seus problemas são diversificados, suas escolas ou tendências se 
opõem. De um modo geral, ela questiona a história ordinária e as 
idéias habituais que nos fazemos das ciências. Longe de esboçar urna 
seqüência de aquisições contínuas e crescentes, urna continuidade 
linear de descobertas, de invenções ou de revoluções dos saberes 
passados, a história das ciências percorre um itinerário múltiplo e 
complexo de caminhos que se entrecruzam e se bifurcam. No dizer 
de M. Serres, "urna multiplicidade de tempos diferentes, de discipli­
nas diversas, de idéias da ciência, de grupos, de instituições, de 
capitais, de homens concordando ou em conflitos, de máquinas e de 
objeto, de previsões e de acasos imprevistos compõem, conjuntamente, 
um tecido flutuante que figura de modo fiel a história múltipla das 
ciências "(Elérnents d'histoire des sciences, Bordas, 1989, p.5). 
Há toda uma tradição filosófica de se fazer a história das ciências, 
ilustrada pelos trabalhos de Bachelard, Canguilhem e Koyré, pre­
dominante na França. Nos Estados Unidos, a tradição mais forte é a 
que estuda a produção do saber científico valorizando seu contexto 
sóciocultural ou as condições históricas de seu nascimento. Na 
Inglaterra (mais recentemente na América e na França), a tradição 
predominante é a que estuda as influências que as relações sociais 
exercem sobre a produção científica, notadarnente as interações entre 
a ciência, a tecnologia e a sociedade. Nos últimos tempos, cada vez 
mais a história das ciências tem se revelado uma atividade de pes­
quisas interdisciplinares, na medida em que mantém estreitas re­
lações com a filosofia, com a epistemologia, com a história e com a 
sociologia. Além, é claro, das relações com a ciência da qual ela 
pretende "escrever" a história. Até bem pouco tempo praticada quase 
23 
que exclusivamente por filósofos especializados ou por cientistas 
amadores, a história das ciências se torna hoje uma disciplina bas­
tante autônoma, praticada e ensinada em praticamente todas as grandes 
universidades e em inúmeros centros de pesquisa. Por toda parte se 
discute sobre questões implicando temas epistemológicos, filosóficos e 
ideológicos: constitui a ciência um saber puro e desinteressado, ou 
um saber condicionado e determinado sócioculturalmente? Como 
nasce uma ciência? Qual a influência do contexto histórico? Quais os 
tipos de interação entre o contexto sócioeconômico e o desenvolvimento 
das ciências? Qual o modo real de produção do saber científico? 
Todas essas questões só começam a ser respondidas a partir de 
Comte (1830), o primeiro a tentar descobrir um vínculo entre sua 
filosofia e sua concepção da história das ciências. 
�omecemos nossa análise dizendo que a história das ciências con­
stitui uma das disciplinas susceptíveis de permitir o exercício de 
uma epistemologia que poderíamos chamar de filosófica. Mesmo 
que possamos colocar em dúvida sua validade, mesmo que não 
mnsigamos fundamentar convincentemente sua necessidade e sua 
existência, nem por isso temos condições de negar a indispensável 
1111portância de uma teoria da história das ciências. E creio ser 
extremamente difícil negarmos que essa teoria, intimamente vin­
culada a preocupações de caráter epistemológico, possa prescindir, 
uma forma ou de outra, de todo e qualquer vínculo com a reflexão 
fiosófica. Ademais, uma teoria das ciências só é epistemológica, porque 
epistemologia é histórica. 
Assim, a historicidade é essencial ao objeto da ciência sobre o qual é 
l!Stabelecida uma reflexão que podemos chamar de epistemologia. E 
_ história das ciências, não sendo ela própria uma ciência, e não 
possuindo, por isso mesmo, um objeto científico, constitui mais um 
.: seus modos de existir e de operar. No entanto, ao nos interrogar­
mos sobre a história das ciências, sobre a eventualidade e a necessi­
dade de tal disciplina, e sobre as relações que mantém com a história 
aos historiadores de profissão, esbarramos com uma situação para­
doxal: a maioria dos historiadores das ciências é constituída, por sua 
tormação universitária, não por historiadores nem tampouco por 
cientistas, mas por filósofos. Esta situação não deve constituir motivo 
àe amargor nem muito menos de júbilo. Constitui uma razão de 
�se. Que existam filósofos na história da filosofia, tudo bem, vá 
Mas por que na história das ciências? Que razões os levam a fazer24 A REVOLUÇÃO CENTÍFICA MODERNA 
história das ciências? Não seria esta uma tarefa dos próprios cientis­
tas? É o que pretendo mostrar a seguir. Antes, porém, façamos uma 
observação concernente ao desinteresse, bastante freqüente nos meios 
científicos, pela história de suas respectivas disciplinas. 
Creio ser lamentável o fato de muitos cientistas não darem a devida 
importância ao estudo crítico dos processos históricos de consti­
tuição, de formação, de desenvolvimento e de estruturação de seus 
conceitos e de suas teorias. Ora, privados do aparato histórico e 
conceitual, não conseguem elaborar uma crítica de seu saber, do saber 
que lhes é transmitido, quase sempre dogmaticamente, para detectar 
as opções filosóficas e ideológicas nele implicadas. Na prática, nosso 
ensino científico é ·bastante esquizóide, pois deixa que certos espe­
cialistas façam a história dos conceitos e das teorias do passado, das 
controvérsias filosóficas ou políticas, transmitindo aos alunos um 
saber pretensamente positivo, descontextualizado, desconjunturado, 
dogmaticamente exposto ou simplesmente precedido de resumos 
históricos simplistas ou simplificadores, numa perspectiva meramente 
cronológica privilegiando certas datas e certas descobertas. 
Em geral, OfiS.ienti__stas conhecem muito mal a formação de su 
teorias e de seus conceitos. Porque aprendem uma ciência ivorc1a a 
da história das idéias, da vida social, econômica e política. Para este 
fa.to.Jlá_yár�2Plicações. A J!lais comumente alegada, !_a de_qu_! a 
história das ciências não apresenta nenhum interesse direto e ime• 
diato para a pesguísa cíintífíca: Dedicar-se a ela, seria uma perda de 
tempo.Õra, fazer tal declaração já implica se adotar, pelo menos 
implicitamente, determinada "filosofia da ciência", certa concepção 
da atividade científica e de seu valor. No mínimo, tal concepção está 
fundada numa filosofia positivista pecuniária e industrial, conseqüen­
temente, num pragmatismo mercantilista do saber. O que se admite, no 
fundo, é que a ciência constitui uma atividade _il.Utônoma, intemporal, 
a-históricél_que progrid�_ de modo linear e acumula!j.yo1que não implica
nenhuma opção de ordem filosófica ou ideológica, que todas as 
descobertas científicas convergem fatal�e_nte para a certeza ou para
a verdade, conseqüentemente, para \..O� da humanidade. Não
sendo estudada e ensinada historicamente, a ciência se converte em
objeto de estudo e de ensino dogmáticos. No entanto, creio termos o
. direito de duvidar desses postulados. Exprimem uma idéia que,
apesar de justa, na medida em que postula que os cientistas precisam
elaborar conhecimentos racionais rigorosos e objetivos, de forma
25 
goma cola com a realidade histórica. O mínimo que podemos· dizer 
que a ausência e a recusa da história das ciências correspondem a 
IIIDa concepção idealista do saber. Ademais, correspondem a uma 
epção cientificista e tecnocrática da atividade dos pesquisadores. 
