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LINGUAGEM EM FOTOGRAFIA JORNALÍSTICA PARTE II Conteudista Prof. Me. Cesar Luis Mulati 2 FOTOGRAFIA DE DOCUMENTAÇÃO SOCIAL Apesar do caráter genérico de “documentação” atribuído aqui à fotografia por se considerar a imagem, dentro das mais diversificadas categorias possíveis como o retrato, a paisagem, a arquitetura, um verdadeiro documento antropológico capaz de revelar informações sobre o tema fotografado em qualquer circunstância; é importante definir mais especificamente a “fotografia documental” para a ampliação dessa reflexão. Para isso, recorta-se o conceito que Luiz Eduardo Robinson Achutti (1997, p. 31) define em sua obra “Fotoetnografia” e que explica a fotografia documental como aquela que se refere a uma fotografia que busca a documentação social, tendo como seu universo de investigação os homens, suas especificidades culturais, suas condições de moradia e de trabalho, suas práticas religiosas e suas formas de lazer, numa determinada época. Pensando mais amplamente esse conceito, pode-se dizer basicamente que a maioria das fotografias é documental por referirem-se a lugares, situações, fatos, enfim, cenas que contemplam a vida do homem no planeta. Quando Margaret Cameron e Nadar fotografavam pessoas com suas técnicas apuradas na confecção de retratos que mais pareciam um “clone” real do retratado, a busca, por mais que fosse altamente estética, contemplava também a imortalização de uma expressão, de uma vestimenta, de um status que fazem parte daquele momento, daquela história e para os quais hoje olhamos e imaginamos como poderia realmente ser aquele tempo. Assim, quando Fenton ou Brady se arriscavam na cobertura das batalhas daquela época não o faziam apenas comercialmente, mas certamente, preocupados em deixar para a posteridade um pouco da realidade que ali, naquele momento, somente eles e alguns oficiais e soldados, podiam vivenciar. Não fosse essa característica imortalizadora do momento, a fotografia teria morrido em seu nascedouro e jamais conquistado o espaço que conquistou em tão pouco tempo, e os fatos ainda seriam contados através da interpretação pessoal dos pintores com suas obras únicas. Nesse sentido, documentação passa a ser sinônimo de fotografia, constituindo-se em sua própria essência. 3 Dentro dessa breve reconstituição história da fotografia, e referindo-se ainda a categoria da fotografia de documentação social, aquela realizada já com a preocupação prévia de ser usada como denúncia, ou como informação de uma realidade social que merece ser observada e refletida, um primeiro fotógrafo merece ser lembrado, Jacob August Riis, um dinamarquês que imigrou para os Estados Unidos aos 21 anos e depois de passar por severas privações nas ruas de Nova Iorque, conseguiu emprego como jornalista chegando em pouco tempo a repórter policial do New York Tribune. Baseado em sua experiência de ter vivido na rua como miserável, Riis dirige sua atenção exclusivamente para a denúncia das condições de vida dos imigrantes favelados nova-iorquinos. Certo de que apenas a palavra impressa não era convincente o bastante para passar sua mensagem, Riis começa fotografar a miséria em que viviam os desamparados nos subúrbios da cidade, preocupando-se prioritariamente com o fato a sua frente e relegando a estética a segundo plano. Mesmo assim, seu trabalho conta com uma riqueza de detalhes assustadora, praticamente toda ela entregue ao acaso, ao qual Riis não despreza em nenhum momento. Seu livro de 1890, How the Other Half Lives, gerou forte impacto na sociedade pelo teor realista, levando o próprio presidente Roosevelt, antes governador de Nova Iorque, promover reformas sociais. Esse fato comprova a função primordial que a fotografia de documentação social deve desempenhar na transformação da sociedade a que se refere, e demonstra o tamanho da influência do trabalho de Jacob Riis que chega a ser considerado o precursor da utilização da linguagem fotográfica na abordagem dos aspectos sociais da vida do outro, buscando na forma de denúncia social, provocar estranhamento da middle-america, das elites e das instituições (ACHUTTI, 1997, p. 32). 4 JACOB AUGUST RIIS: Alojada na delegacia. Uma tábua como cama, 1890. Reprodução do livro Modos de Olhar. Nova York, The Museum of Modern Art, 1999, pág. 49 Como numa sequência quase cronológica ao trabalho de Riis, surge Lewis Wickes Hine, um sociólogo formado pelas Universidades de Chicago, Columbia e Nova Iorque, para onde vai em 1901 lecionar na School of the Ethical Cultural Society. Lewis Hine começa a estudar fotografia seriamente com mais de trinta anos, principalmente quando percebe que a máquina fotográfica é um poderoso instrumento para o tipo de trabalho que se propõe a investigação social. Nos anos anteriores a Primeira Guerra, fotografa a chegada em Ellis Island de dezenas de milhares de imigrantes; as casas insalubres onde passaram a morar