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FILOSOFIA MORAL Thiago Dias da Silva 2 SUMÁRIO 1 O HUMANO COMO PROBLEMA: SÓCRATES ............................................ 3 2 PLATÃO: A VIRTUDE É NATURAL OU ADQUIRIDA? ................................ 15 3 PLATÃO: A JUSTIÇA COMO VISÃO DO BEM ........................................... 25 4 ARISTÓTELES: A ÉTICA DA VIRTUDE E DA FELICIDADE ........................... 36 5 A FILOSOFIA MORAL CRISTÃ .................................................................. 47 6 ESPINOSA: VIRTUDE, POTÊNCIA E LIBERDADE ...................................... 58 3 1 O HUMANO COMO PROBLEMA: SÓCRATES 1.1 Pré-socráticos: filósofos da natureza e do cosmos As primeiras experiências filosóficas da cultura ocidental se deram na Grécia, em um período conhecido como arcaico, que vai de finais do século VIII até o século V, quando começa o período clássico. Nessas primeiras manifestações, os filósofos procuraram respostas racionais para os mais diferentes tipos de espantos filosóficos, o que gerou uma enorme variedade de teorias e doutrinas. Tales de Mileto, por exemplo, fez descobertas astronômicas relevantes, formou uma cosmologia, tem um teorema matemático atribuído a ele, mas, acima de tudo, argumentou a fim de sustentar a afirmação de que a água é o princípio de toda a natureza. Anaximandro, da mesma cidade, preocupado com a mesma questão, afirmou que o princípio da natureza não é nenhum elemento material percebido por nós, nenhuma das qualidades naturais (úmido, seco, quente, frio), mas é o indefinido, o ilimitado, o indeterminado. Anaxímenes, também de Mileto, ocupa-se do mesmo problema, mas conclui que o princípio da natureza é o ar. Já o elemento mais fundamental do pensamento de Pitágoras, um dos maiores pensadores pré-socráticos, é a afirmação de que o elemento essencial da natureza é o número. É muito provável que tenha chegado a esta conclusão a partir da observação da simetria entre as cordas da lira e a harmonia dos sons. Partindo desta ideia fundamental, afirmou ainda a existência de uma música no universo, que é também todo harmonioso e proporcional. Desta cosmologia, Pitágoras deduziu uma ética ao afirmar que também a alma humana é harmonia e proporção numérica. Também Heráclito se lançou à questão que o fundamento da natureza é o devir, a mudança. Seu fragmento mais conhecido – “jamais nos banhamos duas vezes em um mesmo rio, porque na segunda vez as águas não são as mesmas, nem nós” – indica este princípio fundamental da natureza. Em direção contrária, Parmênides afirma que o fundamento da natureza é o Ser e este é sempre idêntico a si mesmo. 4 Há ainda vários outros exemplos possíveis de pensadores gregos que procuraram pensar o mundo, responder ao espanto a partir de explicações distintas daquelas apresentadas pelos mitos, ou seja, pela religião. Mas estes exemplos são suficientes para nos fazer perceber que o essencial da filosofia deste período se dedica à natureza, ou seja, à physis, cuja constituição espanta os filósofos. É importante notarmos isto para podermos avaliar a revolução causada por Sócrates, uma revolução que justifica encaixar todos estes filósofos (e outros ainda) tão diferentes entre si sob um rótulo: pré-socráticos. Nem todos os pré-socráticos viveram antes de Sócrates – alguns foram contemporâneos a ele – mas todos eles realizaram um tipo de reflexão que ainda não sofrera o impacto causado por Sócrates, cuja atividade está essencialmente vinculada à experiência democrática do século V, o século de Péricles. 1.2 Experiência democrática: a filosofia como filha da cidade Em meados do século VI, havia em Atenas uma tradição de discussão pública entre os cidadãos em certos espaços, como as assembleias dos géne. Aproveitando-se deste fato, Sólon, em 594 a.C., elaborou um código de leis que separava os géne e a polis e não poderiam ser violadas pelos costumes e pelas práticas dos patriarcas. Estas leis colocaram certas estruturas na cidade, estruturas que seriam aproveitadas algumas décadas à frente por Clístenes, responsável por uma grande reforma na cidade. Servindo-se de elementos da aritmética, da geometria e da demografia, Clístenes reordenou o espaço da cidade distribuindo os vários géne de modo a desconcentrar o poder aristocrático e oligárquico exercido por cada um. A filósofa Marilena Chaui resume assim as reformas de Clístenes: 5 Como procede Clístenes? Em primeiro lugar, reordena o espaço para definir cada unidade territorial: cria a trítia, uma circunscrição territorial de base, e institui trinta trítias. Em seguida, reordena a distribuição dos géne para definir cada unidade social: reúne os géne em dez tribos, cada uma das quais, formada por três trítias atribuídas a cada tribo por sorteio; o essencial, porém, foi a localização de cada uma das três trítias, pois não eram vizinhas e sim situadas em três pontos diferentes (uma no litoral, uma no interior e uma da cidade). A seguir, define a unidade política, o démos; cada trítia é formada por um conjunto de démoi, cada grupo de cem démoi constituindo a unidade política de base, cada qual com suas assembleias, seus magistrados e suas festas religiosas, espaço público onde os atenienses fazem o aprendizado da vida política. A pólis, portanto, não era a cidade como conjunto de edifícios e ruas, nem os grupos da parentela, e sim o espaço urbano do território ateniense, tendo Atenas seu centro urbano (CHAUI, 2002, p. 132). Essas reformas criaram um dinamismo político e social jamais visto na história grega porque abriram espaços para discussões e decisões a respeito dos destinos da cidade. Nestes espaços públicos recém-inaugurados, os cidadãos se engajavam apaixonadamente para discutir seus valores, suas preferências, interesses e futuro. Assim, aquele interesse por questões cosmológicas e naturais, ou seja, pela physis, que era central para o pensamento dos filósofos anteriores, passou a dividir espaço com os novos temas surgidos destas novas circunstâncias e das discussões feitas na cidade e, o mais importante, sobre a cidade. O pensamento não se lançava mais quase que exclusivamente à physis, mas passou a abordar também o nomos, ou seja, aquilo que é partilhado pelos seres humanos, seus costumes, suas leis. Este período de ouro também é conhecido como “O século de Péricles”, não porque esse filósofo tenha vivido um século, mas porque sua figura sintetiza este período em que o florescimento de Atenas chegou a seu cume. As grandes criações artísticas, técnicas, intelectuais e filosóficas que fazem da experiência ateniense algo relevante até hoje se deram neste período, e Péricles as incentivou à medida que pôde, em especial favorecendo a abertura para as discussões e o engajamento cidadão. 6 Um exemplo desta relação entre a cidade aberta às discussões e o florescimento da cultura está nas tragédias, as maiores obras artísticas do período. Elas eram financiadas pela cidade, eram objeto de concurso e suas encenações eram aguardadas e discutidas com ardor pelos cidadãos. Suas grandes obras permanecem ainda entre nós e testemunham a grandeza da arte ateniense que teve na democracia uma de suas condições de possibilidade. Esta abertura às discussões públicas não mudou apenas o tema das discussões, que agora privilegiam o nomos, mas criou também uma preocupação com a forma do pensar e do falar, pois falar bem se tornou uma necessidade para convencer os demais a respeito de seus pontos de vista. Consequentemente, não tardou para que surgissem diferentes maneiras de falar, de apresentar seus argumentos, que deveriam ser cada vez melhores, pois seriam confrontados com outros pontos de vista ou outras maneiras de falar. É neste tipo de atividade que surgem várias figuras dispostas a ensinar a falar bem, figurasque ficaram conhecidas como sofistas e em meio às quais surgiu Sócrates. É por isto, portanto, que o grande helenista Jean-Pierre Vernant termina seu pequeno clássico As origens do pensamento grego com a seguinte afirmação: “A razão grega é a que de maneira positiva, refletida, metódica, permite agir sobre os homens, não transformar a natureza. Dentro de seus limites como em suas inovações, ela é filha da cidade” (VERNANT, 2002, p. 143). 1.3 Sofistas A abertura representada pela invenção da democracia em Atenas exigiu de seus cidadãos uma preocupação especialmente grande com o discurso. Não apenas no sentido de “falar para muitas pessoas” e sim em todos os modos de falar a outras pessoas, incluindo diálogos entre dois indivíduos, para pequenos grupos, para conhecidos, para alunos, para estrangeiros e, claro, para um grande grupo de cidadãos. Cada forma de discurso, de fala, impõe certas exigências, sob pena de fracassar em seu objetivo. 7 Embora o papel antigo dos filósofos, de tratar da natureza e do cosmos, ainda tivesse lugar nas novas condições sociopolíticas, a democracia ateniense impunha o objetivo de convencer os concidadãos a respeito das vantagens da opinião defendida. Começaram a surgir, assim, indivíduos especialmente eficientes nesta tarefa de convencer os demais. No entanto, estes novos assuntos rapidamente se mostram difíceis de serem verificados com certeza, difíceis de serem definidos de uma vez por todas. Por exemplo, qualquer discurso que se pretenda verdadeiro a respeito de uma pedra deve concluir, por qualquer caminho, que ela é dura; para qualquer observador, o azul é azul, a árvore é maior que o grão de areia; ou seja, os objetos naturais têm uma objetividade que torna evidentes algumas de suas características, que não podem ser seriamente questionadas. Ora, mas o mesmo não se passa com temas humanos. Definir o que é bom e o que é mal não é tarefa que se possa fazer simplesmente apontando para alguma coisa e dizendo: veja, isto é evidente e, portanto, não é razoável questionar. Mesmo nos casos em que algo parece evidentemente bom ou mal, fica ainda a pergunta a respeito do porquê se deve julgar isto ou aquilo bom ou mal. Por exemplo, dar dinheiro aos pobres parece evidentemente bom, pois é uma ação abnegada e caridosa. No entanto, é possível que a prática desenvolva uma dependência, sendo, portanto danosa; pode ser que ela estimule a preguiça, ou seja, favoreça um vício; pode ser ainda que ela mascare uma exploração social, sendo, portanto, cúmplice da desigualdade. Inversamente, recusar-se a dar dinheiro parece evidentemente mal, uma vez que é uma ação egoísta. Talvez se possa fazê-la com o intuito de favorecer a autonomia, ou seja, em nome da liberdade; pode ser feita a fim de estimular produtividade, o que a torna útil; pode ser feita ainda para denunciar a exploração social, sendo, portanto, combativa. 