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Epistemologia_Kantiana

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COMPÊNDIO DE EPISTEMOLOGIA 
 
 
 
 
 
 
Organizadores 
Rogel Esteves de Oliveira 
Kátia Martins Etcheverry 
Tiegue Vieira Rodrigues 
Carlos Augusto Sartori 
 
 
 
 
 
 
Diagramação: Marcelo A. S. Alves 
Capa: Lucas Margoni 
Fotografia / Imagem de Capa: Frank Cone 
 
 
 
 
 
 
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distribuição e compartilhamento da Creative Commons 
Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional 
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) 
 
OLIVEIRA, Rogel Esteves de; ETCHEVERRY, Kátia Martins; RODRIGUES, Tiegue Vieira; SARTORI, 
Carlos Augusto (Orgs.) 
 
 
Compêndio de Epistemologia [recurso eletrônico] / Rogel Esteves de Oliveira; Kátia Martins 
Etcheverry; Tiegue Vieira Rodrigues; Carlos Augusto Sartori (Orgs.) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 
2022. 
 
 
673 p. 
 
 
ISBN: 978-65-5917-625-0 
DOI: 10.22350/9786559176250 
 
 
Disponível em: http://www.editorafi.org 
 
 
1. Filosofia; 2. Epistemologia; 3. Epistemologia Analítica; 4. Lógica; 5. Ceticismo; I. Título. 
 
 
CDD: 100 
Índices para catálogo sistemático: 
1. Filosofia 100 
O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências 
bibliográficas são prerrogativas de cada autor. Da mesma 
forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e 
exclusiva responsabilidade de seu respectivo autor. 
29 
EPISTEMOLOGIA KANTIANA 
Renato Duarte Fonseca 
O interesse epistemológico da filosofia de Kant (1724-1804) centra-
se na Crítica da Razão Pura. No prefácio à primeira edição, de 1781, Kant 
apresenta a obra como um escrutínio da “faculdade da razão em geral, 
com vistas a todos os conhecimentos que ela pode tentar atingir 
independentemente de toda a experiência” (A XI). 1 O objetivo fundamental 
desse exame seria “a decisão sobre a possibilidade ou impossibilidade 
de uma metafísica em geral e a determinação (...) tanto das fontes como 
de sua extensão e de seus limites” (A XII). Para Kant, isso demandaria 
explicar como são possíveis “juízos sintéticos a priori”, isto é, juízos de 
justificação não-empírica que não se reduzem à mera análise de 
conceitos, mas nos permitem alcançar um conhecimento substantivo de 
objetos. 
No prefácio à segunda edição da Crítica, de 1787, Kant defende que 
a solução desse problema exige da filosofia uma “revolução do modo de 
pensar” análoga à de Copérnico na astronomia: a suposição de que “todo 
o nosso conhecimento teria de regular-se pelos objetos” (B XVI) seria a 
raiz do fracasso da metafísica tradicional, devendo-se considerar a 
possibilidade de “o objeto (como objeto dos sentidos) regular-se pela 
constituição de nossa faculdade intuitiva” (B XVII). Essa revolução está 
associada ao que Kant denominará de “idealismo transcendental”. Seu 
 