- prática, tal mentalidade leva fatalmente ao culto abusivo do espe­
. ta e do expert. Estes ficam entregues apenas à sua filosofia
ntânea, ou seja, a esse conjunto de representações, de crenças, de 
des e de hábitos relativamente às suas práticas efetivas. E é seu 
aá.ter "espontâneo", juntamente com seu reconhecimento institucional, 
vão privar essa filosofia empirista da sistematicidade, da forma 
·va e crítica.
queremos dizer que seja fácil a elaboração de um projeto de 
·tuição da história de uma ciência. Pelo contrário, trata-se de um
�to muito difícil. E isto, por duas razões principais: a) indire­
te, porque deveriam ser examinadas, previamente, as diversas 
-es ou opções ideológicas já presentes e atuantes em toda e
er atividade científica; b) diretamente, porque aquilo de quê se
história, não coincide perfeitamente com aquilo que normalmente
omina pelo termo "ciência". Talvez a única exigência a ser feita
respeito ao termo "história". É preciso que esse termo tenha o
:!lilllO sentido quanto o que possui na história dos historiadores. 
com uma condição: que seja capaz de remeter à tentativa de 
ção dos mecanismos econômicos, sociais, políticos e ideológi­
llllill.a unidade mais ou menos coerente, mais ou menos explosiva. 
condição se revela sumamente importante, entre outras razões, 
_e a história das ciências não constitui, em geral e na prática, 
to dos historiadores, mas dos filósofos. Volta, aqui, a questão: 
se justifica a história das ciências feita por filósofos? Esta 
Ião nos leva a outra: qual o objeto da história das ciências? 
soa obra, Idéologie et rationalité, Canguilhem, ao estudar."o 
da epistemologia na historiografia contemporânea", fornece­
·cações valiosas. Em primeiro lugar, inspirando-se nos concei-
.::::nda.Jnentais da epistemologia histórica de Bachelard - concei­
•novo espírito científico", de "obstáculo epistemológico", de 
8ll'a epistemológica", de "história da ciência superada ou san­
", de "descontinuidade epistemológica", de "progresso cien­
e de "recorrência" - , ele nos mostra que o historiador das 
- não pode limitar-se a apresentar as ciências ou os fatos ditos
s como realmente se passaram. Para compreendermos a
26 A REVOLUÇÃO CENTÍFICA MODERNA 
função e o sentido de uma história das ciências, precisamos opor, ao 
modelo do laboratório (" A história das ciências não é somente a 
memória da ciência, mas o laboratório da epistemologia"), o modelo 
da escola ou do tribunal. Assim, ou invés de estudar a história das 
ciências, a epistemologia precisa estudar as ciências segundo su� 
_histórii!. Não deve interessar-se pelas questões das fontes, das in­
venções, das influências, de anterioridade, de simultaneidade ou de 
sucessão. Porque não veríamos a distinção entre as ciências e as 
outras formas da · cultura. Uma história das ciências não­
epistemológica reduz uma ciência, em determinado momento, a um 
relato das relações cronológicas e lógicas entre diferentes sistemas de 
enunciados relativos a certos problemas ou a determinadas soluções. 
O valor do historiador seria medido pela amplitude de sua erudição 
e pela finura em analisar as relações ou diferenças entre os cientistas. 
Neste sentido, a história das ciências estudaria as ciências do passado. 
E o que se pergunta é se uma ciência do passado constitui um passada 
da ciência atual. 
Em segundo lugar, Canguilhem mostra como o conceito de passado 
de uma ciência constitui um conceito vulgar, servindo apenas para buscar,. 
retrospectivamente, os "precursores" de uma ciência atual. Ora, a 
busca dos antecedentes da atualidade chama de "passado" sua con­
dição de exercício. Ela se dá previamente, essa condição como um 
todo de capacidade indefinida. Neste sentido, fazer a história de uma 
ciência seria fazer o resumo da leitura de uma biblioteca especiali .. 
zada, depósito e conservatório do saber produzido e exposto desde 
uma época remota até nossos dias. Seria uma história continuísta do 
passado. A totalidade do passado seria representada como uma 
espécie de plano contínuo sobre o qual poderíamos deslocar, segundo 
os interesses do momento, o ponto de partida do progresso, cujo 
termo seria o objeto desse interesse. E o que vai distinguir os histo­
riadores das ciências são a temeridade e a prudência com que se 
deslocam sobre esse plano. E o que devem esperar da epistemologia; 
é uma deontologia da liberdade de deslocamento regressivo sobre o 
plano imaginário do passado integral. Devem construir seus objetos 
num espaço-tempo ideal, mas evitando que ele seja imaginário. Por­
que ? passado de uma ciência atual não se confunde com esta ciência 
em seu passado. O historiador é capaz de explicar o passado de uma 
ciência atual. Mas compete ao epistemólogo estudá-la em seu pas­
sado. Se o interesse histórico do cientista é de puro complemento, o 
do epistemólogo é de vocação. Seu problema é o de extrair da história 
27 
das ciências, enquanto é uma sucessão manifesta de enunciados mais 
ou menos sistematizados e com pretensões à verdade, seu processo 
ordenado latente,só agora perceptível, cuja verdade científica pre­
sente constitui o termo provisório. Portanto, por ser prioritário, e não 
auxiliar, o interesse do epistemólogo é mais livre que o do cientista. 
Sabemos que a história das ciências, como disciplina autônoma no 
campo do saber, conheceu um extraordinário desenvolvimento a partir do 
início do século XIX (l). Augusto Comte foi o primeiro pensador a demonstrar 
a importância de seu problema epistemológico e pedagógico. Seu mérito. 
foi o de tentar uma síntese do saber. E sua influência foi mais fecunda no 
domínio da biologia e da medicina. Não vai nos interessar, aqui, mostrar 
o desenvolvimento da história das ciências no século do positivismo:
a concepção propriamente positivista de Comte, a concepção neoposi­
tivista de Paul Tannery (1843-1904) e aconcepção neo-humanistadeGeorge
Sarton (1884-1956). ·o grande problema que se colocava, no século XIX,
era o seguinte: como podemos conhecer o passado? Em outras palavras,
como e em que medida podemos descrever uma história das ciências sem
interpretar os conhecimentos passados através dos conhecimentos já
adquiridos e presentes? Uma história puramente descritiva corre o sério
risco de introduzir juízos de valores inoportunos sobre aquilo que os
cientistas "deveriam ter feito", sobre seus "erros" etc.
Na história das ciências, devemos distinguir: a história disciplinar e 
a história geral. 
a. A história disciplinar estuda o campo de uma disciplina, vari­
ando no decorrer do tempo. Privilegia os períodos mais antigos,
onde sua autonomia não havia ainda se afirmado: os quadros
mais amplos de saberes e práticas dos quais, em seguida, ela
se diferenciou. Refere-se também à história dos sábios que
contribuíram para seu desenvolvimento. Leva em conta as
disciplinas com as quais esteve em relação, notadamente as
mais amplas, das quais constitui um aspeto particular. Trata­
se de um tipo de história que pretende ser o mais completo
possível. Podemos denominá-la história fundamental, ou seja,
história das idéias, dos conceitos e dos princípios que a fun­
dam. Em outras palavras, trata-se de história dos "paradig­
mas" que constituíram sua "matriz disciplinar". Por isso,
deixa de lado os aspetos culturais ou filosóficos que não
exerceram influência marcante em seu desenvolvimento.
28 A REVOLUÇÃO CENTÍFICA MODERNA 
b. A história geral dá bastante importância às periodizações. Privi•
legia os períodos mais antigos, quando as ciências não possuíam,
uma clara identidade e os cientistas ainda eram polivalentes. Esta
história pode ser entendida de dois modos: 1. como história do
pensamento; 2. como história geral propriamente dita (ou
global).