8 Esta característica dos assuntos humanos se tornou especialmente evidente a partir da ação destes indivíduos muito capazes de convencer as pessoas de seus pontos de vista. Eles apareceram aos demais, primeiramente, como sábios, precisamente por serem capazes de argumentar e convencer; sábio, em grego, é sophós, e por isso esta categoria de pessoas foi chamada de sofista. Em Atenas, durante o século de Péricles, os sofistas apareceram afirmando a capacidade de ensinar virtudes, em especial, técnicas de convencimento. Os sofistas eram não apenas pessoas que falavam bem, mas, sobretudo, aqueles que se tornavam professores de quem gostaria de aprender a falar bem e aparecer como virtuoso para os demais. Evidentemente, faziam suas demonstrações públicas, mas a finalidade de seu trabalho era angariar alunos, pois falar bem era uma técnica muito valorizada depois da invenção da democracia. Assim, os alunos dos sofistas eram, em geral, jovens da elite ambiciosos, interessados em adquirir virtudes a fim de trilhar uma boa carreira à frente do exército ou da cidade, o que fariam por meio das técnicas ensinadas pelos sofistas. Como vimos, no entanto, os assuntos humanos não têm um fundamento último e sólido, eles podem variar muito em função das posições ocupadas por quem opina. Assim, muito rapidamente, os sofistas se mostraram capazes de ensinar a falar bem em defesa de opiniões opostas entre si. Com uma boa técnica, e aproveitando-se da variabilidade dos assuntos humanos, os alunos dos sofistas se tornavam capazes de convencer seus interlocutores a respeito da justeza de A e também de não A. Ou seja, em vez de conduzir o interlocutor a uma verdade, que não muda nunca, os sofistas formavam jovens capazes de defender com muita habilidade qualquer opinião. Um bom aluno de sofista encontra bons argumentos para defender tanto a doação quanto a recusa de dinheiro para os pobres, de modo que a diferença moral entre as duas ações, ou seja, a avaliação como boa ou má, não depende da própria ação, mas da performance de quem a defende. 9 Se, em determinado dia, um sofista se encontrar na situação de defender, contra um orador inábil, a doação de dinheiro aos pobres, ele vencerá o debate e convencerá quem assiste; se, no dia seguinte, tiver como oponente um orador ruim defendendo a doação, o sofista defenderá a recusa da doação e também vencerá o debate convencendo os espectadores do oposto daquilo que defendeu no dia anterior. A impossibilidade de encontrar um único fundamento verdadeiro para absolutamente todos os julgamentos morais conduz ao problema do relativismo moral. O sucesso das técnicas sofísticas no ambiente democrático levantou de modo decisivo este problema para a tradição filosófica que, desde então, o debate incansavelmente. A imagem ruim dos sofistas junto à tradição se deve, em larga medida, ao relativismo moral e ao abuso que muitos deles e de seus alunos cometeram a partir dele, mas se deve, sobretudo, ao fato de os aristocratas, como Xenofonte, Platão e Aristóteles, que desprezavam a democracia e lutaram contra a sofística, terem deixado mais textos relevantes para a posteridade, que formou um juízo desfavorável aos sofistas. De todo modo, o mais importante a reter da experiência sofística é a percepção de que o fundamento das questões morais não é sólido como os dados da natureza. Os sofistas se mostravam capazes de afirmar, em um dia, que tal ação é boa e, no dia seguinte, que a mesma ação é má, mas esta possibilidade é muito menor quando o tema é a natureza. Não é possível afirmar a sério que o fogo molha ou que as árvores voam. Com os sofistas, portanto, percebeu-se que os temas humanos, ou seja, os temas do nomos são essencialmente problemáticos com relação a seu fundamento último. Este é o sentido essencial da célebre afirmação de Protágoras, um dos sofistas mais célebres: “O homem é a medida de todas as coisas”, ele é o fundamento último das coisas humanas, ou seja, as coisas são à medida que os homens fazem com que sejam. 10 1.4 Sócrates Embora Sócrates seja hoje conhecido como opositor ferrenho dos sofistas, à época ele era conhecido como mais um dos sofistas. Isto mostra a diferença entre o significado que a palavra tem hoje – essencialmente negativo – e o que tinha à época – mais descritivo; mudança que se deve, em larga medida, aos principais discípulos de Sócrates: Platão e Aristóteles. Imerso na cultura democrática ateniense, que já dava sinais de esgotamento, Sócrates se dedicou essencialmente ao ser humano como questão, do que decorre que sua filosofia tem na moral uma questão essencial. A célebre afirmação “conhece-te a ti mesmo”, que resume o essencial da filosofia socrática, nos leva a concluir que a moral não é uma questão de obediência aos deuses, nem de eficácia no sucesso da carreira ou da política, como afirmavam os sofistas; a moral começa com uma forma de conhecimentoe este conhecimento tem como objeto os seres humanos (conhece-te a ti mesmo). Esta ideia compõe o que se chama de humanismo socrático, pois coloca o humano no centro, mas não à maneira de Protágoras, para quem os humanos são a medida de todas as coisas, e sim seguindo a ideia de que o ser humano é um objeto privilegiado de questionamento. Também está presente nesta afirmação a valorização do conhecimento como um bem. É importante notar que não apenas o conhecimento do bem moral, mas o conhecimento em si mesmo é um bem, de modo que o esforço para conhecer é uma ação moralmente boa. Temos aqui um princípio moral importante: conhecer é bom. Consequentemente, a filosofia é uma missão, pois ela realiza uma ação moralmente boa, que é a procura pelo conhecimento. Como o conhecimento se dá pelo logos, temos que o bem e o logos têm alguma relação e que as atividades racionais têm algum valor moral. Uma consequência deste racionalismo socrático é a de que o conhecimento moral deve ser universal, ou seja, deve alcançar todos os seres humanos e não pode variar no tempo nem no espaço. 11 A diferença com relação aos sofistas é evidente, pois seus ensinamentos morais eram calcados precisamente na adaptação à situação, ou seja, se funda precisamente no tempo e no espaço em que determinada ação ou julgamento deve se desenrolar. Contra isto, Sócrates elabora sua filosofia sobre a pergunta “O que é…?”, por meio da qual procura alcançar uma essência invariável a partir da qual seria possível julgar ações particulares. Se em algum momento for possível chegar, de uma vez por todas, a uma definição de o que é a justiça, e esta definição for válida para todos os humanos em qualquer tempo e em qualquer espaço, teremos, portanto, o conhecimento a respeito do que é a justiça e este conhecimento se converterá na autoridade a partir da qual será necessário julgar todas as ações como justas ou injustas. No entanto, como vimos anteriormente, as relações humanas não apresentam fundamentos sólidos como os objetos naturais. Não é razoável duvidar que uma montanha seja maior que um rato, que o fogo queima e a água molha, mas é perfeitamente possível que uma mesma ação, ainda que aparentemente inequívoca, possa ser julgada como boa ou má. A possibilidade de relativizar as ações humanas reflete um problema essencial para a moral, que é a de não ter um fundamento sólido, claro e inequívoco, e é precisamente algo deste tipo que Sócrates procura com sua pergunta “o que é…?”. Assim, temos o seguinte quadro: Sócrates não sabe qual é o fundamento das ações morais e, por causa deste não saber, se lança a uma atividade moral, a busca pelo conhecimento deste fundamento que ele tem poucas esperanças de encontrar. Diferentemente dos filósofos tradicionais e dos sofistas, que julgavam saber os fundamentos e, por conta disto, não procuravam explicações racionais e filosóficas para eles, Sócrates era ciente de que não sabia onde estavam os fundamentos e, precisamente por conta disto, se lançava em busca do conhecimento. É por esta diferença essencial que o oráculo de Delfos certa feita afirmou que Sócrates era o mais sábio dos homens; Sócrates era o mais sábio dos homens por ele saber que não sabe nada. 12 1.5 Dialética e aporia A ciência de que não se sabe os fundamentos da moral levaram o oráculo de Delfos à afirmação de que Sócrates era o mais sábio dos homens. No entanto, longe de se satisfazer com esta afirmação e gozar do status que ela lhe conferia, Sócrates se lançou à atividade do conhecimento, à busca pelo fundamento da moral. Sócrates sabia que não é satisfatório simplesmente inventar ou postular um fundamento arbitrário, pois este não resistiria às análises, aos contra-argumentos ou, simplesmente, aos inúmeros exemplos de ações que podem contrariar tal fundamento. Além disto, como a ação moral é a busca do conhecimento, postular um fundamento não é uma ação moral e, na medida em que pode satisfazer a curiosidade humana e reduzir o ímpeto pela busca da verdade, pode também se converter em uma ação má. Sua inquietação — que é também nossa — o leva à formulação de um método capaz de realizar esta exigência de procurar pela verdade. Se postular o fundamento não basta, questionar os fundamentos postulados aparece como uma possibilidade e é isto o que Sócrates faz por meio de seus diálogos, ou seja, com sua dialética. O procedimento de dialogar com os cidadãos, como fazia Sócrates, apresenta uma vantagem bastante importante que é a de estabelecer o negativo das certezas apresentadas pelos interlocutores, em geral, baseadas em fundamentos irrefletidamente postulados. Diante de determinada ação ou afirmação de um concidadão, Sócrates inicia um diálogo a fim de procurar os fundamentos que a sustentam. Em geral, os diálogos se iniciam com uma certeza aparentemente sólida, e à medida que o diálogo avança, se torna frágil até se mostrar inteiramente desprovida de fundamento e ser substituída por outra certeza, que, submetida ao mesmo processo dialógico, terá o mesmo destino da anterior. 