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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA - UFRR CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS - CCH DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA - DH CÍCERO IRLANDO RODRIGUES CORDEIRO A CRIAÇÃO DO TERRITÓRIO FEDERAL DO RIO BRANCO, DE 1943 A 1964 Boa Vista 2012 CÍCERO IRLANDO RODRIGUES CORDEIRO A CRIAÇÃO DO TERRITÓRIO FEDERAL DO RIO BRANCO, 1943 A 1964 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito final para obtenção do título de graduação em História pela Universidade Federal de Roraima. Orientadora: Professora Doutora Maria das Graças Santos Dias Magalhães Boa Vista 2012 CÍCERO IRLANDO RODRIGUES CORDEIRO A CRIAÇÃO DO TERRITÓRIO FEDERAL DO RIO BRANCO, DE 1943 A 1964 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como pré-requisito para conclusão do curso de graduação em História da Universidade Federal de Roraima, defendido em 09 de junho de 2012 e avaliado pela seguinte banca examinadora: __________________________________________ Profª Dra Maria das Graças Santos Dias Magalhães Orientadora – UFRR ___________________________________________ Profª MSc Márcia D’Acampora Departamento de História – UFRR ______________________________________________ Profº MSc Rodrigo Cardoso Furlan Departamento de Direito - UFR AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a Deus por ter me dado força para conseguir vencer todos os desafios encontrados nesta longa caminhada de formação acadêmica. Agradeço pela inspiração, paciência e sabedoria para desenvolver esta difícil, mas ao mesmo tempo, fascinante tarefa de entender o presente buscando uma explicação no passado, que caracteriza o conhecimento histórico. A cada professor do Departamento de História, principalmente às professoras Maria das Graças e Márcia d’Acampora e a todos os funcionários desta instituição, aos funcionários da Biblioteca e aos rapazes da copiadora, sem citar nomes, pois fazê-lo aqui seria correr um grande risco de ser injusto com todos aqueles que contribuíram direta e indiretamente para a construção deste trabalho. A todos os colegas do curso de História pela convivência amiga, pelas discussões acaloradas nos momentos de lazer, por meio das quais, com certeza, nasceram os alicerces da temática desenvolvida aqui, em especial ao Luiz Almir, Wagner Tenório e Manoel Aires pelo apoio material e intelectual. Aos meus pais, Cicero e Nita, pelo apoio incondicional, que me ensinaram conceitos fundamentais para a formação de minha personalidade, estando eles sempre com um olhar especial diante das minhas conquistas. Não podemos deixar frisar o apoio recebido dos irmãos, Ze Ivan, Ivone, Neide, Ivania, Chico, Edmar e Emanoel, que também deram sua contribuição nessa difícil jornada. Aos meus familiares, principalmente à minha esposa Leimar e aos meus filhos Yana, Luiany, Matheus e Paulo Henrique pela paciência, muitas vezes pela ausência, enfim, pela compreensão do significado dessa conquista que é a conclusão deste curso de História. E, finalmente, não podemos deixar de agradecer também aos senhores Francisco da Chagas Duarte e Júlio Augusto Magalhães Martins, que de forma bastante prestativa abrilhantaram e enriqueceram este trabalho com suas experiências de vida, vivência parlamentar e, acima de tudo, como sujeitos históricos que presenciaram esse momento tão importante na história política e administrativa do estado, que foi a criação do Território Federal do Rio Branco (depois Território Federal de Roraima) RESUMO Este trabalho trata da criação do Território Federal do Rio Branco, em cumprimento à geopolítica nacionalista do Governo Vargas, no sentido de povoar, desenvolver e proteger as fronteiras, especialmente na Região Amazônica, levando em conta as antigas questões limítrofes e a conjuntura causada pela Segunda Guerra Mundial. Trata também de fatores decorrentes da estruturação urbana e administrativa da Capital Boa Vista, assim como das expectativas geradas pela execução das obras de construção, sem esquecer a implantação das colônias agrícolas e a ascensão de novos grupos políticos forjados a partir das relações entre o Poder Central e o local. No intuito de dar voz a alguns sujeitos envolvidos nesse processo, conforme versa a cartilha da História Social, que por sua vez envolve aspectos políticos e culturais, a decisão metodológica de aliar as entrevistas orais em consonância com as fontes escritas propiciou uma visão panorâmica da situação do referido Território no limiar do regime militar, quando então algumas mudanças positivas eram bem visíveis, sendo que, por outro lado, o Território Federal de Roraima (nome mudado em 1962) ainda guardava muitos resquícios das primeiras décadas do século XX. Palavras-chave: Geopolítica, Estado Novo, Território Federal do Rio Branco. ABSTRACT This paper is grounded on the creation of the Federal Territory of Rio Branco, in response to geopolitical Vargas's nationalist government in order to populate, develop and protect the borders, especially in the Amazon region, taking into account a number of longstanding issues remained and caused by the Second World War. It also deals with factors attributed to urban and administrative structure in the capital of Boa Vista, as well as expectations created by the execution of construction works, without forgetting the establishment of agricultural colonies and the rise of new political groups due to relationships forged between the central and local authorities. In order to voice some individuals involved in this process, as the booklet versa Social History, which in turn involve political and cultural aspects, the methodological decision combine with oral interviews in line with written sources provided an overview of situation of the said Territory on the eve of the military regime, whereupon some positive changes were visible on the other hand but the Federal Territory of Roraima (renamed in 1962) still retained many traces of the first decades of the twentieth century. Keywords: Geopolitics, Estado Novo, Federal Territory of Rio Branco. LISTA DE SIGLAS DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda ESG – Escola Superior de Guerra FAB - Força Aérea Brasileira RR – Roraima UERR – Universidade Estadual de Roraima UFRR – Universidade Federal de Roraima LISTA DE FIGURAS FIGURA 1: Mapa do Brasil mostrando a localização dos territórios federais .......... 25 FIGURA 2: Foto aérea de Boa Vista tirada por Hamilton Rice em 1924 ................. 38 FIGURA 3: Plano Urbanístico de Boa Vista ..............................................................43 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 09 1 GEOPOLÍTICA BRASILEIRA E A CRIAÇÃO DOS TERRITÓRIOS FEDERAIS ... 16 1.1 Breve discussão sobre o pensamento geopolítico brasileiro ............................. 18 1.2 Política de criação dos territórios federais na fronteira amazônica ................... 21 2 HISTÓRIA POLÍTICA E ADMINISTRATIVA DO TERRITÓRIO FEDERAL DO RIO BRANCO ................................................................................................................. 26 2.1 Vale de Rio Branco no início da década de 1940 .......................................... 27 2.2 Criação do Território Federal do Rio Branco ...................................................... 31 3 BOA VISTA: PERSPECTIVAS DE DESENVOLVIMENTOAPÓS 1944 ............... 36 3.1 Transformações na estrutura urbanística de Boa Vista ..................................... 40 3.2 Criação de colônias agrícolas: uma política de incentivo à migração ................ 46 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 50 REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 52 9 INTRODUÇÃO O Estado Novo (1937-1945) é considerado no âmbito da historiografia mais tradicionalista como o regime no qual o país passou por transformações substanciais no sentido de superar a antiga tradição herdada ainda dos tempos coloniais de nação agrário exportadora, para dar um importante passo rumo à implantação de um modelo urbano e industrial, tendo por trás a figura carismática do presidente Getúlio Vargas, tido por muitos como o típico “pai dos pobres”, e, para outros, principalmente aqueles espalhados pelos sertões afora, alguém que se assemelhava ao próprio Padre Cícero Romão do Juazeiro do Norte.1 O presente trabalho não buscou enfatizar a importância do Estado Novo para a história política do Brasil, nem tampouco conceder total crédito ao gênio incontestável do presidente Vargas, pois para produzir o conhecimento histórico dessa maneira seria negligenciar a contribuição imprescindível de milhares de sujeitos anônimos que doaram suor, sangue, lágrimas e esperanças na construção de um país onde realmente fizesse sentido a idéia de um “pai” carismático ou de um “santo” protetor. Buscou-se aqui, acima de tudo, perceber o sentido da mudança. Dessa forma, coube ao Poder Central, como agente político da mudança, tendo como suporte ideológico o pensamento de estudiosos como Mário Travassos, Evandro Backheuser e Lysias Rodrigues, entre outros, perpetrar políticas no sentido de integrar, desenvolver e proteger as regiões mais distantes do país. Na opinião do General Carlos de Meira Matos, célebre estudioso da geopolítica nacional, o pensamento desses três grandes geopolíticos, com ênfase no estudo sobre política e fronteiras, largamente difundido em artigos de jornais e revistas, teve grande influência na criação dos territórios federais. Nessa perspectiva, entende-se que a construção de um trabalho que busque analisar a política de criação dos territórios federais, o Território Federal do Rio Branco em especial, não deve ser desconectada de um contexto mais amplo. Dessa forma, os territórios federais do Rio Branco (Roraima), do Amapá, Guaporé 1 Nascido no Crato, em 1844, o futuro Padre Cícero teria desde cedo demonstrado a vocação mística e o apego às “revelações” que acreditava receber em sonho. Com o prestígio crescente entre os seguidores e afilhados, o padre tornou-se uma figura decisiva no quadro político do Ceará, do vale do Cariri e de todo o Nordeste brasileiro durante a Primeira República. Além do mais, o Padre Cícero exercia a função de verdadeiro patriarca à frente de uma “cidade santa”, Juazeiro do Norte, que abrigava doentes, oprimidos famintos, criminosos e pecadores (HERMANN, 2003:129-137). 