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59 SO CI - R ev isã o: V ito r - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 8/ 01 /2 01 5 TEORIA ANTROPOLÓGICA Unidade II 5 TEMPO E ESPAÇO NA PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA Para iniciarmos nossa interlocução, partimos de alguns pressupostos acerca das noções de tempo e espaço para as Ciências Sociais, em específico, a antropologia: 1) tempo e espaço são conjuntos de processos simbólicos; 2) ambos passam por transformações e não existe como algo dado, a priori, da vida social; 3) seus significados diferem de acordo com o contexto sócio-histórico; e 4) são categorias do entendimento humano – ou representações coletivas –, nos termos de Émile Durkheim (1978). Assim, depende de uma construção que envolve processos sociais e históricos e, embora construídos na vida social, seus sentidos são compartilhados coletivamente. Mas Durkheim não foi o único autor a escrever sobre o tema. Propõe-se, então, uma discussão desses conceitos ao longo das Ciências Sociais. 5.1 A noção de tempo A passagem do tempo, como a percebemos, não é “natural”. Tempo – como espaço – é uma unidade de medida da passagem dos dias que é arbitrária. Isso quer dizer que os parâmetros estabelecidos para mensurar a passagem do tempo hoje – ano, mês, dia, hora, minuto, segundo etc. – foi estabelecido em dado momento da história. Em diferentes ocasiões, houve medidas diferentes para compreender a passagem do tempo. Assim, a contribuição da antropologia é entender os contornos específicos deste processo em contextos socioculturais e históricos diferentes daquele que percebemos como “o único possível”. 5.1.1 Tempo em Émile Durkheim Para Durkheim, em seu manuscrito As Formas Elementares da Vida Religiosa, o tempo constitui um elemento de estruturação da realidade humana. Isso quer dizer que se o tempo há de significar alguma coisa, deve ser um tempo compartilhado, social, ou então não é nada. Para o autor, o tempo não é pré-social, homogêneo e vazio. Ele é uma categoria objetiva e coletiva. Ainda, o tempo é uma forma de estruturação do real. A passagem do nível individual ao coletivo – entendida como o reconhecimento do tempo e da experiência da vida coletiva – não pode ser tomado como autoevidente. 5.1.2 Tempo em Georg Simmel Na perspectiva de Simmel (2006), a reflexão sobre a vida é historicamente construída. Tempo, consciência e causalidade são formas de manifestar a fissura do ser. Desejo e fruição estão na base de uma mudança que instaura o processo de humanização no ser humano. Nesse contexto, percebe a vida como êxtase, como uma potência em si mesma: o sentido e a finalidade última da existência não lhe é externa, mas a própria existência. Esta é uma fronteira entre o “ser” e o “não ser”: este limite é a transcendência do finito na direção de sua própria finitude, e não na direção de sua superação. 60 SO CI - R ev isã o: V ito r - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 8/ 01 /2 01 5 Unidade II O tempo deve ser reconhecido como fator estruturante do “ser-no-mundo” e da possibilidade do saber. Em Heidegger, esta indeterminação ontológica é uma consequência inevitável do reconhecimento de nossa temporalidade (finitude ou “ser-para-a-morte”). Nessa concepção ser e tempo são conceitos correlatos. Para Simmel, o “não ser” é um caso especial do “ser”, portanto ainda é “ser”. A tradição crítica define tempo como fundamento ontológico do acesso ao mundo (possibilidade de cognição, práxis e autorreflexão). Na concepção de Simmel, a temporalidade funda a possibilidade do “ser humano” e está intimamente relacionada à sua “futuridade”, ao seu “ser-não-mais”, à sua morte. O tempo, conforme o vemos, é um tempo compartilhado. Isso implica aceitar a coexistência, em que o ser é no mundo sempre lançado em um mundo de existentes. Este tempo compartilhado também corresponde ao programa cultural no qual nascemos, é o tempo recebido de nossos ancestrais (fazer face à morte). Assim, a determinação do tempo compartilhado por meio do tempo socialmente programado (calendário, de rituais, trabalho, lazer etc.) constitui uma resposta existencial a nossa própria mortalidade. Ele é o outro lado do reconhecimento de nossa futuridade, de nosso “ser-para-a-morte”. O tempo compartilhado significa o esquecimento do possível reflexo de nosso “ser-temporal”. Todo convívio social pressupõe um programa cultural, uma tradição em que compreendemos nosso presente como uma determinação do passado. Quadro 1 Presente, passado e futuro em Simmel Passado Presente Futuro – Atinge o presente como memória. – Aquilo cuja atualidade tem que ser negada, mas cuja realidade tem que ser recuperada continuamente. – Da mesma forma que o ponto não é espaço o presente também não é tempo. – Transcendência em duas direções opostas: 1) estica-se em direção ao passado; 2) espreita o futuro como memória ou ansiedade. – Movimento natural de transcendência do agora. A relação entre presente e passado é ambígua e complexa: o presente dirige-se ao passado a partir de uma tradição, do reconhecimento de nossa historicidade. O presente se dispõe em relação a um futuro e não se desloca de si em relação a este. Como as fronteiras do passado, presente e futuro são indefinidas, indaga-se prontamente a possibilidade de criar um pensamento que elabora a condição ontológica do ser humano (do “ser-no-mundo”) como eminentemente temporal. Lembrete Tempo, consciência e causalidade são formas de manifestar a fissura do ser. 61 SO CI - R ev isã o: V ito r - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 8/ 01 /2 01 5 TEORIA ANTROPOLÓGICA 5.1.3 Tempo em Norbert Elias Para Elias (1998), o tempo costuma ser associado a fenômenos da natureza, à duração dos acontecimentos e à linguagem. Contudo, é preciso que se faça a crítica aos referenciais que o consideram fora das relações humanas. Em quase todos os momentos de nossas vidas somos marcados pela sutileza temporal – nos referimos ao tempo como se tivesse uma forma objetiva de existência, uma natureza. Temos a falsa compreensão de que o tempo é concebido igualmente por todas as pessoas. Por esta razão, o ideal seria perguntar: “o que estamos perguntando?”, “o que é?”, “quem o percebe?”, “do que falamos?”. A natureza do tempo é social, pois é dependente da experiência e das convenções das diferentes sociedades. Tanto tempo quanto espaço são conjuntos de processos, passam por transformações, não existem como coisa dada e seus significados diferem de acordo com o contexto. A experiência é um aspecto primordial para sua compreensão. Elias também desenvolve a noção de tempo social. Este funciona como um relógio, que indica o tempo. A diferença é que o faz por meio de símbolos. O tempo é uma instituição social aprendido na socialização. Assim, ele não é absoluto, tem caráter ficcional e é um padrão criado de diferentes formas em diferentes tempos e espaços. Cumpre a função de ordenação social, uma vez que esta exige a aplicação de padrões à totalidade, para que o grupo funcione devidamente. Se a história não é universal e um acontecimento não é experimentado por todos do mesmo modo, haverá sempre a possibilidade de novas interpretações e refutações, o mesmo ocorre com o tempo. Isso porque os saberes humanos sempre partem de outro saber humano. O tempo é coisa humana, algo social, e cada sociedade o cria e o compreende à sua maneira. Um mesmo grupo pode passar por vários estágios de utilização do tempo. Desse modo, é possível percebermos que o capitalismo contemporâneo é o tempo histórico mais dependente do tempo, uma vez que tudo em nossa sociedade é submetido à regulação temporal. As sociedades complexas (urbanas) usam uma ordenação do tempo para que os eventos possam ser localizados conforme ocorreram, por exemplo, matematicamente (sistema de horas, datas etc.). O que chamamos de “tempo” é um elemento comum a uma diversidade de processos específicos nos quais os homens procuram marcar com a ajuda de relógios ou calendários. Por isso, ele é uma instituiçãopadronizada socialmente, que responde à necessidade de precisarmos ordenar os eventos. É justamente a institucionalização do tempo que faz com que o pensemos como exterior, que não ele não pertence a uma padronização socialmente organizada. Ainda, vale dizer, o tempo associa-se ao território: ambos são referências da fundação das sociedades nacionais. 