13 Este movimento é a realização da filosofia como missão, pois ele se aproxima do conhecimento em pelo menos dois sentidos. Em primeiro lugar porque, depois de todo o trajeto, sabe-se que aquela primeira afirmação que abriu o diálogo, que parecia certa e guiava a ação no mundo, não tem fundamento firme. Além disto, e mais importante ainda, este questionamento e o engajamento no diálogo mostram ao cidadão que, assim como Sócrates, ele também nada sabe, ele também se beneficia da atividade filosófica. Contudo, se o “só sei que nada sei” impulsiona Sócrates à atividade moralmente boa de buscar conhecimento, espera-se que os cidadãos, agora cientes de sua ignorância, também se lancem à atividade filosófica. Apesar disto, no entanto, Sócrates também é ciente da fragilidade de sua empreitada. É comum que os diálogos socráticos terminem em aporia, ou seja, em uma contradição que impede fazer qualquer afirmação. Quando este é o caso, sabe-se que a certeza inicial não tem fundamento, mas não se sabe qual é a resposta para o tema em questão. Isto permite a afirmação de que, a princípio, a dialética é negativa e, por vezes, fica apenas na negação do que é dado. Este caráter negativo é bastante perigoso para a ordem estabelecida, como prova o desfecho da vida de Sócrates, e, do ponto de vista filosófico, pode ser decepcionante para quem busca por respostas definitivas, embora nunca o seja para quem se une a Sócrates na afirmação de que a atividade filosófica é um bem em si mesmo. 14 REFERÊNCIAS AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Abril, 1982. (Coleção Pensadores). AQUINO, T. Suma Teológica (vol. II). São Paulo: Loyola, 2005. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Coleção. Pensadores). CHAUI, M. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles, volume 1. 2. ed., revista e ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. ______. Espinosa: uma filosofia da liberdade. São Paulo: Moderna, 1996. ESPINOSA, B. Ética. São Paulo: EDUSP, 2015. PLATÃO. Diálogos: Fedro, Mênon, Banquete. Rio de Janeiro: Ediouro, 1978. ______. A república. Tradução: Anna Lia Amaral de Almeida Prado; revisão técnica e introdução: Roberto Bolzani Filho. São Paulo: Martins Fontes, 2006. (Coleção Paideia). REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: filosofia pagã antiga (vol. 1, 2 e 3). São Paulo: Paulus, 2003. VASQUEZ, A. S. Ética. 21. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. () VERNANT, J-P. As origens do pensamento grego. São Paulo: Difel, 2002. 15 2 PLATÃO: A VIRTUDE É NATURAL OU ADQUIRIDA? 2.1 Diálogos platônicos A afirmação de que Sócrates foi responsável por, entre outras coisas, elevar as relações humanas ao nível de temas filosóficosnos conduz diretamente ao chamado “problema Sócrates”, ou seja, à dificuldade de saber com precisão quem foi o Sócrates histórico e qual sua relação com o Sócrates que conhecemos. Este problema não se deve apenas ao fato de ele não ter deixado nada escrito, mas às muitas diferenças que encontramos nas caracterizações dele feitas por seus contemporâneos. As principais fontes que temos para saber quem foi Sócrates são Aristófanes, Xenofonte, Platão e Aristóteles. Não é preciso fazer análises profundas para notar as grandes diferenças entre o Sócrates de As nuvens de Aristófanes e o Sócrates descrito por Xenofonte em Ditos e feitos memoráveis de Sócrates (também conhecido como Memoráveis). Neste último, vemos um enorme elogio a Sócrates, ao passo que, no anterior, ele é descrito como um sofista grosseiro e mal-intencionado. Mas as diferenças se encontram também no interior da obra de Platão, nossa principal fonte. Como se sabe, Platão foi discípulo de Sócrates – diferentemente de Aristóteles, que não o conheceu pessoalmente – tendo convivido com o mestre até seu trágico fim, que chegou com a condenação à morte pela cidade. Sócrates não escrevia nada e muito do que sabemos sobre ele foi escrito por Platão que o transformou no principal personagem de vários diálogos. Esta diferença de relação com a palavra escrita é já indicativa das diferenças entre Sócrates e Platão e é possível abordá-la de várias maneiras. Talvez a interpretação mais consolidada seja a que considera que, para Sócrates, a rigidez da palavra escrita trai a fluidez do pensamento, que funciona melhor no vai e vem que constitui o diálogo. 16 Quando se afirma algo a um interlocutor, tem-se a resposta – afirmativa, negativa, nuançada – imediatamente, de modo que o pensamento flui pelo diálogo nas várias direções que pode se mover. Em um texto escrito, ao contrário, não há interlocutor real, apenas imaginado, uma vez que o papel aceita tudo e que o leitor não pode responder imediatamente. Posto no papel, o pensamento não flui, se enrijece, mas pode ser transmitido para pessoas em outro lugar e em outro tempo (a posteridade). Restrito aos diálogos realizados frente a frente, o pensamento flui, não se enrijece, mas permanece restrito à memória dos participantes. Este mesmo problema da fluidez e da rigidez do pensamento aparece de outra maneira na obra de Platão, ou melhor, na variação da figura de Sócrates no interior da obra de Platão. Além de grande filósofo, Platão foi um grande escritor e os personagens de seus diálogos apresentam características muito particulares, traços vivos e atitudes próprias. O personagem mais presente nos vários diálogos platônicos é Sócrates e ele, como personagem e como filósofo, varia significativamente ao longo da obra platônica, ainda que muitos traços se mantenham. A atitude básica de interpelar concidadãos e, por meio do diálogo, levá-los ao questionamento de certezas irrefletidas se mantém a mesma. No entanto, nos diálogos escritos por Platão na juventude, Sócrates é mais corrosivo e frequentemente enfatiza o aspecto negativo do diálogo, ou seja, a possibilidade de dizer “não” à certeza defendida inicialmente. Estima-se que nesta fase inicial de sua obra, Platão está mais próximo do Sócrates histórico, ou seja, daquilo que Sócrates efetivamente fazia pelas praças de Atenas. Uma consequência desta ênfase no negativo é estes diálogos terminarem muito frequentemente no vazio, sem nenhuma verdade, nenhuma teoria, mas, ao contrário, em uma aporia que força os interlocutores a encerrar o diálogo ou recomeçar tudo novamente. Esta é a razão pela qual eles são chamados de diálogos aporéticos. 17 Ao longo de seu percurso, entretanto, Platão mudou significativamente esta característica de seu personagem. Sócrates continua questionando e dissolvendo as certezas, mas passa também a fazer afirmações, a defender suas posições enfraquecendo o caráter corrosivo do diálogo. Esta mudança, junto com a mudança de relação com a escrita, conduz a questões filosóficas bastante importantes, pois o ato de afirmar algo filosoficamente exige que esta afirmação se sustente sobre algo sólido, donde a pergunta: onde se sustentam as afirmações socráticas? Como vimos anteriormente, as questões morais são questões vinculadas às relações humanas e estas, por sua natureza, têm problemas para fundamentar. A diferença dos diálogos expressa duas atitudes com relação a esta questão, pois os diálogos de juventude não se ocupam de fundamentar nenhuma moral, ao passo que os diálogos de maturidade defendem uma forma de fundamentá-la. Em ambas, a razão tem papel fundamental. 2.2 O que é a virtude (areté)? Os temas morais preocuparam Platão e aparecem em vários de seus diálogos. Dentre os diálogos de juventude em que o tema aparece, destacam-se Protágoras, Górgias e Mênon, de que trataremos aqui. A maior parte deste diálogo se dá entre Sócrates e Mênon, e o tema é apresentado logo de saída, pois ele se abre com a seguinte fala de Mênon: “Estarias disposto a dizer-me, Sócrates, se a virtude (areté) pode ser ensinada? Ou se pode ser adquirida por exercício? Ou quem sabe se não é ensinável nem adquirível pela prática, mas recebida de nossa própria natureza? Ou, talvez, de outra qualquer maneira?” (PLATÃO, 1978, 70a). 