1 Seguindo o padrão consagrado entre os pesquisadores da Crítica da Razão Pura, cito a obra de acordo 
com a paginação original de sua primeira e segunda edições – respectivamente A (1781) e B (1787). 
Todas as traduções bem-cuidadas da Crítica trazem essa paginação lateralmente ao texto. 
Renato Duarte Fonseca • 399 
significado e lugar na problemática epistemológica da filosofia moderna 
ainda são matéria de discussão. 
CONHECIMENTO, REPRESENTAÇÃO E FACULDADES COGNITIVAS 
O termo central da epistemologia kantiana é ‘Erkenntnis’. 
Comumente traduzido por ‘conhecimento’, seu uso tem várias nuances. 
O núcleo de significado do termo, tal como empregado na Crítica, 
corresponde à “referência determinada [bestimmten Beziehung] de 
representações dadas a um objeto”, compreendido como aquilo “em cujo 
conceito é unificado o diverso de uma dada intuição” (B137). 
‘Conhecimento’, aqui, designa certo tipo de relação entre sujeito e 
objeto: um sujeito reporta-se a algo através de representações diversas 
que lhe sobrevêm, sob um aspecto que lhe possibilita distingui-lo dessas 
representações, reconhecendo-o propriamente como um objeto. O 
sujeito é receptivo com respeito às representações que lhes são dadas, 
as quais perfazem o “diverso da intuição”. Em contrapartida, ele é 
“espontâneo” com respeito à determinação do objeto como sendo tal e 
tal, isto é, à sua conceitualização (inteligível apenas com referência ao 
ato de julgar). 
Uma representação é um estado ou ato mental - ou aspecto de um 
estado ou ato mental - através do qual se tem ou se pode ter consciência 
de algo. Numa famosa passagem em que apresenta sua “escala” 
(Stufenleiter) ou classificação hierárquica de diferentes espécies de 
representação, Kant denomina a representação com consciência uma 
percepção (Perzeption), num uso amplo do termo, não restrito à cognição 
sensória. Kant contrasta a mera sensação, “percepção que se refere 
simplesmente ao sujeito, como modificação do seu estado”, com a 
400 • Compêndio de Epistemologia 
“percepção objetiva”, que se reporta a objetos, denominada de 
“conhecimento [Erkenntnis] (cognitio)” (A320/B376). Há duas espécies de 
representações cognitivas. De um lado, a intuição, que “se refere 
imediatamente ao objeto e é singular”; de outro, o conceito, que “se 
refere [ao objeto] mediatamente, por meio de uma marca característica 
que pode ser comum a várias coisas” (A320/B377). Que a intuição seja 
singular significa que através dela é representado um objeto em 
particular; que ela seja imediata, por sua vez, significa que na intuição 
é esse objeto mesmo que se faz presente à consciência. Conceitos 
representam características ou propriedades que diversos objetos 
podem ter em comum; nisso consiste sua generalidade. Justamente por 
serem gerais, conceitos só podem ser reportados a objetos particulares 
por meio de intuições, com as quais tais objetos são dados à consciência; 
nisso consiste seu caráter mediato. 
Nossas intuições originam-se na sensibilidade, “capacidade 
(receptividade) de adquirir representações através do modo como 
somos afetados por objetos” (A19/B33). Conceitos, por outro lado, têm 
origem no entendimento, vale dizer, “na espontaneidade do 
pensamento” (A68/B93). É de sua natureza poderem figurar como 
constituintes de juízos, nos quais um sujeito toma-se necessariamente 
como agente de um ato de tomar algo como verdadeiro, vinculado às 
normas segundo as quais é possível um acordo intersubjetivo sobre o 
objeto, uma vez que “não posso asserir nada” sem “pronunciá-lo como 
um juízo necessariamente válido para todos” (A821-822/B849-850). 
Se na Stufenleiter Kant caracteriza intuições e conceitos como 
conhecimentos, noutra famosa passagem da Crítica ele escreve que “sem 
a sensibilidade, nenhum objeto nos seria dado; sem o entendimento, 
nenhum seria pensado”, de sorte que “pensamentos sem conteúdo são 
Renato Duarte Fonseca • 401 
vazios; intuições sem conceitos são cegas” e “apenas de sua unificação 
pode surgir o conhecimento” (A51/B75). Intuições e conceitos, portanto, 
ao invés de constituírem isoladamente conhecimentos, são aspectos 
daquela referência a um objeto que, vimos acima, caracteriza o conhecer 
propriamente dito: através da intuição, o objeto é dado; através do 
conceito, determinado. 
Intuições e conceitos são empíricos caso “a sensação [...] estiver 
neles contida” (A50/B74). Uma intuição empírica é uma imagem 
perceptual de objeto, dotada de certas qualidades sensórias; o conceito 
é empírico se pelo menos algumas de suas notas constituintes 
representa características sensíveis dos objetos, dadas a conhecer 
através de sensações. Conceitos e intuições empíricas concorrem no 
paradigma kantiano de relação cognitiva: a experiência (Erfahrung), ou 
reconhecimento de um objeto presente aos sentidos. 
Embora a própria experiência não seja um juízo enquanto ato em 
que se toma algo como verdadeiro, porque a experiência consiste no 
reconhecimento de um objeto sob conceitos empíricos e estes são 
“predicados de juízos possíveis” (A69/B94), a experiênciatem conteúdo 
proposicional e é articulável explicitamente por um “juízo de 
experiência”. Esse juízo encontra sua justificação precisamente naquilo 
que articula, observada a coerência entre a experiência que expressa e 
outras experiências, efetivas ou possíveis, expressas por outros juízos 
(cf. A230/B282-3). 
Na experiência, o sujeito tem consciência de um objeto presente 
aos sentidos sob um conceito adequado a ele, mesmo que também sob 
outros conceitos que não o sejam. Kant parece admitir a possibilidade 
de um “conhecimento” parcialmente falso (cf. A58/B83; ver também 
Kant 1992, pp. 71-2). Isso impede uma assimilação não-qualificada da 
402 • Compêndio de Epistemologia 
noção kantiana de conhecimento à de crença verdadeira justificada. 
Esta última corresponde melhor ao que Kant denomina saber (Wissen). 
É da possibilidade do saber metafísico, na forma de juízos sintéticos a 
priori, que se ocupa fundamentalmente a Crítica. 
JUÍZOS SINTÉTICOS A PRIORI 
A questão da possibilidade dos juízos sintéticos a priori envolve o 
cruzamento de diferentes distinções. A primeira, claramente epistêmica, 
é entre juízos de conhecimento a priori e a posteriori. Conhecimento a 
priori é aquele “independente da experiência e de todas as impressões 