10 (Rondônia), de Ponta Porã e do Iguaçu foram pensados levando-se em consideração os seguintes aspectos: a conjuntura causada pela Segunda Guerra Mundial, a existência de fronteiras contíguas, a possessões de nações beligerantes no front europeu, assim como a memória ainda viva de questões fronteiriças com tais nações. Diante do exposto, a criação do Território Federal do Rio Branco, através do Decreto Lei nº 5.812 de 13 de setembro de 1943 e sua instalação oficial somente em 20 de junho de 1944, com a chegada do governador nomeado, o Capitão Ene Garcez dos Reis (GUERRA, 1957), representou uma grande expectativa frente aos anseios de uma população há muito desejosa de mudanças. A criação desse território trouxe benefícios aos moradores da região, conforme pode ser percebido na fala dos senhores Francisco das Chagas Duarte2 e Júlio Augusto Magalhães Martins,3 os dois entrevistados durante a pesquisa. Vale salientar que a criação do referido Território teve como medida preliminar a elaboração de um Plano Quinquenal, tendo como metas principais a reestruturação da Capital Boa Vista – até então um pequeno povoado – por meio da implantação do Plano Urbanístico, bem como a incrementação do sistema de transportes e o incentivo à colonização dirigida. Tais medidas foram fundamentadas no importante estudo socioeconômico intitulado Plano de Recuperação e Desenvolvimento do Vale do Rio Branco, realizado na gestão do governador Ene Garcez dos Reis e elaborado pelo Técnico em Administração do Governo Federal Araújo Cavalcanti. A situação do Rio Branco na visão de Cavalcanti (1949), assim como na opinião do próprio governador Ene Garcez mostrou-se caótica ou tenebrosa. Assim, não foi difícil perceber que a região necessitava de um projeto de estruturação geral que pudesse “superar o triste estado das coisas”, ou alterar substancialmente o cotidiano de uma população que vivia em condições inacreditáveis de higiene, saúde, educação e transportes. 2 Entrevista realizada por Cícero Irlando Rodrigues Cordeiro, na residência do entrevistado, situada na Rua Melvin Jones 192 Bairro São Pedro, Boa Vista/RR, em 14 de maio de 2012. 3 Entrevista realizada por Cícero Irlando Rodrigues Cordeiro, na residência do entrevistado, situada na Rua Rocha Leal 855 Centro Boa Vista/RR, em 17 de maio de 2012. 11 Contrariando as expectativas de grande parcela da população, a máquina administrativa instalada no novo território, forjada a partir de um complexo jogo político, que foi marcado pelo apadrinhamento de servidores4 e administradores federais, com a conivência dos políticos locais, peças integrantes desse mesmo jogo, insistia em caminhar na contramão do desenvolvimento. Por conta disso, a descontinuidade dos mandatos dos governadores, que se sucediam em curto espaço de tempo, simplesmente obliterava os projetos estruturais tanto da capital como do interior, fazendo com que fossem sendo aos poucos deixados para segundo plano. Segundo esse complexo jogo de poder, encabeçado por altos membros da política nacional, com destaque para os senadores Vitorino Freire, pelo Maranhão e depois pelo ex-governador do Território Félix Valois de Araújo, as legislaturas no Território Federal se sucediam ao sabor dos interesses desses chefes políticos e da disposição dos apadrinhados. O reflexo de tal política era a presença de legisladores totalmente alheios à realidade do Rio Branco. Segundo Magalhães (2008), esta situação prevaleceu até 1964, ano de instalação do regime militar, refletindo diretamente no desenvolvimento das atividades planejadas para Roraima. Convém explicar que o recorte temporal proposto para este trabalho abrange o período que vai da criação do Território Federal, em 1943, até 1964, (Regime Militar), quando então foi inaugurada uma nova conjuntura política, econômica e social para o país, como também, em especial, para a Amazônia. O recorte espacial é o Território Federal do Rio Branco, que traz a seguinte pergunta a ser respondida: Quais razões levaram o Governo Vargas a criar os territórios federais e, dentro desta política, como discutir o processo da criação do Território Federal do Rio Branco? Ao longo da pesquisa, buscou-se primeiramente compreender como se processou a implantação dos novos territórios federais, em cumprimento à geopolítica estadonovista do Governo Vargas. Outra meta perseguida aqui consistiu em analisar as expectativas geradas na população do Território Federal do Rio Branco decorrentes da implantação do Plano Urbanístico de Boa Vista, alémde outras obras estruturais, como a construção de estradas e a criação de projetos de 4 De acordo com Burke, (2002:104), “o apadrinhamento político pode ser definido como um sistema político fundamentado em relacionamentos pessoais entre indivíduos desiguais, entre líderes (ou padrinhos) e seus seguidores (afilhados). Cada parte tem algo a oferecer a outra”. 12 colonização. Procurou-se também apontar as novas relações políticas forjadas no âmbito da administração local, em estrita obediência ao Poder Central. O sentido do termo “relações políticas” utilizado aqui para definir as estratégias de membros da política local no sentido de partilhar das esferas do poder, está de acordo com a concepção de politica utilizada por Rémond (2003: 443-4), segundo o qual afirma que “é a atividade que se relaciona com a conquista, o exercício, a prática do poder”. Levando-se em consideração que este trabalho trata da criação do Território Federal do Rio Branco, um tema alicerçado nas dimensões da Nova História Política, convém explicar que o mesmo foi tratado sob o ponto de vista da História Social, em interface com a História política em razão de toda história ser social. Nesse contexto, segundo Rémond (2003) a politica é uma das mais altas expressões de identidade coletiva, um povo se exprime tanto pela sua maneira de conceder, de praticar de viver a politica quanto por sua literatura. Então, sob essa perspectiva enfatizou-se aqui alguns aspectos pertinentes a este campo do conhecimento histórico que propiciaram maior inteligibilidade ao tema abordado. Lembrando que a ascensão da História Social remonta à França dos anos 1920, quando então havia um movimento encabeçado por Marc Bloch e Lucien Febvre que anunciava um “novo tipo de história”. Desse movimento nasceu a revista dos Annales, que trazia críticas implacáveis aos historiadores tradicionais. Febvre e Bloch eram contrários do predomínio da historia política tradicional, centrada na figura dos grandes homens e refletindo suas ações. Com isso, desejavam substituí- la por algo como uma “história mais ampla e mais humana”, que se preocupasse menos com a narrativa dos eventos do que com a análise das “estruturas” (BURKE, 1991). A História Social pode ser entendida como o ramo do conhecimento histórico que privilegia “o papel da ação humana na História [...] ao formular como problema o comportamento humano na explicação histórica” (CASTRO, 1997:49-54). Nesse sentido, o objeto intitulado “A criação do Território Federal do Rio Branco”, pode perfeitamente ser tratado dentro das fileiras da História Social. Todavia, é pertinente que se diga que nenhum campo histórico é totalmente puro ou homogêneo. Sempre que se busca recriar certas dimensões do passado, afloram, às vezes até 13 involuntariamente aspectos políticos, econômicos e culturais de uma dada sociedade. Com aporte em Barros (2009:107), tanto a História Social quanto a História Política estão em perfeita relação. Do mesmo modo, são evidentes as interfaces da História Política com outros campos historiográficos. O referido autor menciona que “os objetos da História Política são todos aqueles que são atravessados pela noção de poder”. Como exemplo, pode-se citar o poder Central dos Estados, e também os poderes presentes nas relações estabelecidas no dia-a-dia das populações. Dessa forma, de acordo com Burke (2002:109), o conceito de poder é por vezes um conceito reificado, para este autor “é fácil pressupor que uma pessoa, grupo ou instituição em determinada sociedade ‘tenha’ esse poder – o ‘governante’, por exemplo, a ‘classe dominante’ ou a ‘elite’ política –, enquanto todos os outros não o detenham”. Não obstante, Barros (2009:106) enfatiza “o que autoriza classificar um trabalho historiográfico dentro da História Política é naturalmente o enfoque no poder [...] pode-se privilegiar desde o estudo do poder estatal até o estudo dos micropoderes que aparecem na vida cotidiana”. Partindo desse raciocínio, a instalação do governo de Ene Garcez dos Reis, em 1944, e sua equipe alteraram o dia-a-dia da população local. Em termos metodológicos, o trabalho foi escrito a partir da consulta direta em corpus documental composto de fontes escritas e da técnica da História Oral. Quanto às entrevistas, a participação dos senhores Francisco das Chagas Duarte5 e Júlio Augusto Magalhães Martins,6 ambos naturais da cidade de Boa Vista e que, não só presenciaram o momento da criação do Território Federal, como também atuaram na esfera política e administrativa do novo Território e no futuro estado de Roraima. Assim, os conhecimentos decorrentes das entrevistas enriqueceram essa pesquisa, o que evidencia a importância da História Oral. 5 O primeiro entrevistado foi o Senhor Francisco das Chagas Duarte, 84 anos, aposentado, natural de Boa Vista, onde reside atualmente. Sobre sua atuação política, foi tesoureiro de vários governos e Deputado Constituinte em 1988, participando da criação do estado de Roraima. 