5.1.4 Tempo em Jeffrey Alexander Para Alexander (2011), as origens de quase todas as comunidades são imaginadas e localizadas em um tempo sagrado/mítico (mitos de origem). A temporalidade cria ordem de civilidade no tempo: uma ordenação de qualidades categóricas que se transforma no fundamento de reivindicações de privilégios no interior da sociedade civil. A passagem do tempo pode atenuar diferenças (por exemplo: marcas de 62 SO CI - R ev isã o: V ito r - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 8/ 01 /2 01 5 Unidade II assimilação no caso de deslocamento de outras sociedades capturadas e incorporadas em um tempo anterior). 5.2 A noção de espaço Assim como o tempo, a forma como compreendemos a espacialidade é produzida no interior da vida social. A própria noção de medida que conhecemos data da época imediatamente posterior da Revolução Francesa, período em que o governo daquele país fez um pedido à academia francesa de ciências para que fosse estabelecida uma unidade de medida única – o metro – para cessar os conflitos inerentes à convivência de diferentes sistemas de medidas na sociedade da época. Assim, se uma das formas de avaliação de espaço mais técnicas que possuímos foi estabelecida arbitrariamente, é possível inferirmos que a maneira como nos apropriamos do espaço e o percebemos também tem relação a coisas que aprendemos da vida social, e ela não é linear em todos os lugares. 5.2.1 Espaço em Erving Goffmann Para Goffmann (apud FREHSE, 2008), autor interessado nas interações face a face, estas não se desenvolvem uniformemente entre todos os presentes em um contexto espaço-temporal. As interações sociais, para além de se desenrolarem diferentemente “no” e “em função do” espaço tem a capacidade de produzir infinitamente novas configurações no interior das quais os atores sociais se prendem ou desprendem de determinados papéis sociais. Espaço é aquilo que organiza a noção de pertencimento a um lugar, a um “grupo” fixado a partir um lugar. Ou seja, mesmo que não parece em um primeiro momento, depende das formas explícitas ou implícitas de relações sociais que estabelecemos. 5.2.2 Espaço em Anthony Giddens Giddens (1991) foca sua análise na contextualidade da vida social e das instituições sociais. Toda a vida social ocorre em interseções de presença e ausência no “escoamento” do tempo e na “transformação gradual” do espaço. Aqui percebemos um deslocamento da ideia clássica sociológica de sociedade como sistema bem delimitado. Este conceito é, ao cabo, substituído pela perspectiva que centraliza na “forma como a vida social está ordenada ao longo do tempo e do espaço’” (GIDDENS apud HALL, 1997, p. 72). Segundo o autor, caso o espaço nas sociedades pré-modernas coincidisse com o lugar e a vida social nesse contexto social, esta era dominada pela presença, e o espaço na modernidade mostrava-se diferente de lugar. Giddens entende que a noção de lugar remete àqueles espaços que permanecem fixos, àqueles em que temos raízes. Já sua noção de espaços vai além. Para o pesquisador, eles podem ser cruzados em um piscar de olhos, por meio do uso das tecnologias de comunicação – do telefone à internet - ou os transportes velozes – como aviões e trens-bala. Alinhado com esta perspectiva, Hall argumenta que 63 SO CI - R ev isã o: V ito r - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 8/ 01 /2 01 5 TEORIA ANTROPOLÓGICA Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as “identidades” se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem “flutuar livremente” (Ibidem, p. 80, grifo nosso). O impacto disso na vida social é que as relações com os indivíduos ausentes são possíveis via interações que não sejam face a face. 5.2.3 Espaço: autores contemporâneos e globalização O espaço tende a comprimir-se e esvaziar-se nas sociedades contemporâneas em fluxos emaranhados e interfaces eletrônicas, e pode sumir (ou reaparecer) no apertar de um botão ou de uma tecla. A velocidade anulou a experiência concreta do lugar que originalmente ancorava os conteúdos das interações sociais. Assim, Henri Lefebvre (2008) destaca que é preciso reconhecermos que o tempo é indissociável do espaço, que ele se inscreve no espaço e toda realidade no espaço se expõe e explica por uma gênese no tempo. Nessa direção, Hall argumenta, ainda, que os lugares permanecem fixos e os espaços podem ser cruzados. Para Hall (1997), desde os anos 1970, o ritmo da integração global e seu alcance aumentaram de forma expressiva, o que acelerou fluxos e laços entre nações. Hoje há uma ideia de “mundo menor” e “menos distância”: o que acontece em dado local logo impacta a outros. Este processo se caracteriza pela compressão “espaço-tempo” ou, nos termos de Harvey (2005), parece que tudo o que há é o presente. A internet é uma das grandes responsáveis pela diminuição de distância entre fronteiras e redução do tempo de compartilhamento de informações no mundo contemporâneo. Este sistema de comunicação modificou intensamente as formas como nos relacionamos e lidamos com a distância e as temporalidades. É preciso reconhecer que diferentes épocas culturais combinam de modo diverso o tempo e o espaço. Estes são coordenadas básicas de todos os sistemas de representação, e é por isso que as mudanças que sofrem impactam as identidades, uma vez que estas “[...] estão localizadas no espaço e no tempo simbólicos. Elas têm aquilo que Edward Said chama de suas ‘geografias imaginárias’” (HALL, 1997, p. 76, grifo do autor). O autor também cita alguns exemplos de sistemas de representação: escrita, pintura, desenho (dimensões = espacialidades), narrativas (começo, meio, fim = temporalidade). Estas representações afetam o senso de lugar (casa/lar) ou suas localizações no tempo: 1) as tradições inventadas que ligam passado e presente; 2) as narrativas de nação que conectam o indivíduo aos eventos históricos nacionais e, portanto, lhe conferem importância; 3) os mitos de origem que situam o presente no passado. 