dos sentidos” (B2), contrastado com conhecimentos “empíricos, que têm 
suas fontes a posteriori, isto é, na experiência” (B2). A despeito do que 
sugere a expressão, o conhecimento a priori não precede toda a 
experiência: “Se, porém, todo o conhecimento começa com a 
experiência, não segue disso que todo ele advenha da experiência” (B1). 
Kant ecoa aqui a crítica de Locke ao inatismo, mas distingue entre as 
condições da gênese e da justificação de nossos juízos cognitivos. A 
aprioridade de um juízo ou conhecimento concerne apenas às últimas: 
se um juízo é a priori, experiências particulares não são condição 
necessária nem suficiente de sua justificação. 
Kant vincula essa distinção à distinção modal entre juízos 
necessários e contingentes: se “uma proposição é pensada juntamente 
com sua necessidade, então ela é um juízo a priori” (B3), ao passo que tudo 
o que a experiência pode nos afiançar é que, “pelo que até hoje 
percebemos, não se verifica nenhuma exceção a esta ou àquela regra” 
(B3-4). Kant vincula a necessidade relevante aqui ao que denomina de 
“universalidade estrita” de um juízo. Tal universalidade não pode ser 
Renato Duarte Fonseca • 403 
assimilada a uma questão de forma lógica, assim como a necessidade 
relevante aqui não equivale à de juízos “logicamente necessários”, vale 
dizer, cuja negação seja contraditória. 
Isso fica evidente quando se introduz a distinção entre juízos 
analíticos e sintéticos, concernente ao modo de composição do conteúdo 
dos mesmos, com implicações sobre as condições do reconhecimento de 
sua verdade – uma distinção semântica com consequências epistêmicas. 
Dado um juízo da forma Todo A é B, a relação entre os conceitos A e B “é 
possível de dois modos”: ou “o predicado B pertence ao sujeito A como 
algo (implicitamente) nesse conceito A, ou B está totalmente fora do 
conceito A, embora em ligação com ele” (A6/B10). No primeiro caso, o 
juízo é analítico; no segundo, sintético. A caracterização costuma ser 
criticada como metafórica (Quine 2011: 38), mas deve ser compreendida 
à luz da generalidade da representação conceitual. Um conceito é uma 
regra de classificação de objetos cujas condições de satisfação 
correspondem, elas próprias, a conceitos – os quais, nessa medida, 
podem ser descritos como “contidos” nele. Todo corpo é extenso consiste 
em um juízo analítico porque a extensão de algo é condição de sua 
correta classificação como um corpo. A negação de tal juízo contradiz 
aquilo que é pressuposto por seu sujeito lógico; daí que, “se o juízo é 
analítico (...), sua verdade deverá sempre poder ser suficientemente 
reconhecida pelo princípio de contradição” (A151/B190). Por essa razão, 
juízos analíticos são meramente explicativos, ao passo que juízos 
sintéticos podem ser caracterizados como ampliativos, uma vez que o 
reconhecimento de sua verdade requer que consideremos propriedades 
do objeto que não estão já representadas (sequer implicitamente) no 
conceito do sujeito. 
404 • Compêndio de Epistemologia 
Kant sustenta haver, na matemática e nos fundamentos da ciência 
natural (na assim-chamada “física racional”), proposições sintéticas que 
devem ser pensadas com necessidade e universalidade estrita. Trata-se 
de proposições sintéticas a priori, pelas quais ampliamos nosso 
conhecimento dos objetos independentemente de nossa experiência dos 
mesmos. Qual a base de sua justificação, se não o mero princípio de não-
contradição? Trata-se do que os Prolegômenos chamam de “questão 
transcendental”. Sua solução, para Kant, é essencial à constituição da 
metafísica como uma ciência. 
CONHECIMENTO TRANSCENDENTAL 
Kant caracteriza o conhecimento transcendental visado pela Crítica 
como um conhecimento “que em geral se ocupa menos dos objetos, que 
do nosso modo de os conhecer, na medida em que este deve ser possível 
a priori” (B25). Ele não se distingue por tratar de uma classe especial de 
objetos, mas considerar a forma como conhecemos o que quer que seja 
independentemente da experiência. Assim, ‘transcendental’ não deve 
ser confundido com ‘transcendente’, que concerne a um suposto 
domínio suprassensível. Se o conhecimento transcendental se reporta 
(indiretamente) a objetos, é aos objetos de nosso conhecimento 
(sintético) a priori, mas este “é possível apenas enquanto expressa as 
condições formais de uma experiência possível”, tendo apenas “validade 
imanente”, isto é, com respeito “a objetos de conhecimento empírico” 
(A638/B666). 
Portanto, uma investigação transcendental - das condições do 
conhecimento a priori – deve elucidar a forma da experiência a fim de 
responder a sua questão central. Ora, a experiência, como 
Renato Duarte Fonseca • 405 
conhecimento empírico de objetos, envolve o concurso dos sentidos, 
pelos quais eles são dados, e do entendimento, pelo qual são pensados. 
Compete, pois, àquela investigação descortinar a forma da 
sensibilidade, de um lado, e a forma do intelecto, de outro, mostrando 
como integradas elas possibilitam um conhecimento a priori de objetos 
e, isoladamente, propiciam apenas a ilusão de conhecer algo. A execução 
dessas tarefas corresponde, respectivamente, à Estética Transcendental 
e à Lógica Transcendental da Crítica, primeira e segunda partes de sua 
“Doutrina Transcendental dos Elementos”, que forma o corpo da obra 
ao lado da “Doutrina Transcendental do Método”, de cunho diretamente 
metafilosófico. A Lógica Transcendental se dividirá, por sua vez, em 
duas partes. A Analítica Transcendental examina a contribuição do 
entendimento para o conhecimento a priori de objetos, mediante certos 
conceitos a priori, as “categorias”. Já a Dialética Transcendental (da qual 
não trataremos aqui) ocupa-se da ilusão de conhecimento oriunda da 
pretensão de usar as “ideias da razão” (conceitos puros peculiares a essa 
faculdade intelectual específica, distinta do mero entendimento) para 
além dos limites da experiência possível.2 
A FORMA DA SENSIBILIDADE 
Os resultados pretendidos na Estética podem ser divididos em três 
grupos, em uma cadeia de dependência argumentativa. O primeiro 
corresponde às “exposições metafísicas” do espaço e do tempo, que 
tratam de mostrar que suas “representações originais”, com base nas 
quais formamos quaisquer outras representações espaciais e temporais, 
são intuições puras – representações singulares e imediatas de origem 
 