6 A segunda entrevista foi realizada com o Senhor Júlio Augusto Magalhães Martins, 73 anos, comerciante aposentado, nascido em Boa Vista, onde mora. Teve uma atuação política dinâmica na época do Território Federal, sendo inclusive, Prefeito de Boa Vista. 14 Nessa discussão, Sousa (2005:7-8) destaca que “a oralidade constitui-se, nos dias de hoje, em um importante campo de investigação histórica”. A autora ao mesmo tempo em que enfatiza a ampliação da História Oral como importante instrumento de pesquisa pelas ciências humanas e sociais, ressalta que “é uma metodologia que permite a constituição de fontes históricas e documentos por meio do registro de testemunhos, depoimentos e narrativas”. Por memória, na concepção de Meihy (2005:63), entende-se “que são lembranças organizadas segundo uma lógica subjetiva que seleciona e articula elementos que nem sempre correspondem aos fatos concretos, objetivos e materiais”. O autor afirma ainda que as memórias podem ser individuais, sociais ou coletivas, sendo que toda memória tem índices sociais que a justificam. Ainda, na tentativa da construção da memória relativa a esse evento, ratificado por meio de dar voz aos sujeitos históricos, a realização de entrevistas justifica-se na tentativa de rememorar o passado, principalmente levando em conta a limitação das fontes escritas. Dessa forma, Jucá (2011:76) afirma que as informações prestadas nas entrevistas suprimem “o estreito apanhado de dados e informes escritos”. O presente trabalho está estruturado em três capítulos assim descritos: no capítulo I é feita uma revisão bibliográfica que enfatiza a geopolítica de criação dos territórios federais brasileiros, com destaque para a ação do Estado Federal, pautada no discurso oficial da “Segurança Nacional”, buscando integrar, proteger e desenvolver as fronteiras mais distantes do país. Destaca-se ainda que tal discurso teve como motivação não só a conjuntura formada pela Segunda Guerra Mundial, mas também antigas questões de limites, principalmente ao Norte, envolvendo o Brasil e algumas nações europeias. O capítulo II trata da criação do Território Federal do Rio Branco, apontando as expectativas da população frente às reais possibilidades de desenvolvimento.7 A conjuntura política local é destacada, pois ela é marcada pelo apadrinhamento 7 O conceito de desenvolvimento utilizado aqui está ligado principalmente às mudanças econômicas, almejadas pelos habitantes do Rio Branco após a criação do Território Federal. Nesse caso, Bresser- Pereira (2006) concebe desenvolvimento econômico como “um fenômeno histórico que passa a ocorrer nos países ou Estados-naçãoque realizam sua revolução capitalista, e se caracteriza pelo aumento sustentado da produtividade ou da renda por habitantes, acompanhado por sistemático processo de acumulação de capital e incorporação de progresso técnico”. 15 político e pela descontinuidade nos mandatos dos governadores. Em seguida, é apresentado um panorama da região do vale do Rio Branco e de seu único aglomerado urbano, a cidade de Boa Vista, cuja fonte é o Plano de Recuperação e Desenvolvimento do Vale do Rio Branco, elaborado pelo Técnico em Administração do Governo Federal Araújo Cavalcanti. No último capítulo é focado basicamente dois aspectos que refletem em grande medida o alcance das transformações almejadas pela política oficial “de integrar, proteger e desenvolver” as fronteiras, perpetrada pelo Governo Federal. A saber: o primeiro é a implantação do Plano Qüinqüenal de desenvolvimento do Território, tendo como principais metas a reestruturação de Boa Vista, por meio da execução do Plano Urbanístico inspirado provavelmente em Belo Horizonte; e o segundo é o incentivo à migração por meio da criação das colônias agrícolas de Mucajaí, Cantá e Coronel Mota. Isso posto, a utilização de entrevistas, em consonância com as fontes escritas, lançou luzes ao alcance de tais transformações. 16 1 GEOPOLÍTICA BRASILEIRA E A CRIAÇÃO DOS TERRITÓRIOS FEDERAIS A primeira metade da década de 1940 foi marcada pela instabilidade política e pelas crises financeiras internacionais causadas pelo início da Segunda Guerra Mundial, assim como pelas incertezas do período pós-guerra. Em nível nacional, o Presidente Vargas dava continuidade à sua política nacional-desenvolvimentista, iniciada ainda nos anos 1930, incentivada principalmente durante o Estado Novo, legitimada pelo discurso propagandístico da “Segurança Nacional”. Nesse aspecto, Levine (2001:150-169) é da opinião que o Estado Novo trouxe alguns avanços políticos e econômicos para o país, especialmente quanto a industrialização e a legislação trabalhista. Nesse último caso, todos os brasileiros sujeitos à esta legislação “tinham de portar a carteira de trabalho”, na qual estavam registrados dados vitais a respeito de cada trabalhador, incluindo faltas e demissões. Sua perda ou extravio implicava em prejuízos sem precedentes. Todavia, “para as pessoas do povo, Getúlio era acessível, todo-poderoso, alguém a quem deviam lealdade e que intercederia por elas”, como o Padre Cícero, se disso fossem merecedoras. A abordagem de Levine (2001) sobre o carisma que envolvia a pessoa do Presidente Vargas pode ser constatado na fala dos dois entrevistados, mesmo considerando o fato do presidente nunca ter visitado o Rio Branco. Em relação à criação dos territórios federais, de acordo com o Senhor Francisco das Chagas Duarte: “nós devemos agradecer essa criação ao Getúlio Vargas, essa visão de estadista de ter criado estes territórios brasileiros”. O Presidente Vargas, ao que indica, tinha a capacidade, mesmo estando tão distante, de ser uma figura acessível. A opinião é semelhante a do Senhor Júlio Augusto Magalhães Martins, quando este enfatiza o alcance da visão política de Vargas, afirmando que: [...] o Presidente Getúlio Vargas, um grande estadista, devemos a ele a visão de estadista dele, o maior ou talvez o único, na história republicana do Brasil. Eu não vejo ninguém com a visão de estadista de Getúlio Vargas, nem Juscelino, nem nenhum outro presidente. Getúlio que nunca veio aqui, por exemplo, ele é como se estivesse em cima de uma torre de 100 metros, ele via a 20 km de distância. Nós estamos aqui em baixo, só enxergamos até a esquina, então, ele criou o Território do Rio Branco [...]. 17 O desenvolvimento econômico promovido por Getúlio Vargas nesse período, salvo as desigualdades regionais, fez com que o país passasse de uma sociedade predominantemente agrária, com algumas indústrias leves, para uma sociedade industrial, em boa parte urbana, dotada de uma importante indústria pesada. As mudanças implementadas durante a longa Era Vargas8 eram mais visíveis entre 1950 e 1954, contudo não foram substanciais o suficiente para ocasionar uma alteração no nível vida de boa parte da população (LEVINE, 2001:190). No entanto, durante o Estado Novo, o progresso do país foi considerável em algumas áreas. Por exemplo, a produção de energia elétrica cresceu, bem como a produção de cimento e a extração de minérios. O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP)9 usava pôsteres e grandes cartazes para transmitir suas mensagens, e distribuía milhares de fotografias de Vargas, que eram então expostas em casas, estabelecimentos e repartições públicas (LEVINE, 2001:97), além de exibições cinematográficas que reforçavam tal propaganda. Contudo, os pobres e as mulheres permaneceram aquém, à margem, dos projetos governamentais. Para Levine (2001:108-9), a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial selou o destino do Estado Novo e levou Vargas a tomar atitudes no sentido de manter-se no poder. Assim, Getúlio foi capaz de se adaptar às mudanças no panorama nacional e internacional, mas que no fundo, deixou inalterada grande parte do tecido da vida brasileira. A distribuição de renda permaneceu entre as mais injustas do mundo (p. 161). Mesmo assim, políticas públicas foram propostas visando integrar as fronteiras do país, e a criação dos territórios federais é exemplo disso, assim como a criação dos batalhões de fronteiras, etc. Por meio de tais políticas, o Presidente Vargas demonstrava interesse na redivisão, colonização e ocupação do território amazônico, levando em consideração a imensidão do território, visto sob a ótica do “vazio demográfico”, não considerando a existência das populações indígenas, ribeirinhos, extrativistas, quilombolas entre outros. Nesse sentido, o termo ocupação, dando a entender “povoamento” deve ser 8 A Era Vargas é considerada o período que vai da ascensão do Presidente Vargas, após o golpe de 1930, passando pelo Estado Novo (1937-1945), envolvendo também seu último mandato (1951- 1954), totalizando quase duas décadas no poder. 