18 Sócrates, evidentemente, aceita a proposta de discussão e, seguindo seu roteiro típico, afirma não saber como a virtude é adquirida porque isto exigiria saber, antes, o que é a virtude, algo que ele ignora. Com isto, o diálogo ganha características bastante próprias de Sócrates, pois encontra um não saber ali onde se supunha saber algo e, ato contínuo, propõe na prática superar esta ignorância por meio do diálogo. Além disto, tem-se que este conhecimento se orienta pela pergunta a respeito do que é determinada coisa – neste caso, a virtude. Mênon responde que é fácil resolver este problema de saber o que é a virtude, pois há várias definições de virtude, de acordo com os gêneros e as idades. A virtude de um homem adulto, por exemplo, é dirigir bem a cidade, fazer mal aos inimigos, bem aos amigos e evitar o mal para si mesmo. Virtude de uma mulher é administrar bem a casa, cuidar da família e obedecer ao marido. Com a ironia que lhe é característica, Sócrates se diz muito feliz com a resposta, pois ele havia chegado ao diálogo sem saber o que é a virtude e agora, poucos minutos depois, tem nas mãos um enxame de virtudes! A resposta não satisfaz Sócrates porque ele está interessado em uma definição capaz de abarcar todos estes casos. Mênon, diante desta nova formulação, afirma que a virtude é a capacidade de governar os homens, ao que Sócrates retruca que, com isto, a distinção entre governos virtuosos e não virtuosos deixa de existir, pois, segundo esta definição, todo governo é virtuoso apenas por ser governo. Além do mais, a ideia de virtude feminina desaparece, pois apenas homens governam. Avançando à sua maneira na direção de saber o que é a virtude, Sócrates pergunta a Mênon se, para administrar bem a cidade, é preciso ser sábio e justo; diante da resposta afirmativa de Mênon, Sócrates conclui que justiça e sabedoria são, portanto, virtudes, mas ainda não é a virtude, uma vez que ambas são necessárias ao governo, mas são distintas entre si. 19 Dissolvida esta resposta, Sócrates insiste: o que há de comum entre todos os casos listados por Mênon? Até o fim do diálogo, mesmo passando por outras várias definições, esta questão não é respondida e terminamos a leitura sem saber, de uma vez por todas, o que é a virtude. Este fim é tipicamente socrático — mas não exatamente platônico, como veremos — e faz de Mênon um diálogo aporético. É verdade que, a respeito de outros temas, como o conhecimento, Mênon traz já algumas afirmações muito mais platônicasque socráticas, mas, no que se refere à moral, o diálogo termina sem uma definição a respeito do que é a virtude. 2.3 A virtude é natural? A pergunta de Mênon a respeito da origem da virtude levanta uma questão essencialmente moral, mas com importância política decisiva. Em primeiro lugar pelo termo usado, “virtude”, que é a tradução tradicional para o termo “areté”, que significava, para os gregos, uma série de qualidades de várias ordens. Méritos físicos como beleza e força, intelectuais como sabedoria, e psíquicos, como a coragem, compunham o significado deste termo. Para os gregos, portanto, ser virtuoso não equivale exatamente a ser correto, justo, digno ou caridoso, como para nós, modernos, mas a uma série de méritos e qualidades físicas e intelectuais. Talvez a melhor maneira de compreender este termo é lembrando que “areté” dá origem a áristos, que significa “o melhor”, “o mais nobre”, “o excelente”, e de onde deriva o termo e a ideia de “aristocracia”, que significa o governo dos melhores, dos mais nobres, dos excelentes. Além do termo, o vínculo entre a pergunta de Mênon e a política está também na traumática experiência histórica da democracia. Embora seja hoje celebrada e tenha deixado uma rica herança para o pensamento político, a experiência democrática ateniense não terminou bem. O regime democrático sempre sofreu pressão dos adversários – aristocráticos, em geral –, mas seu fim com uma tirania cruel foi visto como resultante de suas próprias fragilidades, o que inclui a ação dos sofistas e de seus discípulos que se mostraram capazes de conduzir, de acordo com seus interesses, um grande número de cidadãos nas mais variadas direções, abalando a ordem democrática e abrindo espaço para seu próprio domínio. 20 Os sofistas, lembremos, apareceram como professores de virtudes, o que torna a pergunta a respeito da origem da virtude especialmente importante politicamente, pois, diante dos abusos de seus discípulos na condução da cidade, a questão a respeito do bom governante se tornou urgente. Em termos mais políticos, a pergunta de Mênon pode ser reescrita assim: o governo deve ser dos virtuosos, mas a virtude que capacita pessoas ao governo é ensinada (como afirmam os sofistas), ou nasce naturalmente com eles (como acontece com os aristocratas)? Como vimos, Mênon é um diálogo aporético, termina sem resposta para esta questão – embora não seja aporético quanto à questão do conhecimento, portanto nenhuma destas duas posições é defendida no diálogo. No entanto, podemos supor que, por qualquer argumentação, alguém aceita a resposta naturalista, ou seja, a de que a virtude é natural e nasce com quem é virtuoso. Ao aceitar tal resposta, aceitamos também que os critérios para a escolha dos governantes são aqueles normalmente usados por governos de tipo aristocrático, ou seja, laços familiares e pertencimento a certos grupos, ou características individuais, mas não propriamente transmissíveis, como uma inteligência superior, beleza ou carisma. Os hábitos dos virtuosos, ou seja, dos aristoi, são tomados como padrão do bem e do mal porque compõem a excelência que dá aos aristocratas a posição que têm, porque são assim dados pela natureza. Consequentemente, este padrão não pode servir de modelo porque ele não é passível de ser transmitido, uma vez que vem da natureza, não de ensinamento. Não é possível, por exemplo, ensinar carisma, inteligência ou, no caso da Grécia, a força das espadas a quem não tem espadas. Trata-se de uma posição com características conservadoras, pois o já estabelecido será tomado por virtuoso e, com isto, manterá sua legitimidade. 21 Esta posição tem ainda consequências consideráveis para o sistema de punições, pois, se o caráter virtuoso das ações depende da natureza, é difícil encontrar justificativas para punir ou deixar de punir as ações realizadas por determinadas pessoas. Pode-se punir alguém por não ser carismático, inteligente, bonito ou veloz? Inversamente, não há nenhuma punição para opressão feita pelos naturalmente mais carismáticos, bonitos ou velozes? 2.4 A virtude pode ser ensinada? Como vimos, a questão de Mênon oferece duas possibilidades para a origem da virtude. Ela é natural ou pode ser ensinada? O diálogo é aporético e não nos permite concluir uma posição de Platão, mas podemos supor que alguém aceite que a virtude é algo que pode ser ensinado. Neste caso, a atribuição de virtude à determinada ação, pessoa ou governante, não recorre a uma physis, mas permanece inteiramente no nomos, que está dentro do alcance humano. Ora, se a virtude for algo passível de ser ensinado e ela tem importância decisiva para os assuntos da cidade, uma decisão que as cidades naturalmente tomariam seria a de montar escolas de virtude, em que os cidadãos aprenderiam o que é o bem, o que é o mal e, espera-se, praticariam o bem ensinado conduzindo toda a comunidade a uma ordem boa e harmoniosa. Houve — e ainda há! — muitos esforços nesta direção, na direção de ensinar moral aos cidadãos na esperança de que, a partir destes ensinamentos, aconteça um melhoramento na sociedade como um todo. No entanto, a própria dificuldade de fundar a moral em algo sólido e definitivo atrapalha a realização deste tipo de projeto, pois é preciso, de antemão, definir qual moral será ensinada. Uma saída comum é associar este ensino a alguma religião, mas a simples existência de pessoas que professam outras religiões ou religião nenhuma já evidencia a fragilidade e a arbitrariedade do fundamento de tal ensino moral/religioso. 22 Um indício de que não basta conhecer o bem para agir bem é a necessidade de, ao lado dos ensinamentos morais, surgirem também descrições de castigos para quem não se comportar da maneira prevista pelos ensinamentos. Se conhecer o bem fosse suficiente, não seria necessário prever castigos para quem dele se desviasse. Assim, surge a questão: devem-se ensinar os fundamentos de (determinada) moral e/ou apresentar os castigos para os desviantes? Apresentar os castigos é o mesmo que ensinar virtude? Outro ponto ainda é a pluralidade de ensinos morais possíveis, exemplificada pelos sofistas em Atenas. Se as relações humanas variam e podem ser ensinadas, é possível ter muitos cidadãos que conhecem morais distintas convivendo em uma mesma cidade. A democracia é um regime especialmente capaz de acolher estas diferenças, mas elas constituem justamente a fragilidade essencial da democracia, que se esgarça à medida que estas diferenças se acentuam. Ainda o problema das punições aparece aqui, pois, se há várias morais possíveis, como punir atos que, segundo uma moral, são bons e, segundo outra, maus? Qual será o código moral último a ser usado como referência para punir ou deixar de punir determinado ato? 2.5 Onde fundamentar a moral? O fato de Mênon terminar de forma aporética não mostra apenas algumas características do pensamento de Sócrates, mas mostra também a dificuldade de fundamentar de modo decisivo a moral. Seja considerando-a como natural, seja considerando-a como ensinável, seu fundamento último permanece fora do alcance de uma justificação racional, sólida e suficiente. Saber disto é útil porque coloca em suspeição as certezas morais cotidianas, normalmente irrefletidas e frequentemente contraditórias entre si. Saber da fragilidade de nossas opiniões é uma vantagem considerável, mas não resolve o problema de saber onde fundamentar a moral. 