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Enrique Leff Epistemologia Ambiental 5 a edkáo 2' reimpressáo Traduáo de Sandra Valenzuela ®EDIT OrRA EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL Enrique Leff Capa: DAC Preparacdo de originais: Agnaldo Alves Revisdo técnica da traduvdo: Paulo Freire Vieira Composiedo: Linea Editora Ltda. Coordenacdo editorial: Danilo A. Q. Morales Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem a autorizagáo expressa do autor e do editor. 2000 by Enrique Leff para esta edicáo em língua portuguesa no Brasil. Direitos para esta edicáo CORTEZ EDITORA Rua Monte Alegre, 1074 — Perdizes 05014-001 — Sáo Paulo — SP Tel.: (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864-4290 e-mail: cortez@cortezeditora.com.br www.cortezeditora.com.br Impresso na India — fevereiro de 2014 A Ignacy Sachs, quem iluminou o caminho pelo qual haveria de andar, em minha busca infinita, ao encontro do ambiente. C—EDIT «<SRra 7 SUMÁRIO Prólogo á zia edigáo 9 1. Sobre a articulagáo das ciéncias na relagáo natureza-sociedade 23 2. Interdisciplinaridade, ambiente e desenvolvimento sustentável 61 3. Pensamento sociológico, racionalidade ambiental e transformagóes do conhecimento 109 4. Saber ambiental: do conhecimento interdisciplinar ao diálogo de saberes 159 5. Pensar a complexidade ambiental 191 Bibliografia 227 @EDITORP 9 PRÓLOGO Á A ED00* A publicagáo deste livro — formado por cinco textos escritos entre 1980 e 2000 — suscitou urna preocupagáo: a de justificar a coeréncia do pensamento epistemológico desenvolvido nos capítulos que o constituem, em seus diferen- tes momentos de reflexáo, na transigáo e nos saltos epistémicos desde seus fun- damentos no estruturalismo teórico e no racionalismo crítico dos trés primeiros capítulos, até o pensamento pós-estruturalista e pós-modernos dos dois últimos capítulos do livro; da coeréncia entre a epistemologia althusseriana aplicada á articulagáo das ciéncias, as estratégias de poder no saber ambiental fundadas na arqueologia de Michel Foucault, a categoria de racionalidade de Max Weber, a ontologia existencial de Martin Heidegger, a ética da outridade de Emmanuel Lévinas e o pensamento desconstrucionista de Jacques Derrida. Os motivos dessas transigóes e da extemalizagáo contínua (descontínua) do ambiente no trajeto seguido por essa epistemologia ambiental foram o tema da aula inaugural para a qual fui convidado pelo Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília em agosto de 2003, e em seguida trans- crita e publicada em um pequeno livro'. Náo haveria sentido em repetir aqui as argumentagóes afi expostas e remeto os leitores interessados a esse texto. Em- bora afi tenham sido esbogados as paisagens e os cenários de cada urna das órbitas desse percurso, e expostos seus saltos e transigóes, ainda faltava justifi- car a coeréncia desse pensamento ao longo de seu trajeto: o "abandono" do estruturalismo marxista de meus primeiros escritos; minha falta de submissáo ás teorias de sistemas e ao pensamento da complexidade; minha inclinagáo para a política do saber, a atragáo pela sociologia weberiana, minha sedugáo pelo pensamento da pós-modernidade, e até a possível queda em um ecletismo injus- tificável. Se retomo o tema náo é para me explicar e me justificar diante das possíveis críticas (mais imaginadas que recebidas), e sim porque a coeréncia do 1 10 ENRIQUE LEFF pensamento da complexidade, do saber e da racionalidade ambiental é urna ques- táo imprescindível densa epistemologia ambiental: a de se pensar criticamente. O livro é constituído por textos que foram escritos durante um período de 20 anos. Ao reuni-los neste volume tomei a decisáo de náo reformulá-los, atualizá- los ou complementá-los, de náo apagar sua própria história como momentos datados de escrita e expressáo de um pensamento que náo tem o objetivo de se completar, e sim o de se manter vivo, abrindo caminho a partir do que faltava para pensar em cada urna de suas etapas. Este prólogo deve ser lido, portanto, como uma reflexáo sobre a coeréncia das aventuras e desventuras desse trajeto epistemológico através de seus saltos epistémicos. É urna pergunta obrigatória, sobretudo guando nossas referéncias no estudo da história das ciéncias vém de Bachelard, Canguilhem, Althusser, Foucault e Kuhn, que em sua "física quántica" da ciéncia mostraram que o conhecimento náo avanga em urna evolugáo contí- nua, mas por rupturas epistemológicas e mudangas de paradigmas. Do mesmo modo que se esquadrinhou o fio que une a física mecánica á física quántica ou á física relativista, ou o evolucionismo á mutagáo genética, perguntamo-nos se entre os círculos de exteriorizagáo do saber ambiental há ruptura ou continuida- de, extensáo lógica de um método de pensamento e urna linha teórica, ou aber- tura para urna nova compreensáo que anularia ou superaria o valor epistemoló- gico da abordagem anterior. Os saltos e deslocamentos seguidos por esse itinerário estáo unidos mais por um certo espírito questionador que por um método de produgáo de conheci- mentos. Poderíamos afirmar que, em sua coeréncia, está subjacente urna co- herano, no sentido de que algo desse espírito crítico é transmitido e incorpora- do no tecido vital do novo círculo de reflexáo que emerge (da visáo complexa do concreto como síntese de múltiplas determinagóes de Marx ao estruturalis- mo crítico; entre a idéia de totalidade complexa de Lukács e a complexa ordem de racionalidade no todo social de Weber; da dissociagáo entre o ente e o ser de Heidegger á diferenga de Derrida e á outridade de Lévinas. Co-heranga na críti- ca a todo o pensamento metafísico e científico que herda e funda a modernida- de, e que antecede a manifestagáo da crise ambiental corno crise do conheci- mento2. A coeréncia reside mais em posicionar esse questionamento a partir de fora do pensamento estabelecidó do que em um "modo de pensar", que certa- mente náo poderia ser identificado com o de um pensamento complexo no qual as esferas de pensamento se ligam e se entrelagam através de um sistema de convergéncias, inter-relagóes e retroalimentagóes. Essa coeréncia se verifica por urna via hermenéutica que ressignifica e atualiza o sentido de proposigóes inse- ridas em diferentes doutrinas de pensamento que atravessam os tempos de refle- xáo filosófica. EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 11 O recurso á metáfora pode ser-nos útil para compreender essa busca teóri- ca. E talvez a analogia da concepgáo do átomo na física quántica possa prestar um bom servigo epistemológico. A primeira órbita é a de menor energia, porém a mais próxima do núcleo positivista em torno do qual gira o saber ambiental. Nesse sentido, o estruturalismo teórico de Althusser permite urna crítica mais próxima, ainda com as ferramentas do pensamento científico objetivo. Esse es- pírito crítico impulsiona o pensamento ambiental para suas novas órbitas. O saber ambiental que emerge dessa crise de civilizagáo e da racionalidade do mundo moderno plasma-se no espato de exterioridade do pensamento meta- físico e do conhecimento científico que procurara abarcá-lo e atraí-lo para seu centro de gravidade. Foi essa a vontade das teorias de sistemas, dos métodos interdisciplinares e das ciéncias da complexidade que emergem nessa encruzi- lhada do pensamento. No entanto, o saber ambiental é expulso do núcleo da racionalidade científica por urna foro centrífuga que o impulsiona para fora, que o impede de se fundir no núcleo sólido das ciéncias duras e objetivas, de se subsumir em um saber de fundo, de se engrenar no círculo das ciéncias e se dissolver em urna reintegragáo interdisciplinar de conhecimentos. O saber am- biental está em fuga; mantém-se em um processo contínuo de demarcagáo, de- limitagáo, disjungáo, desconstrugáo e diferenciagáo do conhecimento verdadei- ro, do saber consabido, deslocando-se para a exterioridade dos paradigmas esta- belecidos, libertando-se do jugo do propósito totalitário de todo pensamentoglobal e unificado. Essa é a vocagáo do saber ambiental que une as diferentes órbitas de seu pensamento epistemológico. Ao longo do livro, o saber ambiental se mantém nesse espato exterior ao núcleo das ciéncias. Essa vontade de exteriorizagáo permanente se verifica em um processo de demarcallíes sucessivas. A renúncia ao fechamento dogmático, ao conformismo do pensamento e á finalizagáo do saber é o fio condutor desta epistemologia ambiental, o que permite extraditar o pensado em cada momento e abrir as portas do pensamento para novos horizontes do saber, para o que ainda falta pensar em sua tarefa questionadora, sabendo que náo existe retorno para o porto originário e que nunca terminará de sulcar os mares do conhecimento. No entanto, sua coeréncia náo se contenta com essa vontade de exteriori- zagáo. Esta terá de ser confirmada na organizagáo de suas argumentagóes em cada urna de suas etapas: no racionalismo crítico aplicado ao estudo da interdis- ciplinaridade no campo do saber ambiental; sobre os saltos epistémicos na ar- queologia do saber e a configuragáo das estratégias de poder no saber que se inscrevem nessas formagóes discursivas; sobre o encadeamento e a confronta- gáo de diferentes racionalidades; sobre o pensamento da complexidade e a con- 12 ENRIQUE LEFF figuragáo de entes e identidades híbridos; sobre as relagóes de outridade e o diálogo de saberes em urna política da difereno. Será preciso, portanto, elucidar a coeréncia desta epistemologia ambiental em evolugáo, em que cada temática se solta, se desdobra e se desloca para novos campos de reflexáo pelas perguntas geradas pelo pensamento final de cada eta- pa, abrindo-se para novos horizontes em resposta ao impulso epistemofílico que a anima e ás pulsaglies que batem no próprio sangue dos textos. O ambiente como saber, foco ardente desta reflexáo, langa o pensamento para a exteriorida- de de seu objeto de estudo. O avango do saber ambiental, desde o espato de exterioridade que ocupa