Os componentes da história do pensamento científico ( ou das 
idéias) são estritos quanto a seus temas, mas ultrapassam as diversas 
disciplinas, seja concretamente, quando o mesmo tema aparece em 
várias disciplinas, seja abstratamente, quando o tema específico possui um 
caráter geral. A expressão "pensamento científico" não é muito rig­
orosa, não se prestando bem a um exame analítico. 
A história geral propriamente dita é a que tenta expor todos os 
aspetos comuns à história do passado da ciência ou, melhor, da 
ciência atual em seu passádo. Trata-se de uma história dos aspetos 
globais do pensamento científico. História analítica, sem dúvida, mas 
tentando chegar a uma síntese. Faz a história das relações entre as 
diferentes ciências, de suas interações, de suas diferenciações e de 
suas integrações. Elabora também; a história do próprio conceito de 
ciência, tanto do ponto de vista intelectual quanto do ponto de vista 
social; a história das instituições gerais da ciência e das relações da 
ciência com os demais tipos de saber; inclusive, dá lugar de destaque 
ao que hoje denominamos a "política da pesquisa". 
Em nossos dias, há toda uma corrente defendendo a tese segundo a 
qual fazer a história das ciências consiste em construir a história das 
teorias e dos conceitos científicos, bem como das hesitações do próprio 
teórico. Trata-se de um esforço para se elucidar em que medida as 
noções, as atitudes ou os métodos ultrapassados foram, em sua época, 
um ultrapassamento. Mais profundamente, interrogar-se sobre a história 
das ciências significa procurar determinar o seu objeto. E o objeto de 
uma disciplina pode ser definido, tanto por sua intenção, por seu 
desígnio ou por seu objetivo, quanto pelo conteúdo (domínio mate­
rial) sobre o qual se aplica seu estudo. No primeiro caso, interrogar-se 
sobre a história das ciências, é interrogar-se sobre sua finalidade, 
sobre sua destinação e sobre o seu porquê. No segundo, é interrogar­
se sobre aquilo de quê ela se ocupa, em conformidade com aquilo 
29 
que ela visa. Em última análise, as duas interrogações estão re­
lacionadas. Sendo assim, a epistemologia não pode deixar de inter­
essar-se pela história das ciências. É através da epistemologia que os 
filósofos se interessam por ela, na medida em que esta consciência 
crítica dos métodos atuais de um saber adequado a seu objeto vê-se 
obrigada a celebrar o poder desses métodos, lembrando os embaraços 
que retardaram sua conquista. Assim, entre as razões apresentadas 
por Canguilhem: histórica (extrínseca à ciência, entendida como 
discurso verificado sobre determinado setor da experiência), científica 
(realizada pelos cientistas enquanto são pesquisadores e não 
acadêmicos) e filosófica, esta última é a mais importante. Porque, 
sem referência à epistemologia, toda a teoria do conhecimento seria 
uma meditação sobre o vazio. E sem relação com a história das 
ciências, a epistemologia seria uma sim{2les réplica inútil das ciências
que toma como objeto de seu discurso 2). 
Portanto, contrariamente aos que reclamam do empirismo lógico, para 
os quais a história das ciências situa-se fora do campo episte-mológico, 
pois pertenceria ao domínio das ciências empíricas, ligadas ao 
conhecimento dos fatos, sustentamos que a epistemologta é profun­
damente solidária com as ciências, devendo alimentar-se ampla­
mente de seus ensinamentos. No entanto, contrariamente à posição 
empirista, para a qual a ciência só é tomada como objeto de estudo 
na medida em que existe a título de fatos observáveis e explicados 
verificacionalmente, vale dizer, como ciência presente, devemos dizer 
que constitui uma das tarefas fundamentais da epistemologia fornecer 
à história das ciências o princípio de um j uízo, pois é ela que lhe 
ensina a última linguagem falada por esta ou aquela ciência, per­
mitindo-lhe, assim, recuar no tempo até o momento em que essa 
linguagem deixa de ser inteligível. Portanto, é a epistemologia que nos 
vai possibilitar discernir a história dos conhecimentos científicos que 
já se encontram superados e a dos que ainda permanecem atuais, 
porque atuantes e colocando em marcha o processo científico. 
Bachelard nos mostra que a diferença entre o historiador das ciências e 
o epistemólogo consiste em que o primeiro toma as idéias como fatos,
enquanto que o segundo toma os fatos como idéias, inserindo-os
num contexto de pensamento. Em outras palavras, o primeiro pro­
cede das origens para o presente, de sorte que a ciência atual já se
encontra anunciada no passado; ao passo que o segundo procede do
presente para o passado, de sorte que somente uma parte daquilo
30 A REVOLUÇÃO CENIÍFICA MODERNA 
que ontem era considerado como ciência pode hoje ser fundado e 
justificado cientificamente. 
Essa posição (3), apesar de fecunda, leva a um internalismo insati
fatório. No entanto, nos permite dizer que é a epistemologia, en� 
quanto teoria do fundamento da ciência, que faz com que o objeto da
história das ciências não se identifique com o objeto da ciênci 
Também é ela que faz com que a história das ciências seja uma tomadéll
de consciência explícita do fato de as ciências serem discursos críticos 
e progressivos para a determinação daquilo que, na experiência, deva
ser tido por real. É ainda ela que faz com que o objeto da história das 
ciências seja um objetonão dado, mas um objeto construído, um 
objeto cujo inacabamento é essencial. Em suma, da história das ciências: 
filosoficamente questionada, surge uma filosofia das ciências que 
outra coisa não é senão uma das modalidades da epistemologia geral., 
e que constitui uma de suas vias de acesso, próxima às que passam 
pela psicologia, pela sociologia e pela metodologia dos conhecimen. 
tos. 
Recoloquemos a questão: qual o objeto da história das ciências? 
Evidentemente, não é "a ciência". Porque não existe uma Ciência,. 
única e idêntica, a propósito da qual poderíamos formular teorias 
definitivas. O que existe é um conjunto de disciplinas especializadas" 
cada uma possuindo seus caracteres próprios e graus desiguais de 
desenvolvimento. Só arbitrariamente podemos agrupá-las num con­
junto unitário, como se todas formassem um todo coerente e passíve 
de um estatuto unitário. Cada uma fornece um aspeto do real. Mas 
não existe ciência do real integral. Por isso, não podemos falar de 
11 filosofia da ciência" nem tampouco de filosofia das ciências. 
Devemos falar de filosofia desta ou daquela ciência. O filósofo por 
vezes generaliza imprudentemente e apresenta como II filosofia das 
ciências" o que não passa de filosofia desta ciência. Donde a ilusão 
daqueles que conferem II à ciência" uma importância global e incon­
siderada. Todos os positivistas julgam que II a ciência" lhes permite 
fazer a economia de uma filosofia, posto que seria sua própria filosofia. 
Ora, 11 a ciência" não existe. E para invocar a "filosofia da ciência", 
teríamos que supor a inquestionabilidade dessa ciência. Tal ciência 
seria uma ciência morta. E a filosofia não pode fundar-se sobre a 
referência a uma ciência já superada, imobilizando um momento do 
devir científico. Não pretendo negar, é claro, a validade da reflexão sobre 
31 
o estado presente do conhecimento. É até mesmo indispensável, pois
contribui para situar o homem relativamente a seu universo.