64 SO CI - R ev isã o: V ito r - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 8/ 01 /2 01 5 Unidade II 5.2.4 Marc Augé e o debate sobre os “não-lugares” Segundo Augé (1994), vivemos em mundo ao qual ainda não aprendemos a olhar, num lugar em que transformações aceleradas geram três figuras de excesso: do tempo, do espaço e da individualização das referências, um local em que imperam a circulação, a comunicação e o consumo, originando a situação atual a qual ele chama de supermodernidade, e dela se originam espaços inéditos, os quais o autor denomina de não-lugares. O não-lugar seria um espaço que não é identitário, nem relacional, nem histórico. São espaços não simbolizados, construídos para determinados fins. Também podem ser instalações luxuosas necessárias à circulação de pessoas e bens (vias rápidas, aeroportos), assim como os próprios meios de transporte, cadeias de hotéis ou os grandes centros comerciais. Nele, estamos apenas de passagem. Embora a perspectiva de Augé tenha tido algum impacto para se pensar locais de passagem, hoje se faz uma crítica a essa concepção: mesmo que existam enunciados de que a noção de tempo-espaço hipercomprimido dominará todas as formas de relacionamento social, resultando daí uma fragmentação dos laços sociais e, consequentemente, causando a erosão dos lugares, os espaços têm resistido à globalização. Figura 6 – Aeroporto Internacional de BrasíliaPresidente Juscelino Kubitschek (2014) Para Augé, em razão do fluxo intenso de pessoas e da forma como é ocupado, o aeroporto é uma imagem ideal de não-lugar. Para Tim Cresswell (2006), os não-lugares, nos termos de Augé, não substituíram e nem se impuseram hegemonicamente à forma espacial e ao conteúdo social dos “lugares-lugares”. Isso ocorre porque não-lugares (aeroportos, rodovias etc.) não incorporaram uma negação tão radical dos locais tradicionais. Há uma apropriação e vivência localizada desses espaços pelos indivíduos/grupos que vivem neles diariamente. O conceito de não-lugar é insustentável, pois é preciso “historicizar” o espaço para o contextualizar. Um aeroporto, por exemplo, é usado como metáfora das plataformas globais (“nós” das redes), constituído por fluxos intensos e infindáveis trajetos de circulação internacional. Assim, um aeroporto, 65 SO CI - R ev isã o: V ito r - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 8/ 01 /2 01 5 TEORIA ANTROPOLÓGICA como qualquer outro lugar, não deve ser entendido como mera abstração que levita acima da vida de todos os dias. Ele também revela diferentes contextos de apropriação de um espaço que não é tão neutro ou tão uniforme como parece à primeira vista (CARMO, 2008). A reação de alguns autores contra o anúncio prematuro da “morte dos lugares” não é conservadora, pois não se entende os locais como meros reservatórios de resistência em relação às forças que emanam da globalização (econômicas, sociais e culturais). Dessa forma, percebem que a metanarrativa dos “lugares perdidos” nas Ciências Sociais é uma submissão da categoria espaço a uma lógica binária (abstrata e exígua de materialidade): • Local – global; • Centro – periferia; • Lugar – não-lugar. Figura 7 – Panorama da Cidade de Brasília, DF (2014) A forma como nos relacionamos com o espaço na metrópole, sua ocupação, diferencia-se da de outros modos de viver e morar, assim como transitar pelo mundo. O caráter dicotômico simplificou excessivamente a composição socioespacial das sociedades (sobretudo nas visões de cidade). A vida social, o cotidiano, é multidimensional, – assim como o espaço vivido, e é difícil de se fazer uma classificação como 1 e 0, ou seja, em pares de oposição binária. A lógica binária é hierárquica e não contempla a realidade em sua complexidade. No caso dos lugares, isso fica evidenciado se compreendermos que qualquer lugar remete a várias dimensões diferenciadas, que extrapolam as fronteiras físicas. Assim, trajetos de mobilidade abarcam o cruzamento de diversas dimensões – portas que se abrem e fecham e produzem uma gama de lugares concretos. A noção de dimensões também não torna, por si só, o espaço menos abstrato e próximo do concreto. A questão aqui é não transformar o mundo em um plano destituído de lugares, tampouco reduzi-lo a um aglomerado fragmentado de lugares. 66 SO CI - R ev isã o: V ito r - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 8/ 01 /2 01 5 Unidade II Uma solução para o debate seria investir em uma proposição analítica, na qual as dimensões sejam aglutinadas e colidam entre si em vez de se sobreporem, catapultando diferentes significados a partir de dinâmicas consideradas como contraditórias ou antagônicas. Observação O espaço como campo de forças é gerador de tensões que podem resultar em oposições irredutíveis, mas também em associações e ligações. As mobilidades geram novas espacialidades, que informam e redirecionam os circuitos (globais, locais etc.). As dinâmicas espaciais não são lineares e não podem ser consideradas uniformes. Por este motivo, é importante refletir a partir da ideia de que a espacialidade produz e é produzida por assimetrias. O mundo é menos plano, mais “nuançado” do que algumas perspectivas defendem e, portanto, é importante fazer sua perspectiva em várias dimensões. A abolição das dimensões no estudo da composição socioespacial pode ter como efeito perverso a despolitização dos lugares. Trata-se aqui de não perceber os lugares a partir de uma utopia emancipatória, mas empreender uma noção sociológica, que inscreva nos lugares as múltiplas dimensões que os constituem. Ou seja, de compreender os lugares como produzidos por produtores da própria globalização. Lembrete O não-lugar seria um espaço que não é identitário, nem relacional, nem histórico. São espaços não simbolizados, construídos para determinados fins. 5.3 Determinismo geográfico e biológico e a noção de tempo e espaço O determinismo biológico diz respeito às teorias que atribuem capacidades específicas inatas a “raças” ou a outros grupos humanos. Em outras palavras, é uma teoria que entende as características genéticas e/ou biológicas como determinantes da cultura de um povo. Apesar de os antropólogos constatarem que as diferenças genéticas não são determinantes das diferenças culturais, ainda é um pensamento bastante comum na vida social. Frases como “o samba está no sangue” ou “todo japonês é bom em matemática” são representativas desse tipo de pensamento, uma vez que se pressupõe que a aptidão para uma atividade ou aprendizado diz respeito à ascendência daquele indivíduo. O que a antropologia compreende é que, ao contrário desse pensamento, aprender a dançar bem ou desenvolver a aptidão para o cálculo ou qualquer outra matéria tem relação com as influências do meio social a que um indivíduo pertença. Ou seja, a pessoa aprende porque é um atributo cultural valorizado no grupo social ao qual está inserido. O determinismo geográfico, por sua vez, diz respeito às teses que defendem que diferenças de ambiente físico (clima, relevo etc.) condicionam a diversidade cultural. Nesse pensamento, fatores geográficos e ambientais são condições importantes na dinâmica do progresso (ou atraso) de um povo. 67 SO CI - R ev isã o: V ito r - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 8/ 01 /2 01 5 TEORIA ANTROPOLÓGICA Um exemplo desse tipo de visão é a ideia de que povos de regiões frias não demonstram emoções e aqueles que vivem em áreas quentes tendem a ser mais afetivos. Cita-se, ainda, que pessoas que moram em locais frios são mais afeitas ao trabalho enquanto os indivíduos de zonas quentes são mais preguiçosos. A partir de estudos antropológicos, é possível contestar esse tipo de pensamento. Isso porque, para eles, é possível existir uma grande diversidade cultural localizada na mesma categoria de ambiente físico. Significa quer dizer que povos podem desenvolver modos de vida bastante diferentes entre si, mesmo vivendo em condições ambientais e climáticas semelhantes. Por exemplo, no Parque Nacional do Xingu, onde vivem diversos grupos indígenas, como Kamayurá, Kalapalo, Trumai e Waurá, estes povos se dedicam à pesca e à caça de aves. Já os Kayabi preferem os mamíferos de grande porte como a anta, o veado etc. Outro exemplo vem dos índios do sudoeste estadunidense: enquanto os Pueblo são aldeões, com economia agrícola baseada no milho, os Navajo, que durante muito tempo viveram da coleta de castanha e da caça, atualmente se abastecem do pastoreio de ovinos. Tais exemplos indicam que não é possível admitir a ideia do determinismo geográfico ou biológico. A posição da antropologia moderna é que a “cultura age seletivamente”, e não casualmente, sobre seu meio ambiente. Ainda, as diferenças de comportamento entre os homens não podem ser explicadas mediante diversidades somatológicas (biológicas) ou mesológicas (geográficas). Os determinismos geográficos e biológicos não explicam a diversidade dos seres humanos. Isso implica compreender que a cultura diversifica a humanidade de forma expressiva, apesar de sua comprovada unidade biológica. Ainda, é preciso reconhecer que a grande qualidade da espécie humana é romper com suas próprias limitações. Figura 8 – A persistência da memória (Salvador Dalí) O quadro apresentado pode nos ajudar a pensar sobre o lugar do tempo na vida social (e em nossas próprias vidas). A partir da adoção da perspectiva antropológicana análise do tempo e do espaço, podemos relativizar essas noções e perceber seu caráter construído e contingencial. A multiplicidade cultural é proveniente da criatividade humana. Diferentes grupos buscam soluções distintas para questões e problemas que, em geral, são compartilhados por toda a humanidade. 