diante da racionalidade das ciéncias, vai descobrindo novas facetas em seu caminho; ao mesmo tempo, adquire novas formas de ex- pressáo no diálogo que se estabelece com outros autores, com outras categorias filosóficas e outros jogos de linguagem. Esses fios invisíveis, que unem o tecido discursivo dos diferentes capítu- los, sáo os que dáo ao livro sua consisténcia teórica corno proposta integrada e náo apenas como um compéndio de fases e facetas sucessivas de um pensamen- to. A pergunta pela coeréncia do livro leva a pensar os fios que ligam o estrutu- ralismo teórico e o racionalismo crítico aplicados ao conhecimento no campo ambiental emergente nos anos 1970 (a teoria de sistemas, a problemática da interdisciplinaridade e a articulagáo das ciéncias, o pensamento da complexida- de) com as estratégias de poder no saber no interior do discurso e a geopolítica do desenvolvimento sustentável, com a reflexáo sobre os saberes culturais e a significagáo da natureza, sobre a complexidade ambiental e a emergéncia de entes híbridos — de vida, tecnologia e símbolos —, a reinvengáo das identidades, a ética da outridade e a política da diferenga. Esse questionamento transcende a tradigáo filosófica, epistemológica, gnosiológica, cognitiva e ética; abre a relagáo do ser com o saber, do diálogo de saberes a partir de seres culturalmente diferen- ciados e da constituigáo de atores sociais na reapropriagáo social da natureza. É nesse amplo campo de solidariedades e demarcagóes teóricas que se propbe a pergunta sobre a relagáo entre a epistemologia de Althusser e Canguilhem, a ontologia de Heidegger e a ética de Lévinas, passando pelo pen- samento sociológico de Weber, a arqueologia do saber de Foucault, e a filosofia pós-moderna iniciada por Nietzsche e seguida por Derrida, Deleuze, Guattari e Baudrillard. Como entender a coeréncia do encadeamento e articulagáo dessas construgejes teóricas que no campo do pensamento filosófico aparecem como rupturas epistémicas, demarcagóes teóricas e posigóes teóricas irreconciliáveis? Esta é a provocagáo que fazem as aventuras e desventuras desta epistemo- logia ambiental: a Odisséia de um pensamento que, saindo do porto do raciona- lismo crítico, se vé impelido a navegar, levado por sua vontade de saber, para EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 13 novos horizontes onde o pensamento metafísico e o logos científico — todo pensamento naturalista, ecologista, sistémico — se desvanecem, para dar lugar á construgáo de urna nova racionalidade social. A mudanga civilizatória anunciada pela crise ambiental nos anos 1960 coincide com urna mudanga epistémica no campo da filosofia, da ciéncia e do saber: a transigáo do estruturalismo e da racionalidade da modernidade para o ecologismo, o pensamento da complexidade e a filosofia da pós-modernidade. Que pontes se estendem entre essa mudanga de época? Que encontros e vín- culos se produzem entre essas rupturas epistemológicas? Nessa encruzilhada se ligam os autores que foram convocados ao campo do pensamento ambiental. Na época em que Althusser publica Lire le Capital e Pour Marx (1965), Derrida escreve De la Grammatologie e L'Écriture et la Différence. Sáo também os anos da publicagáo de Les Mots et les Choses (1966) e de L'Archéologie du Savoir (1969). Nesse apogeu do estruturalismo como limite do pensamento da modernidade se encaixa o nascimento do pensamento pós-moderno precedido por Nietzsche e Heidegger. O saber ambiental promove o diálogo entre Marx e Heidegger, entre Althusser e Derrida, entre Foucault e Lévinas, nas margens do pensamento esta- belecido; questiona o conhecimento a partir de fora do campo de positividade em que se apresenta a coisa, o ente e o logos, a partir da exterioridade da qual observa o confinamento de todo pensamento que aspira á unidade, á universali- dade e á totalidade: da episteme estruturalista e da teoria de sistemas até a ontologia de um ser genérico e a ecologia generalizada como "ciéncia as cién- cias". O saber ambiental coloca-se fora da idéia do uno, do absoluto e da totali- dade; do logocentrismo das ciéncias e das visóes sistémicas do pensamento complexo. Situado nessa extraterritorialidade e ao longo de sua aventura episte- mológica, o saber ambiental indaga a partir de sua falta de conhecimento, a partir do nao-pensado, sem se assimilar, sem se fundir e se dissolver numa ciéncia integrada, num pensamento unitário ou num paradigma transdisciplinar. A crise ambiental é urna crise do conhecimento: da dissociagáo entre o ser e o ente á lógica autocentrada da ciéncia e ao processo de racionalizagáo da modernidade guiado pelos imperativos da racionalidade económica e instru- mental. O saber que emerge dessa crise no campo de externalidade das ciéncias se filtra entre as estruturas teóricas e as malhas discursivas do conhecimento moderno; a partir dali, questiona os paradigmas estabelecidos, abrindo as portas para o saber negado. O saber ambiental vai derrubando certezas e abrindo os raciocínios fechados que expulsam o ambiente dos círculos concéntricos do conhecimento. A epistemologia ambiental confronta o projeto positivista (uni- versal, objetivo) do conhecimento e deslinda as estratégias de poder que se 14 ENRIQUE LEFF entrelagam nos paradigmas científicos e na racionalidade da modernidade. Esta é sua coeréncia estratégica. A epistemologia ambiental é uma política do saber que busca a sustentabi- lidade da vida. Para além do propósito de internalizar o ambiente externalizado da centralidade do conhecimento e do assédio do poder da ciéncia; para além do acoplamento da teoria e do pensamento com urna realidade dada, a epistemolo- gia ambiental muda as formas de ser no mundo na relagáo que o ser estabelece com o pensar, com o saber e o conhecer. É urna epistemologia política da vida e da existéncia humana. Com isso em mente, voltemos aos capítulos do livro. No primeiro capítulo, a epistemologia ambiental questiona a aspiragáo das teorias de sistemas e dopensamento holístico á unidade, á totalidade e a integra- QáO do conhecimento — através de suas homologias estruturais e de suas inter- relagóes ecológico-cibernéticas assim como o caráter técnico e pragmático do projeto interdisciplinar. Ao mesmo tempo, apresenta as condigóes de possi- bilidade de urna interdisciplinaridade teórica, ou seja, para a articulagáo dos objetos de conhecimento de duas ou mais ciéncias, diferenciando-se do empi- rismo e do logicismo do conhecimento científico. A partir do racionalismo crí- tico de Bachelard, Canguilhem e Althusser, apresentam-se os obstáculos episte- mológicos e as racionalidades teóricas que sustentam os paradigmas de conhe- cimento, que os impedem de abrir suas comportas para internalizar urna "di- mensáo ambiental" ou de reconfigurar suas disciplinas para constituir um saber holístico guiado por um método e um pensamento da complexidade. A episte- mologia estruturalista permite mostrar a ficgáo da proposta interdisciplinar, pois toda ciéncia e toda disciplina sáo constituídas por estruturas teóricas e estraté- gias conceptuais (paradigmas) que náo se reintegram em um pensamento holístico pela vontade de um método ou de urna equipe interdisciplinar. A "dimensáo ambiental" foi-se desvelando, portanto, como um saber que responde ao impen- sado pelas ciéncias, que no esquematismo dos enfoques de sistemas se percebe como urna "externalidade" ao campo de seus paradigmas de conhecimento. A epistemologia althusseriana estabelece, assim, as condigóes teóricas para pensar urna articulagáo das ciéncias capaz de oferecer urna explicagáo mais con- creta (síntese de múltiplas determinagóes) de uma "realidade complexa" na qual confluem diferentes processos materiais e simbólicos, incluindo as causas da crise ambiental gerada como efeito da racionalidade económica. Ao mesmo tem- po, serviu como estratégia teórica para pensar uma nova racionalidade social e produtiva. Partindo das condigóes epistemológicas propostas por Canguilhem para a construgáo de um objeto interdisciplinar de conhecimento pela colabora- gáo de diferentes disciplinas e saberes, elaboramos os princípios de uma nova teoria da produgáo baleada na articulagáo de processos ecológicos, tecnológi- EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 15 cos e culturais e pela contribuigáo de diferentes disciplinas nos campos da eco- logia, da tecnologia e das etnociéncias. Esse paradigma de produtividade ecotecnológica contrasta com a racionalidade económica dominante, na qual a natureza foi externalizada do processo de produgáo e, ao mesmo tempo, desnaturalizada, ao ser reduzida a um insumo produtivo de recursos naturais e matérias-primas; por esse motivo ignora-se a entropia como lei limite do pro- cesso económico e o potencial neguentrópico que emerge de tuna nova raciona- lidade produtiva: ecologicamente sustentável, culturalmente diferente e social- mente justa3 . O ambiente vai se configurando no espato externo ao círculo das ciéncias. Essa externalidade náo é a de um saber emergente que a ciéncia possa acolher para se completar, se atualizar e se finalizar como um progresso no campo do conhecimento que avanga negando e subjugando saberes, ignorando o real que é seu Outro e que náo pode integrar na positividade de sua verdade objetiva. O exemplo mais notório disso é o desconhecimento, da lei da entropia e das con- digóes ecológicas de sustentabilidade pela racionalidade económica dominante. A epistemologia ambiental funda-se a partir de um novo saber que emerge do limite do real (entropia), do projeto de unificagáo forgada do ser e da epopéia da ciéncia pela objetividade e transparéncia do mundo. O Ambiente se erige como o Outro da racionalidade da modernidade, do mundo realmente existente e do- minante. O saber ambiental problematiza as ciéncias para transformá-las. Dali emergem disciplinas ecológicas e ambientais; contudo, o saber ambiental náo se integra ás ciéncias, mas as impulsiona a se reconstituir a partir de outra racionalidade. A epistemologia estruturalista diferencia-se de todo empirismo, positivis- mo e realismo que concebe a verdade como identidade, correspondéncia ou acoplamento do conceito com a realidade; mostra a diferenga entre a realidade e o real, entre o objeto real e o objeto do conhecimento; indica a forma como a, prática teórica desenha objetos de conhecimento, formula conceitos e os entre- laga em teorias para dar conta do real. Mas o pensamento estruturalista — como as teorias de sistemas — cai ainda na armadilha do "totalitarismo" e do "racio- nalismo" da teoria; mantém a ilusáo de se desembaragar da ideologia com a fundagáo de urna ciéncia a partir de urna revolugáo científica que consegue trans- cender o domínio das ideologias teóricas que a anteceden e escamoteiam seu lugar da verdade. Já instalada em seu espato de cientificidade, a teoria se cir- cunscreve em um "todo estruturado já dado" (Althusser), onde o todo pensado como síntese de múltiplas determinagóes (Marx, Lukács, Kosik) corresponderia a urna estrutura determinada do real. A complexidade do mundo fenoménico é imaginada pelo pensamento complexo. 