Mas é preciso que essa reflexão tome consciência de sua fragilidade: 
desenvolve-se como um exame de consciência tão precário e revogável 
quanto o momento mesmo dessa consciência cujo movimento ele 
acompanha. Portanto, precisamos renunciar a falar de" a ciência", de 
filosofia da ciência" e de "história da ciência". A verdade dos 
acontecimentos, nà ordem da ciência, não é dada nos próprios acon­
tecimentos. Ela se constitui das operações complexas da interpre­
tação, através das quais se estabelece o confronto inevitável entre o 
presente e o passado. O sentido da verdade histórica significa que ela 
é um sentido, isto é, um movimento ou, antes, um conjunto de 
démarches cujo equilíbrio, uma vez alcançado, permanece precário 
e revogável. Aquele que se interroga sobre o significado da ciência 
atual, deve cada vez mais remontar a seu passado, porque o sentido 
do devir sempre é fornecido pela flecha do tempo. Conheceremos 
melhor o que é a ciência atual e para onde ela vai, quando conhecer­
mos com precisão de onde ela vem. Na história do pensamento 
científico, o filósofo vai encontrar, não somente normas para um juízo 
sobre o valor da ciência, mas a explicação da origem e do sentido de 
muitos problemas filosóficos. Neste sentido, a história das ciências 
constitui um excelente remédio para as incertezas da filosofia das 
ciências. Não considera o passado como uma massa de realidade, 
dada uma vez por todas e existindo em si. Não podemos considerar 
a evolução histórica como uma longa preparação ao estado atual das 
ciências. Isto nos levaria a privilegiar o estado atual das ciências e a 
conferir à história uma importância provisória (4).
Segundo D. Lecourt, a história das ciências, quando filosoficamente 
instruída, constitui um dos meios mais importantes para superarmos 
o atual abismo que separa as "duas culturas": científica e literária ou
humanista. Este abismo não é o resultado apenas de um problema de
comunicação, imputável à tecnicidade da linguagem científica. Resulta
de uma dupla demissão intelectual: a) a de muitos cientistas que se
recusam explicitar o pensamento que sustenta na atividade de
conhecimento e não querem assumir o risco de enunciar o que eles
pensam sobre o que sabem. Por esta demissão, é responsável, em grande
parte, uma concepção positivista e produtivista da ciência; b) a de
muitos filósofos que, por preguiça ou por espírito separatista, deixaram
as ciências entregues à sua própria sorte. Ora, a história das ciências,
32 A REVOLUÇÃO CENTÍFICA MODERNA 
ao devolver-nos o sentido da aventura intelectual, vale dizer, de um 
pensamento que arrisca suas próprias certezas, constitui sempre um 
exercício renovado da liberdade de pensar e uma solução possível para 
a questão das "duas culturas" antagônicas ou opostas. Donde a 
pertinência da recomendação de Lecourt, ao reconhecer que os es­
tudantes sonham e teriam muito a ganhar com um ensino das ciências 
não se apresentando mais como a aprendizagem e o manejo cego de 
datas, de fórmulas e de equações dogmáticas caídas do céu magistral 
sonham com um ensino que lhes apresente um pensamento científica 
vivo e inquieto, levando em conta "os difíceis ajustes das questões 
filosóficas, dos problemas e dos conceitos científicos, dos argumentos 
e das demonstrações, bem como suas incidências sociais. Hoje, a 
paixão dos jovens pelas ciências se vê, na maioria das vezes, perver 
tida pela mídia, mostrando apenas o mais espetacular dos resultados 
obtidos e das aplicações tecnológicas realizadas, por falta de ser 
alimentada e esclarecida por um ensino adequado" (A quoi sert clone 
la philosophie?, P.U.F, 1993, p.38). 
Ora, se não é de "a ciência" que se deve fazer a história, então de quê 
ela é feita? Eis uma questão bastante embaraçosa. Como tal, não 
admite resposta imediata. Fazendo nossas as colocações de P.Ray'"l 
mond (5) , podemos dizer que uma ciência propriamente dita apre­
senta dois aspetos distintos, porém, complementares: o das respostas 
e o das pesquisas. A presença da história revela-se mais nitidamente 
no seguro que no primeiro. Senão vejamos: 
a. o primeiro aspeto é chamado de "espaço das respostas"
adquiridas, presentes e expostas em diversos compêndios ou 
tratados para uso de estudantes e pesquisadores. Trata-se de um 
espaço metódico compreendendo ao mesmo tempo as con­
struções teóricas (organizações axiomáticas, por exemplo), as
figurações (esquemas), as demonstrações, as interpretações e
as ilustrações experimentais. No entanto, apesar de não ser tão
evidente, nem por isso a apresentação de todos esses elementos
deixa escapar à história. E isto, por duas razões fundamentais:
a) em primeiro lugar, porque não existe nenhuma sistematici­
dade podendo apresentar-se em estado puro. Toda sistematici­
dade está, necessariamente, submetida a normas de acesso
pedagógicas acarretando formas de exposições que variam no 
33 
interior de campos historicamente diversos e distinguem-se da 
estrita conceitualização. Quer dizer: toda conceitualização está 
comprometida com formas não-científicas de exposição; b) em 
seguida, porque, mesmo de um ponto de vista estritamente 
científico, nem a arquitetura que informa a aquisição dos resul­
tados (fazendo com que um resultado seja considerado como 
adquirido e situado num contexto histórico), nem os conceitos 
diretrizes que comandam sua obtenção, nem tampouco as mo­
dalidades e os conceitos permitindo que uma realidade pareça 
finalmente apreendida, conseqüentemente, explicada, possuem 
qualquer valor perene ou eterno. Não se explica um fenômeno 
em geral. Tampouco se demonstra um teorema em geral. Todo 
fenômeno exige sempre uma explicação em função de certo con­
junto teórico já adquirido. Exige também uma demonstração 
segundo formas já definidas. E tanto o adquirido quanto o definido 
variam segundo a história. Porque é a história que determina as 
modificações, a ilusão de eternidade teórica de um resultado, de 
um teorema ou de uma lei. 
b. o segundo aspeto é chamado de" espaço das pesquisas". Trata­
se de um espaçoque se oferece mais claramente à história,
embora de modo não evidente. Se é verdade que toda pesquisa
depende de uma problemática que lhe é própria, as modali­
dades de sua constituição, de suas modificações e de suas
reconstituições fazem intervir campos não-científicos, vale
dizer, um exterior à ciência. Além de consistir num conjunto de
conceitos dirigindo a fecundidade das pesquisas nos níveis
linguístico, instrumental e abstrato, em função da teoria já
engajada, a problemática consiste ainda numa colocação em
forma de problemas susce,ptíveis de ser levantados, enfati­
zados ou minimizados, postos ou retirados, a partir de exigên­
cias sociais exteriores ao domínio científico. Aliás, as razões
científicas são pouco aptas para conferir uma urgência efetiva
a um problema oriundo de uma problemática. Por outro lado,
uma ciência experimental não é um espaço teórico, pois constitui
a relação entre um espaço teórico e um espaço real. E é esta
relação que submete a ciência a outra exterioridade. De sorte
que o real estudado é historicamente variável, aparecendo sob
aspectos diferentes, segundo os momentos históricos.
34 A REVOLUÇÃO CENTÍFICA MODERNA
Todavia, é o horizonte teórico que desempenha a função motr· 
para as pesquisas, pois constitui o pólo de toda problemática; é 
o conjunto das respostas adquiridas e das modalidades de sua
aquisição que vai possibilitar a configuração do quadro integr
dor dos novos resultados e a sistematização dos problem
novos e das formas de procedimento de sua solução. Nesse sen,
tido, toda separação completa entre método e pesquisa só pod
ser categorizante, e não conceituai. No fundo, uma ciência só
pode desenvolver-se precisando suas relações com outras ciên1
das, com outras disciplinas teóricas e com as ideologias.