9 Segundo Levine (2001), entre as atribuições do Departamento de Imprensa e Propaganda estavam a propaganda do governo, a censura a toda mídia pública, assim como a responsabilidade de promover o sentimento nacionalista mediante eventos públicos ou por meio do sistema escolar. 18 questionado. Outra preocupação do Governo Federal estava no respaldo da fragilidade das fronteiras da nação frente à ameaça de forças externas. Desse modo, a Amazônia passa a ser vista como território nacional cujas fronteiras necessitavam ser protegidas e defendidas. Como medida para articular melhor as áreas de fronteira da região, o governo Getúlio Vargas cria, em 1943, os territórios federais do Amapá, do Guaporé (Rondônia) e do Rio Branco (Roraima). De acordo com Freitas (1993:19), o Território Federal do Acre foi o primeiro a ser criado, em 1903, decorrente do conflito com a Bolívia. É importante ressaltar que foram criados outros territórios fora das fronteiras do espaço amazônico, mas também obedecendo aos mesmos fatores geopolíticos determinantes como as questões de limites territoriais, pressões militares advindas da Segunda Guerra Mundial e o povoamento destas áreas. Entre estes territórios constam os territórios federais de Fernando de Noronha, Ponta-Porã e Iguaçu. Os dois últimos foram extintos com a promulgação da Constituição de 1946. Em relação à política de criação dos Territórios Federais, convém estabelecer uma revisão bibliográfica em torno do assunto, utilizando como fontes Freitas (1993), Oliveira (2003), Santos (2004) e Silva (2007), entre outros. Antes, porém, se faznecessário discutir o conceito de geopolítica. O mesmo procedimento será tomado em relação aos conceitos de território e de fronteira que serão utilizados aqui, imprescindíveis para a compreensão dos demais capítulos. 1.1 Breve discussão sobre o pensamento geopolítico brasileiro Antes de definir o conceito de Geopolítica, convém estabelecer uma breve discussão sobre o pensamento geopolítico brasileiro, o qual teve um papel salutar na criação dos territórios federais, enfatizando alguns nomes considerados como os precursores da ideologia de defesa nacional. Dentre estes geopolíticos são destacados: Mário Travassos, Evandro Backheuser, Lysias Rodrigues e, também o representante da Escola Superior de Guerra (ESG), Golbery do Couto e Silva. Carlos de Meira Mattos, um dos grandes estudiosos da temática no Brasil, com uma extensa produção nessa área, e reconhecido nacional e internacionalmente, faz uma síntese do pensamento geopolítico brasileiro apontando 19 suas origens no início do período colonial. Os conflitos externos verificados no Império serviram para consolidar o pensamento geopolítico durante a República, principalmente após a década de 1930, pelos representantes acima mencionados. De acordo com o posicionamento de Mattos (2002:85): Na época colonial, vimos a visão estrutural da geopolítica brasileira esboçada no Tratado de Tordesilhas [...]; Alexandre de Gusmão, brasileiro a serviço da diplomacia lusa, conseguiu inserir no Tratado de Madri (1750) os dispositivos que legitimaram as conquistas dos bandeirantes paulistas e nortistas. Um ano antes da Independência, José Bonifácio de Andrada e Silva, preconizou para a nação nascente a interiorização da capital e a criação de um sistema transportes terrestres que convergisse para a capital interiorizada. Pensava, já, na integração nacional. O pensamento do capitão Mário Travassos e do professor Evandro Backheuser vigorou no Brasil durante as décadas de 1930 e 1940. Enquanto Mário Travassos exercia grande influência no pensamento de sua geração, Backheuser preocupava em articular uma geopolítica para o país pautada no quase abandono da imensa fronteira continental, onde apenas diminutos contingentes do Exército, dispersos em espaço imenso, realizavam uma precária vigilância (MATTOS, 2002). O entendimento desses dois grandes geopolíticos, com ênfase no estudo sobre política e fronteiras, largamente difundido em artigos de jornais e revistas, teve grande influência no estabelecimento pelo governo Vargas de uma nova política voltada para proteção das áreas fronteiriças legitimada pela criação dos territórios federais nas regiões limítrofes mais ricas - alguns transformados posteriormente em estados, outros extintos logo depois (MATTOS, 2002). Depois, nas décadas de 1940 e 1950, destacou-se nos estudos geopolíticos o Brigadeiro Lysias Rodrigues. Este estudioso enfatizava o importante papel presente e futuro da aviação para o desenvolvimento das áreas longínquas e despovoadas do território brasileiro, em particular das fronteiras terrestres do Norte com os estados europeus ocupantes das Guianas. Na década de 1950, foi destacado a figura do então tenente-coronel Golbery do Couto e Silva. Ele proferiu inúmeras conferências em escolas do Estado-Maior e, sobretudo, na Escola Superior de Guerra (ESG).10 10 Criada em 1949, a ESG foi responsável pela difusão de uma doutrina política essencialmente brasileira, fundamentada na dinâmica da aplicação do poder nacional. Durante seus primeiros 15 anos, formulou sua doutrina de segurança nacional. Formou elites civis e militares aptas a pensarem o Brasil com objetividade, como um todo. Ao iniciar-se o regime militar em 1964, a doutrina da ESG já estava formulada e exercitada em termos laboratoriais e escolares (MATTOS, 2002). 20 Escreveu dezenas de artigos para revistas especializadas, enfatizando a doutrina da Segurança Nacional, ideologia difundida dentro dos quadros da ESG, em especial durante o regime militar (1964-1985) (MATTOS, 2002). Partindo da ideia de que não existe um único conceito fechado para conceituar geopolítica, incorre-se no risco ao reducionismo ou no simplismo, ou mesmo na omissão de aspectos essenciais dentro do objeto a ser conceituado. Mesmo correndo este risco, será utilizado aqui um conceito cunhado por Mattos (1975:13), segundo o qual “a geopolítica estuda a influência representada pela forma do território em relação aos seus habitantes”. Baseado no discurso desses estudiosos fica evidente a preocupação, em grande medida, com a defesa nacional, sem desmerecer outros aspectos. Outro conceito importante dentro do assunto tratado nesta pesquisa é o conceito de fronteira que, segundo Magalhães (2007: 57-8), “de modo algum se reduz e se resume à fronteira geográfica”. A autora destaca ainda que a fronteira “constitui um campo em que se desenvolvem processos econômicos, sociais, tecnológicos, culturais, políticos”. Nesse sentido, as fronteiras brasileiras, principalmente na Região Amazônica, despertaram grandes preocupações do Governo Federal nos anos 1940. Dessa maneira, partindo da necessidade de conceituar fronteira, Ratzel (apud MATTOS, 1975:28) frisa que “a concepção de fronteira é orgânica. É a periferia do corpo do Estado-organismo vivo, o invólucro ‘plástico’ que o Estado ocupa e nele se envolve. As fronteiras são zonas, expressões de movimento dos povos”. Segundo tal pensamento, o conceito de fronteira implica zona, região. Seguindo a mesma linha de pensamento de Ratzel, Backheuser (apud MATTOS, 1975:53) afirma que “a fronteira é a epiderme do organismo estatal, captadora das influências e pressões forânicas e, como tal, regiões que devem estar subordinadas ao poder central e não às autoridades regionais”. Pelo que ficou subentendido que contrariamente, a política de fronteira não deve ser da alçada regional, mas a do federal. Este último aspecto fica evidente no Território Federal do Rio Branco. O conceito de Território Federal a ser utilizado aqui representa uma entidade administrativa controlada pelo Poder Central, conforme modelo inaugurado com a 21 incorporação do Acre ao território brasileiro, após negociações diplomáticas tensas com a Bolívia. Tal fator, se por um lado propiciou a expansão do território nacional, por outro, suscitou a necessidade de defesa das fronteiras, dando subsídios políticos e jurídicos para que Vargas repensasse a divisão do país (OLIVEIRA, 2003). 1.2 Política de criação dos territórios federais na fronteira amazônica A Amazônia representava até então um imenso complexo territorial, cujo potencial estratégico e econômico a transformou num palco de cobiça e de disputas desde os tempos coloniais. Tais disputas, travadas primeiramente entre o Estado português e outros Estados Europeus, foram transferidas depois para o Estado brasileiro após sua emancipação política. Posteriormente, estas disputas se estenderam tanto para o Império quanto para os primeiros anos da República. Nos anos 1940, a questão da defesa parece ganhar contornos mais fortes. Por conta disso, uma das metas do governo do presidente Getúlio Vargas, era o de levar o desenvolvimento para Amazônia, conforme o próprio presidente admite em visita à região no início da década de 1940. Em seu famoso discurso, conhecido na historiografia como “Discurso do Amazonas”, fica evidente o plano do presidente, que perpassa pela necessidade de integrar o homem amazônico além de melhor explorar as potencialidades econômicas da região, principalmente após o colapso do ciclo da borracha. Sobre este aspecto, D’Acampora (2006:91) atesta que “o primeiro governo Vargas (1930/1945) retomou as atenções sobre a região, tentando promover a exploração da Amazônia”. Desse modo, em sua visita àregião, o presidente Vargas buscou estimular todos, por meio de seus discursos, difundidos pela imprensa, a acreditar na eficácia de um plano de integração da Amazônia. Ao fazer uma revisão historiográfica sobre o tema, iniciando por Oliveira (2003:177-8), destaca-se