16 ENRIQUE LEFF O limite do racionalismo e do estruturalismo deveria levar-nos para urna nova órbita de reflexáo para pensar a teoria como estratégias conceptuais e a fungáo do sujeito na mobilizagáo das teorias pela vontade de saber. Assim, a epistemologia ambiental convoca Michel Foucault para estabelecer uma episte- mologia política capaz de pensar as estratégias de poder no saber para "interna- lizar" o saber ambiental nos paradigmas das ciéncias e para elucidar as estraté- gias de poder que o discurso do desenvolvimento sustentável póe em jogo. Essa reflexáo, por volta dos inícios dos anos 1980, foi a pedra de toque que serviu de fundamento para pensar os problemas do conhecimento a partir de uma pers- pectiva ambienta1 4 . O conceito de saber de Foucault desloca a política fundada na prática teó- rica para urna política do saber, para estratégias de poder, em que o sujeito-ator social se vé modificado por seu saber. Para além de ser um objeto de conheci- mento ou um objeto teórico interdisciplinar, o ambiente se converte em um objeto de apropriagáo social que póe em jogo estratégias discursivas e significa- góes culturais que entrara em um debate de sentidos pela sustentabilidade, que se inter-relacionara com os efeitos de conhecimento das ciéncias. A problemáti- ca da interdisciplinaridade desloca-se para as estratégias de poder no saber que se manifestam nas formagóes teóricas e discursivas plasmadas em urna política da sustentabilidade e da diferenga. A interdisciplinaridade teórica abre-se para o diálogo de saberes. O ambiente náo é um objeto perdido no processo de diferenciagáo e espe- cificagáo das ciéncias, recuperável pelo intercámbio interdisciplinar dos conhe- cimentos existentes; náo é o conhecimento positivo que viria completar os para- digmas científicos que esqueceram a natureza, que ignoraram as relagóes ecoló- gicas e a complexidade ambiental. O ambiente é a falta irreparável e náo totalizável de conhecimento onde se abriga o desejo de saber que gera um pro- cesso interminável de geragáo de saberes orientados pela sustentabilidade eco- lógica e pela justita social. O saber ambiental orienta agóes, promove direitos e produz técnicas para construir um mundo sustentável condizente com outros princípios e valores, reconhecendo outros potenciais, restabelecendo a relagáo criativa entre o real e o simbólico, abrindo-se para o encontro com a outridade. O diálogo de saberes abre uma via de compreensáo da realidade a partir de diferentes racionalidades; estabelece um diálogo intercultural a partir das iden- tidades coletivas e dos sentidos subjetivos, para além da integragáo sistImica de objetos fragmentados do conhecimento. A complexidade ambiental náo remete a um todo — nem a urna teoria de sistemas, nem a um pensamento holístico, nem a urna conjungáo de olhares multirreferenciais. É, ao contrário,a ruptura da relagáo do conhecimento com o real para uma nova relagáo entre o real e o EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 17 simbólico. Esta é a chave que desloca e transfere a prática teórica do estrutura- lismo para o reposicionamento do ser no mundo em relagáo com o saber. A interdisciplinaridade abre-se para o diálogo de saberes no encontro de identida- des constituídas por racionalidades e imaginários que configuram as referén- cias, os desejos e vontades que mobilizam os atores sociais para a construgáo de urna racionalidade ambiental; que ultrapassa a relagáo teórica entre os conceitos e os processos materiais e a desloca para as relagóes de significagáo entre o real e o simbólico em urna política da diversidade cultural. A epistemologia ambiental transcende um exercício permanente de refle- xáo, teorizagáo e agáo que constrói e transforma a realidade; que implica mu- dangas na representagáo da realidade; que convoca diferentes disciplinas e póe em jogo diferentes visóes de mundo. O saber ambiental permite ver as formas como o conhecimento — do projeto epistemológico cujo método pretende apreen- der racionalmente o real — termina construindo, destruindo e transformando o próprio real e a própria realidade. A complexidade ambiental náo apenas integra as diferentes epistemologias, racionalidades, imaginários e linguagens que para ele convergem, mas se constitui pela re-flexáo do pensamento sobre o real. A epistemología ambiental náo é urna ecologia da mente: porque o desejo e o poder náo seguem nenhuma lei ecológica; porque o ser humano como ser sim- bólico se distancia de toda norma de comportamento em relagáo com seu am- biente que fosse derivada de urna lei objetiva; porque náo podemos fugir de nossa natureza humana, mesmo que nos revistamos da mais profunda das ecolo- gias e da ética mais piedosa e caritativa. O saber ambiental ultrapassa o campo do conhecimento científico para se inserir na ordem da racionalidade — dos imaginários coletivos, das regras de pensamento, das formagóes discursivas — que permitem vincular os valores e o saber com o pensamento e a razáo na constituigáo de atores sociais. Nesse sen- tido, a relagáo do conhecimento, do pensamento e da agáo social ultrapassa o quadro do pensamento estruturalista e de urna visáo determinista do conheci-: mento. O debate ambiental se desloca do raciocínio sobre o modo de produgáo e dos paradigmas do conhecimento para compreender a crise ambiental como urna crise da racionalidade da modernidade. A superagáo do estruturalismo náo leva a recuperar o sujeito (da ciéncia) e a intersubjetividade — táo suspeitos de ideologia e ilusionismo; táo insidiados pelas visóes sistémicas e estruturais que determinam as idéias e as agóes sociais por sobre a consciéncia do sujeito e de toda racionalidade comunicativa —, e sim a construir urna racionalidade am- biental que emerge no campo das estratégias de poder no saber. A categoria de racionalidade substantiva proposta por Weber vem questio- nar a jaula de ferro da racionalidade da modernidade para incluir as racionalida- 18 ENRIQUE LEFF des subjugadas, os valores que conduzem a outros fins, raciocínios e sentimen- tos diferentes dos estabelecidos pela racionalidade teórica, formal e instrumen- tal. Este seria o ponto de ancoragem de urna racionalidade ambiental que, sem excluir o lugar da racionalidade formal e instrumental na construgáo da susten- tabilidade, questiona seu teoricismo, assim como a determinagáo inscrita na racionalidade de fins preestabelecidos e meios eficazes para alcangá-los; ao mesmo tempo, fundamenta-se em valores e significados culturais que abrem o caminho para uma diversidade de racionalidades. A racionalidade ambiental volta a trazer ao palco da história o que está além da divisáo entre sujeito e estrutura, das regras que orientam e legitimam a agáo humana através da norma construída e aplicada á sociedade pelo Estado. A partir da categoria de racionalidade ambiental, passa-se a indagar sobre as for- mas de compreensáo do mundo e a constituigáo do ator social, para observar a palavra nova que emerge do ser cultural — a partir da diversidade cultural —, que abre o círculo concéntrico do logos científico, da racionalidade tecnológica e da razáo de Estado; para observar as relagóes de poder que se introduzem entre o ser e o saber, entre o pensamento e a agáo social, na abertura para a diversida- de cultural e sua relagáo com a natureza. A dispersáo da racionalidade ambiental em um feixe de matrizes de racio- nalidade leva a averiguar a relagáo entre o pensamento, a razáo, o saber e o ser; a pensar a constituigáo das identidades dos atores sociais emergentes pela reapropriagáo da natureza, a ver o tempo de sustentabilidade a partir da marca do limite no real (entropia) para questionar a história cristalizada em urna reali- dade constituída por formas ancestrais de conhecimento e abrir a história para a construgáo de um futuro sustentável a partir dos potenciais do real e a criativida- de da cultura em uma política da diferenga e da diversidade cultural. É isso que expandiria o ambiente para um novo círculo de externalidade, ao pensar o ser-aí em sua diversidade cultural. Isso haveria de nos levar a pensar a complexidade ambiental', atraindo e arraigando o pensamento da pós-modernidade na política da diferenga na qual se constituem atores sociais com identidades próprias e interesses diferenciados. A epistemologia ambiental alimenta o campo da eco- logia política para levá-la para um terreno ético: para o encontro com o Outro que inaugura o futuro por um caminho de responsabilidade, para além do poten- cial do real e do conhecimento. Sáo essas as fronteiras que abriram novos horizontes nos quais Nietzsche, Heidegger, Lévinas, Derrida e Baudrillard foram convocados para construir o conceito de racionalidade ambiental. A questáo da estrutura e da subjetividade, da teoria e da práxis, do conceito e do real, em que se plasma o