Porque não constitui apenas uma prática teórica em relaçã(1 
com outros setores sociais. Ela mesma constitui a relação de 
forças de produção científicas e de relações de produção. Senda 
assim, o não-científico não está em relação com as ciências, mas 
situa-se em seu próprio interior. É por isso que devemos reconhece 
não somente as forças científicas de produção de um saber, mas 
as formas não-científicas de seu funcionamento. Donde a im­
portância da história das ciências analisada de um ponto de vistai 
epistemológico. 
Em nosso século, convencionou-se falar de história da ciências sobre­
tudo a propósito dos trabalhos de Bachelard e de Koyré. O que esses 
trabalhos têm a ver com a filosofia, com a epistemologia e com as 
ciências? Esta questão envolve sérias dificuldades. Porque, ao pro­
curarmos descobrir os interesses teórico e prático da história das 
ciências, corremos dois riscos principais: a) o de mascarar a relação 
da história das ciências com a história, caso venhamos a enfatizar seu 
vínculo com as ciências e com a filosofia; b) o de nos esquecermos daquilo 
de quê ela é a história. Donde a dupla ambigüidade: 
- ao estudarmos a história das ciências como uma entidade, esque­
cemo-nos de analisar as atividades científicas reais de um ponto de
vista histórico e de perceber que o conceito de "ciência" é uma
construção histórica, não podendo ser elaborado aprioristicamente,, 
sem levar em conta a pluralidade das ciências, suas reorganizações e
sua inserção no contexto sócio-histórico-ideológico;
- ao privilegiarmos as ciências como objeto evidente para a história,
esquecemo-nos de analisar a questão prévia da produção científica.
35 
lachelard e Koyré são exemplos típicos desse esquecimento, como 
-weremos. Daí suas concepções da história serem internalistas. 
üo nos vamos deter em todas as doutrinas dos historiadores das 
tiências. No momento, indiquemos apenas três soluções tentando 
llistinguir a história das ciências da história social: a primeira é uma 
11JDCepção filiacionista, a segunda é arqueológica e a terceira postula 
_ autonomia setorial para a história das ciências. 
primeiro tipo de solução é o da maioria dos manuais de história 
ciências. Fundamentalmente, consiste em separar um histórico 
tápido e sumário, que serve de quadro geral, e em estabelecer uma 
filiação das teorias e conceitos científicos. Trata-se de uma concepção 
. , t ·t d b " " (6) E [l}llltinU1s a, mw o preocupa a em uscar os precursores . m
DOS.50 entender, tal procedimento abandona a história. Porque esta não 
rxiste sem articulação efetiva de um setor do desenvolvimento com 
_ demais setores sociais. Por si só, a filiação não introduz a história, 
;rpenas uma cronologia dos acontecimentos, pois limita-se a fazer um 
telato dos resultados teóricos mais diversos, deixando na sombra a 
elaboração de uma teoria das condições em que foram produzidos. 
-"' existência de uma problemática de pesquisa é insuficiente para 
rxplicar o funcionamento real e efetivo da produção dos resultados 
científicos. Porque se limita a uma descrição das forças de produção 
científicas, não analisando as relações de produção. Donde a necessi­
dade de se fazer uma história das ciências na qual as forças cientifícas 
estejam vinculadas ao contexto sócioeconômico-político-cultural (7). 
O segundo tipo de solução consiste em estabelecer, entre os enun­
ciados científicos e os não-científicos, aproximações de diversos níveis 
� abastração: tipos dé construções, de encadeamentos, de figurações, 
de formulações, de imagens, de objetivos etc. Trata-se de colocar as 
discursividade científicas em ressonância com as discursividades 
exteriores. Em outras palavras, trata-se de fazer a atividade científica 
depender de um conjunto de regras controlando domínios dispersos, 
dessemelhantes, mas delimitados, embora ultrapassando o domínio 
do discurso científico. Esta tentativa não se limita às discursividades, 
pois pretende defini-las e restringi-las segundo "práticas" (especial­
mente ideológicas) articulando-se com o discurso científico. Temati­
zado por Michel Foucault (B), esse tipo de solução apresenta certas 
36 A REVOLUÇÃO CENTÍFICA MODERNA 
vantagens em relação ao anterior: a) permite a apreensão de u� 
enunciado científico como efeito de um modo de apresentação disl 
cursiva regulando a variedade de lugares e de transformações d 
mesmo enunciado, numa palavra, revela a sistematicidade do texto; b 
permite a percepção da textualidade científica em suas relações cont 
ternporâneas com os outros discursos não-científicos; e) mostra qU4 
o discurso científico depende de regras de formação e de transfo
mação. O que poderia ser criticado a essa" teoria", é que não podem
confundir condições de possibilidade com as condições de prot
dução. Adernais, as transformações dos enunciados e das práticas só
dependem de um sistema de regras na medida em que se trata de
transformações metódicas, abstratas e não-históricas. Quanto às trélTISII
formações dos sistemas teóricos, graças às pesquisas históricas, não
dependem de um sistema de regras, porque a história não é urna articUI
lação sistemática de sistemas de articulações.
Um terceiro tipo de solução consistiria em propor urna autonorni 
setorial para a história das ciências. Esta alternativa está basead 
numa certa concepção do método em história das ciências, corno se 
ele pudesse produzir, por si mesmo, qualquer efeito teórico signifi 
cativo. Ora, a metodologia não pretende ser urnaª-!§. inveniendi nem 
possui por objetivo fornecer os way§ of g.iscove�. Ela se constitui apM 
o que analisa. Quanto à história das ciências, enquanto disciplin�
constituiu-se e institucionalizou-se no final do século XIX. Sobre essa
disciplina jovem, o discurso do método edificou-se parcialmente, sob
horizontes distintos, em seu interior mesmo. Os ternas rnetodológi1
cos, mais do que o resultado de um exame rigoroso das condições de
possibilidade dos trabalhos feitos ou por ser feitos, constituem, em
geral, lições de um trabalho já efetuado. Não há urna história geral
da ciência. Tampouco existe urna história das ciências. O que há são
histórias regionais, cada urna se referindo a uma concepção diferente
do que deve ser uma história das_ ciências:história dos fatos, dos
conceitos, dos juízos, todas podendo depender de urna análise histórica,
sociológica ou conceituai. É claro que a história das ciências vai tornar
de empréstimo à história seu método crítico: estabelecimento dos
fatos e dos textos, exame e organização dos documentos para a
colocação em forma dos problemas. Em seguida, ela se constitui corno
"história especial", sendo a história dos sistemas de pensamento
relativos ao mesmo tempo ao mundo natural e ao "humano-social."
Assim, enquanto discurso sobre outro discurso e suas manifestações,
37 
llistória das ciências precisa empregar seus próprios métodos, já 
borados ou em curso de elaboração. 
projeto de constituição de uma esfera autônoma de atividades 
IÍl!lllÍÍicas, embora articulado com o conjunto da formação social, não 
axa claro em que sentido ele é histórico. Mesmo admitindo-se a 
nomia de mecanismos de produção científica, tais mecanismos 
seriam históricos pelo simples fato de estarem inseridos na 
..slória. Porque esta não é a articulação de setores autônomos 
ômicos, sociais, ideológicos e científicos) uns em relação aos 
ld:ros a fim de formar uma totalidade mais ou menos coerente, mas 
própria articulação, feita a cada instante e segundo todas as 
"'.'Ilações possíveis. Por conseguinte, a autonomia de um setor social de 
ama alguma significa a total independência de um mecanismo setorial 
relação a outros mecanismos. Significa simplesmente a sobreim­
aessão das várias articulações com o exterior sobre as regras de fun­
anamento interno, vale dizer, sobre a coerência eventual entre o 
-:zcanismo abstrato e sua existência social modificada. Neste momento, 
uma regra tem condições de governar o funcionamento total do 
• Portanto, neste estádio, não devemos mais falar de regra. Se quis­
smos, devemos falar de dialética. 