23 Uma das saídas mais comuns para tal problema é fundamentar a moral em algum preceito religioso, ou seja, submeter-se a uma autoridade divina. No caso das religiões gregas, isto continua não resolvendo completamente o problema porque os deuses são múltiplos e variam significativamente suas influências sobre os humanos – é possível realizar uma ação hoje e a opostaamanhã sob influência de um mesmo deus. No caso das religiões monoteístas, esta opção funciona melhor, mas ainda assim apresenta problemas porque os dogmas não cobrem a totalidade das ações humanas e devem, portanto, ser interpretados, o que conduz a uma variedade de regras morais, por vezes contraditórias. A história também costuma ser evocada como fundamento da moral. É comum o esforço de justificar certa ordem social que aparece como injusta para alguns a partir de argumentos como “sempre foi assim”, “se a ordem é esta, é porque os melhores venceram no passado”. Frequentemente esta perspectiva mistura história e natureza afirmando que é natural que determinada ordem esteja estabelecida porque ela resulta de alguma superioridade inata que se expressa em superioridade histórica. A filosofia se ocupa disto desde seu surgimento oferecendo respostas distintas a cada caso. No entanto, Platão oferece outra resposta, completamente distinta desta não resposta que temos no Mênon; esta diferença é uma das marcas da evolução do pensamento de Platão e de seu consequente afastamento com relação a seu mestre, pois Platão encontra um fundamento e o apresenta de forma clara. Sua fundamentação não é universalmente aceita, uma vez que, Aristóteles, seu discípulo, discorda fundamentalmente dele. Mas a ideia de que a razão pode oferecer um fundamento moral é inovadora e se deve a Platão. Vejamos com calma, em um longo e célebre diálogo posterior, chamado A república, como Platão sai da aporia encontrada no Mênon. 24 REFERÊNCIAS AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Abril, 1982. (Coleção Pensadores). AQUINO, T. Suma Teológica (vol. II). São Paulo: Loyola, 2005. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Coleção Pensadores). CHAUI, M. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles, volume 1. 2. ed., revista e ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. ______. Espinosa: uma filosofia da liberdade. São Paulo: Moderna, 1996. ESPINOSA, B. Ética. São Paulo: EDUSP, 2015. PLATÃO. Diálogos: Fedro, Mênon, Banquete. Rio de Janeiro: Ediouro, 1978. ______. A república. Tradução: Anna Lia Amaral de Almeida Prado; revisão técnica e introdução: Roberto Bolzani Filho. São Paulo: Martins Fontes, 2006. (Coleção Paideia). ______. Mênon. Texto estabelecido e anotado por John Burnet; tradução de Maura Iglésias. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; Loyola, 2001. REALE, G; ANTISERI, D. História da filosofia: filosofia pagã antiga (vol. 1, 2 e 3). São Paulo: Paulus, 2003. VASQUEZ, A. S. Ética. 21. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. VERNANT, J-P. As origens do pensamento grego. São Paulo: Difel, 2002. 25 3 PLATÃO: A JUSTIÇA COMO VISÃO DO BEM 3.1 A república e os diálogos platônicos Como indicamos anteriormente, há diferenças entre os diálogos escritos por Platão na juventude e os escritos no período de maturidade. Os especialistas discutem e divergem sobre o local exato de um ou de outro diálogo nesta cronologia, que é composta também por um período intermediário, em que Platão já se distancia das posições anteriores, mas ainda não formulou todas as posições que marcarão sua filosofia madura. Parece haver um consenso entre os especialistas segundo o qual A república é um texto deste período intermediário, mas com mais características do período maduro do que do de juventude. O principal critério para esta afirmação é a doutrina apresentada no diálogo, composta de ideias muito mais afirmativas do que as que Sócrates jamais teria defendido. A república é um diálogo muito mais extenso que todos os demais de Platão – à exceção de As leis, que tem mais ou menos a mesma extensão – o que faz com que ele passe por um número especialmente grande de temas e problemas. Muitas das ideias, formulações, mitos ou alegorias mais conhecidas da obra de Platão estão neste extenso diálogo que versa sobre política, ética, metafísica, artes, psicologia, conhecimento, vida após a morte e outros tantos temas que encontram em A república formulações fundamentais. A filosofia moral aparece em vários momentos, mas principalmente no conhecido mito de Giges e na conhecidíssima alegoria da caverna. Vamos ver em detalhes os significados destas passagens, mas é importante mantermos em mente, desde o início, que a postura geral de Platão mudou. 26 O problema do fundamento da moral se mantém, mas agora Platão não conduz mais o diálogo para paradoxos e não o interrompe em uma aporia insolúvel. Ao contrário, Platão encaminha a discussão para certas conclusões revelando posturas filosóficas mais afirmativas e não apenas negativas, como era o caso em seus diálogos anteriores e, presumivelmente, o do próprio Sócrates, quando caminhava pelas ruas de Atenas. Sócrates permanece como personagem principal e muito de sua velha estratégia permanece aqui. Ele inicia diálogos com concidadãos a partir de temas comuns e em busca da resposta para a pergunta “O que é…?”, no caso de A república, a pergunta é pela justiça. Sua ironia e sagacidade também permanecem na obra madura de Platão. No entanto, o leitor de A república percebe que Sócrates faz várias intervenções extensas, quase discursos e, nelas, introduz algo de normativo na argumentação. Isto não significa que os cuidados com a arbitrariedade tenham sido abandonados. Ao contrário, muito do esforço filosófico encontrado aqui é o de encontrar um fundamento que não seja arbitrário, mas que permita a afirmação de doutrinas e padrões de julgamento, não apenas a negação do que é afirmado pelo interlocutor. No que se refere à filosofia moral, veremos que este caráter afirmativo se sustenta em certa primazia da razão e em certa concepção de como é a alma humana e como ela deve estar organizada. 3.2 O anel de Giges A república é um diálogo a partir da pergunta: “o que é a justiça?”, o que também pode ser traduzido como “o que é a conduta correta?”. Ao longo de seus extensos desdobramentos, várias definições de justiça aparecem e são discutidas por Sócrates e seus interlocutores. Polemarco, expressando um pensamento típico de comerciantes, que pensam a justiça a partir de pagamentos de dívidas, afirma que a justiça é dar a cada um aquilo que lhe é devido. Trasímaco, que surge no diálogo de modo violento e intempestivo, afirma que a justiça é o poder do mais forte, pois o mais forte é quem domina e determina o que é a justiça. Gláucon, por sua vez, afirma que os seres humanos só praticam justiça por medo das punições infligidas sobre os injustos. 27 Veremos cada uma destas definições longamente em outro momento, mas destaquemos aqui a resposta de Glauco porque dela surge um momento especialmente importante para a filosofia moral, pois, a fim de defender seu argumento, ele narra neste momento o mito de Giges, que era conhecido na cultura grega e que aqui volta para dar ocasião a certa defesa do que é a moral e a conduta correta. A permissão de que falo seria mais ou menos a que teriam se tivessem o poder que, segundo dizem, teve um dia Giges, antepassado do lídio. Ele era um pastor que servia o então governante da Lídia. Tendo havido grande chuva e terremoto, o solo rachou e formou-se uma grande fenda no local onde Giges pastoreava. Espantado com o espetáculo, desceu e viu, além de outras coisas espantosas que o mito menciona, um cavalo de bronze que era oco e tinha pequenas portas. Espiando através delas, viu lá dentro um cadáver cujo tamanho, ao que parecia, era maior que o de um ser humano e estava nu, mas tinha na mão um anel de ouro. Ele pegou o anel e foi embora. Quando houve a assembleia habitual dos pastores para que dessem ao rei as notícias relativas ao rebanho, para lá foi ele com seu anel. Então, quando estava sentado junto com os outros, aconteceu que ele fez o engaste do anel girar, passando-odo lado de fora para a palma de sua mão. Feito isso, Giges ficou invisível para os que estavam ao seu lado e dele falavam como se não estivesse mais lá. Ficou espantado e, de novo, tocando o anel, girou o engaste para o lado de fora e, depois de girá-lo, tornou-se visível. Notando isso, tentou ver se era o anel que tinha esse poder, e o que lhe aconteceu foi que, se ele girava o engaste para a palma da mão, ficava invisível, se para o lado de fora, visível. Tendo percebido isso, imediatamente tratou de ser um dos mensageiros que iriam até o rei. Lá chegando, seduziu a mulher do rei e junto com ela atacou-o e, depois de matá-lo, assumiu o governo. Se, portanto, houvesse dois anéis como esse e um deles o homem justo colocasse em seu dedo, e o outro o injusto, não haveria ninguém tão pertinaz que perseverasse na justiça e tão resistente que se mantivesse longe dos bens alheios e neles não tocasse, estando livre para, sem nada temer, tomar o que quisesse no mercado, entrar nas casas e aí conviver com quem quisesse, matar e livrar dos grilhões quem quisesse e fazer tudo o mais, já que, entre os homens, seria igual a um deus. Agindo assim, nada faria de diferente do outro, mas, ao contrário, ambos percorreriam o mesmo caminho (PLATÃO, 2006, 359c-360c, p. 50-1). O mito coloca, fundamentalmente, a seguinte questão: os seres humanos agem moralmente porque têm virtudes na alma ou apenas por medo de sofrerem as consequências de seus atos? Se tiverem certeza da impunidade, praticarão atos injustos, ou seja, terão uma conduta incorreta? 