pensamento da EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 19 modernidade, é deslocada para urna reflexáo sobre a relagáo entre o ser, o pen- sar, o saber, a identidade e a agáo. A complexidade ambiental é pensada como a construgáo social que emerge da reflexáo (a intervengáo, o efeito, o impacto) do conhecimento sobre o real e sobre a natureza, para além da visáo objetiva das ciéncias da complexidade e da visáo ecologista do pensamento complexo. A complexidade ambiental emerge da hibridagáo entre a ordem físico-biológica, tecnológico-económica e simbólico-cultural. O imaginário da representagáo, da verdade como correspondéncia entre o conceito e o real, desloca-se para a rela- QáO entre o ser e o saber. A identidade quebra o espelho do imaginário metafísi- co da igualdade para se configurar em relagáo com sua história, seus mundos de vida e seus futuros possíveis; na reinvengáo de seres individuais e coletivos em confronto com a ordem global hegemónica, em processos de ressignificagáo e estratégias de reapropriagáo da natureza. O diálogo com Derrida leva o conceito de diferáncia para urna política da diferenga, na qual se constroem os direitos á autonomia, a ser diferente, a náo subsumir a diferenga em urna ordem universal e homogénea suprema e domi- nante. O diálogo com a ética de Lévinas desloca a idéia de outridade para um diálogo de saberes. A complexidade ambiental náo emerge ali da generatividade da physis, mas das relagóes infinitas que se estabelecem entre o real e o simbó- lico. A história se abre como um processo de complexificagáo da vida, condi- cionada pelo real (a entropia), mas conduzida pela ressignificagáo do real atra- vés da linguagem, de estratégias discursivas e de urna política da diferente, para um mundo sustentável possível pelo diálogo de saberes, pelo encontro de cultu- ras diferentes e de atores sociais diferenciados. Esse é o horizonte para o qual navega a epistemologia ambiental. A exte- riorizagáo sem fim do ambiente une as órbitas — os saltos quánticos e suastransigóes — dos capítulos dente livro. Em suas demarcagóes e diferengas teóri- cas e filosóficas existem lagos de solidariedade e condigóes de possibilidade do pensamento abertos pela reflexáo do saber ambiental. Dessa maneira, a episte- mologia althusseriana, que reconhece a especificidade das diferentes ciéncias e sua relagáo com o real através da construgáo de seus objetos de conhecimento, náo poderia ter ocorrido sem a revolugáo ontológica heideggeriana, que opóe a ontologia do ser e a heterogeneidade do real á homogeneidade da realidade empírica e á unidade do logos da ciéncia positivista. O pano de fundo em que Althusser inscreve sua epistemologia é tecido numa ontologia da diferenga. Pois, como afirma Lévinas, essa diferenga ontológica foi mais importante [...] que a tematizagáo do ser. É verdade que a diferenciagáo entre ser e ente sempre foi muito importante. Mas 20 ENRIQUE LEFF sempre foi mais importante que houvesse diferentes regióes do ser, que náo só se distinguissem essencialmente, mas que fossem diferentes em seu ser. (Lévinas, La huella del Otro. México: Taurus, 2000, p. 106) A filosofia de Heidegger prepara as condigóes para desconstruir a unidade do pensamento metafísico e da ciencia positivista. Foi sobre essa base que o estruturalismo althusseriano póde combater as homologias estruturais da teoria de sistemas a partir da especificidade das ciéncias. No entanto, mantém o privi- légio da relagáo entre a teoria e os processos materiais na compreensáo do mun- do. O efeito de conhecimento, derivado da significáncia que urna teoria (diante da ideologia) produz sobre os processos materiais, permite apreender cognosci- tivamente o mundo, mas náo esgota os sentidos do saber postos em jogo nas estratégias discursivas e políticas que se abrem a partir da relagáo entre o ser e o saber. Também é possível tragar a linha de parentesco que vai da crítica de Nietzsche á idéia metafísica do Uno e da Unidade, da ratio universal, e sua abertura para a incomensurabilidade dos valores últimos, com a dissociagáo que Weber faz da racionalidade para urna pluralidade de valores e formas de racio- nalidade; com a dissociagáo realizada por Heidegger entre o ser e o ente e o princípio de différance de Derrida. Esse princípio de diferenga tem suas raízes na estratégia epistemológica que anima a prática teórica do estruturalismo althusseriano e foucaultiano. A demarcaliio corno princípio político na filosofia (LInin) póe em agáo "teórica" a ontologia e a política da difereno ao reconhe- cer a diferenga como princípio que funda e fundamenta as diferentes regióes teóricas que conferem sua especificidade ás ciéncias. Foucault reivindica o va- lor da diferenga na "eficácia do criticismo descontínuo, particular e local", dian- te do efeito inibidor das teorias totalitárias e sua "repugnáncia em pensar a diferenga, em descrever as separagóes e suas dispersóes, em dissociar a forma reafirmadora do idéntico". Assim, o estruturalismo e o determinismo teórico se encontrara e dialo- gam com a desconstrugáo do logos e a crítica ao pensamento unitário e totalitá- rio na transigáo entre o pensamento da modernidade e a filosofia da pós-moder- nidade na qual vem ao mundo a complexidade ambiental. Heidegger inaugura um olhar náo-essencialista sobre a diversidade ontológica do ser; para além de urna compreensáo sistémica das relagóes entre objetos, processos e conceitos, o ser-aí dirige o olhar para as formas do ser no mundo, o que estabelece outro caminho para o futuro diferente do que pode ser pensado a partir da evolugáo da natureza e para além da "transcendéncia" que vai da lógica dialética até a feno- menologia guiada pela intencionalidade do sujeito. Para além do retorno ao ser EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 21 a partir de sua dissociagáo com o ente (Heidegger), a racionalidade ambiental reconhece diferentes regióes do ser, que náo apenas se distinguem em suas es- séncias, mas constituem diferentes formas culturais do ser; um ser que desdobra a generalidade do ser para a morte em urna multiplicidade do ser que abre a história para um além da morte na proliferagáo de significagóes culturais da natureza e de seus mundos de vida, e do diálogo de seus saberes. Lévinas abandona a idéia da transcendéncia corno relagáo da consciéncia e do pensamento com o real imanente, pois a relagáo entre Eu e o Outro náo é um saber; é um reconhecimento do outro que náo implica nem possibilita nenhum conhecimento. É urna relagáo ética antes de ser urna relagáo ontológica e episte- mológica. É o salto da ontologia para "outro modo de ser". Esse além do Ser a partir da relagáo de outridade — a superagáo da metafísica, do empirismo e do idealismo, do realismo e do cientificismo, do imanentismo e da transcendéncia — náo poderia fundar e garantir o bem como urna ética isolada de urna com- preensáo renovada do mundo, do real, do saber, da razáo. A crise do mundo é urna crise moral e do conhecimento que apela para a ética, que pCle em jogo um processo estratégico de reapropriagáo do mundo e da natureza que reativa a relagáo entre o real, o simbólico e o imaginário. O ambiente aparece como o absolutamente Outro nessa desconstrugáo da racionalidade estabelecida; é ao mesmo tempo o Outro do óntico, do real, do mais além do ser, e o Outro corno impensado do conhecimento, da epistemologia, da ciéncia e do saber. A relagáo entre o simbólico e o real estende e articula as relagóes de outri- dade para além do encontro do eu-tu, em uma oposigáo do Mesmo e do Outro e na epifania do rosto. Esse jogo de outridades se traduz em um diálogo de sabe- res, entendido como um encontro de seres (constituídos por seus saberes) na heterogeneidade ontológica do ser e na diversidade cultural do ser-aí; tanto na desconstrugáo da idéia absoluta, do real imanente, do logocentrismo e do círculo positivista das ciéncias, como no face-a-face que transcende a generalidade do ser-ali como "ser para a morte"; mas que também se abre para a nudez do encon- tro com todo Outro como todo próximo, em um mais além da violéncia exercida pela justita codificada pelo direito positivo, individual e universal. A esse porto chega a odisséia da epistemologia ambiental, a partir da con- digáo de externalidade do saber ambiental e de seu impulso por saber. O enca- deamento de seus capítulos náo deve ser lido como urna sucessáo de textos que "olham" um mesmo objeto, mas como momentos sucessivos de problematiza- gáo do conhecimento, em que as fronteiras nas quais chega sua reflexáo abrem novas perguntas e novos horizontes do saber. Se a epistemologia da tradigáo ocidental é mobilizada pela forga centrípeta do princípio da razáo universal para um núcleo originário do saber que produz as transformagóes do conhecimento, 22 ENRIQUE LEFF a epistemologia ambiental é impulsionada por urna forga centrífuga. Náo a do Iluminismo da razáo, mas a que emerge da pulsáo interna do saber, que busca a luz que está no horizonte, mais além do ser, do conhecimento, do já pensando, para chegar ao que ainda náo existe. A coeréncia dessa aventura epistemológica náo reside em sua unidade te- mática, mas no lugar do saber ambiental, em sua postura irredutível ante o fe- chamento totalitário da razáo, de um paradigma do conhecimento, de um saber consabido. É isso que vincula e dá consisténcia ao trajeto que vai do racionalis- mo crítico á ontologia de Heidegger, ao deslocamento da relagáo entre a teoria e o real para a relagáo do ser com o pensar, do saber com a identidade; á descons- trugáo do logos científico, da lógica da descoberta científica e da razáo universal pelo princípio ontológico e político da diversidade e da diferenga, da pluralida- de de valores e racionalidades; á ética que desloca a questáo do ser e do conhe- cer para a construgáo do futuro pela criatividade do encontro com o Outro. A epistemologia ambiental manifesta-se em um desejo infinito de saber, como um sol que náo gosta de brilhar sempre no mesmozénite e olha para o horizonte ao entardecer, que se oculta de sua própria luz no lado escuro do mundo, que pisca o olho um pouco mais inclinado para o sul que para o norte; que gosta de variar seus ocasos, ao sabor das estagóes, pintando os céus com desenhos, cores e luzes cambiantes; que gira a cada noite para reaparecer em um novo dia. Assim se pensa o saber ambiental. ENRIQUE LEFF Notas * Tradugáo de Silvana Cobucci Leite. 