68 SO CI - R ev isã o: V ito r - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 8/ 01 /2 01 5 Unidade II Sobrevivência, relação com a natureza, assim como o tempo e o espaço são algumas dessas indagações que são postas à vida de todas as pessoas. Tempo e o espaço, longe de serem noções comuns a todas as culturas, são percebidos de maneira distinta por diferentes povos. A forma como um pescador se relaciona com o espaço não é a mesma com que um morador de uma grande metrópole. O modo como um pequeno agricultor lida com o tempo não é igual ao de um trabalhador assalariado na fábrica. Em alguns contextos, a organização da vida se dá a partir de noções de tempo que não são as das horas do relógio, mas tem ligação com a posição do sol, o amanhecer e o anoitecer. Assim, não precisamos nos deslocar para sociedades muito diferentes das nossas, como fizeram os primeiros antropólogos, para perceber que diferentes povos lidam de modos diferentes com essas questões. Saiba mais De qualquer modo, a fim de obter informações mais específicas sobre tempo e espaço, leia: PRITCHARD, E. Os Nuer. São Paulo: Perspectiva, 1978. 6 ANTROPOLOGIA EM COMUNIDADES RURAIS E MIGRAÇÕES De uma forma ou de outra, ao longo da história da humanidade, os fenômenos migratórios sempre existiram. Podemos encontrar diversos exemplos, como as Grandes Navegações, o povoamento dos países que foram colônias dos países europeus, a migração involuntária dos africanos trazidos à força no período da escravidão, nas intensas migrações dos pós-guerras mundiais, entre vários outros fluxos, que acompanhamos cotidianamente por meio das notícias de telejornal, pelos deslocamentos de nossos amigos e parentes ou mesmo com as nossas locomoções. Esses fluxos sempre foram fundamentais para a compreensão das dinâmicas da vida social ao longo da história. Se em alguns momentos podemos encontrar fluxos internacionais, nas migrações internas – como o deslocamento de inúmeras pessoas das zonas rurais para as cidades – também são intensificadas. Entender os motivos e as consequências desses fluxos e suas percepções é muito importante, já que impactam a vida na sociedade em muitos aspectos e, certamente, ampliam o contato entre modos de vida e visões de mundo diferentes, e os conflitos e contradições inerentes a esta aproximação. 6.1 Culturas nacionais, identidades culturais e globalização Stuart Hall (1997) define as identidades culturais como “[...] aqueles aspectos de nossas identidades que surgem de nosso ‘pertencimento’ a culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e, acima de tudo, nacionais” (p. 8). Assim, podemos depreender que as identidades culturais informam as identidades nacionais e, portanto, as noções de pertencimento a um país que todos nós temos quando somos socializados dentro da (ou em relação ao) nação em que nascemos. A cultura nacional funciona como um sistema de representação e indica tudo aquilo que pensamos e como vivemos a experiência deste 69 SO CI - R ev isã o: V ito r - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 8/ 01 /2 01 5 TEORIA ANTROPOLÓGICA pertencimento. Embora seja uma identidade solidificada de maneira bastante peculiar durante a socialização, é também, como as outras identidades sociais e culturais, produzida de forma relacional. A identidade nacional não está impressa nos nossos genes, mesmo que a pensemos como parte de nossa “natureza”. Não nascemos com ela, uma vez que é formada e transformada no interior das representações sociais. Assim, também não são tão lineares, homogêneas e unificadas como parecem ser. Ainda, é preciso pensá-las de modo relacional: quando dizemos que somos brasileiros, dizemos mais do que “nasci no Brasil”. Queremos expressar a ideia de que não somos de uma ampla lista de outros pertencimentos nacionais. Ou seja, ao afirmarmos o que somos, também renegamos o que não somos. A nação, nesse contexto, não diz respeito apenas a uma entidade política. A ideia de nação produz sentidos, é um sistema de representação cultural. As pessoas participam deste conceito, de sua produção. Não são apenas cidadãos legais: ajudam a criar os significados e sentidos deste pertencimento. Tomaz Tadeu da Silva (2007) nos alerta que é fácil reconhecer a identidade (a nacional e todas as outras) quando a pensamos como aquilo que se é ou, de forma autorreferencial, como aquilo que somos. Nesta linha de raciocínio, o autor questiona, A identidade é simplesmente aquilo que se é: “sou brasileiro”, “sou negro”, “sou heterossexual”, “sou jovem”, “sou homem”. A identidade assim concebida parece ser uma positividade (“aquilo que sou”) [...] Nessa perspectiva, a identidade só tem como referência a si própria: ela é autocontida e autossuficiente. Na mesma linha de raciocínio, também a diferença é concebida como uma entidade independente. Apenas, neste caso, em oposição à identidade, a diferença é aquilo que o outro é: “ela é italiana”, “ela é branca”, “ela é homossexual”, “ela é velha”, “ela é mulher”. Da mesma forma que a identidade, a diferença é, nesta perspectiva, concebida como autorreferenciada, como algo que remete a si própria. A diferença, tal como a identidade, simplesmente existe (SILVA, 2007, p. 74). Contudo, a proposição da diferença não se esgota na categorização de si ou do outro. O que é proposto pelo autor, então, é uma (re)significação do conceito de diferença, provocando a ruptura com a visão cristalizada da identidade como norma. Desse modo, a inclusão das diferenças seria um pressuposto para uma boa prática pedagógica, e não o resultado obtido. Destaca-se, então, a seguinte proposta por ele apresentada, que: Assim como a definição da identidade depende da diferença, a definição do normal depende da definição do anormal. Aquilo que é deixado de fora é sempre parte da definição e da constituição do “dentro”. A definição daquilo que é considerado aceitável, desejável, natural, é inteiramente dependente da definição daquilo que é considerado abjeto, rejeitável, antinatural. A identidade hegemônica é permanentemente assombrada pelo seu Outro, sem cuja existência ela não faria sentido (SILVA, 2007, p. 84). 