e as fábricas miseráveis que tinham como local de trabalho. Preocupado em documentar as condições de vida das classes trabalhadoras americanas, seu principal trabalho foi a documentação que realizou sobre os trabalhadores infantis nas diversas indústrias por todo o 5 país, em 1906, quando é convidado a participar da equipe de fotógrafos da National Child Labor Committee, empenhando-se no registro das evidências do descumprimento das leis trabalhistas nos Estados Unidos, principalmente aquelas que diziam respeito ao trabalho infantil. Com uma característica diferente do trabalho de Riis, Hine não tinha em suas fotos o mesmo sentimento de pena deste, e sim, um sentimento de celebração de coragem, aptidão, força física e tenacidade, amor e respeito por aqueles que casualmente eram tidos como “gente comum” (SZARKOWSHI, 1990, p. 60). Com esse intuito, em 1920, Lewis Hine retrata o lado positivo do trabalho adulto destacando a habilidade e a coragem do trabalhador americano e publica em 1932 “Men at Work – Photographic Studies of Modern Men and Machines”, livro que documenta a construção do Empire State Building, o edifício mais alto da época, e que se converteu em uma homenagem a esse trabalhador. Hine, certo de que sua fotografia era subjetiva e que por isso constituía-se em uma crítica poderosa e de rápida compreensão sobre o impacto que um sistema econômico tem sobre a vida das classes menos privilegiadas e mais exploradas, chama esse trabalho de “fotografia de interpretação”, o que nos leva a refletir nessa definição como sendo a própria essência da fotografia de documentação social, que tem como função primordial promover a discussão e a transformação sociais através da interpretação das mensagens, do “texto”, nelas contidos. Graças ao seu conhecimento como sociólogo, Hine consegue entender as causas daquele fenômeno e suas consequências sociais, o que o faz fotografar preocupado exclusivamente com essa questão, se desviando de todas as outras, centrando suas fotos no propósito de transmitir a verdadeira condição do retratado. Com isso, suas imagens extrapolam as meras ilustrações e contam uma história, dão um testemunho fiel da vida do “outro”, indo mais além do que o próprio Riis havia chegado, como coloca Achutti (1997, p. 34): 6 Seu trabalho era de qualidade superior ao trabalho de Riis. Hine não se limitava a fazer denúncias, suas fotografias revelam um evoluído domínio da técnica fotográfica posta a serviço de uma objetividade absoluta no intento de registrar minuciosamente o ambiente e as condições de trabalho de seus fotografados. Ele utilizava a fotografia como parte de um processo educacional e de um projeto sociológico maior. Fazia um trabalho de pesquisa e observação participante; muitas vezes, suas fotografias serviam de pretexto para entrevistar, registrar depoimentos dos seus fotografados.Encarava com importância esses depoimentos individuais que ia recolhendo em meio ao fazer fotográfico. LEWIS WICKES HINE: Algodoeira, em Carolina, 1908. Reprodução do livro História de La Fotografia. Barcelona: Editora GustavoGili, 1983, pág. 236 7 LEWIS WICKES HINE: Operários da construção do Empire States Building Nova York, 1931. Reprodução do livro História de La Fotografia. Barcelona: Editora GustavoGili, 1983, pág. 237 LEWIS WICKES HINE: Jovem judia russa em Ellis Island, 1905. Reprodução do livro História de La Fotografia. Barcelona: Editora GustavoGili, 1983, pág. 236 8 Observando o desenrolar da história da fotografia de documentação social, que iria influenciar fotógrafos de todo o mundo num estilo de construção da informação de maneira muito particular e própria, percebe-se que o seu surgimento e o seu desenvolvimento ocorreram nos Estados Unidos, principalmente no começo do século vinte. Um fato determinante no fortalecimento desse tipo de fotografia, inclusive porque envolve o próprio governo norte-americano, é a crise econômica que assola o mundo em 1930. Alarmados pela depressão que nada poupou, artistas promovem uma volta ao realismo, utilizando suas obras para instruir o povo da situação vigente. No cinema, por exemplo, os produtores cinematográficos, habituados às produções de entretenimento, dirigem suas lentes para os problemas e situações reais, produzindo filmes que fogem das características artísticas consagradas para a época, e que se autodenominavam “documentais”, constituindo-se, como coloca John Grierson: em el registro y em la interpretación de los hechos, era um nuevo instrumento de influencia pública, que podría aumentar la experiencia y llevar al nuevo mundo de nuestra ciudadanía havia la imaginación. Nos prometía el poder de hacer dramas teatrales com nuestras vidas cotidianas y hacer poesía con nuestros problemas (NEWHALL, 1983, p. 238). Na fotografia, por sua vez, vários fotógrafos do mundo inteiro estão trabalhando dentro desse pensamento. Porém, em 1935, o governo norte- americano convoca os fotógrafos do país