1. Cf. Enrique Leff, Aventuras da Epistemologia Ambiental. Da articulavao das ciéncias ao diálogo de saberes. Brasilia: Garamond, 2004 (Série Idéias Sustentáveis). 2. Assim, Nietzsche, refletindo sobre a condigáo de seu mundo e de sua época, tenia exclamado: "o deserto aumenta". Um século mais tarde, essa intuigáo precursora do ecologismo tornou-se visível. 3. Cf. Enrique Leff, Ecologia, capital e cultura. Blumenau: Edifurb, 2000. 4. Cf. Enrique Leff, Los problemas del conocimiento y la perspectiva ambiental del desarrollo. México: Siglo XXI, 1986. 5. Cf. Enrique Leff, "Pensar la complexidade ambiental", in A complexidade ambiental. Sáo Paulo: Cortez/Edifurb/Pnuma, 2003. (a CORTEZ nwEDITORR 23 SOBRE A ARTICUIMO DAS CIENCIAS NA REIMO NATUREZA-SOCIEDADE 1. História do conhecimento e unidade do saber 1. Na história humana, todo saber, todo conhecimento sobre o mundo e sobre as coisas, tem estado condicionado pelo contexto geográfico, ecológico e cultural em que produz e se reproduz urna formagáo social determinada. As práti- cas produtivas, dependentes do meio ambiente e da estrutura social das diferentes culturas geraram formas de percepgáo e técnicas específicas para a apropriagáo social da natureza e da transformagáo do meio. Mas, ao mesmo tempo, a capaói- dade simbólica do homem possibilitou a construgáo de relagóes abstratas entre os entes que conhece. Desta forma, o desenvolvimento do conhecimento teórico acompanhou seus saberes práticos. Quando surge a geometria nas primeiras sociedades agrícolas como urna necessidade de racionalizar a produgáo da terra através de um sistema de medigóes, desenvolve-se o conhecimento matemático de suas relagóes abstratas. Desde entáo um objeto de trabalho transforma-se também em objeto de um saber empírico e de um conhecimento conceitual'. 2. Estas relagóes entre o conhecimento teórico e os saberes práticos acele- ram-se com o advento do capitalismo, com o surgimento da ciéncia moderna e da institucionalizagáo da racionalidade económica. Com o modo de produgáo 24 ENRIQUE LEFF capitalista produz-se a articulagáo efetiva entre o conhecimento científico e a produgáo de mercadorias através da tecnologia. O processo interno e expansivo da acumulagáo capitalista gera a necessidade de ampliar o ámbito natural que, como objetos de trabalho, apresenta ao mesmo tempo como objetos cognoscí- veis. A necessidade de elevar a mais-valia relativa dos processos de trabalho traduz-se numa necessidade de incrementar sua eficiencia produtiva, o que in- duz a substituigáo progressiva dos processos de mecanizagáo por urna cientifizagáo dos processos produtivos. Mas a ciencia moderna náo se consti- tuiu como conseqüéncia direta da transformagáo da natureza em objetos de tra- balho e da demanda crescente de conhecimentos tecnológicos. Esta emergiu como resultado das transformagóes ideológicas vinculadas com a dissolugáo do sistema feudal e do surgimento do capitalismo que estabeleceram um novo campo epistemológico para a produgáo de conhecimentos: Copérnico deslocou a Terra do centro do Universo; Descartes produziu o sujeito da ciencia como princípio produtor, autoconsciente de todo conhecimento. 3. Estas condigóes económicas e ideológicas sobre o progresso das cien- cias e das técnicas náo bastam para entender a emergencia dos corpos teóricos mais importantes da ciencia moderna, que conhecemos sob os nomes de Newton, Darwin, Ricardo, Marx, Freud ou Einstein. A produgáo dos conceitos destas teorias náo provém da aplicagáo progressiva de um "método científico" nem da necessidade de fracionar o conhecimento das coisas para elevar a eficácia técni- ca de sua transformagáo como objetos de trabalho; náo é o resultado de urna simples apreensáo empírica e pragmática do mundo externo nem da formaliza- gáo dos dados da realidade. A emergencia destas ciencias é resultado de um longo esforgo de produgáo teórica a partir do saber herdado, para apreender teoricamente a materialidade do real; é sobretudo o produto de urna luta teórica e política no campo do conhecimento para vencer os efeitos do encobrimento ideológico no qual sáo gerados os saberes úteis para a exploragáo do trabalho e para o exercício do poder das classes dominantes. Corpérnico e Galileu debate- ram-se contra a teologia medieval 2 ; o conhecimento biológico teve de desfazer- se das concepgóes mecanicistas da vida 3 ; o saber marxista e freudiano teve de livrar-se das marcas de conceitualizagóes naturalistas e humanistas sobre a or- dem histórica e simbólica'. 4. A busca de urna unidade do real e de seu conhecimento aparece desde o alvorecer do pensamento filosófico. O reducionismo atomista e a dissolugáo platónica da realidade na Idéia abrem o caminho a uma filosofia da ciencia que acompanhou o desenvolvimento histórico do conhecimento. No período clássi- co, Descartes e Newton' fundam em sua filosofia natural a idéia de urna mathese geral como urna ciencia totalizadora da ordem da realidade 6. Este campo físico- EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 25 matemático haveria de se estender aos domínios da vida e da sociedade, consti- tuindo-se o saber destas esferas do conhecimento como a organizagáo de um sistema de similitudes e diferengas dos objetos pertencentes a diversas regióes empíricas: a gramática geral, a história natural, a análise das riquezas'. 5.A fundamentagáo do racionalismo kantiano nos juízos sintéticos a priori transformou o discurso analítico-sintético da lógica formal numa lógica transcen- dental. A questáo tradicional de um acordo entre objeto e sujeito do conhecimento foi postulada entáo como a adequagáo entre os conceitos puros do entendimento e a heterogeneidade da realidade empírica. Surgiu assim uma nova divisáo do co- nhecimento: de um lado, as ciéncias formais e dedutivas fundadas na lógica e na matemática; de outro, as ciéncias empíricas, fundadas na induQáo de princípios e relag6es gerais a partir da observagáo. Isto abriu novas perspectivas na busca de urna unidade do saber através da formalizagáo de todas as ordens empíricas. Dali haveriam de surgir o projeto positivista e os esforgos por matematizar os diferen- tes domínios do saber: a economia, a biologia, a lingüística. 6. A lógica transcendental fundou o projeto fenomenológico no qual o ser do homem transformou-se em princípio do conhecimento sobre o mundo. A dialética hegeliana estabeleceu o vínculo necessário através da Idéia como prin- cípio de identidade entre o real e o conhecimento, como unidade entre as cate- gorias do pensamento e a coisa-em-sis. Desta forma surge a ideologia do huma- nismo: o saber sobre os entes parte de urna reflexáo ontológica do ser do ho- mem, cuja finitude limita o conhecimento do mundo. Este subjetivismo huma- nista encontra sua contrapartida no idealismo ontológico, que reduz as regulari- dades do real ás leis últimas de urna dialética universal. A emergéncia das cién- cias da história, da vida, da língua e do inconsciente viria a questionar este projeto filosófico de fundagáo do conhecimento num idealismo, subjetivismo ou humanismo, assim corno a busca de urna unidade do real e de sua identidade com o conhecimento. 7. Por volta do século XVIII transforma-se esta conformagáo epistémica do saber. A língua, a vida e o trabalho deixam de ser um representaláo da reali- dade empírica; entes aparecem como a substáncia, os principios e os objetos de certos processos materiais em torno aos quais se organizam seus campos res- pectivos de conhecimento. Desta forma, rompe-se o espato unitárioda repre- sentagáo corno unidade da realidade e do saber 9 . Durante o século XIX e início do XX, produzem-se as rupturas epistemológicas que fundam o conhecimento científico dos processos biológicos, históricos, lingüísticos e inconscientes, ques- tionando o projeto de unificagáo do conhecimento da vida, do trabalho e da linguagem. O código genético, as relag6es de produláo, a estrutura da língua, as formag6es do inconsciente contém as regras e as leis que determinam o campo 26 ENRIQUE LEFF do possível da evolugáo biológica, dos processos de trabalho, da faculdade da linguagem, da produgáo de sentido. Estas estruturas, que constituem o objeto do conhecimento da biologia, do materialismo histórico, da lingüística e da psicanálise, náo sáo observáveis diretamente no comportamento de um organis- mo, de um processo concreto de trabalho ou na fala de um sujeito. A irrupgáo destas ciéncias questiona o projeto filosófico do humanismo e da unidade do saber, produzindo" urna mudanga fundamental na concepgáo do mundo. O real aparece como processos materiais diferenciados e náo como coisas; ao mesmo tempo o sujeito da ciéncia desaparece como princípio produtor do conhecimen- to destes processos materiais'°. O homem deixa de ser o objeto geral articulador das "ciéncias humanas e sociais" como sujeito transcendental de seu conheci- mento. O materialismo histórico e a psicanálise produzem os conceitos teóricos para analisar a subjetividade e as formas do sujeito, que sáo efeito do desejo inconsciente e da luta ideológica de classes. 8. Esta perspectiva materialista da produgáo científica náo erradicou, po- rém, o projeto idealista de unificagáo do saber; este surge no positivismo lógico — onde o saber sobre o real unifica-se na validagáo das proposigóes formais, lógico-matemáticas e lingüísticas sobre os objetos empíricos — assim como no formalismo estruturalista e na teoria geral de sistemas. Ao mesmo tempo, renas- ce um projeto metodológico que tenta pensar a realidade a partir de certos prin- cípios e processos fundamentais, constituintes e generalizáveis aos estados "su- periores" de desenvolvimento da matéria. Desta forma, os princípios da termo- dinámica ou da evolugáo biológica aparecem como perspectivas epistemológi- cas do conhecimento da ordem sócio-histórica. Deriva daí a fungáo ideológica das doutrinas sociobiológicas e da energética social. 