28 O mito constitui um argumento para respondermos “sim” a estas perguntas, ou seja, afirmarmos que as ações justas só são praticadas por medo da punição. Assim, ele afirma que a justiça não é uma qualidade individual, mas se vincula essencialmente ao sistema de fiscalização e punição em que estamos inseridos. Se a posse de um anel mágico permite burlar o olhar alheio, garante a impunidade, permite fazer o que é mais vantajoso para si e, como afirma Gláucon, coloca tanto o justo quanto o injusto no mesmo caminho, então a justiça se deve muito mais a um sistema de vigilância e punições do que a qualquer inclinação da alma humana; ou seja, ela é mais política e social do que individual. Desta perspectiva, quando falamos em pessoa justa, não estamos falando em alguém que detenha tal ou tal virtude, mas de alguém que se comporta dentro das regras e dentro das leis. Virtudes individuais são aqui pouco importantes, pois a pessoa justa ou injusta vai agir da mesma maneira se estiver em uma situação em que poderá buscar injustamente uma vantagem para si com a certeza da punição. Em outras palavras, há aqui um pessimismo antropológico, pois se considera que os humanos, invariavelmente, agem injustamente se uma situação favorável à injustiça se apresenta. 3.3 A alegoria da caverna Outro momento fundamental de A república para a filosofia moral é a conhecida alegoria da caverna. Talvez seja mais correto afirmar, em sentido inverso, que essa alegoria é um momento especialmente importante para a filosofia ocidental, pois dela surgem consequências filosóficas em vários âmbitos, como política, conhecimento, psicologia, educação, estética, moral e outros mais. A alegoria surge no livro VII (passagens 514a-517d) em meio a uma discussão sobre o conhecimento. Sócrates convida Glauco a imaginar uma situação um tanto estranha: 29 Imagina homens que estão numa morada subterrânea, semelhante a uma furna, cujo acesso se faz por uma abertura que abrange toda a extensão da caverna que está voltada para a luz. Lá estão eles, desde a infância, com grilhões nas pernas e no pescoço de modo que fiquem imóveis onde estão e só voltem o olhar para frente, já que os grilhões os impedem de virar a cabeça. De longe lhes chega a luz de uma fogueira que arde num local mais alto, atrás deles, e, entre a fogueira e os prisioneiros, há um caminho em aclive ao longo do qual se ergue um pequeno muro semelhante ao tabique que os mágicos põem entre eles e os espectadores quando lhes apresentam suas habilidades. – Estou imaginando... disse. – Pois bem! Imagina homens passando ao longo desse pequeno muro e levando toda espécie de objetos que ultrapassam a altura do muro e também estátuas de homens e de outros animais, feitas de pedra e de madeira, trabalhadas das mais diversas maneiras. Alguns dos que os carregam, como é natural, vão falando, e outros seguem em silêncio. – Estranho é o quadro que descreves, disse, e estranhos também os prisioneiros... (PLATÃO, 2006, 514a-515a, p. 267-8) Com a descrição deste “estranho quadro”, Sócrates inicia a célebre alegoria da situação dos humanos no que se refere ao conhecimento das coisas reais na vida cotidiana. Nós somos todos como esses prisioneiros que só conseguem olhar para o fundo da caverna, que nunca viram nada além das sombras projetadas por objetos reais interpostos entre a luz do fogo e o fundo da caverna. O conhecimento a que os humanos têm acesso normalmente vem da visão destas sombras e, consequentemente, são falsas e ilusórias. Em um passo seguinte, Sócrates convida Gláucon a imaginar que um destes prisioneiros fosse liberto e pudesse sair da posição restrita em que se encontrava inicialmente. Sua primeira reação seria colocar-se de pé e olhar para trás, onde veria os objetos que geravam as sombras no fundo da caverna. Neste momento, entretanto, teria sua vista bastante ofuscada pelo brilho da luz do fogo e teria que esperar até que seus olhos se habituassem à luz. Em um momento seguinte, este prisioneiro veria que está dentro de uma caverna e, imagina Sócrates, se fosse arrastado pelo caminho em aclive para fora da caverna, onde o fulgor é ainda mais intenso, o ex-prisioneiro precisaria ainda de outra adaptação da visão. 30 – Seria preciso, creio, que se habituasse, se pretendesse ver o que estivesse no alto. Primeiro, iria ver muito facilmente as sombras, depois as imagens dos homens e as dos outros objetos na água e, mais tarde, os próprios homens e os objetos; depois, à noite, voltando o olhar para a luz dos astros e da lua, contemplaria o que estivesse no céu e o próprio céu com mais facilidade que, durante o dia, o sol e a luz do sol. – Como poderia deixar de ser assim? – Em último lugar viria, creio, o sol, não os reflexos dele na água ou em outra superfície, e ele seria capaz de ver e contemplar o próprio sol, no lugar que é o dele, tal qual ele é. (PLATÃO, 2006, 516a-516b, p. 269) Este processo que vai da visão das sombras à visão da luz, que vai da prisão à liberdade um tanto forçada, da comodidade da visão no interior da caverna à dificuldade de adaptar a visão à luz do sol é uma alegoria para todo o processo filosófico e para toda a estruturação ontológica do que existe. Os prisioneiros são a alegoria de todos nós em nossas vidas cotidianas, mergulhadas em ilusões, preconceitos e limitações; o prisioneiro que se liberta e, à força, tem que adaptar sua visão à situação de luminosidade progressivamente maior é a alegoria para o filósofo. O processo de sair do senso comum em direção à visão da verdade é duro, mas recompensa com a visão das próprias coisas, diante das quais as sombras que antes pareciam ser a verdade se revelam como o erro, a ilusão. A luz do sol é condição para que as coisas reais possam ser vistas, pois, sem elas, há apenas sombras e engano, como os reflexos no fundo da caverna, e é sob a analogia da luz que Platão apresenta a diferença entre o sensível e o inteligível, ou seja, entre o que podemos ver com os olhos do corpo e o que só podemos ver com os olhos da mente. Platão estabelece uma hierarquia inequívoca entre estes dois âmbitos: o inteligível é ontologicamente superior ao sensível, o que só é possível ao considerar que a luz plena do sol fora da caverna é uma alegoria para o Bem. Conhecer a verdadeé algo bom; uma das condições para este conhecimento é ver as coisas; a luz do sol permite ver as coisas reais, portanto ela é o Bem. 31 A alegoria da caverna, como dissemos, tem impacto gigantesco na filosofia, pois ela mostra que o fundamento, para vários âmbitos a que a filosofia se dedica, dentre os quais está a moral, deve ser procurado no plano inteligível. Ao afirmar que a própria luz que permite ver o inteligível é o Bem, Platão vincula a própria atividade filosófica ao fundamento da moral. 3.4 A natureza humana A alegoria da caverna marca o estabelecimento de uma superioridade do inteligível sobre o sensível. Como a verdade está fora da caverna, quem quiser encontrá-la deve ir até lá e vê-la com seus próprios olhos. Mas esta saída não é simples, nem exatamente prazerosa, pois exige o esforço de adaptar sua visão à nova situação de luz, o que causa dor e desconforto. Este processo de adaptação da visão alegoriza a paideia, ou seja, a formação do filósofo, o aprendizado necessário para superar o senso comum e chegar à verdade. Platão não hesita aqui em afirmar que o fundamento de todas as coisas está no plano inteligível. Como dissemos acima, a alegoria da caverna tem consequências em inúmeros campos da filosofia. No campo da filosofia moral, notamos, já aqui, uma diferença importante com relação ao fundamento da moral. Se, de acordo com o mito de Giges, o que impele os humanos à conduta justa é o medo do castigo, ou seja, o controle externo, com a afirmação da superioridade do inteligível sobre o sensível, o fundamento da moral se desloca para o indivíduo que decide romper com os grilhões e ver a verdade fora da caverna. Desta perspectiva, a decisão a respeito do que é ou não justo não está mais vinculada aos olhares e à impunidade, mas à distância com relação ao Bem. Quanto mais próxima da luz plena do sol, ou seja, do conhecimento, mais próximo se está de uma ação justa. 32 Para localizar o fundamento da moral na pessoa disposta ao esforço de sair da caverna, faz-se necessário considerar que a alma não é una, mas é composta de partes diferentes. Isto porque há um conflito interno entre a vontade de permanecer no conforto da ignorância, em que talvez os interesses mais imediatos estejam satisfeitos, e a vontade de ver a verdade, de lutar contra o conforto, talvez contra seus interesses, e sair da caverna. Na realidade, a divisão da alma em partes é perceptível até mesmo em experiências bastante comuns, como quando temos raiva de nós mesmos, quando nos arrependemos de algo feito por impulso. Para explicar estes fenômenos e também abrir caminho para suas concepções morais, Platão desenvolve uma concepção da alma em três partes distintas, localizadas em diferentes partes do corpo e com diferentes funções. A filósofa Marilena Chaui resume assim a tripartição platônica: • a parte ou função apetitiva ou concupiscente, situada “entre o diafragma e o umbigo”, ou no baixo-ventre, busca comida, bebida, sexo, prazeres, isto é, tudo o que é necessário para a conservação do corpo e para a geração de outros corpos. Essa parte é irracional e mortal, terminando com a morte do corpo; • a parte ou função colérica ou irascível, situada “acima do diafragma na cavidade do peito”, se irrita ou se enraivece contra tudo quanto possa ameaçar a segurança do corpo e tudo quanto lhe cause dor e sofrimento, incitando a combater os perigos contra a vida. Protetora do corpo, essa parte também é mortal e irracional; • a parte ou função racional, situada na cabeça (face e cérebro), é a faculdade do conhecimento. Parte espiritual e imortal é a função ativa e superior da alma, o princípio divino em nós (CHAUI, 2002, p. 293-4). Como vimos acima, Platão hierarquiza o inteligível e o sensível ao conceber o sensível como o fundo da caverna e o inteligível como o céu aberto à luz do sol. Das três partes da alma, a terceira é a que dá acesso a estas luzes e, portanto, ela também goza de superioridade sobre as demais partes da alma. Ou seja, Platão não apenas divide a alma em três, mas ele também organiza essas três partes em consonância com a hierarquização entre o sensível e o inteligível que perpassa seu pensamento. A parte racional da alma é aquela capaz de conhecer, mas é também aquela que deve dominar as outras duas harmonizando-as aos desígnios da razão. 