que “a criação de novos Territórios Federais iria garantir tanto o povoamento das áreas ‘desabitadas’, quanto o controle do Estado brasileiro de suas áreas fronteiriças, um dilema recorrente desde o século XVIII”. A concretização de tal política teve respaldo no discurso propagandístico da 22 Segurança Nacional, instrumento de legitimação das politicas públicas do Governo Federal, durante o Estado Novo e, principalmente, do regime militar pós-1964. Do mesmo modo, o discurso da “Segurança Nacional”, abordado também por Silva (2007:116) como um dos principais requisitos para a criação dos Territórios Federais, no território amazônico. Para o autor, “esses territórios foram criados, em parte, pela necessidade de se povoar as fronteiras, em especial onde o Brasil teve problemas de demarcação de limites com a França, Inglaterra e também com a Bolívia”.11 Como a questão do Acre, referida anteriormente. Segundo Oliveira (2003:178), “o projeto de criação dos territórios federais nas áreas de fronteira, partia da preocupação do governo Vargas em manter a unidade do território nacional”. Na argumentação de Silva (2007:117), para quem “os territórios foram criados, como parte de uma política nacionalista de povoar, desenvolver e proteger as fronteiras”, principalmente na Amazônia, onde o Brasil teve problemas de limites com os países apontados acima. Santos (2004:89) por sua vez, entende a gênese dos Territórios Federais como uma forma de “intervenção estatal republicana na Amazônia, através de propostas e medidas concretas para um planejamento regional sistemático”. A criação dos territórios, nesse caso obedeceu tanto a fatores tanto de ordem interna quanto externa. Era tempo de guerra e nunca é tarde lembrar que as Guianas, possessões européias na América do Sul, são países limítrofes com o Brasil na região Amazônia. O próprio discurso do Presidente Getúlio Vargas, proferido na sua passagem pelos estados do Amazonas e do Pará em 1940, enfatizava um novo olhar sobre a Região Amazônica. Segundo Santos (2004:89), o presidente declarou em Manaus que o governo pretendia desenvolver para a Amazônia uma política que visava entre outros a “[...] ocupar a região para protegê-la de invasões estrangeiras e trazer benefícios para camponeses e colonos, em lugar de alguns latifundiários”. Segundo Santos (2004:90), para o governo Vargas, a Amazônia estava destinada a cumprir um papel estratégico, para o qual era exigida uma política de modernização na sua economia - daí o aceno às elites para participação, bem como 11 A questão com a Bolívia resultou na criação dos territórios federais do Acre e de Rondônia, com a França, no Território Federal do Amapá e com a Guiana Inglesa, no Território Federal do Rio Branco. 23 aos trabalhadores. Prenunciava a procura por matérias-primas estratégicas pelos beligerantes (era o tempo da Segunda Guerra Mundial) e o Estado não poderia deixar de manter o controle e mesmo promover as mudanças necessárias. Essa procura por matérias-primas estratégicas diz respeito à nova conjuntura formada pela Segunda Guerra Mundial, que levou o governo do Presidente Getúlio Vargas a se alinhar com os Estados Unidos, assinando, em 1942, os chamados Acordos de Washington. Por conta de tais acordos, o Brasil forneceria borracha e outras matérias-primas para os países aliados, recebendo em troca incentivos financeiros e tecnológicos para montagem de uma indústria de base, sediada na cidade Volta Redonda. Desse modo, a criação dos territórios federais do Amapá, Rio Branco e Guaporé representou a medida mais concreta, em termos de resultados presentes e futuros para a Amazônia. Além do mais, a ideia de criar territórios para melhor controlar as fronteiras partia de recomendações de geopolíticos como Backheuser e Lysias Rodrigues, que era um Brigadeiro da Aeronáutica, tendo realizado estudos sobre as fronteiras brasileiras. Na opinião de Ene Garcez dos Reis, primeiro governador do Território Federal do Rio Branco (FREITAS, 1993:32), o próprio Vargas sentia que a Amazônia estava um tanto desprotegida e relegada a segundo plano, dentro do conjunto do Brasil continental. Para Ene Garcez, Vargas não tinha receio de uma ação armada para a internacionalização da Amazônia. Contudo, tendo em vista que as fronteiras estavam esquecidas e desprotegidas, achou por bem criar companhias e pelotões de fronteiras, a exemplo do 1º Pelotão de Fronteiras de Boa Vista. Ainda na opinião do Capitão Ene Garcez dos Reis (FREITAS, 1993:32), essas companhias e pelotões de fronteira, além do objetivo estratégico de defesa e proteção dos pontos mais vulneráveis das divisas do país, tinham também a função de marcar presença do Brasil em determinados pontos, ajudando o homem a ter melhores condições de segurança e conforto. Além do 1º Pelotão de Fronteiras de Boa Vista, foram criadas outras colônias militares em Tabatinga, Porto Velho, Macapá, entre outras. Pelo exposto nessa breve discussão, fica evidente que a política oficial de criação dos territórios federais no contexto amazônico estava respaldada em 24 primeiro plano em uma ação de desenvolvimento da Amazônia, iniciada durante a colonização pelo Marquês de Pombal e acirrada pelo Estado Novo de Vargas. Em segundo plano era legitimada pela geopolítica da Segurança Nacional,12 não sem razão, se for levado em consideração a conjuntura internacional formada pela Segunda Guerra Mundial. A seguir será discutida a criação do Território Federal do Rio Branco e suas implicações para esta região até então relegado pelos poderes públicos e praticamente isolada, posto que o rio Branco, com sérias restrições à navegação mesmo no período invernoso, era ainda a única via de comunicação com o restante do país. Conforme ver-se-á, com a implantação do Território haverá um esforço por parte do Governo Federal no sentido de minimizar os problemas locais. O mapa da Figura 1 mostra a localização dos territórios federais criados por meio do Decreto-Lei n. 5.812 de 13 de setembro de 1943, com exceção do Território Federal do Acre, criado em 1903 e do Território de Fernando de Noronha, em 1942. 12 Conceituando Segurança Nacional, Mattos (2002:70) enfatiza que “a noção de Segurança Nacional é mais abrangente. Compreende, por assim dizer, a defesa global das instituições, incorporando por isso aspectos psicológicos, a preservação do desenvolvimento e da estabilidade política interna, além disto, o conceito de segurança, muito mais explicitamente do que o de defesa, toma em linha de conta a agressão interna, corporificada na infiltração e subversão ideológica, até mesmo nos movimentos de guerrilha, formas hoje mais prováveis de conflito do que a agressão externa”. 25 Figura 1: Mapa do Brasil (1943-1946). Fonte: Disponível em:< http://pt.wikipedia.org>. Acesso em: 27 de janeiro de 2012. Conforme observação no mapa acima, percebe-se que os novos territórios foram projetados em pontos estratégicos, sendo que quatro deles localizavam-se na grande Região Amazônica, foram também os únicos que sobreviveram após o fim do Estado Novo, em 1945, o que demonstra que essa região de grande potencial econômico e estratégico sempre despertou a cobiça de outras nações. http://pt.wikipedia.org/ 26 2 HISTÓRIA POLÍTICA E ADMINISTRATIVA DO TERRITÓRIO FEDERAL DO RIO BRANCO A criação do TerritórioFederal do Rio Branco trouxe mudanças significativas para a população do vale do rio Branco, no sentido de romper com o isolamento ao qual estava relegada, propiciando uma maior integração com o restante do país, assim como mudanças nas relações de poder, uma vez que novos grupos políticos se formaram a partir daí. Os antigos chefes políticos locais, fazendeiros e comerciantes eram forçados a aceitar a presença mais efetiva do Estado Central. Quando o Vale do Rio Branco foi desmembrado do estado do Amazonas, em setembro de 1943, era uma região isolada e carente, cuja população tinha de conviver com sérios problemas de saúde, educação, segurança, carestia de gêneros de primeira necessidade. Como o rio Branco era a única via de ligação com o restante do país, era comum esta região passar boa parte do ano praticamente isolada. Estes, entre outros fatores, podem ter contribuído para o estado caótico no qual o governador Ene Garcez encontrou a região ao tomar posse do cargo. A cidade carecia de uma infrainstrutora que a despertasse daquela vila solitária e acanhada que ainda guardava em muitos aspectos o modo de vida do começo do século XX, quando então abrigava uma população de pouco mais de mil habitantes. Antes de se tratar da criação do Território Federal do Rio Branco, convém ressaltar a real situação do Vale do Rio Branco antes da assinatura do Decreto-Lei n. 5.812 de 13 de setembro de 1943, autorizando a criação dos Territórios Federais. Para tanto será utilizado aqui basicamente o estudo socioeconômico elaborado pelo técnico em administração do Governo Federal, Araújo Cavalcanti, em 1945. Segundo Santos (2004:91), Cavalcanti era um agente oficial de um governo que pensava em mudanças, que viu até com indignação fatos como o trabalho forçado de crianças índias, principalmente dos Macuxi; que se surpreendeu com o controle total do comércio por poucos, criticando os fazendeiros que preferiam aplicar seu capital financiando atividades mineiras. 