2. Objeto real, objeto de trabalho, objeto de conhecimento 9. 0 saber sobre a realidade produz-se como efeito de práticas sociais diferenciadas. Desde as etapas pré-lingüísticas dos hominídeos, a realidade apa- rece como o meio que é utilizado e transformado através do conhecimento para a reprodugáo biológica e cultural de urna populagáo. A emergéncia da fungáo da linguagem náo produz urna correspondéncia ontológica entre as palavras e as coisas; a referéncia nominalista emerge sempre das práticas sociais e produtivas da cultur,', condicionada pelos efeitos de sentido que se produzem nas práticas discursivas como efeito da ordem simbólica e das formagóes ideológicas de grupos sociais diversos que atravessam o campo do poder e do saber. Enquanto a realidade se transforma em objetos de trabalho, afinara-se os mecanismos EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 27 preceptivos e simbólicos que participarla num saber guiado pelos efeitos práti- cos imediatos, determinados pelo processo de reprodugáo/transformagáo social. 10.As ciéncias náo apreendem diretamente as coisas empíricas, senáo que estabelecem paradigmas teóricos que permitem dar conta das relagóes funda- mentais entre os processos que constituem seus diferentes objetos de conheci- mento. O conceito náo é um significante como os outros, e o efeito de conheci- mento do real que produz sua articulagáo com os demais conceitos que consti- tuem urna teoria científica difere dos efeitos de sentido que surgem da articula- gáo de significantes no discurso inconsciente ou no discurso ideológico. E náo porque a ciéncia seja externa á ideologia, mas sim pela relagáo específica da articulagáo conceitual com o real através do objeto de conhecimento de urna ciéncia. O pensamento conceitual estabelece as relagóes fundamentais do real, enquanto que o conhecimento técnico permite a apropriagáo produtiva ou ideo- lógica da realidade. Desta forma, desde a Antiguidade buscava-se conhecer a substáncia ou a "esséncia" das coisas. Mas o conhecimento do real, entendido como processos materiais, é urna emergéncia epistémica relativamente recente, que se remonta á fundagáo das ciéncias da vida, da língua, da história e do inconsciente. Desde entáo conhecemos o real como efeito de certas estruturas e processos materiais. Mas nem o real e nem as formas de seu conhecimento constituem sistemas unitários e homogéneos. O real aparece constituído por diferentes ordens de materialidade cujas relagóes estruturais sáo objeto de cién- cias específicas. Já náo é o existente empiricamente, nem um princípio substan- cial (vida, trabalho, linguagem) o que aparece como objeto de conhecimento; inversamente, a realidade empírica surge como efeito de um processo invisível de produgáo que só pode ser apreendida através da produgáo conceitual de cam- pos teóricos diferenciados. 11.Sáo conceitos destas novas teorias científicas os que dáo conta da pro- dugáo do real, "concretude de pensamento, síntese de múltiplas determinagóes". É ao que Marx se refere guando afirma: "O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinagóes... É por esse motivo que o concreto aparece no pensamento como processo de síntese, como resultado e náo como ponto de partida, embora seja o verdadeiro ponto de partida e, por conseguinte, também o ponto de partida da intuiláo e da represen- tagáo"". O concreto a que Marx se refere náo é nunca a coisa. Apenas é concreto o processo material que é síntese de múltiplas determinagóes. E este concreto real só pode ser apreendido no conhecimento pela produgáo teórica dos conceitos 28 ENRIQUE LEFF que integram a síntese de múltiplas determinagóes e constituem, ao mesmo tempo, o princípio do processo real. Esta epistemologia materialista náo se con- funde com o pragmatismo epistémico atribuído a Marx, no qual o conhecimen- to se reduziria ao saber sobre as coisas enquanto objetos de trabalho' 2 , nem á concepgáo da produgáo teórica como o simples reflexo do real no pensamento. 12. É neste sentido que o conceito de valor — o tempo de trabalho social- mente necessário — é síntese de múltiplas determinagóes — da produtividade da terra, da produtividade do trabalho, da produtividade tecnológica — e como tal se transforma no princípio de um processo de formagáo de valor enquadrado nas relagóes sociais da produgáo capitalista' 3 . Como tal, o conceito de valor, articulado aos demais conceitos que formam o corpo teórico de O capital, dá conta do real do processo capitalista de produgáo e dos efeitos ideológicos que permitam coisificar o existente, fazendo aparecer a realidade como relagóes en- tre coisas' 4 . 13. As ciéncias através da constitukáo de seus objetos teóricos e de seus sistemas conceituais dáo conta de processos reais. O "conceito" de um objeto empírico (uma mesa, um homem) náo é objeto de nenhuma ciéncia. Os entes empíricos sao, sem dúvida, objetos de percepgóes em que se funda um processo de abstragáo de suas "esséncias", do que deriva tanto um saber formal, como um saber prático, técnico, operacional sobre as coisas. Mas os objetos de conheci- mento das ciéncias sáo as relagóes estruturais do real, dos processos materiais que produzem como efeito todas estas coisas, objetos de um saber empírico. O objeto empírico é efeito de múltiplas determinagóes mas náo é o ponto de convergéncia ou de articulagáo das ciéncias. A história, a biologia ou a psicanálise náo discor- rem sobre o homem, assim como a física e a química náo tém a urna mesa por objeto científico. Os objetos das ciéncias sáo trans-individuais, trans-objetais". 14. Assimcomo o objeto da ciéncia náo é um objeto empírico — urna coisa — tampouco existe um sujeito da ciéncia na forma de um indivíduo, um homem, que produziria um ciéncia mediante a observagáo e a interiorizagáo desses objetos. O sujeito da ciéncia e o do saber emerge como um efeito-sujeito de processos históricos, inconscientes e lingüísticos que o constituem e que conhecemos através dos conceitos do materialismo histórico, da lingüística e da psicanálise' 6 . 15.As ciéncias náo sáo urna representagáo subjetiva nem o reflexo imagi- nário dos processos reais dos que dáo conta. As ciéncias náo sáo as diferentes visóes subjetivas da realidade. O conhecimento científico é o processo de pro- dugáo dos conceitos — da concretude do pensamento — que permite a apreen- sáo cognoscitiva do real. É o objeto das ciéncias o que, em seu efeito de conhe- EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 29 cimento, "recorta a realidade a partir de diferentes perspectivas'', o que faz com que a realidade empírica que constitui o campo de experimentagáo de cada ciencia tenha um "sentido" diferente. Daí que o recurso natural como objeto de trabalho do processo económico náo se identifique com o ser orgánico como objeto biológico, nem que a energia pulsional se confunda com a energia bioló- gica, o instinto com o desejo. 16. 0 princípio ontológico do primado do ser sobre o pensamento na teo- ria materialista do conhecimento traduz-se no reconhecimento de esferas de materialidade do real ás quais correspondem teorias científicas particulares. Isto náo implica que os conceitos sejam abstragóes ou reflexos de diferentes regis- tros da realidade empírica. A produgáo de conhecimentos científicos nunca é um campo neutro onde entram em jogo as possíveis combinagóes de idéias e nogóes ou a intersegáo de teorias para apreender diferentes relagóes da realida- de. Estas variantes de um empirismo lógico ou de um racionalismo idealista esquecem que o efeito de conhecimento de uma teoria científica é produto da articulag -áo interna de seus conceitos, os quais náo sáo suscetíveis de desarti- cular-se e acoplar-se pela agáo "livre" do cientista ou do filósofo e pelas neces- sidades subjetivas, técnicas e ideológicas de ajustá-los a certas porgóes de reali- dade empírica. As ciéncias náo se geram por urna construgáo ad hoc de objetos de conhecimento a partir de posigóes observacionais. Náo é possível extrair os conceitos de sua concretude teórica e fazé-los funcionar dentro de urna "meto- dologia sistémica", para produzir urna metateoria geral capaz de dar conta de todas as inter-relagóes possíveis da realidade, ou seja, partir do possível logica- mente, corno princípio para uma produgáo de conhecimentos delimitada por seus campos de observagáo. Pelo contrário, é nos limites de sua concretude teórica de onde surgem as possíveis perspectivas de conhecimento científico sobre o mundo. Daí desprendem-se diversas formas de apropriagáo subjetiva e de efeitos-sujeito que estabelecem formas de saber que afetam o processo de inscrigáo — a práxis — dos sujeitos na história. 17.A articulagáo dos conceitos de urna teoria constituem a concretude do pensamento. Esta "totalidade" de cada ciéncia náo é o reflexo de nenhuma tota- lidade empírica. Esta posigáo náo invalida a necessidade da experimentagáo para verificar a teoria e confirmar a correspondéncia do conceito com o real. As ciéncias, constituídas pela especificidade de seus objetos científicos e a integra- gáo de seus conceitos náo sáo momentos acabados, mas processos interminá- veis de produgáo teórica, que levam a retrabalhar e concretizar seus conceitos ou inclusive a revolucionar teorias inteiras. Mas este náo é um processo interno imanente de cada ciéncia; a produgáo científica náo é urna prática teórica ope- rando num vazio histórico. 