33 3.5 A justiça como a visão do bem Agora que conhecemos o mito de Giges, a alegoria da caverna e a tripartição da alma, podemos ver com clareza que a filosofia moral de Platão em A república é bastante distinta daquela que vimos no Mênon. Diferentemente da aporia que encerra o Mênon e que indica, pela negação, o problema do fundamento da moral, temos aqui uma afirmação clara a respeito: ser justo é submeter as partes inferiores da alma à parte superior, ou seja, à razão. Isto significa que há um aspecto individual da ética, um aspecto que não depende das ameaças de punições oferecidas pela sociedade ao redor. Isto não quer dizer que a superioridade da razão não tenha importância para a constituição da cidade como um todo – muito pelo contrário, a cidade ideal defendida em A república é precisamente aquela em que o princípio racional governa – quer dizer que nem toda ação justa se baseia no medo da punição, pois a razão determina a boa conduta independentemente da punição possível. A superioridade do inteligível sobre o sensível não pretende anular ou aniquilar o sensível em benefício do inteligível. Trata-se de submeter o sensível ao inteligível fazendo com que aquele se harmonize com os desígnios deste, ou seja, fazendo quem que sua existência seja direcionada pela razão. Os diferentes apetites, a busca por prazeres, a raiva e os demais impulsos oriundos das partes inferiores da alma jamais serão inteiramente suprimidos em benefício da razão, mas eles podem ser moldados. O domínio da razão sobre a concupiscência é uma virtude e seu nome é temperança (sophrosýne) – a moderação. A alma temperante ou moderada é aquela que não cede a todos os impulsos e prazeres, e sim modera seus apetites, impondo-lhes a medida oferecida pela razão. (…) Sob o domínio da razão, a parte irascível saberá discernir o que é bom e o que é mau para a vida de seu corpo, não só deixará de lançar-se indiscriminadamente a todo e qualquer combate que imagine importante para a vida corporal (saberá quando e porque um combate deve ser travado e quando deve ser evitado), como ainda guiará a função apetitiva ou concupiscente na escolha do que é bom para a vida, impedindo-a de entregar-se a prazeres que a destruirão. A virtude própria da alma colérica guiada pela razão é a honra ou coragem (thymós) ou a prudência (phrónesis) (CHAUI, 2002, p. 295). 34 Uma pessoa que mantém a superioridade da razão e do inteligível sobre as demais partes da alma e sobre o sensível leva uma vida temperada, moderada, honrada, corajosa e prudente, ou seja, leva uma vida virtuosa e justa. Do ponto de vista da moral, a pergunta que anima o diálogo – o que é a justiça? – recebe a seguinte resposta: justiça é manter as partes inferiores da alma sob o domínio da razão, pois, desta configuração, decorre a boa conduta em qualquer situação. A capacidade de conduzir as partes inferiores da alma à boa conduta se deve ao fato de a razão permitir ver o Bem, alegorizado pela luz do sol sob o céu aberto. A reação da alma às diferentes situações da vida será sempre boa se conduzida pela visão do Bem, possibilitada apenas pela razão. Uma consequência importante desta resposta está no valor atribuído à busca desta visão do Bem, uma busca que, como vimos, se confunde com a busca pelo conhecimento. Sair da caverna em direção ao conhecimento é um esforço para ver o Bem e, deste esforço, decorre não apenas o conhecimento, mas também a boa conduta. Ora, como vimos na alegoria dacaverna, o doloroso processo de sair do fundo da caverna em direção ao lado de fora é o que distingue as pessoas normais e o filósofo. Ou seja, o movimento em direção ao Bem, à luz, ao conhecimento e à justiça é um só e, neste movimento, tornamo-nos filósofos, do que decorre que, agir justamente é o mesmo que transformar-se em filósofo. 35 REFERÊNCIAS AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Abril, 1982. (Coleção Pensadores). AQUINO, T. Suma Teológica (vol. II). São Paulo: Loyola, 2005. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Coleção Pensadores). CHAUI, M. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles, volume 1. 2. ed., revista e ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. ______. Espinosa: uma filosofia da liberdade. São Paulo: Moderna, 1996. ESPINOSA, B. Ética. São Paulo: EDUSP, 2015. PLATÃO. Diálogos: Fedro, Mênon, Banquete. Rio de Janeiro: Ediouro, 1978. ______. A república. Tradução: Anna Lia Amaral de Almeida Prado; revisão técnica e introdução: Roberto Bolzani Filho. São Paulo: Martins Fontes, 2006. (Coleção Paideia). ______. Mênon. Texto estabelecido e anotado por John Burnet; tradução de Maura Iglésias. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; Loyola, 2001. REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: filosofia pagã antiga (vol. 1, 2 e 3). São Paulo: Paulus, 2003. VASQUEZ, A. S. Ética. 21. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. VERNANT, J-P. As origens do pensamento grego. São Paulo: Difel, 2002. 36 4 ARISTÓTELES: A ÉTICA DA VIRTUDE E DA FELICIDADE 4.1 Ética a Nicômaco Uma das imagens mais conhecidas da história da arte é “Escola de Atenas”, um afresco feito por Rafael, grande artista do Renascimento. O afresco apresenta a imagem de uma Atenas gloriosa, com arquitetura grandiosa e inúmeros homens ilustres debatendo os mais variados temas. Fonte: http://www.historiadasartes.com/sala-dos-professores/a-escola-de-atenas-rafael-sanzio/ Figura 4.1 – Escola de Atenas. Pintura do renascentista italiano Rafael que representa a Academia de Atenas, pintada entre 1509 e 1511. 37 À direita, no canto inferior, vemos uma demonstração matemática feita por Euclides diante de um grupo de pessoas admiradas. Vemos na imagem também Pitágoras, Plotino, Ptolomeu, Heráclito, Sócrates e vários outros personagens entretidos em conversas, pensamentos, ideias. A identificação destes personagens nem sempre é fácil e desde o século XVI ocupa os especialistas, que divergem consideravelmente a respeito de várias figuras. Há quem diga, por exemplo, que o homem que faz a demonstração não é Euclides, mas Arquimedes; não se sabe ao certo se o homem que furtivamente copia o livro escrito por Pitágoras é Boécio, Anaximandro ou Empédocles. Apesar destas discussões, não há dúvida alguma a respeito de quem são as duas figuras que estão no centro da cena, em destaque; trata-se de Platão e Aristóteles. A identificação de Platão e Aristóteles no centro da cena não é difícil por vários motivos. Em primeiro lugar, porque sua posição de destaque no quadro reflete a notoriedade de que gozaram suas obras ao longo dos séculos. Nenhum outro grego teve o mesmo impacto que estes dois. Além disto, na imagem, eles estão em posição parecida, mas há um detalhe em que uma diferença fundamental aparece: a mão direita de Platão aponta para cima, ao passo que a de Aristóteles está se movendo para baixo. Esta diferença no gesto resume a diferença filosófica fundamental entre os dois colossos filosóficos. Para dissipar qualquer dúvida que ainda possa resistir a estes elementos, Rafael fez questão de colocar na mão esquerda de cada um deles um de seus livros: na de Platão, vemos um exemplar do Timeu; na de Aristóteles, um volume da Ética. Esta imagem resume muito da relação de Platão e Aristóteles com Atenas, pois estão no centro da cena, e da relação entre eles, que é de proximidade e distância, pois estão no mesmo lugar, na mesma posição, mas com gestos que indicam prioridades opostas. Vimos que Platão atribui superioridade ontológica ao céu das ideias, ou seja, ao mundo inteligível ao qual temos acesso apenas pelos olhos do espírito. Aristóteles, como seu gesto no quadro, recusa a teoria platônica das ideias e opta por outro tipo de filosofia, voltada à observação do mundo que temos diante dos olhos. 38 Embora o corpus aristotélico seja imenso e tenha sido avaliado de várias formas ao longo de vários séculos, a Ética a Nicômaco sempre foi considerada uma das principais obras de Aristóteles, diferentemente do Timeu, que Rafael colocou na mão de Platão e cuja centralidade oscilou ao longo dos séculos. A centralidade da Ética a Nicômaco na obra de Aristóteles é rivalizada apenas pela Metafísica, o que descarta a possibilidade de o livro nas mãos de Aristóteles ser a Ética a Eudemo, trabalho menor e sem a mesma presença. Nicômaco era filho de Aristóteles e a Ética a Nicômaco recebe este nome porque foi escrita para ele ou, segundo alguns especialistas, porque foi Nicômaco quem editou a obra depois da morte do pai. A Ética a Nicômaco chegou até nós dividida em 10 livros constituídos por capítulos, mas é muito pouco provável que esta divisão tenha sido estabelecida pelo próprio Aristóteles. Além disto, é importante considerar que a Ética a Nicômaco é composta por anotações para aula e apontamentos feitos por seus alunos no Liceu. Disto decorre diferenças de estilos, partes com explicações mais curtas (provavelmente porque ele explicaria em aulas) e mais longas. De todo modo, a Ética a Nicômaco traz uma formulação filosófica dos problemas morais que é bastante diversa da oferecida por Sócrates e por Platão. O essencial desta diferença está, e veremos ao longo deste bloco, no gesto atribuído por Rafael a Aristóteles, que representa a recusa da teoria das ideias, o que no âmbito da filosofia moral significa que a razão não é fundamento da moral. O fundamento do bem agir não está no céu das formas, mas aqui na terra. 