27 2.1 Vale do Rio Branco início da década de 1940 A situação do Rio Branco em meados da década de 1940 pode ser percebida por meio das entrevistas com aqueles que vivenciaram o período. O Senhor Júlio Augusto Magalhães Martins, que era criança na época da criação do Território Federal do Rio Branco, lembra perfeitamente a chegada do primeiro governador, o Capitão Ene Garcez dos Reis, em junho de 1944. Suas lembranças em relação àquele período giram em torno da chegada do governador e do círculo de amizade logo formado em torno de sua família, fato que afirma lembrar-se perfeitamente. No transcorrer da fala do Senhor Júlio Augusto Magalhães Martins13 é possível perceber alguns aspectos de Boa Vista, que em nada se distinguem daqueles apontados nos relatos dos viajantes que passaram pela cidade no começo do século XX. Segundo ele, “havia mais uma ou outras talvez, casa de alvenaria, porque o resto era tudo casa de palha em Boa Vista. Boa Vista era uma, era uma pequena, um pequeno povoado, quase todas as casas de palha ou de taipa”. Em relação à estrutura urbana, ele afirma: “isso aqui era um desterro, não tinha nada”. O Senhor Francisco das Chagas Duarte,14 que era adolescente no período, mesmo estudando em Belém do Pará relata as dificuldades enfrentadas pela população do Rio Branco. Por outro lado, lembra uma época na qual Boa Vista era uma cidadezinha onde todo mundo se conhecia, que apesar de isolada, a subsistência era tirada da natureza, dos rios, dos campos: [...] nós que vivíamos no município aqui insulados, totalmente isolados né, não, não, é tínhamos aqui uma vida natural, o povo muito bom, todos aqui se conheciam, uma cidadezinha muito pequena, mas e que tinha de tudo, era realmente uma riqueza natural, os campos era habitados por caças de toda qualidade, o rio muito peixe, peixe à vontade, tinha peixe e, é, e rico dos minerais né [...]. Outra forma de compreender a conjuntura local é por meio do importante estudo elaborado pelo técnico administrativo Araújo Cavalcanti, em 1944, quando acompanhou o governador Ene Garcez. Esta talvez seja a fonte que melhor retrata a situação do Rio Branco quando da criação do Território Federal. O Relatório 13 Entrevista realizada em 17 de maio de 2012. 14 Entrevista realizada em 14 de maio de 2012. 28 intitulado Plano de Recuperação e Desenvolvimento do Vale do Rio Branco15 mostra a situação geral da região, descrita por seu autor como “tenebrosa”. Conforme pode ser observado no relatório de Cavalcanti (1949:5), fica patente o estado de desânimo desse técnico ao afirmar que a situação do Território Federal do Rio Branco, além de tenebrosa, “predominam os fatores negativos de tal maneira que se torna verdadeiro otimismo acreditar no futuro da região, caso o Governo Federal não venha em seu socorro imediato com técnicos, material, suficientes recursos financeiros e uma nova legislação adequada à região”. O referido relatório deixa claro que a “situação do Território era deplorável, consubstanciada na falta de hospitais, escolas, estradas, alimentos, iniciativas particulares e até mesmo segurança” (CAVALCANTI, 1949:5). Ora, essa dura realidade era conhecida pelas autoridades responsáveis pelo Rio Branco, se forem observados relatórios anteriores sobre a região,16 lá encontra-se referências sobre preços abusivos, negligência da agricultura, da saúde, falta de escolas. Tais fatores, segundo Cavalcanti (1949:5), comprovam “o desleixo e a incapacidade dos homens responsáveis pelo triste estado de coisas”. Assim como outros técnicos, políticos, cientistas ou mesmo religiosos que passaram pelo Rio Branco e deixaram suas impressões em relatórios, este técnico fora incapaz de perceber que os problemas da região advinham não da inação da população local, mas da falta de uma política pública oficial voltada para desenvolver a região. Mais adiante, Cavalcanti (1949:12) reitera que a situação era alarmante. Ele afirma: “uma situação desesperadora consoante a expressão bem triste do eminente amazonólogo Hamilton Rice, ao se referir á imensa região banhada pelas águas do Rio Branco e seus afluentes: um paraíso onde vive pobremente um povo infeliz”. Esta talvez fosse a realidade, mostrada da forma menos apaixonada possível, onde o autor não se deixou levar pelos encantos da natureza paradisíaca do Rio Branco. Por meio deste estudo, percebe-se que os principais núcleos populacionais – como em toda a Amazônia, localizavam-se nas margens dos rios, principalmente do rio principal: o Branco. Assim, no Baixo Rio Branco vivia cerca de 10% da 15 Convém esclarecer que aqui está sendo utilizada a 2º edição deste documento, editada em 1949. 16 Ver os relatórios do ex-Deputado pelo estado do Amazonas Luciano Pereira (1917) e o do Bispo Dom Pedro Eggerath (1924), ver o relato de Hamilton Rice, de 1924. 29 população, dedicada ao extrativismo florestal da borracha, balata, madeiras e castanha; o Alto Rio Branco, zona dos campos, onde se praticava a pequena agricultura e a pecuária, concentrava 80% dos habitantes do Território. Segundo Cavalcanti (1949) entre os principais adensamentos populacionais merecem destaque, Boa Vista, com mais de 2.000 habitantes; e Caracaraí o mais importante núcleo demográfico do Baixo Rio Branco, com cerca de 400 habitantes. Na região montanhosa, ao norte do Território, localizavam-se os núcleos formados por garimpeiros e aventureiros atraídos pela fascinação do ouro e dos diamantes, especialmente na serra de Tepequém, e nos rios Maú, Quinô e Cotingo. Ao referir-se à capital do Território, Boa Vista, Cavalcanti (1949:27) aponta a cifra de “217 mocambos17 e 122 casas de alvenaria ou madeira – quase todas em condições inacreditáveisde higiene”. O autor afirma que: A alimentação é precária: carne de gado, caça ou pesca e farinha. Nem frutas, nem ovos, nem leite. Não há hortaliças, nem criação de galinhas. Em Boa Vista, para uma população de quase 2.000 almas, o consumo de leite é da ordem de 30 litros diários. A população rio-branquense é, via de regra, subnutrida. E para agravar tal situação há falta absoluta de higiene. [...] Bebe- se água do Rio Branco, poluída pelos dejetos das habitações. Em função de tais condições extremas de moradia, alimentação e higiene o boa-vistense sofria constantes epidemias de impaludismo. Também era vitima da verminose, da sífilis, da tuberculose e do beribéri. Para Cavalcanti (1949:28), “essa falta de saúde, [...] trata-se mais de um caso extremo de ignorância dos princípios rudimentares de higiene; de incúria e abandono da região pelos poderes públicos; de apatia e, às vezes, horror ao esforço”. Ainda Cavalcanti (1949), a situação da educação era ainda mais grave, posto que muitos dos problemas de saúde decorriam do baixo nível educacional da população, com cerca de 95% de analfabetos. As poucas escolas existentes no Território não ofereciam condições mínimas de funcionamento. Ademais, as crianças que poderiam estar frequentando a sala de aula, estavam entregues à própria sorte, sendo exploradas em trabalhos forçados, principalmente as crianças indígenas. 17 Espécie de habitação simples feita de barro e coberta com palha. 30 O sistema de transporte, tendo o rio Branco como única via de ligação com o restante do país, representava outro entrave para o desenvolvimento do Território. Conforme Cavalcanti (1949:34) “a viagem de Manaus a Boa Vista, por exemplo, era feita em quatro dias na época das grandes enchentes, a mesma viagem na época da vazante podia gastar até 45 dias”, fator que incidia no alto custo de vida. A falta de uma produção local organizada tinha como agravante a importação dos artigos de primeira necessidade, responsáveis pelo elevadíssimo custo de vida. Como fatores determinantes de preços tão elevados, Cavalcanti (1949:34) destaca: “fretes exagerados; lucros imoderados dos inumeráveis intermediários; impostos excessivos; [...] a voracidade insaciável dos comerciantes e regatões que exploram as miseráveis economias dos rio-branquenses”. Em termos econômicos, o Rio Branco tirava suas maiores divisas da produção extrativa mineral, a exemplo do diamante e do ouro, extraídos nas áreas diamantíferas do Tepequém, e nos rios Maú, Cotingo e Quinô. Em 1943, essa produção atingiu 59,6% do total do Território, enquanto que o gado atingiu 26,8% do total. Conforme já foi observado, uma parca gama de produtos extrativos de origem vegetal constava nas estatísticas de exportação para Manaus: balata, borracha, castanha, óleo de peroba e madeiras. A pecuária, outrora a grande alavanca da economia do alto Rio Branco, encontrava-se em estado de profunda decadência. Para se ter uma idéia, em 1920 o rebanho foi estimado em 300.000 cabeças, duas décadas depois existiam menos de 120.000 reses. Entre os principais motivos para esta redução tão drástica, Cavalcanti (1949:22-3) aponta os constantes surtos de zoonoses, o grande consumo e a saída dos fazendeiros para os garimpos de diamantes e do ouro. Em relação à agricultura, esta era praticada por meio dos mesmos processos empregados pelos índios macuxi e wapixana: consistindo na broca, na derrubada, queima e encoivaramento. Tais práticas resultavam numa produção insuficiente até mesmo para o consumo local. Frutas e hortaliças eram quase desconhecidas. A exceção era a cultura do tabaco, cultivado nas localidades Murupu, Passarão e nas serras Taiano e Tabaio, que, em 1943, atingiu cerca de 57% da produção agrícola do Rio Branco (CAVALCANTI, 1949). 