30 ENRIQUE LEFF 18. Althusser e Balibar afirmaram que os processos reais produzem-se independentemente dos processos de seu conhecimento, que a relagáo entre o pensamento e o real "é urna relagáo de conhecimento e náo urna relaláo real, entendendo por isso urna relaQáo inscrita nesse real do qual o pensamento é o conhecimento... a ciéncia (sua ruptura com a ideologia) inaugura uma nova forma de existéncia e de temporalidade histórica, que fazem escapar a ciéncia (ao menos em certas condigóes históricas que asseguram a continuidade real de sua própria histó- ria...) da sorte comum de urna história única: aquela do 'bloco histórico' da unidade da estrutura e a superestrutura"". Desta forma, Althusser e Balibar buscaram demarcar a história das cién- cias como urna produgáo que náo é o simples reflexo do real de seu objeto de conhecimento, nem da história geral. Mas a história das ciéncias náo deixa de ser uma série diferenciada de processos de conhecimento com vínculos e efeitos de diversos sentidos com os processo do "bloco histórico"; portanto, é necessá- rio apreender os processos de constituigáo e desenvolvimento das diferentes ciéncias em suas relagóes com os processos históricos, inclusive enquanto estes transformam os conceitos do materialismo histórico. 19.0 problema que se propóe é o de entender as interdeterminagóes entre os processos reais e os processos de conhecimento: corno a dinámica social determina as formagóes ideológicas, e corno a produgáo do saber e das ciéncias se inscreve no processo de reprodugáo/transformagáo do modo de produgáo, isto é, os efeitos desse real imaginário e simbólico sobre as práticas sociais, o real histórico. Esta interdeterminagáo propóe o problema de entender a produ- gáo teórica enquanto geradora de um efeito de conhecimento do real, ao mesmo tempo que induz a uma transformagáo do real que é conseqüéncia desse conhe- cimento. PropZ5e-se dessa forma um desdobramento do real, no qual o pensa- mento, as formagóes ideológicas, a produgáo científica, aparecem como parte desse real. Isto implicaria combater as nogóes empiristas e representacionais do conhecimento como abstragóes da realidade, bem como o racionalismo de urna lógica do desenvolvimento interno das ciéncias, abrindo um campo da sociolo- gia do conhecimento no qual se articulam as condigóes epistemológicas de fun- dagáo das ciéncias com as condigóes sociais nas quais se inscreve sua constitui- gáo e seu desenvolvimento 19 . 20. Desta forma é possível pensar a historicidade dos conceitos que fun- dam o Materialismo Histórico — trabalho abstrato, valor, mais-valia — como um efeito — e nunca como um simples reflexo — do processo real histórico que produz urna sociedade na qual a forma mercadoria é a forma geral dos produtos EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 31 do trabalho20 . Althusser e Balibar aceitam que "o aparato de pensamento, histo- ricamente constituído, articula-se na realidade social e natural" 21 , mas náo defi- nem as determinagóes deste processo. Diferindo do conhecimento do real físi- co-biológico, onde os limites do conhecimento dependem de tuna revolugáo teórica, no campo do real histórico, os limites do efeito de conhecimento dos conceitos do materialismo histórico dependem da transformaffio das próprias formav5es sociais. A mudanga social delimita o efeito de conhecimento dos conceitos históricos. Embora os conceitos de modo de produgáo ou de ideologia sejam a-históricos — válidos para qualquer formagáo social — os conceitos de valor e de mais-valia apenas tém um efeito de conhecimento dentro das relagóes capitalistas de produgáo e enquanto que a forga de trabalho constituiu o proces- so fundamental na produgáo de mercadorias. A base histórica e o fundamento epistemológico destes conceitos sáo questionados tanto pelos efeitos do pro- gresso científico-tecnológico, como pela crítica ecologista á racionalidade eco- nómica, incluindo a economia política e o materialismo histórico 22 . Isto implica a necessidade de transformar o conceito de produgáo e de forgas produtivas no materialismo histórico. 21. Neste sentido, a transformagáo do capital, dos processos de trabalho e do uso danatureza, provenientes de urna integragáo e aplicagáo crescentes do conhecimento científico aos processos produtivos, assim como a incorporagáo a estes das condigóes de sustentabilidade ecológica, problematizam os conceitos do materialismo histórico. Ao mesmo tempo, confluem no campo da ciéncia da história outras disciplinas e teorias para ampliar o conhecimento dos processos sociais (por exemplo, a psicanálise no estudo dos processos ideológicos; a ter- modinámica de sistemas abertos e a ecologia na construgáo do ecomarxismo). É entáo necessário diferenciar a articulagáo técnica de diferentes ramos do conhe- cimentos para a resolugáo dos problemas práticos do capital e seus efeitos no real histórico objeto do materialismo histórico, com sua articulagáo teórica com outras ciéncias para explicar o processo atual do capital frente aos desafíos da globalizagáo e da sustentabilidade ecológicas. 3. Articulnao teórica — articulacao técnica 22.A partir da perspectiva histórica da acumulagáo capitalista, a diversifi- cagáo e o avango do conhecimento náo aparece como um simples efeito da divisáo "natural" do trabalho ou como uma evolugáo interna das ciéncias. Avan- gada a fase da acumulagáo extensiva, fundada na exploragáo de mais-valia abso- luta, a elevagáo da taxa de lucro exigiu um aumento na eficiéncia produtiva dos 32 ENRIQUE LEFF processos de trabalho. Isto foi alcangado logo depois da mecanizagáo, com a cientifizagáo dos processos produtivos, mediante a produgáo e a aplicagáo inte- grada de diferentes áreas do conhecimento técnico e científico. A articulagáo funcional do conhecimento á produgáo deu um impulso importante ao desen- volvimento das ciencias e as inovagóes do conhecimento responderam á neces- sidade de vencer a lei tendencia) para a redugáo da taxa de lucro devido ao aumento na composigáo orgánica do capita1 23 . Neste sentido, a acumulagáo do capital integra em sua dinámica ás histórias diferenciadas das ciencias, e faz com que os conhecimentos sobre a natureza funcionen como forgas produtivas. Mas estes efeitos tecnológicos do saber na elevagáo da taxa de mais-valia náo se transformam em critérios de cientificidade do conhecimento, nem em condi- góes de possibilidade de suas articulagóes teóricas. 23.A tendencia de integrar a produgáo científica aos processos produtivos tem levado a instalar unidades de pesquisa científico-tecnológica nas indústrias e a vincular os sistemas educativos e de pesquisa ao sistema produtivo. Desta forma, desenharam-se complexos modelos de prospectiva tecnológica que pla- nej am a produgáo e a aplicagáo de conhecimentos científico-tecnológicos 24 . Tudo isto implica a articulagáo prática de diferentes áreas da ciencia e da técnica no processo económico e no controle político dos agentes sociais, que permite a reprodugáo ampliada do capital. Este processo de diferenciagáo das tarefas de pesquisa propós novos problemas na concepgáo, produgáo e aplicagáo do co- nhecimento. No entanto, o desprendimento deste processo de desenvolvimento tecnológico das condigóes de reprodugáo do capital tem levado a imaginar urna "tecno-logia" como princípio, razáo e legitimizagáo dos problemas da socieda- de industrial", e a responsabilizar a "ciencia" por ter fracionado o conhecimen- to da realidade corno um todo. Surgiu daí uma série de tentativas de unificagáo do conhecimento que vem correspondendo mais a um imperativo ideológico e tecnológico que a um problema interno do conhecimento 26 . 24. Nesta perspectiva, a unificagáo do conhecimento aparece como um contínuo de saber determinado por suas aplicagóes técnicas. O método experi- mental surge como a ponte de uniáo dos diferentes níveis do conhecimento e como legitimagáo de todo conhecimento para um fim prático. Da mesma ma- neira, as metodologias de planejamento e programagáo para a produgáo de co- nhecimentos geram urna visáo pragmatista e funcionalista da vinculagáo dos diferentes registros do saber com a produgáo de mercadorias, algo muito dife- rente do problema epistemológico da articulagáo teórica das ciencias. O vínculo necessário entre as construgóes teóricas sobre o objeto de conhecimento e a transformagáo experimental do objeto real cria um concepgáo errónea sobre a EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 33 fusáo da ciéncia com a tecnologia que reduziria o conhecimento do real a um saber como transformar, dominar e controlar os objetos da realidade. 25. A articulagáo da produgáo teórica com as práticas sociais de reprodu- gáo/transformagáo social (processos de trabalho, processos de sujeigáo ideoló- gica), náo é urna relagáo determinada por um princípio metodológico de produ- gáo teórica — neste caso pelo método experimental das ciéncias. A luta social pelo conhecimento determina a produgáo teórica a partir do saber imperante num momento histórico, assim como a inovagáo tecnológica e suas aplicagóes sociais e produtivas, ou seja, as formas de exploragáo da natureza e da forga de trabalho, bem como os processos de vinculagáo ideológica e de poder político. 26. A luta política pelo conhecimento é um debate náo só por demarcar as ciéncias do campo das formagóes ideológicas, mas por dissolver essa represen- tagáo imaginária da ciéncia como um processo neutro no qual o conhecimento se desenvolve como resultado de um lógica interna conduzida pela agáo meto- dológica de sujeitos conscientes frente a uma realidade objetiva 27 . É assim que as esferas de materialidade do real se dissolvem na "platitude" da realidade empírica, e que a lógica e a matemática se constituem no sujeito universal do saber. Daí derivaram também as perspectivas biologistas sobre o conhecimento em que o sujeito do saber aparece como todo organismo biológico que internaliza e transforma seu meio ambiente. De forma paralela, surgiram diversas teorias e metodologias como ferramentas ideológico-tecnológicas para a unificagáo do saber e para suas aplicagóes técnicas — por exemplo, a Teoria Geral de Siste- mas e as práticas interdisciplinares. O caráter ideológico dente projeto unificador das ciéncias impóe uma análise crítica das propostas surgidas, para ver em que sentido concebem e resolvem o problema teórico de uma suposta unidade da realidade e do conhecimento. 