2 Para uma introdução à Estética, ver Parsons (2009); para a Lógica Transcendental, ver Altmann (2012). 
406 • Compêndio de Epistemologia 
não-empírica. Dado o caráter a priori dessas intuições, isso vai de 
encontro à explicação empirista da origem de nossas “ideias”do espaço 
e do tempo; mas dado o caráter sensível de toda intuição possível para 
nós, isso também vai de encontro à tese de que nossa representação 
espaço-temporal seja redutível a conceitos ou tenha origem no 
intelecto, comumente associada a Leibniz. Pressupostas 
respectivamente pela consciência de objetos fora de nós e pela 
consciência de nossos próprios estados mentais, essas intuições puras 
são, respectivamente, as formas do sentido externo e do sentido interno (e 
porque as representações do sentido externo são elas próprias 
“modificações da mente”, também estão submetidas à forma do tempo, 
embora indiretamente). 
O segundo grupo de resultados concerne a relação entre o primeiro 
e os fundamentos da matemática e da ciência natural. Se o 
conhecimento matemático e da “física racional” consiste em juízos 
sintéticos a priori, que requerem uma referência a objetos de caráter 
extraconceitual mas ainda assim não-empírico, é na intuição pura que 
se encontrará a ligação, com necessidade e universalidade, entre seu 
sujeito e seu predicado. Na “exposição transcendental do espaço”, Kant 
pretende mostrar que a intuição pura do espaço é o fundamento dos 
juízos sintéticos a priori da geometria. Na exposição correspondente do 
tempo, Kant extrai conclusão análoga com respeito à “teoria geral do 
movimento” (e implicitamente à aritmética). Com base nisso, Kant 
intenta chegar a um terceiro resultado, crucial: que as intuições puras 
do espaço e do tempo sejam formas da sensibilidade que fundam a 
possibilidade de juízos sintéticos a priori significa que elas se encontram 
“meramente no sujeito” (A25/B41), possibilitando o conhecimento 
apenas das coisas como nos aparecem, isto é, dos fenômenos, em 
Renato Duarte Fonseca • 407 
contraste com as coisas em si mesmas. Trata-se da controversa teoria 
do idealismo transcendental (ver abaixo). 
CONCEITOS A PRIORI 
Kant escreve na Introdução à Crítica que “uma origem a priori 
mostra-se não apenas em juízos, mas igualmente em conceitos” (B5). Se 
a aprioridade de um juízo diz respeito à sua justificação, a de um 
conceito não se reduz às condições sob as quais sua aplicação é 
justificada, mas concerne antes às condições sob as quais ele é 
adquirido. A questão da gênese é aqui fundamental: ao contrário de 
conceitos empíricos, conceitos puros ou a priori não são formados 
através da representação discursiva de qualidades sensíveis de objetos, 
seja direta ou indiretamente. 
No primeiro capítulo da Analítica dos Conceitos, primeira parte da 
Analítica Transcendental, encontramos um argumento que visa 
sustentar que os conceitos puros do entendimento, ou categorias, têm 
sua origem nas “funções lógicas do entendimento no juízo”. Uma função 
lógica seria uma regra de combinação de conceitos na unidade de um 
juízo dotado de uma forma lógica determinada. A mesma regra, defende 
Kant, governaria a combinação do múltiplo da intuição sensível em 
geral na unidade da intuição de um objeto determinado. Essa regra 
constituiria um conceito sob o qual necessariamente pensamos o que 
quer que possa ser dado à sensibilidade como um objeto. Uma vez que 
teria origem na mera forma do entendimento, tratar-se-ia de um 
conceito puro do entendimento (puro, portanto, porque formal). Se, 
como defendia Kant, podemos dispor de um quadro completo das 
formas lógicas primitivas dos juízos, podemos igualmente dispor de um 
408 • Compêndio de Epistemologia 
quadro completo desses conceitos puros (uma “tábua das categorias”), 
caracterizados como “conceitos de um objeto em geral, por intermédio 
dos quais a intuição desse objeto se considera determinada em relação 
a uma das funções lógicas do juízo” (B128). 
Isso resolveria o que Kant denomina a questão de fato (quid facti) 
sobre as categorias: se estamos de posse de conceitos puros com origem 
no mero entendimento. Restaria ainda resolver a questão de direito 
(quid juris): se essa posse é legítima, vale dizer, se a pretensão de 
conhecer objetos através desses conceitos é justificada. A passagem da 
primeira à segunda questão marca a passagem da assim-chamada 
“dedução metafísica” à “dedução transcendental” das categorias. 
Justificar sua “validade objetiva” consistiria em mostrar que “apenas 
através delas a experiência é possível” (A93/B126). Todavia, que 
quaisquer objetos dados necessariamente sejam pensados sob conceitos 
puros do entendimento não implica que eles próprios sejam 
necessariamente determinados em conformidade com as categorias 
(A89-91/B122-124). À dedução transcendental cabe provar essa 
necessidade de re, não meramente de dicto.3 
O argumento da dedução transcendental é sabidamente 
intrincado, em ambas as edições originais da Crítica (com textos quase 
inteiramente distintos). Ele envolve a remissão da unidade da 
consciência de múltiplos de representações sensíveis, requerida já pela 
própria percepção, às condições de possibilidade da autoconsciência (ou 
“apercepção”) do sujeito como sujeito dessas representações, de um lado, 
e às condições de síntese de tais representações na figura de um objeto 
distinto delas, de outro. Tal síntese, operada pela faculdade da 
 