31 Quanto às populações indígenas, Cavalcanti (1949) chama a atenção para o reduzido número de índios em comparação com a grande quantidade de Macuxis, Taulipangues, Ingaricós e Wapixanas que havia outrora. Para o autor, os cerca de 5.000 índios estavam quase todos civilizados, “contribuindo para uma percentagem elevada da população do Território“, fora a “exploração desumana do trabalho de crianças, rapazes e moças macuxi, pela maioria dos habitantes do Território” (p. 41). Após esta breve exposição da situação socioeconômica do Rio Branco no início da década de 1940, convém retomar as medidas tomadas pelo Presidente Getúlio Vargas que resultaram na criação do Território Federal e na transformação do contexto local. Lembrando Santos (2004:93): “após a criação do Território a economia e a vida nos campos do Rio Branco não foram mais as mesmas”. 2.2 Criação do Território Federal do Rio Branco Conforme abordado no item anterior, as medidas tomadas pelo Governo Federal no sentido de integrar a Região Amazônica ao restante do território nacional apontavam para a criação dos Territórios Federais, previstos pela Constituição de 1934. Assim sendo, o Presidente Vargas sancionou o Decreto-Lei n. 5.812 de 13 de setembro de 1943, pelo qual foram criados os Territórios Federais do Amapá, do Rio Branco, do Guaporé, de Ponta-Porã e do Iguaçu (FREITAS, 1993:22). Embora criado em 13 de setembro de 1943, o Território do Rio Branco só teve nomeado seu primeiro governante em abril do ano seguinte, sendo que o mesmo só chegou a Boa Vista, em junho de 1944. As entrevistas com os senhores Francisco das Chagas Duarte e Júlio Augusto Magalhães Martins sintetizam bem este momento. Para o primeiro: [...] ele (o Governador) chegou aqui no dia 20 de junho de 1944, né, e trouxe consigo pouca gente, trouxe dois médicos, um sanitarista né [...], segurança pessoal, né [...], então ele trouxe, na verdade, pouca gente com ele [...], a população talvez era 5.000 habitantes na cidade, ele não tinha onde ficar, ele terminou se hospedando lá na, Prelazia, foi para a Prelazia, lá ele ajeitou com os padres, os padres ficaram com a metade da Prelazia, ele com outra metade e aí estava instalado [...]. A entrevista com o Senhor Júlio Augusto Magalhães Martins caminha nessa mesma direção, diferenciando em alguns detalhes. De sua memória afloram os 32 detalhes do jantar de recepção da figura tão ilustre, no prédio da Associação Comercial, do discurso do pai, que seria nomeado em seguida prefeito de Boa Vista: [...] Eu me lembro perfeitamente da, da chegada do governador, eu tinha seis anos de idade [...], ele chegou aqui e foi recebido na casa do meu pai, houve um jantar para ele, na casa do meu pai, porque o meu pai era o, era comerciante e foi quem fundou a Associação Comercial, foi o primeiro presidente da Associação Comercial. [...] houve um jantar, eu não me lembro o jantar, eu era pequeno, devia estar dormindo. Eu me lembro dos preparativos, e, o discurso que meu pai fez [...], e então o Ene Garcez se tornou muito amigo do meu pai, meu pai foi prefeito, em seguida foi nomeado prefeito e, foi instalado, o, o, o governo do Território foi instalado na Prelazia e na casa do meu pai [...]. Outra versão da chegada de Ene Garcez, citado por Santos (2004:91), relata que o então ex-prefeito de Boa Vista, Adolfo Brasil, noticiara a todas as suas fazendas e às vizinhas, convocando para uma recepção calorosa para o governador Ene Garcez. Ao que consta, este simplesmente não toma conhecimento da presença das mais de 500 pessoas que se acotovelavam no pequeno cais para recebê-lo, alegando “não querer saber de coronéis de barranco”. O Senhor Chagas Duarte não confirma esta versão, preferindo acreditar que a mesma é uma invenção: “Olha, eu acredito que essa tenha sido uma história inventada né, não se deu isso, eu não acredito [...], realmente o povo todo foi para lá, para receber o governador, né, que queriam conhecer”. O entrevistado se referea outra anedota, também envolvendo a pessoa do governador, visto por alguns como autoritário. Consta que o gerente do Banco do Brasil estava no “Moura Bar” se divertindo e jogando sinuca com seus amigos, em uma bela manhã, no mesmo momento em que ancorava no porto um barco carregado de mantimentos para o governo. Por falta de carregadores, os folgazões foram convocados “sob livre e espontânea pressão” para fazer o serviço. Foi então que Ene Garcez percebeu a presença fria e nada satisfeita do tal gerente. Anedotas à parte, com a instalação do aparato administrativo do Território a população local teve de adequar-se à presença mais efetiva do poder político central, numa terra na qual, conforme Santos (2004:91), “alegava-se estar dominada pelo banditismo e pela falta de justiça”. O Senhor Chagas Duarte disse que quando estudava em Belém, encontrou-se com Ene Garcez em um hotel, e que após as apresentações, este lhe dissera em alto e bom tom: “olha eu tenho noticias que lá 33 (em Boa Vista) é um povo valente e tal, mas vão ter que dançar conforme a música que eu tocar”. Nesse sentido, a leitura da obra de Santos (2004) permite vislumbrar o momento no qual a população de Boa Vista passa a sentir os efeitos de práticas políticas totalmente estranhas às anteriormente estabelecidas. Segundo ele: O governo que se instalou no edifício da Prelazia católica, o único que tinha condições para tal, foi, segundo uma tradição local, “duro e ditatorial”. Era a “ordem” que chegava, apoiada por um contingente armado de 200 homens: houve proibição de reuniões e ajuntamentos, recolhimento das pessoas às 18 horas aos seus lares e os valentes de antes eram caçados e após, castigados à luz do dia, como exemplo (SANTOS, 2004:91). Apesar dos esforços do governo Ene Garcez no sentido de “moralizar” os hábitos e costumes locais, no processo de nomeação dos governadores prevalecia o apadrinhamento político, permitindo a presença de pessoas totalmente estranhas à região. Esse jogo político-administrativo propiciou a formação de alianças entre os aliados federais e membros da elite do Rio Branco. Assim, quando o governador do Território era exonerado o “padrinho político” indicava outro para ocupar o lugar. Isto fazia com que os mandatos se sucedessem em curto espaço de tempo. Em conformidade com o raciocínio anterior, Oliveira (2003:188-9) destaca que “admitindo o apoio da sociedade, o governo do Território Federal fortaleceu as alianças políticas com a elite local rio-branquense”. Tais alianças tiveram lugar a partir do conhecido jogo de interesses, onde a distribuição de cargos públicos representava um dos principais elos das alianças no domínio governamental, privilegiando segmentos sociais coniventes com o projeto. Quanto aos critérios de nomeação e exoneração do governador, é bom que se diga que em muitos casos partia de desavenças entre o próprio governante e membros da classe dominante local (comerciantes, fazendeiros, políticos), uma vez que com o passar do tempo, principalmente após a exoneração de Ene Garcez com a queda de Vargas em 1945, foram se formando grupos de interesse que incluíam os próprios governadores, quando não encabeçados por estes. De acordo com Freitas (1993) e Santos (2004), a nomeação dos governadores do Território partia, a princípio, da indicação do Senador pelo Maranhão Vitorino Freire, que nomeava na maioria militares, sendo muitos deles do 34 Maranhão. Um exemplo disso foi a indicação do tenente-coronel Félix Valois de Araújo, na década de 1950, eleito duas vezes deputado pelo Território, conseguindo também a nomeação de seu genro, o capitão José Maria Barbosa para o governo. Esse período, que ficou conhecido na historiografia roraimense como o do “vitorinianismo” foi marcado pela influência de Vitorino Freire no cenário político rio- branquense, que mesmo ausente do Território interferiu no destino da população que o habitava. Para Lobo Junior (2008:28), tal influência direta ou indiretamente perdurou até 1964, “pois em alguns momentos os indicados a governador do Território, já eram indicados por figuras ligadas ao senador Vitorino”. Com o passar do tempo, o próprio Félix Valois, indicado por Vitorino e eleito Deputado Federal pelo Território em duas legislaturas, integrando um complexo jogo político que prevaleceu no Rio Branco de 1943 até 1964, passou também a interferir tanto na exoneração quanto na nomeação dos governadores. Nesse complexo jogo de interesses, que marcou a primeira fase do Território, os governantes se sucediam em curtos mandatos, obedecendo às ordens emanadas do poder central. Sobre esta primeira fase, que vai da criação do Território até a instalação do governo militar, Aimberê Freitas (1993) destaca com propriedade – como filho da terra que vivenciou parte dos acontecimentos – que os governadores nomeados pouco puderam fazer pelo desenvolvimento de Roraima. O Senhor Júlio Martins compartilha desse mesmo pensamento, afirmando que, com exceção do governo Ene Garcez, a situação permaneceu “com poucos acréscimos até 1964”. Por trás da nomeação ou exoneração de cada governador havia sempre o antagonismo e as intrigas políticas que se utilizando da ponte aérea Rio-Boa Vista, trabalhavam incessantemente na contramão da máquina administrativa do Território. Nesse sentido, os governantes nomeados, na maioria dos casos totalmente alheios ao ambiente, eram meros instrumentos de interesses bem mais amplos que privilegiavam as elites a nível nacional e local, em detrimento do povo carente. Sobre o período 1944 a 1964, Magalhães (2008:96) destaca que o mesmo foi marcado por “uma forte descontinuidade administrativa, com mudança constante dos governadores e que isso refletia diretamente no desenvolvimento das atividades planejadas para Roraima”. Esta descontinuidade administrativa chegou a tal ponto, 35 que ao completar uma década de criação do Território, pela sua administração já haviam passado oito governadores titulares e treze interinos. Por último, não resta dúvida de que a criação do Território Federal trouxe mudanças significativas para os habitantes do Rio Branco, até mesmo na primeira fase, uma vez que foi projetado e teve início a implantação do “Plano Urbanístico de Boa Vista” para que a cidade pudesse abrigar o aparato governamental e servir de base para o desenvolvimento da nova unidade administrativa. No capítulo seguinte ver-se-á até que ponto foram superadas as expectativas da população local. 