27. Antes deveremos propor a problemática de articulagáo das ciéncias a partir de urna perspectiva teórica e náo técnica, para ver se esta constitui um problema concreto que surge das condigaes da ciéncia moderna. A necessidade e possibilidade de urna articulagáo científica apenas se justifica se existirem processos materiais que, náo podendo ser apreendidos a partir dos conhecimen- tos elaborados por urna só das ciéncias em seu estado atual ou por um paradig- ma transdisciplinar e integrador, aparecem como regióes do real onde confluem os efeitos de duas ou mais ordens de materialidade, objeto de diferentes cién- cias. Esta articulagáo científica náo pode ser pensada como urna fusáo dos obje- tos teóricos das ciéncias — os quais constituem sua especificidade teórica e dos quais derivara seu efeito de conhecimento — mas como urna superdeterminagáo ou urna interdeterminagáo dos processos materiais dos quais as ciéncias produ- 34 ENRIQUE LEFF zem um efeito de conhecimento pela articulagáo de seus conceitos em seus respectivos campos teóricos. 28. 0 problema da articulagáo científica náo concerne á constituigáo de urna ciéncia a partir das formagóes ideológicas que a precedem, ou seja, de nogóes provenientes de outros campos do conhecimento antes da fundagáo dos conceitos próprios de urna ciéncia (isto é, o uso de nogóes da mecánica antes da fundagáo da biologia, ou da biologia e da termodinámica antes da produgáo freudiana dos conceitos psicanalíticos). As relagóes de articulagáo entre as cién- cias constituídas tampouco se referem á convergéncia e complementagáo de conhecimento provenientes de diferentes áreas do saber na fundagáo e desenvol- vimento de novas disciplinas (físico-química, bioquímica, antropologiaecoló- gica). Tampouco tém por objetivo as aplicagóes técnicas de diferentes áreas do saber para resolver problemas internos das ciéncias ou problemas práticos fora delas, nem as relagóes de um objeto científico com outros objetos empíricos. A articulagáo científica é um problema alheio ás aplicagóes técnicas e ideológicas das ciéncias, e concerne apenas a alguns casos de urna problemática transcientífica e intracientífica, da qual podemos indicar as seguintes formas possíveis: 28a.A importagáo de conceitos de outras ciéncias constituídas para serem trabalhados e transformados pelas necessidades internas do desenvolvimento do conhecimento da ciéncia importadora. Exemplo disso é a assimilagáo de con- ceitos da lingüística pela psicanálise (por exemplo, significante, metáfora, metonímia), para serem trabalhados e transformados na produgáo de novos con- ceitos (como significáncia), que, articulados á dinámica do desejo, dáo conta das formagóes do inconsciente, objeto da psicanálise 28 . Este seria um caso de transcientificidade teórica sem articulagáo científica. Outro caso seria o da im- portagáo das teorias da termodinámica e da ecologia para reformular os concei- tos de valor, de relagóes sociais e de forga produtiva no ecomarxismo. 28b.A articulagáo interna dos conceitos e categorias de urna ciéncia como pontos cruciais da estrutura de uma teoria em torno a seu objeto de conhecimen- to, onde podem articular-se os conceitos de outras ciéncias. Desta forma, a infra- estrutura económica articula-se com a superestrutura ideológica, as relagóes sociais de produgáo enlagam as práticas produtivas, jurídicas, políticas e ideoló- gicas através da luta de classes, da formagáo de valor, da produgáo de mais- valia. Esta articulagáo conceitual implica, por sua vez, a integragáo de proces- sos diferentes no objeto de conhecimento científico. Assim, o conceito de valor surge como a síntese de processos naturais, de trabalho e tecnológicos, que estabelecem o tempo de trabalho socialmente necessário e de urna demanda, efeito ideológico do desejo inconsciente, que permite a realizagáo do valor. O conceito de mais-valia integra a "infra-estrutura" com a "superestrutura", en- EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 35 quanto que a mais-valia é a articulagáo da luta económica e ideológica de das- ses. Esta problemática intracientífica é condigáo da articulagáo entre ciéncias mas náo a implica. 28c. A confluéncia dos efeitos de dois ou mais processos materiais, objeto de diferentes ciéncias, num fenómeno empírico, que ao náo pertencer ao objeto de conhecimento de nenhuma de suas ciéncias, náo implica a inclusáo dos efei- tos de um processo no outro nem a articulagáo dos conceitos de suas ciéncias. Este seria o fundamento teórico de urna problemática intercientífica, mas que náo implica um processo de articulagáo teórica. Um exemplo disto sáo os estu- dos demográficos ou de natalidade. As taxas de reprodugáo bem como os carac- teres físicos e psicológicos da populagáo náo sáo o objeto de urna ciéncia privi- legiada. Nestes fenómenos convergem os efeitos de diversos processos determi- nados pela estrutura genética de urna populagáo, por suas condigóes de adaptagáo biológica ao meio, pela demanda de foro de trabalho que gera a dinámica econó- mica e pelo desejo de reprodugáo vinculado ás formagóes do inconsciente, pro- cessos que sáo o objeto da biologia, da economia política e da psicanálise. 28d. A articulagáo dos efeitos de processos materiais objeto de urna ou mais ciéncias sobre processos que sáo objeto de outra ciéncia, o que implica urna determinagáo de processos externos que, embora náo sejam absorvidos conceitualmente pela ciéncia afetada e náo modifiquen seu objeto de conheci- mento, condicionara de tal forma os processos que analisa, que estes só podem ser entendidos como urna superdeterminagáo ou urna articulagáo dos efeitos dos processos objeto destas ciéncias. Vários problemas da articulagáo natureza-so- ciedade exemplificam este caso. A evolugáo e sucessáo dos ecossistemas natu- rais sáo objeto da biologia e da ecologia; mas os processos de transformagáo dos ecossistemas náo dependen táo somente das leis biológicas da evolugáo, senáo que se véem afetados e superdeterminados pela apropriagáo económica dos recursos naturais. A reprodugáo do capital náo pode integrar-se no objeto da ecologia. Por isso, o estudo da transformagáo dos ecossistemas implica a articulagáo dos efeitos do modo de produgáo sobre os efeitos naturais e biológi- cos provenientes da estrutura funcional de cada ecossistema. Este é um caso de superdeterminacilo na articulaváo científica. Outro caso de articulagáo é o da organizagáo cultural das formagóes socioeconómicas "náo-capitalistas", objeto da antropologia e da etnologia. Ali articulara-se os efeitos da língua, da organi- zagáo dos ecossistemas em que habitam e das estruturas sociais que constituem, na explicagáo de suas práticas produtivas e ideológicas. É um caso de co-deter- minaffio múltipla no processo de articulaffio. 28e. A articulagáo de duas ou mais ciéncias no conceito de um efeito- suporte de seus objetos de conhecimento respectivos. Um exemplo disto é a 36 ENRIQUE LEFF articulagáo do materialismo histórico, a psicanálise e a lingüística na produgáo de um efeito de sujeiváo, onde se articulam os processos significantes determi- nados pelas formagóes do inconsciente, pelas lutas ideológicas de classe inseri- das numa formagáo social e pelos efeitos simbólicos de uma linguagem especí- fica. Estas posigóes subjetivas náo sáo geradas simplesmente pela dinámica eco- nómica do modo de produgáo (a lei do valor, a mais-valia), preenchendo um lugar predisposto pelas condigóes de um sujeito do inconsciente e da língua, como o homem biológico é pressuposto da forga de trabalho. A constituigáo dente efeito de sujeigáo produz-se na regiáo na qual se articulam os efeitos dos objetos do materialismo histórico e da psicanálise, enquanto que transforma- góes na estrutura social afetam as formagóes do inconsciente e seus efeitos so- bre as formagóes ideológicas. Esta articulagáo científica apresenta-se entáo como urna interdeterminaqáo de processos materiais. 29. Para que exista articulagáo entre ciéncias num sentido forte, é necessá- rio que a materialidade de certo nível náo seja mero sustentáculo, pressuposto ou condigáo dos processos de outra ciéncia — isto é, o ser biológico do homem como suporte dos processos de trabalho ou de seus processos simbólicos — mas que suas estruturas materiais tenham efeitos determinantes nos processos em que se articulam — ou seja, os efeitos do modo de produgáo sobre os pro- cessos ecológicos, dos processos significantes nas formagóes ideológicas. As estruturas biológicas, neurológicas e lingüísticas, que sáo condigáo da história, náo se transformam com as mudangas históricas, mas a história superdetermina os efeitos de suas estruturas: a produgáo simbólica corno efeito da luta ideológi- ca de classes, a transformagáo ecossistémica como efeito da acumulagáo de capital. Estes efeitos determinantes de urna ciéncia em outra devido á sua arti- culagáo náo significam a existéncia de relagóes de constituigáo de urna ciéncia em outra, em cujo caso a ciéncia constituída náo seria senáo um ramo ou regido da ciéncia dominante. O caráter constitutivo da matemática na física e o método experimental que vincula a produgáo teórica com suas aplicagóes tecnológicas correspondem á especificidade epistemológica da física. A diferenga entre as ciéncias naturais e as ciéncias histórico-sociais náo consiste em que a relagáo constituigáo e aplicagáo da matemática a estas últimas seja "mais exterior, e portanto, muito mais técnica" 29. A diferenga náo é o grau. A formalizagáo mate- mática da história produz mais um efeito ideológico que um fundamento de seu conhecimento científico. 30. A articulagáo das ciéncias náo se limita a uma prática teórica fransdis- ciplinar; consistente na importagáo de conceitos