3 Cf. Fonseca 2008; ver também Licht dos Santos (2016). 
Renato Duarte Fonseca • 409 
imaginação, seria governada pelo entendimento e, nessa medida, pelas 
categorias, como condição do reconhecimento do objeto dado em um 
juízo no qual o sujeito se faz explicitamente consciente de si como tal – 
donde o famoso dictum da Dedução B, segundo o qual o “eu penso deve 
poder acompanhar todas as minhas representações” (B130). 
A ideia de que mesmo nossa consciência perceptual mobiliza o 
“entendimento” ensejou o recrutamento de Kant em debates 
importantes na filosofia contemporânea da percepção. Na esteira de 
Sellars (1968, 2008), McDowell (2005) apresentou Kant como uma 
referência para compreender-se o conteúdo perceptual como 
intrinsecamente conceitual. Contra ele, vicejaram várias interpretações 
“não-conceitualistas” de Kant.4 
O capítulo das “Analogias da Experiência” é o cerne da segunda 
parte da Analítica Transcendental, a Analítica dos Princípios, 
encarregada de demonstrar certos juízos sintéticos a priori que 
especificam a aplicação das categorias como condições de determinação 
do tempo – articulando o assim-chamado “esquematismo 
transcendental” desses conceitos –, por conseguinte de toda 
experiência possível para nós. A consciência da sucessão de nossas 
representações, em contraste com a mera consciência sucessiva de 
impressões, pressuporia a capacidade de discriminar um objeto que 
permanece sob o curso de determinações transientes. A consciência de 
um objeto cuja sucessão de determinações pode ser distinguida das 
nossas percepções sucessivas, por sua vez, pressuporia a realidade de 
uma regra ou lei (a ser descoberta empiricamente) segundo a qual certa 
 