70 SO CI - R ev isã o: V ito r - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 8/ 01 /2 01 5 Unidade II Quando falamos em diferenças precisamos reconhecer que identidade e diferença são produzidas nas interações entre indivíduos na vida social. Ambas são produzidas durante o processo de socialização, um sistema contínuo de aprendizado cultural, que se inicia no nascimento e perdura até a morte de um indivíduo. Nesse curso de socialização é que aprendemos e assimilamos os valores e experiências de uma cultura, aquela à qual pertencemos. Cabe perguntar como a globalização – fenômeno de expansão mundial do sistema capitalista, mas que não diz respeito apenas à economia, mas também à cultura – afeta as identidades nacionais? Vivemos hoje em um mundo globalizado. Este processo, iniciado na última década do século XX, mudou a forma de relacionamento global e, portanto, afeta a ideia de fronteiras e identidades nacionais de modo particular. A globalização diz respeito a processos atuantes em escala global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações, recombinando-as e estruturando novas formas de se pensar espaço e tempo. O impacto disso é a construção de um mundo mais conectado, do ponto de vista da realidade e da experiência. Assim, produz inclusive uma nova percepção da definição sociológica clássica de “sociedade” como um sistema bem-delimitado. O que ocorre é um novo arranjo dessa perspectiva, uma substituição por outra visão da vida social,que se concentra no modo como esta se ordena ao longo do espaço e do tempo, pensando trânsitos, deslocamentos, migrações e a própria produção dos processos históricos e culturais. Dessa forma, podemos cogitar que a identidade nacional e o pertencimento a ela constitui uma “comunidade imaginada”. As diferenças entre nações estão mais nos modos como são imaginadas e, a partir disso, são construídas em contrastes umas com as outras, do que em diferenças “naturais” dentre os diferentes povos do mundo. As culturas nacionais representam um discurso, um modo de construir sentido e organizar nossas ações no mundo e nossas concepções sobre nós mesmos. São compostas por instituições culturais, símbolos e representações. Em geral, a narrativa da cultura nacional é contada a partir de elementos como: • narrativas da nação: englobam as histórias e as literaturas nacionais pela mídia e pela cultura popular. Podemos dizer que são estórias, imagens, panoramas, cenários, símbolos e rituais nacionais que, do modo como são narrados, dão sentido à nação; • narrativas sobre as origens, a continuidade, a tradição e a intemporalidade: representações que revelam a verdadeira natureza das coisas, algo primordial, que pode estar “adormecido”, mas “está lá”. • invenção da tradição: refere-se a um conjunto de práticas, de origem ritual ou simbólica, que “[...] buscam inculcar certos valores e normas de comportamentos através da repetição, a qual, automaticamente,implica em continuidade com um passado histórico adequado” (HOBSBAWN; RANGER apud HALL, 1997, p. 59). 71 SO CI - R ev isã o: V ito r - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 8/ 01 /2 01 5 TEORIA ANTROPOLÓGICA • mito fundacional: história que localiza a origem/fundação da nação, do povo e de seu caráter nacional num passado tão distante, que lhe lança não a um tempo “real”, mas a um tempo “mítico”. Um exemplo disso é, no caso brasileiro, o mito das três raças. Esse mito, desenvolvido pelo antropólogo Darcy Ribeiro e incorporado no discurso social acerca da produção do povo brasileiro, é uma concepção que prega que a cultura e a sociedade brasileira foram constituídas, de forma harmônica e igualitária, a partir da influência cultural de “três raças”: europeia, africana e indígena. Nele, a miscigenação, biológica e cultural, ocorre a partir dessas três influências, que dão uma característica única e peculiar ao povo brasileiro. Esta perspectiva ainda é bastante forte dentro da forma como se pensa a identidade nacional brasileira, embora seja criticada por fornecer uma visão simplista do processo colonizador no país. Isso porque, o mito das três raças minimiza a violência da dominação colonialista exercida por europeus (portugueses) sobre povos indígenas e africanos. Assim, desconsidera que não houve uma contribuição equilibrada, já que sabemos quem exercia o predomínio e que nossa visão de história nacional é contada a partir do ponto de vista do colonizador. A crítica reconhece que há contribuições de todos estes povos, mas que não há como pensar esta história sem estimar a dominação e a desigualdade inerente às relações estabelecidas ao longo da história do país. Ainda, avalia-se esta perspectiva por encobrir as lógicas de exclusão e discriminação, como o racismo, que afeta aquelas pessoas que não são brancas ao longo da história do país. Cita-se, ainda, a: • ideia de um povo puro e original: concepção que pensa o povo que pertence a uma identidade natural a partir de uma noção de originalidade, a qual desconsidera as migrações e os processos históricos que contribuíram para que cada nação fosse constituída com base em diversas influências, e não apenas de uma. De acordo com tais observações, podemos imaginar que o discurso da identidade nacional não é tão moderno quanto parece, já que não pertence ao presente, e sim a uma espécie de narrativa mítica do passado. Ainda, que constrói identidades que se posicionam de modo ambíguo entre passado e futuro. Vejamos o quadro a seguir: Quadro 2 tempo de grandeza e glória Passado mítico + Luta pela purificação (Hoje) ◄ expulsar os “outros”, que ameaçam sua identidade Os ideais nacionalistas no mundo moderno revelam um desejo ambíguo de, por um lado, fazer uma assimilação daquilo que é universal e, por outro, da adesão ao particular articulada a uma reinvenção das diferenças. Trata-se, portanto, de um universalismo por meio do particularismo que, ao mesmo tempo, busca um particularismo via universalismo cultural. 72 SO CI - R ev isã o: V ito r - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 8/ 01 /2 01 5 Unidade II Isso porque as culturas nacionais buscam unificação mesmo entre membros de uma nação que são muito diferentes entre si – podemos pensar aqui na articulação dos marcadores sociais das distinções, por exemplo, – e na ideia de que todos pertencem a uma mesma família nacional. Nesse ínterim, é importante notar que a cultura nacional é mais que um simples ponto de lealdade, de união e de identificação simbólica. Ao cabo, ela revela também uma estrutura de poder cultural, em que os membros estão agrupados mediante uma lógica de exercício da dominação. Isso se dá, de acordo com Hall (1997), por fatores como: 1) a maior parte das nações consiste de culturas separadas, que só foram unificadas por um longo processo de triunfo violento –, isto é, pela supressão forçada da disparidade cultural. Cada conquista foi fruto da subjugação de povos dominados e de seus hábitos, costumes, línguas e tradições e tentou impor uma hegemonia cultural mais unificada de forma, em geral, violenta; 2) nações são formadas por diferentes classes sociais, grupos étnicos e de gênero; 3) nações ocidentais modernas foram também os centros de império ou de esferas neoimperiais de influência, exercendo hegemonia cultural sobre a cultura dos povos colonizados. Partindo dessas contradições, torna-se ainda mais difícil tentar unificar a identidade nacional em torno da ideia de “raça”. Raça não diz respeito a uma característica biológica, genética ou científica. É uma categoria discursiva, pois lança mão de discursos sobre as diferenças físicas como marca simbólica, a fim de distinguir um grupo de outro. Vale lembrar que as diferenças genéticas, no plano discursivo, são com frequência utilizadas como refúgio das ideologias racistas que defendem a eugenia (ideia de raça pura), o nazismo e o fascismo. Mais recentemente, tivemos o início do racismo cultural, que implica a substituição da ideia da superioridade ou inferioridade biológica substituída por uma imagem de cultura nacional homogênea em sua “branquidade”, porém precária interna e externamente e, portanto, sujeita a questionamentos acerca de sua veracidade. Analisando esses fatores, podemos pensar sobre a inadequação de imaginar as culturas nacionais como unificadas; é preciso encará-las como constituintes de um “dispositivo discursivo”, que representa a diferença como unidade ou identidade. Isso porque as culturas nacionais são permeadas por profundas divisões e distinções internas, unificadas por meio do exercício de diversos modos de poder cultural. Assim, antes em pensarmos as nações modernas e as identidades nacionais como “puras”, devemos interpretá-las como culturas híbridas, pensando criticamente acerca de seu processo de formação ao longo do tempo. A ideia de identidade cultural unificada não resiste às diferenças sobrepostas ou ao evidenciamento das divisões e contradições internas existentes dentro de uma nação. Ao discutirmos deslocamentos de identidades nacionais, devemos observar como as culturas nacionais operam na costura das diferenças sociais em uma única identidade. 