36 3 BOA VISTA: PERSPECTIVAS DE DESENVOLVIMENTO APÓS 1944 Este capítulo não tem por objetivo fazer um estudo de caso sobre a cidade de Boa Vista nos tempos passados, mas sim de estabelecer um contraponto em relação à sua estrutura urbana original para que se possa perceber o alcance das transformações verificadas no período pós-Território da sua instalação em 1944 á 1964. Para tanto, mesmo que em caráter introdutório, serão enfatizados aqui certos aspectos decorrentes da visão de alguns viajantes estrangeiros e nacionais que passaram pela região do Rio Branco entre o início do século XX e meados da década de 1940. A cidade de Boa Vista, escolhida para ser a capital do Território Federal do Rio Branco, foi certamente o polo irradiador das principais mudanças a serem implantadas por meio da execução de um Plano Urbanístico. Este plano, idealizado pelo governador Ene Garcez do Reis, inspirado provavelmente no traçado da cidade de Belo Horizonte, tinha como principal objetivo dotar de uma infraestrutura básica (saúde, educação, segurança, transporte entre outros) a cidade que em meados da década de 1940 ainda apresentava uma forte relação de continuidade com o pequeno vilarejo do começo do século XX. Desse modo, convém destacaralguns aspectos históricos da cidade antes de sua escolha para ser a capital do Território Federal. Segundo Barros (1995), em 1890 foi criado o município de Boa Vista do Rio Branco, pertencente ao estado do Amazonas, como decorrência do aumento da demanda por borracha nos seringais amazônicos. Em 1917, a sede do município e suas cercanias mais próximas, teriam em torno de 5.000 habitantes. O censo de 1920 contabilizou em todo o Rio Branco 7,5 mil pessoas. Segundo SILVA (2007), em Meados da década de 1940 Boa Vista era uma pequena cidade, com seus 5.132 habitantes. Comentando sobre Boa Vista dos anos 1940, Freitas (1993:32) afirma que “na época, não existia nenhum prédio específico para abrigar a sede governamental, o Capitão Ene Garcez, estabelece-se na Prelazia do Rio Branco, que ficou sendo o palácio dos despachos” em caráter provisório. Do mesmo modo, Veras (2009:83), enfatiza que “em 1944, a população do território era de 15 000 habitantes e Boa Vista contabilizava 5 000 habitantes, a capital possuía três ruas paralelas ao rio 37 Branco, algumas casas de alvenaria, mas, sendo em sua maioria, casas de taipa coberta de palha”. Como se pode perceber por meio dos relatos a seguir, as visões sobre Boa Vista no período anterior à implantação do Território Federal, vão desde elogios, como o de Jacques Ourique, que passou pela vila em 1906, para quem a mesma era dotada de “perspectivas encantadoras e belas”; passando pela visão moderada de Hamilton Rice, que viu a vila como “uma aldeia na fronteira norte do Brasil”; à visão caricatural e preconceituosa do novelista britânico Evelyn Waugh, que em 1934 simplesmente detonou a cidade, chamando-a de “miserável favela de desesperados” (WAUGH apud FARRAR e RINEHART, 1986:27). De passagem por Boa Vista em 1906, o Engenheiro Jacques Ourique não deixou de observar que a vila naquela época já apresentava “perspectivas em geral encantadoras e, de alguns pontos de vista, realmente belas”. Possuía boas casas, algumas construídas com alvenaria e uma capela (Matriz de Nossa Senhora do Carmo) edificada singelamente, mas com relativa elegância, e que a vila podia ser considerada “como o centro mais importante de todo o movimento comercial, industrial e agrícola do alto Rio Branco” (OURIQUE, 1906:13). O etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg passou por Boa Vista no inverno de 1911, em direção à fronteira Brasil-Guiana-Venezuela. Após a cansativa viagem vindo de Manaus, o viajante observou que a vila era “uma fileira de casinhas claras e agradáveis, na alta e rochosa margem direita”. Esta visão, certamente partindo do porto de desembarque (porto do cimento), não deixou de notar a falta de iluminação pública nas ruas da vila, que os caminhos estavam cobertos de mato alto, além do lazer de animais, tais como bois e porcos descansando em buracos fundos de lama em pleno leito da rua principal (KOCH-GRÜNBERG, 2006:39-40). Hamilton Rice em seu relato sobre Boa Vista, esclarece que a vila em 1924, era o único agrupamento nas margens do rio Branco que tinha a honra de ser chamado de vila. Segundo este cidadão, o tecido urbano da povoação era formado por três ruas paralelas ao rio e três perpendiculares, por onde se distribuíam as residências e o comércio (ver Figura 2). Em seu território havia 164 casas, algumas construídas com tijolo (como a igreja, a intendência, casas e armazém), sendo a maioria feita de reboco e pau-a-pique. Abrigava uma população estimada em 1.200 38 pessoas, da qual faziam parte portugueses, brasileiros, mestiços, índios e alguns negros vindos da Guiana (RICE, 1978: 25). Figura 2: Foto aérea da vila de Boa Vista do Rio Branco feita durante a expedição de Hamilton Rice em 1924. Hamilton Rice percebeu também alguns aspectos socioculturais da vila, tal como a influência marcante que as freiras e os monges beneditinos exerciam nas relações sociais e familiares da população de Boa Vista. Para ele, essa população, composta por brancos e mamelucos possuía um elevado grau de moralidade, fator logo percebido em seus trajes, suas maneiras e em sua amabilidade. Todavia, não deixou de assinalar alguns pontos negativos, como o aspecto insalubre dessa gente, em razão do regime alimentar carente de frutas e legumes (RICE, 1978:25). Às vezes as impressões de alguns desses viajantes eram moldadas por visões de mundo que, de certa forma, refletiam seu lugar de origem. Este parece ter sido o caso do novelista britânico Evelyn Waugh quando de sua visita ao rio Branco em 1934, certamente investido de uma concepção do urbano trazida das cidades inglesas. Assim, ao chegar a Boa Vista, não teve uma boa impressão da cidade e de 39 seus habitantes, a ponto de tratá-los por meio de estereótipos como preguiçosos, fuxiqueiros, arrogantes, hostis, entre outros. O desembarque na praia após a travessia do rio, onde algumas mulheres lavavam suas roupas, foi marcado por surpresa e decepção, pois Waugh esperava encontrar em Boa Vista uma cidade com iluminação elétrica, cinemas, hotéis. A reprodução a seguir de um pequeno trecho de seu relato permite captar sua visão a respeito do estado das ruas e de certos costumes de seus habitantes: Assim que desembarcamos puxamos nossos pertences barranco acima e nos achamos na rua central de Boa Vista: uma rua larga com piso de barro ressecado e desnivelada, com largas fendas por toda parte e sulcada por várias sarjetas secas. As casas caiadas, cobertas de telha, de um só andar, e enfileiradas de um lado e do outro da rua. Na porta de cada casa estavam sentadas uma ou mais pessoas que nos fitavam com olhos arrogantes, hostis e indiferentes; algumas crianças nuas corriam de um lado para o outro da rua (WAUGH apud FARRAR e RINEHART, 1986:16-7). Hospedado na Prelazia de Boa Vista, em um rápido passeio pelas poucas ruas da cidade, o viajante se deu conta da real dimensão da malha urbana da mesma naquele começo de 1934, conforme pode ser lido a seguir: Havia a rua central na qual nós chegamos – Rua Bento Brasil – duas estradas paralelas menos importantes e mais quatro outras ruas que a cortavam em ângulo reto. Em todas as direções depois de uns 400 metros, as estradas sumiam aos poucos, se transformando em vagarosos caminhos. Todas as estradas eram chamadas de “avenidas” e levavam nomes de políticos locais [...] (WAUGH apud FARRAR e RINEHART, 1986:19-20). Fazendo-se um confronto com as descrições anteriores, percebe-se que nas primeiras décadas do século XX, a estrutura urbana da cidade permanece quase imutável. Quanto aos estabelecimentos comerciais e de serviços, Evelyn Waugh comenta que na cidade: [...] havia uma loja discretamente espaçosa e uma meia dúzia de minúsculas lojas; uma barraca oferecendo os serviços de barbeiro, extração de dentes e cura de doenças venéreas; posto telegráfico e uma barraca onde ficava o correio; havia também dois cafés: o da rua principal vendia farinha, banana e peixe. O outro, localizado numa rua central era mais agradável, lá podia-se comprar cigarro, castanha-do-pará, tomar café, jogar dominó e beber cerveja cara e quente (WAUGH apud FARRAR e RINEHART, 1986:20-1). 40 Era esta a realidade da cidade de Boa Vista pintada pelas cores carregadas de um escritor europeu? Certamente que não, mas não se pode descartar suas impressões, do contrário, significaria ignorar a visão do outro. Era esta mesma realidade, ou melhor, uma representação dela, que a implantação do Território Federal e a consequente execução do Plano Urbanístico da capital se propunha modificar. Pelo exposto acima, dá para perceber que muita coisa teria que ser feita para transformar a antiga cidade numa cidade moderna e atraente. 3.1 Transformações na estrutura urbanística de Boa Vista Ao longo do trabalho, apresenta-se primeiramente por meio de uma revisão bibliográfica