4 Para o estado da arte da leitura não-conceitualista de Kant, ver Schulting (2016). Para um representante 
exemplar entre nós, ver Torres (1999). Para um questionamento interessante dos termos do debate, ver 
Pereira (2010). 
410 • Compêndio de Epistemologia 
determinação desse objeto torna necessária a ocorrência de outra que 
lhe sucede. Aqui descritos de maneira sumária, tais seriam, 
respectivamente, os argumentos da primeira e da segunda Analogias, 
estabelecendo os princípios “da permanência da substância” e “da 
sucessão no tempo segundo a lei de causalidade” (seguidos pelo 
princípio “da comunidade” ou ação causal recíproca, na terceira 
Analogia). 
Se o capítulo das Analogias é a expressão acabada da “resposta de 
Kant a Hume”, a edição B da Crítica insere a notória “Refutação do 
Idealismo” no capítulo seguinte da Analítica dos Princípios, os 
“Postulados do Pensamento Empírico”. O argumento dirige-se contra o 
ceticismo “cartesiano” sobre a existência do mundo exterior. Kant 
interpreta Descartes como um “idealistaproblemático”, para o qual a 
existência de objetos fora de nós seria duvidosa porque apenas inferida 
a partir da existência de nossos estados mentais. Kant pretende provar 
que a mera consciência da sucessão de minhas representações como tais 
e, com isso, “da minha existência como determinada no tempo” (B275), 
só é possível com referência à existência de algo permanente no espaço 
fora de mim. Kant retoma aqui a primeira Analogia para argumentar 
que a existência das coisas no espaço em geral é imune à dúvida (ainda 
que pretensas experiências particulares não o sejam), como condição de 
algo pressuposto pelo próprio cético. Assim, “o jogo do idealismo se 
volta contra ele” (B276).5 
O modelo de argumentação encontrado na Refutação, assim como 
na Dedução Transcendental e nas Analogias, foi explorado na 
epistemologia analítica da segunda metade do século XX sob o título de 
 