73 SO CI - R ev isã o: V ito r - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 8/ 01 /2 01 5 TEORIA ANTROPOLÓGICA 6.2 Migrações Podemos definir migração, dentro do contexto da antropologia, como todo deslocamento e movimentação de populações e/ou indivíduos que vão de um lugar(seu lugar de origem) para outro lugar (de destino). Implica, necessariamente, em maior ou menor grau, deixar para trás redes de sociabilidade, parentela ou em uma mudança de residência, de cidade, de estado ou de país. Boa parte do mundo tal qual a concebemos é fruto de ou é permeado por inúmeros fluxos migratórios ao longo da história. Diversos autores se dedicaram a compreender os fenômenos migratórios, sobretudo a partir da virada para o século XX. A migração foi tema de análise para diversos teóricos clássicos, que a abordaram de modos distintos. Malthus a compreendia como uma consequência direta e inevitável da superpopulação. O autor pensava principalmente nos fluxos migratórios da Europa para o Novo Mundo, em que migrantes fugiam dos ciclos de pobreza e miséria a que estavam submetidos em seus países de origem (SASAKI; ASSIS, 2000). Já Durkheim, Marx e Weber tentavam compreender as migrações como consequências diretas da industrialização e do crescimento do capitalismo. O desenvolvimento do sistema capitalista, para estes autores, dava-se muito em razão da industrialização, da urbanização e da mobilidade populacional (Idem). De qualquer modo, a questão da locomoção dos povos era um tema secundário dentro da análise social. Só no início do século XX que pesquisadores da Escola de Chicago, preocupados com o grande fluxo de migrantes para os Estados Unidos, pesquisam-na como tema central para a análise da vida social. Nesse período, estudando sobre o grande fluxo migratório de poloneses para os EUA, objetivam compreender se haveria uma assimilação cultural dos imigrantes, que incorporariam então a cultura do local de destino, deixando de lado os seus próprios valores culturais. Cunha-se, neste período, o termo melting pot – algo que tem um sentido de fusão de culturas – que passaria a indicar “... esse processo de assimilação e/ou americanização dos imigrantes, não implicando, no entanto, o total abandono de seus valores e modo de vida, mas sim em se tornar grupos cada vez mais amplos e inclusivos” (SASAKI; ASSIS, 2000, p. 4). Ocorre que, ao longo do tempo, não houve uma concretização do melting pot. O que houve foi que estes grupos tornaram-se grupos étnicos, que afirmavam suas diferenças em relação à cultura local. Durante os anos 1950, no pós-guerra, houve uma reconfiguração dos circuitos migratórios internacionais. Grupos que antes não migravam passaram a fazê-lo, em busca de melhores condições de vida. Assim, destaca-se esse processo com os povos asiáticos, latino-americanos e outros grupos não brancos. A partir desses novos deslocamentos, os pressupostos “assimilacionistas” são postos novamente em cheque; houve, novamente, um reforço da ideia de grupos étnicos e um enfraquecimento da ideia original de melting pot. Ainda, com relação aos processos de industrialização, os estudos sobre migração reconhecem que, enquanto as populações tradicionais locais tendem a se apropriar e utilizar das benesses dos sindicatos e do Welfare State, os imigrantes, 74 SO CI - R ev isã o: V ito r - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 8/ 01 /2 01 5 Unidade II as minorias étnicas e as mulheres tendem a permanecer em empregos marginais e com acesso restrito aos bens sociais, às leis trabalhistas e à cidadania. Grupo étnico: conjunto de indivíduos que partilham de certa uniformidade cultural. Partilham, portanto, da mesma cultura e seus traços, tais como: tradições, conhecimentos, técnicas, habilidades, língua e comportamento. Melting pot: expressão que vem da ideia de cadinho, recipiente em que são fundidos ou derretidos diversos metais ou outras substâncias. Quando aplicado à ideia de sociedade, diz respeito aos lugares que agrupam pessoas com diferentes modos de vida, culturas, religiões e raças/etnias. A concepção do mito das três raças, criadora da identidade nacional brasileira, é um exemplo deste pensamento, ao pressupor que o Brasil é um cadinho de três raças, uma mistura de indígenas, negros e brancos. Welfare State: ou políticas de bem-estar social, é [...] um conjunto de serviços e benefícios sociais de alcance universal promovidos pelo Estado, com a finalidade de garantir uma certa “harmonia” entre o avanço das forças de mercado e uma relativa estabilidade social, suprindo a sociedade de benefícios sociais que significam segurança aos indivíduos para manterem um mínimo de base material e níveis de padrão de vida, que possam enfrentar os efeitos deletérios de uma estrutura de produção capitalista desenvolvida e excludente (GOMES, 2006, p. 203). Como exemplos desses serviços, podemos citar as políticas de previdência e seguridade social. Ao longo da história, embora sejam reconhecidas as contribuições dos imigrantes na construção de países como os do Novo Mundo, também encontramos resistências a esses processos migratórios, muitas vezes permeados por visões racistas, xenofóbicas e etnocêntricas das populações migrantes. Isso ocorre especialmente quando esta migração é realizada por populações oriundas de países e lugares mais pobres e/ou de populações não brancas. No Brasil, país que se reconhece como um “cadinho de três raças”, ou nos EUA, nação em que há também o reconhecimento da importância da migração para a formação do país, a rejeição aos imigrantes também é elevada. Não é incomum encontrarmos na vida social um discurso que defende o fechamento de fronteiras e que encara tais povos como perigosos, marginais e que colocam em risco os empregos e a vida social como um todo. Este fenômeno, que chamamos de xenofobia, é compartilhado em diversos lugares do mundo ao longo da história. Ocorre que, enquanto discurso de exclusão e de ódio, deixa de reconhecer as contribuições que os migrantes dão para os lugares de destino. Um exemplo disso é o reiterado ódio a nordestinos, que eventualmente ocorre em lugares como São Paulo ou no sul do Brasil. Diversos estereótipos são acionados sobre migrantes que vieram dos estados do nordeste, como o de que não trabalham e não se empenham para melhorar de vida, diferente do que fazem as populações que estavam nesses lugares antes de sua chegada. 