mais, mesmo admitindo a autonomia de um setor de atividades 
.i!ntíficas, precisamos reconhecer que nenhum mecanismo meto­
ialógico tem o direito de reger as pesquisas científicas. Porque nenhum 
· o, por si só, tem condições para produzir seus efeitos. Considerado
si mesmo, nenhum produz efeito teórico real, a não ser que venha
tido de uma valorização "ideológica" exterior. Evidentemente, 
se trata de recusar os procedimentos de produção dos efeitos 
ãrntíficos. Trata-se de mostrar que tais procedimentos não per­
l'DCem, em primeiro lugar, ao gênero metódico, embora possam 
mpenhar uma função na história das pesquisas científicas; em 
do lugar, à problemática de pesquisa, porque toda explicação 
- órica faz apelo a uma distribuição social, tanto dos instrumentos
micos e materiais de produção científica, quanto dos conceitos mais
_ menos latentes utilizados pelos cientistas, e impregnados pelas
ilosofias dominantes.
llecentemente, Isabelle Stengers (L' invention des sciences modernes, 
-ais, La Découverte, 1993) questiona o ponto de vista dos historiadores
IIOltados para os "social studies in science" (" sociologia das ciências"
38 A REVOLUÇÃO CENTÍFICA MODERNA 
ou "antropologia das ciências") e empenhados em estudar a ciênci 
à maneira de um empreendimento social como outro qualquer. Insp· 
rando-se nas propostas de Thomas Kuhn - tratando os fenômen 
segundo um "paradigma" ao mesmo tempo prático e teórico, fazendo o 
cientista submeter-se ao paradigma de sua comunidade, etc - não 
somente defende a idéia segundo a qual é a essa comunidade qu� 
devemos o "progresso científico", quer dizer, a démarche acumul 
tiva dos conhecimentos "graças à qual os fenômenos se tornant 
inteligíveis, tecnicamente controláveis e teoricamente interpretáveis 
(p.12), mas sustenta a tese da autonomia, se não da ciência, pelo menrnl 
da comunidade científica: "Do ponto de vista dos cientistas, a descriçã 
de Kuhn preserva o essencial: a autonomia de uma comunidad 
científica relativamente a seu contexto político e social" (p.13). Ade-i 
mais, além de preservar essa autonomia, essa comunidade "a institut 
como norma e condição de possibilidade para o exercício fecundo de 
uma ciência". O paradigma explica, não somente a conquista acumu., 
!ativa, mas a invenção do novo. Nesta perspectiva, a produção científic..i
e os interesses sociais e econômicos não são, como pensam os histo1
riadores de inspiração marxista (J.D. Berna! e J. Needham, outros),
solidários de fato e de direito. A novidade da obra de Kuhn, prossegue
Stengers, "reside na explicitação da divergência entre os interesses
dos cientistas e os dos filósofos das ciências. Os primeiros não têm
nenhuma necessidade de passarem pela defesa e pela ilustração da
racionalidade das ciências para reivindicar a iniciativa das questões.
e a exclusividade dos juízos de valor e de prioridade. Os segundos.
perdem todo estatuto privilegiado: não são árbitros nem testemunhas
nem mesmo os que saberiam decifrar as normas que funcionant
implicitamente no interior das ciências e que permitem se distingu·
a ciência da não-ciência" (p.16).
A partir dessa rápida análise, talvez possamos dizer que o problem 
central e mais difícil de uma história das ciências consiste em conce­
ber, tanto a distribuição social das forças produtivas quanto as re­
lações filosóficas de produção das ciências. Todavia, precisamos en­
tender essa comparação com certas reservas. E isto, por duas razões: a) 
diferentemente dos modos de produção sociais, os de produção cien11
tíficos não possuem uma determinação em última instância no proc1 
esso social global; b) o modo de produção social é uma totalidade 
com a qual se articula o modo de produção científica. Por isso, devem 
ser evitadas três posições filosóficas idealistas: a primeira, referind01 
constantemente as atividades científicas ao contexto "natural" ante-
39 
rior; a segunda, defendendo uma filiação das teorias a seus antece­
dentes do mesmo gênero; a terceira, sustentando que as teorias científi­
cas dependem logicamente de simples antecedentes racionais. Porque 
.s seqüências das teorias científicas nada mais são que o "progresso" 
-e suas transformações. Sendo assim, o objeto da história das ciên­
cias deixa de ser a simples sucessão de teorias, de conceitos e de
experiências. Passa a ser o conjunto das transformações que cada um
dos componentes técnicos (instrumentos), sociais (distribuição dos
papéis, etc), ideológicos, filosóficos e teóricos, bem como cada uma
- suas interações, pode infligir a determinado equilíbrio provisório.
� por isso que não podemos aceitar uma interpretação da história das 
àências como mero "progresso" ou como simples "evolução". Esta 
interpretação idealista do cientificismo tradicional nos parece total­
mente inadequada, pois reduz o caráter diacrônico das ciências a 
aproximações sucessivas, a generalizações progressivas e a adições 
mnstantes. De imediato, deve ser afastada a idéia de aproximações 
sucessivas (aproximações de quê?), pois só pode ser evocada a partir 
2 uma total incompreensão do que sejam as teorias cientificas: são 
� predições resultantes de uma teoria que podem ser ordenadas 
segundo sua proximidade maior ou menor de alguma coisa, não as 
leorias. 
Também nos parece inadequada a interpretação da "evolução" da 
ciência por generalização: as teorias ulteriores conteriam as anteri­
ores como "casos particulares". Ora, essa descrição resulta de uma 
confusão entre predição e teor lógico de uma teoria. A teoria new­
loniana não é um caso particular da relatividade restrita einsteiniana, 
POis esta declara, como seu axioma básico, a impossibilidade da propa­
gação de sinais com velocidade infinita. Entre Newton e Einstein não 
bouve uma continuidade, mas descontinuidade. Não houve "generali­
ação", mas revoJução. Ademais, não podemos descrever a evolução 
-a ciência como processo aditivo, como se as novas teorias descober­
tas fossem se acrescentando ou simplesmente se justapondo às já 
elaboradas de uma maneira diacronicamente acumulativa ou sin­
cronicamente aditiva. Ora, os novos conhecimentos não são meros 
aperfeiçoamentos" dos conhecimentos anteriores, deixando-os,por as­
sim dizer, intatos. As etapas históricas. da ciência correspondem 
àquilo que, na ausência de melhor termo, chamamos de rupturas 
epistemológicas (9). 
40 A REVOLUÇÃO CENTÍFICA MODERNA 
Concluamos com três observações: a primeira dizendo respeito à 
diferença entre o objeto das ciências e o objeto da história das ciências; 
a segunda, relacionando a história das ciências e a da filosofia; a 
terceira, enfim, colocando a questão da necessidade de os cientistas 
terem uma formação filosófica: 
1. Diferentemente da ciência, que é ciência de um objeto que
não é história, a história das ciências é a história de um objeto
que é uma história. Neste sentido, ela mantém uma relação
direta com a filosofia. Porque a história das ciências é, segundq
as expressões de Bachelard e de Canguilhem, "um tecido de
juízos implícitos sobre o valor dos pensamentos e das descober­
tas científicos" (10). No domínio da ciência, menos ainda do
que no da filosofia, o "historiador" não tem o direito de 
limitar-se a uma narração pretensamente objetiva nem tam­
pouco a ficar preso a uma simples descrição cronológica. A
função e o sentido de uma história das ciências precisam estar
referidos ao "modelo da escola ou do tribunal, de uma instituição
ou de um lugar onde se possa emitir juízos sobre o passado do
saber, sobre o saber do passado" (ll)_ Por isso, a história das
ciências está ligada a uma consciência que poderíamos chamar
de "panhistoricidade" na qual devem ser levados em conta,
não somente os discursos, mas as " idealidades" e, mesmo, os
referentes. Neste sentido, só se torna eficaz com a condição
de vincular-se à consciência da historicidade, não somente
da própria ciência (" só há história da racionalidade", diz
Derrida), mas do objeto da ciência. A este respeito, Michel
Serres é mais radical que Canguilhem: "Se os objetos do céu
pareciam a nossos antecessores tão estáveis e puros quanto
as idealidades do pensamento teórico, doravante sabemos
que o rigor e a pureza estão em devir ao mesmo título que
as estrelas que nascem, envelhecem e morrem. A teoria é uma
história, a pureza possui um tempo pró�rio, como a cosmolo­
gia tem, doravante, sua cosmogonia" (l ) .