4.2 O saber prático Aristóteles é responsável pela criação da filosofia prática, ou seja, de um saber que confere autonomia filosófica às relações humanas. Esta criação representa uma mudança significativa em relação à maneira pela qual filósofos anteriores pensavam as relações humanas. O sofista Protágoras, por exemplo, em sua atividade por Atenas, pensava a virtude, ou seja, a boa conduta, como uma técnica. Para ele, bem agir equivale à aplicação, nas relações humanas, de um conjunto de saberes determinados e ensináveis. 39 Contra Protágoras, Platão considerou a moral como uma parte da vida contemplativa, ou seja, do esforço para alcançar a visão das ideias por meio da razão; o saber teorético goza de uma superioridade ontológica, do que decorre sua superioridade sobre o saber prático, que se deve à visão das ideias, sobretudo da ideia de Bem. Contra Platão, Aristóteles recusa esta submissão do saber prático ao saber teorético. Em sentido mais geral, Aristóteles recusa a ideia do Bem como una e como algo a que só se tem acesso por uma via. O bem tem uma natureza diferente para cada ser, pois os fins se distinguem conforme o ser a que se vinculam. Consequentemente, o saber adequado a cada um desses fins é também distinto, e é por isto que Aristóteles abre sua Ética a Nicômaco com o seguinte parágrafo. Admite-se, geralmente, que toda arte e toda investigação, assim como toda ação e toda escolha, têm em mira um bem qualquer; e por isso foi dito, com muito acerto, que o bem é aquilo a que todas as coisas tendem. Mas observa- se entre os fins certa diferença: alguns são atividades, outros são produtos distintos das atividades que os produzem (ARISTÓTELES, 1979, 1.094a, p. 49). Vemos aqui o estabelecimento de um critério que distingue os fins das atividades. Todas as coisastendem ao bem, ou seja, o bem é o fim de todas as atividades. Mas há atividades cujo fim é um produto distinto da atividade, como, por exemplo, a atividade de fabricar obras de arte. O fim da atividade de Fídias, o célebre escultor, não é a própria atividade, o próprio esforço em si mesmo, mas o produto que resulta desta atividade, ou seja, o fim desta atividade é distinto da própria atividade. Ao lado destas, há atividades cujos fins estão nelas mesmas, ou melhor, são elas mesmas. Estas atividades são, portanto, seu próprio bem, o que significa que devem ser vistas em si mesmas, sem referências a produtos exteriores a elas, como a cidade ideal buscada por Platão. Com esta distinção, Aristóteles confere autonomia a certo tipo de atividades que ele chama de “prática” (práxis) e a reflexão a respeito destas atividades constitui a filosofia prática, um saber dedicado à ação. 40 Dedicada a um campo de atividades próprio, a filosofia prática é regida por regras próprias e constitui um saber próprio. Estão nela os saberes do campo ético e político, que dão a conhecer o funcionamento destas atividades em si mesmas, sem fins exteriores a elas mesmas. Isto não quer dizer, evidentemente, que a práxis não tem fins, mas apenas que os fins estão nelas mesmas. Quais são eles, então? Qual é o fim da boa conduta, ou seja, da ação moral? 4.3 Virtude e justo meio Ao separar o saber teorético e o saber prático, Aristóteles conferiu dignidade filosófica àquilo que, em Platão, era apenas o reino das aparências, dos erros, das sombras. Aristóteles conferiu dignidade ao que se passa no interior da caverna. Percebe-se, com esta separação que, para Aristóteles, os seres humanos são racionais, mas não apenas isso, pois a alma humana tem também algo que resiste à razão e que faz com que vivam no interior da caverna. Também Platão considerava que o humano é formado pela razão e por partes não racionais da alma, mas, à diferença de seu mestre, Aristóteles não submete o não racional ao racional e, ao contrário, procura pensar o irracional em si mesmo. Para tanto, ele recusa a oposição estrita entre racional e não racional e pensa as conexões possíveis ou a falta de conexão entre racional e não racional. É por isto que, ao final do livro I da Ética a Nicômaco, afirma: Por conseguinte, o elemento irracional também parece ser duplo. Com efeito, o elemento vegetativo não tem nenhuma participação num princípio racional, mas o apetitivo e, em geral, o elemento desiderativo participa dele em certo sentido, na medida em que o escuta e lhe obedece. É nesse sentido que falamos em “atender às razões” do pai e dos amigos, o que é bem diverso de ponderar a razão de uma propriedade matemática (ARISTÓTELES, 1979, 1.102b). Há, portanto, relações entre a razão, o apetitivo e o desiderativo. Esta relação é de obediência à razão, mas não da mesma maneira como se obedece às propriedades matemáticas. De que maneira, então? 41 Segundo Aristóteles, o domínio da razão prática sobre as demais partes da alma é tão variado quanto as próprias tendências e impulsos que ela deve subjugar. O impulso aos atos coléricos, prazeres da mesa, administração do dinheiro e demais atividades vinculadas à parte irracional da alma é muito variado, mas composto de uma característica comum em todos estes casos, a tendência ao excesso ou à falta. As vontades e apetites humanos sempre expressam um movimento que podemos chamar de quantitativo, pois ele sempre tende a uma quantidade grande demais (excesso) ou pequena demais (falta) em suas atividades e é sobre esta “quantidade” que a razão deve incidir a fim de dominar a irracionalidade. Por exemplo, quando alguém se vê em situação de perigo, surge o impulso a um ato colérico em defesa própria. No entanto, se esta reação não for moderada pela razão prática, ela pode se transformar em um ato covarde (pela falta de cólera e de ímpeto) ou em ato temerário (pelo excesso de cólera e ímpeto). Mediada pela razão prática, no entanto, a reação escapará da covardia e da temeridade e, optando pelo caminho entre a falta e o excesso, será uma ação corajosa. A capacidade de reconhecer esta justa medida é a virtude ética, a virtude do comportamento prático. Desta maneira, Aristóteles formula sua teoria do justo meio, ou da justa medida, que orienta sua filosofia moral. O meio termo proposto por Aristóteles não é, em hipótese alguma, um elogio da mediocridade, da indecisão ou da acomodação. Muito pelo contrário, é a expressão da vitória da razão prática sobre os impulsos conflitantes que nos conduzem cegamente para a covardia ou para a temeridade, para a avareza ou para a prodigalidade. À diferença da razão teorética, no entanto, a razão prática não funciona exatamente por cálculos ou por afirmações exatas. Não há, propriamente falando, a possibilidade de recorrer aos números para estabelecer a diferença entre covardia, coragem e temeridade, mas é possível aprender a reconhecer as três nas ações humanas e, a partir disto, desenvolver a virtude ética por meio das próprias ações. Este desenvolvimento não se dá pela adequação dos atos à ideia de Bem vista pelo filósofo fora da caverna, mas precisamente pelo que se aprende dentro da caverna. 42 Diante das várias ações e atividades que constituem as relações humanas, pode-se aprender a reconhecer a virtude e, por meio da repetição das ações virtuosas, ou seja, pela transformação da virtude em hábito, comportar-se virtuosamente. Este ponto alto do desenvolvimento da razão prática se chama, em linguagem aristotélica, prudência (phrónesis) e sua busca é um dever moral. 4.4 Felicidade A teoria da justa medida retira o fundamento da moral do céu das ideias e o coloca no solo das relações humanas. Ela retira também a última palavra da razão teorética colocando-a na razão prática, que é mais adequada para lidar com a variação constitutiva das relações humanas. Mas falta ainda responder a uma pergunta: por que devemos agir moralmente? Por que a coragem é superior à covardia e à temeridade? Por que a virtude é preferível? Em suma: por que a virtude é um bem? A resposta para esta pergunta nos leva a outras partes da filosofia de Aristóteles. Uma das características da filosofia aristotélica é conferir peso especialmente grande para a finalidade das coisas e, como vimos anteriormente, toda ação e toda escolha está voltada a um bem. Acontece que há uma hierarquia entre os bens, pois um bem é mais perfeito quando ele é procurado por si mesmo, quando sua busca não visa um bem posterior. Por exemplo: a honra é um fim procurado por muitas pessoas e, como tal, anima muitas ações e escolhas. No entanto, ela não é um fim em si mesma, de nada serve se não para ser usufruída diante de outras pessoas. O mesmo se passa com a riqueza, que não é boa em si mesma, mas apenas por aquilo que pode proporcionar em termos de poder e consumo. Também a força é um bem que vale pouco em si mesma, guardada em músculos inativos. Tanto a honra, quanto a riqueza e a força são buscadas pelos seres humanos e são, portanto, finalidade de muitas ações e escolhas, mas elas mesmas são meios para outros fins, ou melhor, para um fim geral de todas as atividades humanas, qual seja, a felicidade (eudaimonía). 43 Seguindo a hierarquia aristotélica, a felicidade está entre os bens superiores, pois ela não é buscada por qualquer outra finalidade que não seja ela mesma. Busca-se a honra, a riqueza e a força para ser feliz, mas não se busca a felicidade para outra coisa. Ela é um fim em si e, portanto, superior aos outros gêneros de finalidade. Se, por exemplo, um filósofo afirmar que a honra é o fundamento da felicidade, pode- se perguntar a ele se também a riqueza é parte da felicidade e, se ele responder que sim, isto significa que a honra com riqueza está na base de mais felicidade
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