5 Para uma boa apresentação da Refutação, ver Klotz (2012). 
Renato Duarte Fonseca • 411 
“argumento transcendental”. A principal referência dessa estratégia 
argumentativa de inspiração kantiana é Strawson (1959, 1966), que 
explicitamente procura desvencilhá-la da “doutrina da síntese” e do 
“idealismo transcendental”. A estratégia teve uma crítica já clássica em 
Stroud (1968). A despeito disso, a discussão sobre ela seguiu 
prosperando.6 
IDEALISMO TRANSCENDENTAL (OU FORMAL) 
Na Estética Transcendental, Kant pretende ter mostrado que 
espaço e tempo são formas da nossa sensibilidade e que, portanto, 
relações e propriedades espaço-temporais convêm meramente aos 
fenômenos, não às coisas em si mesmas. Como o uso legítimo das 
categorias restringe-se aos objetos da experiência possível e esta 
depende da sensibilidade, só podemos conhecer a priori os fenômenos, 
não as coisas em si. Trata-se da doutrina do idealismo transcendental, 
já anunciada no prefácio à segunda edição da Crítica, no que ficou 
conhecido como a “revolução copernicana” de Kant. 
Na literatura, há basicamente dois modelos interpretativos dessa 
doutrina. A assim-chamada “interpretação de dois mundos” remonta às 
primeiras recensões da Crítica e teve sua formulação mais influente no 
ensaio “Sobre o idealismo transcendental”, de Jacobi, em 1787.7 Segundo 
essa via interpretativa, que dominou a leitura de Kant até pelo menos 
recentemente, fenômenos e coisas em si seriam dois tipos distintos de 
entidade: estas seriam coisas cuja existência e natureza seria 
independente de nossa experiência, enquanto aqueles seriam entidades 
 