2. Sabemos que a história das "mentalidades", das "idéias",
das "atitudes" ou, simplesmente, do "pensamento" versa
sobre fenômenos culturais, vale dizer, coletivos. Sendo as­
sim, a filosofia não dependeria dessa história. No entanto,
há uma historicidade da filosofia, h istoricidade específica11 
41 
pensada e feita pelos próprios filósofos. Mas esta história não 
consiste numa sucessão de teses dispostas segundo a ordem 
cronológica de sua formulação. O que ela tenta fazer é descre­
ver, em cada obra, os percursos segundo os quais os autores 
pensaram estabelecer essas teses, ou seja, a ordem de suas 
razões. Todavia, posto que a filosofia pretende ser uma escola 
de vida, e não uma escolástica desencarnada, precisa" morder" 
a realidade, porque deve estar consciente de que os proble­
mas são, mais tmportantes do que os autores. A história da 
filosofia constitui, no interior de certos limites, um meio 
excelente, nunca um fim. Para evitarmos o irrealismo, talvez 
fosse interessante não nos esquecer dessa sabedoria''J�rimum 
vivere, deinde P.hilosoP.hare, denigue �arrare historiam 
p_hilosoP.hiae:· Evidentemente, para sabermos o que os 
filósofos quiseram dizer, precisamos saber como e em que 
condições eles conseguiram estabelecer o que quiseram dizer, 
numa palavra, as condições objetivas em que seu saber foi 
produzido. Porque a filosofia não pode separar-se de sua 
história, de seu modo de produzir filosofia. Suas "ver­
dades" não são intemporais, subsistindo fora das con­
dições reais que as engendraram, fora dos esforços sucessivos 
para sua aquisição. Diferentemente das chamadas ciências 
positivas, ela não admite verdades atualmente consideradas 
como adquiridas. Para ela, a historicidade nunca é um acidente 
exterior. Constitui seu elemento essencial e constitutivo. É 
por isso que a história da filosofia mantém uma relação muito 
estreita com a história das ciências, mas estreita do que com 
a história e com a ciência propriamente ditas. Porque ela é 
um conjunto de juízos sobre o valor das descobertas científicas 
em suas condições sócios-histórias bem precisas. 
Koyré tinha plena consciência, como observa G. Jorland (La 
science dans la philosophie, Çallimard, 1981, p. 71s), de que 
há várias maneiras de se fazer a história das ciências: a) pode 
ser apresentada como uma cronologia das descobertas, das 
vitórias da razão sobre a natureza ou, ao contrário, como um 
"graveyard of forgotten theories", como uma história dos 
erros humanos; b) mas também pode ser vinculada à história 
da técnica, de evolução social, da luta de classes, na medida 
em que a ciência moderna constituiu uma vitória da bur­
guesia sobre o mundo feudal. Mas ele não aceita nenhuma 
42 A REVOLUÇÃO CENTÍFICA MODERNA 
dessas duas possibilidades: a primeira só faz sentido quandq 
se investe a história de uma lógica dos resultados que a 
normalisa, que a retifica com finalidade apologética; quantq 
à segunda, não leva em conta o papel fundamental exercido 
pelas matemáticas e pela astronomia, muito mais voltadas 
para o interesse teórico da estrutura do universo. Seu modo 
de praticar a história das ciências é primordialmente! 
filosófico: busca descobrir os processos do pensamento em 
direção à verdade. Não está preocupado em explicar, de 
forma causal, a emergência do conhecimento científico, mas 
em compreender, de modo "empático", as atitudes dos 
criadores da ciência moderna, vale dizer, adotando uma 
disposição intelectual consistindo em transportar-se, por in­
tuição, no interior mesmo de seu pensamento a fim de eluci­
dar suas motivações e de compreender sua estrutura e seu 
desenvolvimento. Prefere detectar os motivos do que as causas. 
As causas agem, determinam e necessitam: pertencem à 
natureza. Quanto aos motivos, não agem e nem mesmo são 
reais. As causas destróem a liberdade, diz Koyé, enquanto os 
motivos a preservam: a ação motivada escapa ao en­
cadeamento das causas da natureza. O homem explica por 
causas naturais ou sociais, mas compreende por causas in­
telectuais e imanentes, quer dizer, por motivações. É desta 
forma que o historiador precisa re-representar o passado. 
3. Um dos grandes receios dos cientistas, em relação à história
das ciências, é o de caírem na filosofia. No entanto, não
podem evitar uma concepção ou uma teoria da "ciência".
Podem até não formulá-la claramente ou considerá-la simples­
mente como neutra. Mas isto é ilusório. Porque não existe
definição universal e evidente daquilo que deve ser a ciência,
daquilo que lhe é permitido ou proibido. Ademais, todo cientista
possui uma filosofia espontânea vinculada a uma concepção do
mundo. Trata-se de uma filosofia contendo elementos contra­
ditórios. A filosofia espontânea dos cientistas contém, no dizer
de L. Althusser (l3), dois elementos fundamentais: a) um ele­
mento de origem interna, intracientífico ou materialista, sur­
gindo diretamente da prática científica: convicções de caráter ma­
terialista, realista, objetivista, crença na existência real do objeto
de conhecimento, etc.; b) um elemento extracientífico e ide­
alista, surgindo, não da prática efetiva dos cientistas, mas das
43 
filosofias espontâneas de que freqüentemente eles se servem. 
Alguns, que podemos chamar de "positivistas", pretendem 
apenas descrever os fenômenos e suas relações graças e enun­
ciados teóricos capazes de explicá-los de modo eficaz, sem 
nenhuma preocupação com os chamados "segredos" da reali­
dade. Outros, ao contrário, portadores de urna concepção "re­
alista", acreditam na existência de urna realidade objetiva por 
leis, também objetivas, susceptíveis de serem reveladas pela 
ciência. Os newtonianos, por exemplo, acreditavam que sua 
física exprimia urna verdade absoluta. 
Essas duas formas de ver correspondem a tradições bem antigas 
e a conflitos ideológicos importantes.Por exemplo, antes mesmo 
da morte de Copérnico, o teólogo luterano Osiander já propusera 
urna interpretação "positivista" do heliocentrismo com o ob­
jetivo de atenuar o que ele possuía de escandaloso para as 
Escrituras. Por isso, defendia ardorosamente que o heliocen­
trismo de Copérnico apenas pretendia "salvar as aparên­
cias", constituía somente um artifício matemático, não urna 
teoria "verdadeira". Com isso, prevaleceria a última palavra 
da religião. 
Ora, ao pretender eliminar os "por quê?, a concepção posi­
tivista esteriliza a imaginação e freia o trabalho científico. 