75 SO CI - R ev isã o: V ito r - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 8/ 01 /2 01 5 TEORIA ANTROPOLÓGICA Migração e xenofobia O processo migratório e a globalização formaram um elo inseparável desde a última metade do século passado. Os motivos são vários: eficácia dos meios de transporte e comunicação, desenvolvimento do setor turístico, desigualdades socioeconômicas entre os países etc.; porém, houve várias consequências, umas positivas e outras negativas. Nos países mais desenvolvidos, onde há maior contingente de imigrantes, ocorre um sério problema: a xenofobia (termo derivado do grego – xénos: “estrangeiro”; ephóbos: “medo”). As migrações geram vários encontros de povos de diferentes culturas, raças, credos e religiões. No geral, é algo positivo. O Brasil, por exemplo, é um país rico em diversidade cultural e étnica. Entretanto, quando os nativos passam a não aceitar os imigrantes, há um grave problema social. A história recente da humanidade nos dá vários exemplos de como a xenofobia é algo grave. No Holocausto, ocorrido durante a Segunda Guerra Mundial, na Alemanha, os nazistas exterminaram aproximadamente 6 milhões de judeus. Isso porque acreditavam que os judeus eram uma raça inferior e manchavam o nome da Alemanha de Hitler, e, logo, deveriam ser exterminados. A xenofobia ocorre frequentemente nos países mais ricos e desenvolvidos, principalmente na Europa. Os nativos acreditam que os imigrantes são responsáveis pelo desemprego, criminalidade e todos os problemas sociais do país. Na Europa, alguns grupos xenófobos são conhecidos entre nós, como os skinheads, na Inglaterra, e os neonazistas, na Alemanha. Outros grupos não são tão conhecidos assim, como os bloc identitaire (França), casapound (Itália) e english defence league (Reino Unido). A xenofobia pode ocorrer também dentro deum mesmo país, como acontece no Brasil e nos Estados Unidos, por terem dimensões territoriais enormes. Nos Estados Unidos há uma discriminação histórica contra negros, considerados como “lixos” e inferiores aos brancos. O seriado de tevê Todo Mundo Odeia o Chris (originalmente Everybody Hates Chris, do canal The CW Television Network, dos EUA), transmitido no Brasil pela Rede Record, demonstra de forma cômica e sarcástica como o negro é visto e tratado nos EUA. É um programa humorístico baseado na infância e parte da adolescência do humorista Chris Rock, que vale a pena conferir e entender melhor a problemática. No caso do Brasil, tem-se o exemplo das discriminações sofridas pelos nordestinos no sudeste brasileiro. Geralmente, são atribuídos estereótipos de forma pejorativa, tais como “cabeça chata”, “baianos”, “paraíbas”, entre outros. Essas pessoas preconceituosas são, no mínimo, desinformadas a respeito da constituição do território, da história e da economia brasileira. A xenofobia, portanto, trata-se de um racismo, um preconceito cultural, uma discriminação racial, econômica e social ao estrangeiro. O encontro de diversos povos, 76 SO CI - R ev isã o: V ito r - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 8/ 01 /2 01 5 Unidade II religiões, sotaques, classes econômicas e sociais, no geral, é positivo. Contribuem para a riqueza cultural e econômica de uma nação. Fonte: Almeida (2013). É necessário desconfiar desses discursos. Se pensarmos em uma cidade como São Paulo, por exemplo, é impossível não reconhecer que muitos prédios da cidade contaram, em sua construção, com a mão de obra – em geral submetida a um regime de precarização do trabalho – de pessoas vindas do nordeste do país. O mesmo tipo de desconfiança é lançado aos trabalhadores bolivianos hoje, que diversas vezes são submetidos a regimes de trabalho escravo ou semi-escravo e que são discriminados nos discursos sociais acerca da migração. Cabe fazer a pergunta – incômoda, porque mexe nos sistemas de exclusão étnico-racial culturalmente construídos em todos nós ao longo do processo de socialização – por que ao mesmo tempo diz-se com orgulho que italianos, alemães e outros migrantes europeus ajudaram a construir o país e não reconhecemos a mesma ajuda em migrantes não brancos? Quais são os elementos sociais que fazem com que alguns migrantes façam história e outros sejam excluídos dela? Não há resposta simples para estas questões, mas a antropologia nos ajuda justamente a tentar olhar para as lógicas existentes nesses discursos, que respeitam e enaltecem algumas diferenças e fazem o oposto com algumas outras. 6.3 Antropologia em comunidades rurais Durante certo período, a antropologia preocupou-se com a possibilidade da “morte do nativo”, ou seja, do desaparecimento das sociedades tradicionais pelo avanço inegável e avassalador do sistema capitalista em todo o mundo. Assim, a ameaça do desaparecimento de indígenas, aborígenes e outros grupos tornou-se um temor também para a própria continuidade da disciplina. Inicialmente, e em alguns lugares do mundo, alguns antropólogos passaram, então, a dedicar-se a outras populações tradicionais, como aqueles que vivem em comunidades rurais, que vivem da agricultura e da pecuária e que, se incorporaram os modos de vida capitalista, fizeram-no de modo peculiarmente diferente do que aconteceu nas grandes cidades do mundo. De acordo com Seyferth (2011), tínhamos uma variação conceitual dessa análise, que partia da ideia de que as sociedades camponesas constituiriam sociedades parciais e com culturas igualmente parciais, comparando esses grupos com aqueles que residiam nas cidades, e culminava na concepção de que há uma elasticidade significativa nisso, a qual pode ser entendida como comunidade rural e seus modos de vida. Ao longo do tempo, as pesquisas nesse campo foram se intensificando e indicando a possibilidade de haver modos de vida bastante peculiares dentre essas populações – que podem incluir de agricultores a pescadores – demonstrando que suas percepções acerca de si e do que fazem podem variar bastante contextualmente. A própria migração do campo para a cidade, que sofreu momentos diversos a partir da Revolução Industrial, constitui-se num objeto de análise importante. As razões pelas quais se migra variam e 77 SO CI - R ev isã o: V ito r - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 8/ 01 /2 01 5 TEORIA ANTROPOLÓGICA indicam uma dificuldade inerente a este campo de pesquisas em conseguir dar definições objetivas e fechadas de “comunidade”, “ruralidade” ou “campesinato”. Outra questão, cuja equação não se dá facilmente, é pensar como ocorrem as relações de trabalho nos contextos rurais. A ideia de família que produz conjuntamente questiona o conceito clássico de patrão e empregados, que usamos para analisar as sociedades industriais. Ao mesmo tempo, as relações de poder entre o pai (pai-patrão) e os demais membros da família são contraditórias e importantes para compreendermos a relação social e a vida cultural dessas pessoas. Destaca-se, ainda, que precisamos pensar como a globalização impacta os modos de vida e produção rurais. Afinal, a emergência de novas tendências e atores – como o agronegócio e a pesca em escala industrial – também modificam a relação dos pequenos produtores com a sociedade mais ampla. Dessa forma, intensificam uma série de questões e problemas – como as desigualdades que atingem essas populações em grande escala. Por vezes, a necessidade da agroindústria impulsiona novos processos migratórios do campo para a cidade, em busca de melhores oportunidades de vida. Cabe a nós, nas Ciências Sociais, tentarmos compreender essas mudanças e quais os impactos delas na vida desses grupos e da cultura, em seu sentido mais profundo. Embora no Brasil o campo da antropologia urbana tenha se ampliado muito nas últimas décadas e, dadas as mudanças sociais, houve também questionamentos acerca do fim do campesinato como objeto de análise, este é ainda uma importarte área de pesquisa, mesmo que tenha passado por ressignificações a partir das inúmeras contradições internas a que foi submetida ao longo do tempo. Saiba mais Para entender melhor a questão do campesinato, leia: SEYFERTH, G. Campesinato e o Estado no Brasil. Revista Mana, Rio de Janeiro, v. 17, n. 2, ago. 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ar ttext&pid=S010493132011000200006&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 5 dez. 2014. 