6 Ver Stern (2003). 
7 Ver Bonacinni (2003). 
412 • Compêndio de Epistemologia 
meramente subjetivas, causadas pela afecção da mente pelas coisas em 
si. Quando Kant escreve que “todas as coisas intuídas no espaço ou no 
tempo [...] não são mais do que fenômenos, i.e., meras representações, 
as quais [...] não têm fora de nossos pensamentos qualquer existência 
fundada em si mesma” (A491/B519), parece conferir lastro a essa 
interpretação. À parte a acusação de que o idealismo transcendental 
consistiria em um subjetivismo extremo, essa leitura enseja suspeitas 
quanto à coerência interna da doutrina. Como já observara Jacobi e 
reiterou Strawson (1966) quase duzentos anos depois, a suposição de que 
as coisas em si originam os fenômenos ao afetarem a mente emprega 
categorias como causa e efetividade para além dos limites da experiência 
possível, violando as restrições epistêmicas da filosofia transcendental. 
Isso motiva a busca de uma interpretação alternativa. De acordo 
com a assim-chamada “interpretação de dois aspectos”, as noções de 
fenômeno e coisa em si correspondem não a dois tipos distintos de 
entidade, mas a dois aspectos sob os quais se toma os objetos da 
experiência na reflexão filosófica sobre as condições necessárias desta 
última: sob o primeiro, considera-se a forma de nossa experiência de 
objetos; sob o segundo, faz-se abstração dela. Essa abordagem do 
idealismo transcendental encontra seu lastro especialmente em textos 
posteriores a 1781, quando Kant reage à recepção inicial da Crítica. Na 
segunda edição dessa obra, ele apresenta a doutrina como a tese de que 
não podemos “ter conhecimento de nenhum objeto enquanto coisa em 
si, mas tão-somente enquanto objeto da intuição sensível, ou seja, 
enquanto fenômeno” (B XXVI), prescrevendo-nos “tomar o objeto em 
dois sentidos diferentes” (B XXVII). Na literatura recente, o mais 
importante representante dessa via interpretativa é Allison (1983), que 
interpreta a filosofia transcendental como uma reflexão sobre 
Renato Duarte Fonseca • 413 
“condições epistêmicas”, consideradas condições necessárias para algo 
ser objeto de conhecimento para sujeitos com um entendimento 
discursivo (mediante conceitos) e uma sensibilidade como a nossa. 
Embora influente, a interpretação de Allison é alvo de críticas 
importantes. Entre elas, a de reduzir o idealismo kantiano à tese 
“anódina” (Langton 1998, p. 8-12) de que só podemos conhecer as coisas 
sob as condições em que podemos conhecê-las. Tais críticas ensejaram 
esforços de alternativas na esteira do modelo de “dois aspectos”, como 
de Langton (1998) e Allais (2015).8 
GLOSSÁRIO 
Begriff: Conceito. 
Erkenntnis: Conhecimento. 
Verstand: Entendimento. 
Erfahrung: Experiência. 
Erscheinung, Phänomenon, Phaenomenon: Fenômeno. 
Idee: Ideia. 
Anschauung: Intuição. 
Gegenstand, Objekt: Objeto. 
Perzeption, Wahrnehmung: Percepção. 
Grundsatz, Principium, Prinzip: Princípio. 
 
8 O autor agradece aos editores e ao revisor anônimo por suas observações, que contribuíram para 
aperfeiçoar o texto. 
414 • Compêndio de Epistemologia 
Vernunft: Razão. 
Vorstellung: Representação. 
Wissen: Saber. 
Sinnlichkeit: Sensibilidade. 
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