Por sua vez, ao manter sua posição, sob urna forma simplista, 
os realistas correm o risco de conferir aos pesquisadores urna 
confiança excessiva em suas teorias, que se transformam 
facilmente em dogmas indiscutíveis. Creio que as discussões 
provocadas pelo desenvolvimento das ciências seriam melhor elu­
cidadas caso os próprios cientistas tivessem urna sólida for­
mação histórica e filosófica. A este respeito, gostaria de lembrar 
dois textos interessantes, o primeiro de Engels, o segundo de 
A. Cournot:
"Os sábios acreditam livrar-se da filosofia ignorando-a ou vitu­
perando-a. Mas como, sem pensamento, eles não progridem de um 
passo, e como, para pensar, têm necessidade de categorias lógicas; por 
outro lado, como eles tomam essas categorias sem fazer sua crítica, seja 
na consciência comum das pessoas ditas cultas, consciência que é 
denominada por restos de filosofia de há muito superada, seja nas 
migalhas de filosofia recolhidas nos cursos obrigatórios da Universi-
44 A REVOLUÇÃO CENTíFICA MODERNA 
dade, seja ainda na leitura desordenada e sem crítica de produç 
filosóficas de toda espécie, nem por isso encontram-se menos sob 
jugo da filosofia e, na maioria das vezes, lamentavelmente! da pior ( 
Os sábios estão dominados pela filosofia. O problema consiste e. 
saber se querem ser dominados por alguma má filosofia na moda, o
se pretendem deixar-se guiar por uma forma de pensamento teórid 
que repousa no conhecimento da história do pensamento e de suai
aquisições " (l4)
"O elemento filosófico e o elemento científico, embora distintos u
do outro, combinam-se e associam-se no desenvolvimento da atid 
dade intelectual. É um fato que a filosofia de uma época impõe certa 
idéias. Mas isto não quer dizer que ela seja superior às ciências e d� 
governá-las. Freqüentemente as ciências se constituem contra certae 
doutrinas filosóficas. 
Se estas, em outras circunstâncias, são levadas a desempenhar um pa� 
positivo, as ciências, em contrapartida, enriquecem e estimulam a re,. 
flexão filosófica: as crises renovadoras das ciências foram as únicas crisd 
utilmente renovadores da filosofia" (lS)_ 
Feitas essas observações, lembremos que a evolução das ciêncial 
não obedece a nenhuma lógica predeterminada. Ela depende de 
acontecimentos e de opções (nem sempre intencionais). AB opç� 
científicas freqüentemente dependem dos acasos da história. São 
feitas obedecendo a uma série de razões "razoáveis", embora não 
determinantes. Trata-se de opções condicionadas pelas estrutur 
da sociedade e pelas relações humanas. Por exemplo, o que teriam 
sido os resultados científicos se outras opções tivessem sido feitas1 
O que teria ocorrido com nossos conhecimentos se a física não 
tivesse tomado a forma que Galileu e Newton lhe deram? Aliás" 
nos dias de hoje, cada vez mais historiadores estudam os debates do 
passado evitando desvirtuá-los pelo ponto de vista dos "vencedores". 
Michel Serres e seus colaboradores (Elements 'histoire des sciences11 
Bordas, 1989), por exemplo, recusam "a história das ciências 
espontânea reduzindo-se a uma história santa ou sagrada" para 
instaurar um modo de concebê-la e de escrevê-la privilegiando, não 
tanto os seus resultados, mas seus pontos de bifurcação e seus de­
safios. Não negam que devamos descrever e examinar toda uma série 
de condicionamentos dessa história. Temos o direito de examinar, por 
exemplo, quais são os fatores econômicos, culturais, políticos, indus­
triais, militares, etc. que condicionaram o desenvolvimento da ciên­
cia, desde seu nascimento, até nossos dias. Inclusive, podemos exami­
nar as diferenças de sociedade que explicaram as diversidades entre 
a evolução dos saberes científicos no Ocidente e na China (J. Need­
ham). E há os que acreditam que, mesmo que as ciências sejam 
45 
condicionadas por todos esses fatores, seu desenvolvimento não obe­
deceu a regras ou a leis universais, como pareceram crer, tanto o� 
ideólogos da racionalidade científica absoluta quanto os do materia­
lismo dialético.Para Prigogine e Stengers (La nouvelle alliance, 1979), 
as ciências seriam uma verdadeira criação cultural, feitas por seres 
humanos para os seres humanos, veiculando, não só as grandezas, 
mas as miopias de uma civilização particular. 
NOTAS 
1. Para um estudo das origens da história das ciências, notadamente com
Bacon, Leibniz e Fontenelle no século XVII, de seu advento no século
XVIII (período do Iluminismo); e para uma análise detalhada da
história das ciências no século do positivismo: a concepção de A.
Comte, sua luta para instaurar o estudo dessa disciplina na Sorbonne,
a concepção neopositivista de Tannery e a proposta neo-humanista
de Sarton; bem como para uma análise das relações da história das
ciências com a filosofia, ver o livro de Georges Gusdorf, De I'histoire
des sciences à l'histoire de la pensée, Paris, {'ªyot 1966, onde define
o quadro geral de uma história interdisciplinar do pensamento
europeu.
2. Études d'histoire et de philosophie des sciences, Paris, Vrin, 1970,
p.11. Alexandre Koyré e Gaston Bachelard, na França, são os dois
pioneiros de uma história filosófica das ciências: anexam a história
das ciências à filosofia. Para Koyré, cujo pensamento é essencialmente
histórico, é a história da filosofia que se encontra presente na história
das ciências. Sua preocupação fundamental é a de estabelecer as
relações do pensamento científico com a filosofia de seu tempo. Insatis­
feito com a historiografia compiladora, com o triunfalismo dos histo­
riadores e com 6 reducionismo de alguns sociólogos das ciências, procura
incentivar os historiadores a fazerem uma leitura e uma análise aten­
tas dos textos, mas ressituando-se em seu contexto intelectual, com o
objetivo, não de enunciar proposições gerais sobre a natureza da
ciência, mas de compreender o passado em sua originalidade irre­
dutível. Quanto à obra de Bachelard, aparece como mais filosófica que
histórica. Apoiada na história da ciência recente, supõe uma definição
prévia da ciência (a "filosofia do não"), dela retira uma teoria de sua
emergência (onde aparece a noção de "obstáculo epistemológico") e
busca, em seguida, numa história mais longínqua, a confirmação de sua 
46 A REVOLUÇÃO CENTíFICA MODERNA 
epistemologia. Trata-se de uma história "filosófica" das ciências, poit 
não estuda a história nela mesma, mas a submete a um projeto filosófi� 
Para Georges Canguilhem, um dos melhores intérpretes de Bachelard, a 
cultura e o método da filosofia são postos a serviço da inteligência da históri4 
a reconstrução da história dos conceitos tem um valor filosófico; no 
entanto, para o historiador, ela se torna parte integrante de seu trabalh(Jf
Quanto a Michel Foucault, como nos mostra sua "História da loucurai 
privilegia a teoria em detrimento do fato: o verdadeiro objeto da reflexã(J 
filosófica, nesta obra, é a teoria do poder, repousando numa definiçãcf
da doença mental. É a partir daí que ele escolhe e interpreta os fato� 
3. Na visão bachelardiana, a epistemologia constitui uma reflexãg
histórico-crítica sobre a cientificidade da ciência, sobre o processo de 
objetivação das ciências em seu movimento, em vias de se fazerem.
procurando revelar o desenvolvimento descontínuo de suas teorias e
de seus conceitos, vale dizer, sua produção de conhecimentos atravélf
do tempo, retraçando e evolução do pensamento científico a partir da
recorrência à história dos conhecimentos sancionados ou

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