para colaborarem na luta contra a depressão econômica. Nessa época, Franklin Roosevelt incorpora à sua política a Resettlement Administration, um projeto que visava minorar os problemas das populações que viviam no meio rural através de empréstimos subsidiados a pequenos proprietários, da organização de aldeias rurais e do auxílio aos trabalhadores imigrantes. Em 1937 a RA é integrada ao Departamento de Agricultura, com o nome de Farm Security Administration 9 (FSA), e seu coordenador, Roy Stryker tem a missão de dirigir um amplo programa fotográfico que documentaria em profundidade a vida rural norte- americana. Para isso, Stryker forma inicialmente um grupo de cinco fotógrafos, entre eles, Arthur Rothstein – químico graduado em Columbia e iniciante na fotografia científica, Carl Mydans – repórter-fotográfico que já havia trabalhado para a RA, Walker Evans – que viria a ser um dos maiores artistas da história da fotografia, Bem Shahn – que era pintor e ilustrador, e Dorothea Lange – uma documentarista californiana, e mais tarde, John Collier Jr.- um fotógrafo que hoje é conhecido como um dos principais representantes da Antropologia Visual americana. Dentro de suas particularidades, cada fotógrafo presta sua contribuição enveredando seu trabalho para um determinado caminho. Entre eles, os que mais se destacam são Walker Evans, que preocupado com a forma de vida daquela parcela do povo americano, viaja e documenta as condições da terra, os procedimentos dos fazendeiros, suas culturas, suas escolas, igrejas e casas; Dorothea Lange que é proprietária de um estúdio de retratos em São Francisco e durante a repressão econômica se preocupa com as filas para conseguir comida passando a fotografar aquela situação e fazendo, além de um documento preciso, um comentário emotivo já que ela tinha um profundo sentimento de respeito e compaixão por aquelas pessoas; e Bem Shahn, um pintor que fotografa para a FSA com uma máquina de visor invertido, permitindo-o fotografar pessoas sem que elas o vissem, conseguindo retratos espontâneos que lembram o trabalho de Bresson, fotógrafo que Shahn admirava. Nos sete anos que a FSA realiza essa documentação da vida rural norte-americana, onze fotógrafos produzem 270 mil fotografias, hoje entregues aos cuidados da Biblioteca do Congresso em Washington. 10 DOROTHEA LANGE: Mãe em migração, Nipomo (Califórnia), 1936. Reprodução do livro História de La Fotografia. Barcelona: Editora GustavoGili, 1983, pág. 234 DOROTHEA LANGE: Campo tratorizado, Childress Country ( Texas ), 1938. Reprodução do livro História de La Fotografia. Barcelona: Editora GustavoGili, 1983, pág. 242 11 WALKER EVANS: Garagem, Atlanta (Geórgia), 1936. Reprodução do livro História de La Fotografia. Barcelona: Editora GustavoGili, 1983, pág. 239 WALKER EVANS: Habitações no Alabama, 1936. Reprodução do livro História de La Fotografia. Barcelona: Editora GustavoGili, 1983, pág. 241 12 Enquanto a FSA promove uma radiografia das populações rurais nos Estados Unidos, outros fotógrafos se lançam em documentações diferentes, e tão importantes quanto, no resgate da sociedade a que se destinam, seja a norte- americana ou outra. Como exemplos desses outros trabalhos de documentação social no começo do século, merece registro a produção de Berenice Abbott que em 1929 abandona seu estúdio em Paris e retorna aos Estados Unidos para fazer uma documentação da cidade de Nova Iorque. Atenta à vida diversificada e complexa de uma Nova Iorque que já se constituía numa grande cidade, ela fotografa não só os aspectos externos, mas o espírito daquelas pessoas, daquelas ruas, dos cantos que compõem o cenário escolhido. Sua obra hoje é de extrema importância histórica porque muitos dos lugares fotografados por ela já não existem mais, tragados pela voracidade de um progresso alucinante, característica fundamental da chamada “Big Apple”. Além de Berenice, e agora na Alemanha, August Sander também deixa uma contribuição significativa para a fotografia documental registrando, em 1910, centenas de tipos humanos alemães, na tentativa de produzir um Atlas que reúna representantes de todas as classes da estrutura social. Graças ao nazismo, não consegue publicar todo o seu trabalho, nos legando apenas parte dele. BERENICE ABBOT: Wall Street, Nova York, 1933. Reprodução do livro História de La Fotografia. Barcelona: Editora GustavoGili, 1983, pág. 245 13 AUGUST SANDER: Homem sem emprego, Alemanha, 1928. Reprodução do livro História de La Fotografia. Barcelona: Editora GustavoGili, 1983, pág. 247 14 BIBLIOGRAFIA BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Lisboa: Edições 70, 1980. ACHUTTI, Luis Eduardo Robinson. Fotoetnografia. Porto Alegre: Tomo/Palmarinca, 1997. BARDI, Pietro Maria. Em torno da Fotografia no Brasil. São Paulo: Banco Sudameris, 1987. CARAMELLA, Elaine. História da Arte – Fundamentos Semióticos. Bauru: Edusc, 1998. 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