7 ANTROPOLOGIA URBANA 7.1 Contextualizando a antropologia urbana Na origem das duas disciplinas, havia uma ideia compartilhada e difundida no meio científico de que os objetos de estudo da sociologia e da antropologia deveriam ser distintos e distantes uns dos outros. Enquanto se pensava que a sociologia deveria estudar as sociedades pós-industriais, ocidentais e urbanas, caberia à antropologia, em contrapartida, debruçar-se sobre as sociedades não ocidentais, distantes geográfica e culturalmente e, em tese, “exóticas”. Contudo, ao longo dos anos, essa perspectiva foi se alterando. Para Enrico Spaggiari (2011), 78 SO CI - R ev isã o: V ito r - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 8/ 01 /2 01 5 Unidade II a tentativa de compreender o mundo contemporâneo é um desafio instigante para a antropologia, assim como a delimitação de suas subáreas tem mudado de forma profunda o fazer antropológico. Atualmente, essa divisão encontra-se bastante distorcida, em especial no contexto brasileiro. Apesar dessa distinção em alguns espaços, no Brasil, desde a década de 1970, inicia-se a tendência de se fazer a pesquisa antropológica nas cidades, nos contextos urbanos, por vezes em locais próximos e conhecidos do pesquisador. Seguindo essa inclinação, é possível afirmar que hoje, no país, há uma vertente consolidada da antropologia, em cuja fonte outras áreas das ciências bebem constantemente – como a comunicação social, a educação, a psicologia e outras mais. Podemosdizer que no presente muitos campos científicos se valem da antropologia urbana e da etnografia em contextos urbanos para pensar a realidade social ou para compreender o contexto sociológico que é pertinente às suas pesquisas. Analisando do ponto de vista da tradição antropológica em pesquisar povos que vivem em contextos outros que o das cidades, talvez, numa primeira avaliação, pudesse se inferir que há duas antropologias atualmente: uma que mantém a tradição da área em pesquisar “longe de casa” e outra que busca compreender as relações sociais que perpassam nossa própria sociedade. Contudo, vale seguir a pista de Michel Agier, quando nos relata que “[...] não há duas antropologias, mas sim maneiras diferentes de fazer antropologia com objetos diferentes e, portanto, campos diferentes, maneiras de pesquisar diferentes” (2011, p. 192). Para Gilberto Velho (2009), a complexidade dos contextos urbanos é justamente o que faz necessário que qualquer a abordagem científica da cidade não possa abrir mão da inter e da multidisciplinaridade. Para o autor, é a heterogeneidade da vida urbana que leva ao desenvolvimento desta área de estudos. Desde o seu advento das cidades, ela se torna um objeto de interesse de cientistas e romancistas, que buscam, cada um a seu modo, compreendê-las e dissecá-las. Nesse contexto, “a cidade é um dos palcos e desafios principais para essa busca de compreensão e conhecimento da sociedade moderno-contemporânea” (Ibidem, p.11). A vida da cidade é repleta de contradições, problemas, ambiguidades e complexidades. Nela temos a convivência de hábitos, costumes, realidades diferentes. Tradição e modernidade coabitam na cidade, ora de forma conflitante, ora integradas uma a outra. Contudo, é preciso admitir que a definição de cidade, seus contornos e suas formas, depende da sociedade e/ou país em que estão inseridas. Assim, antes de pensar em uma visão essencialista de cidade, em um modelo universal de, é preciso debruçar-se sobre suas organizações socioespaciais específicas, assim como ao modo como cada contexto diferente produz relações sociais que lhe são próprias (LE GUIRRIEC, 2008). Se podemos admitir que as cidades não são todas iguais, também podemos concluir de que há várias formas de realizar uma pesquisa sobre cada uma delas ou sobre seu contexto interno. Partindo dessa percepção, torna-se fundamental compreender que se há várias maneiras de se fazer antropologia, há igualmente diferentes possibilidades de fazer antropologia em contextos urbanos. Assim, destaca-se que uma das principais características desse campo de estudo é justamente a riqueza de enfoques e metodologias de que se pode lançar mão para pesquisar cidades. 79 SO CI - R ev isã o: V ito r - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 8/ 01 /2 01 5 TEORIA ANTROPOLÓGICA Figura 9 – Árvore dos pedidos Um exemplo de que tradição e modernidade encontram-se na vida na cidade: menina brasileira pendurando seus pedidos na árvore no Festival das Estrelas (Tanabata Matsuri), festa tradicional japonesa replicada anualmente no bairro da Liberdade, em São Paulo. A ideia da antropologia urbana é, nos termos de Agier (2011), entender as dinâmicas da cidade por “sobre os ombros” daquelas pessoas que vivem nela. Importa analisar como os indivíduos percebem a dinâmica de suas vidas nas diferentes cidades, seus fluxos pelo espaço da cidade, as ocupações, usos e significados que cada lugar pode ter para cada um deles. Assim, esse modo de fazer a antropologia pode nos levar a compreender como a vida na cidade e as relações sociais estabelecidas a partir desse contexto “fabrica” os indivíduos que vivem nela. Ao mesmo tempo, também faz que compreendamos como essas pessoas, em contrapartida, produzem as dinâmicas sociais e interações com outras por onde passam. As relações sociais na cidade contemplam várias dimensões, que constantemente se entrecruzam. A etnografia, como método de pesquisa, é fundamental para tal compreensão. Sem ela, torna-se impossível apreender as tão diversas situações de comunicação de indivíduos que vivem ou passam pelas cidades, assim como de que forma essas interações ocorrem em contextos específicos. A etnografia da cidade pode se debruçar sobre situações, interações, espaços, movimentos, deslocamentos, saberes, situações, lugares, crenças, vivências, entre tantos outros aspectos da vida. 7.2 Escola de Chicago e a antropologia urbana Tanto a sociologia urbana quanto a antropologia urbana são grandes tributárias dos estudos realizados no âmbito da Escola de Chicago, iniciados em meados das décadas de 1920 e 1930, nos Estados Unidos da América. Bastante pautados no método etnográfico e nas teorias que levavam em conta o 80 SO CI - R ev isã o: V ito r - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 8/ 01 /2 01 5 Unidade II interacionismo simbólico, esta escola foi responsável pela introdução de uma série de novos métodos de pesquisa, embasados no empirismo, na coleta de dados, e que buscava levantar, compreender e catalogar as mais diversas expressões das patologias sociais da época. Dessa forma, aqueles comportamentos vistos como “desviantes” eram o foco dos estudos de tais trabalhos. Alguns conceitos importantes: Desvio: comportamentos desviantes são aqueles que infringem as normas sociais por acaso, por desconhecimento ou intencionalmente. Para Émile Durkheim, todo crime é resultado de um comportamento desviante, mas nem todo comportamento desviante resulta em crime. Assim, a categorização do desvio vai depender de aspectos como: gravidade do descumprimento da regra (que regra social foi descumprida) e ser ou não flagrado no ato. Laraia (2009), considerando que nenhum indivíduo domina todas as regras da cultura em que está inserido ou mesmo concorda com elas, destaca que todos estamos sujeitos a desrespeitar normas sociais. Por exemplo, pessoas que seguem os preceitos da Igreja Católica e que usam métodos contraceptivos descumprem as normas desta instituição. Nesse contexto, portanto, adotam um comportamento desviante. Marginalidade: refere-se à ausência de pertencimento social. O indivíduo marginal é aquele que, abandonando os preceitos de seu grupo social de origem, não se ajusta satisfatoriamente a nenhum outro. Questões como subordinação a sociedades dominantes, restrição à participação nas estâncias decisórias na arena política, pobreza, más condições habitacionais, privação dos bens da cidadania podem ser características inerentes à marginalidade. Por ser uma questão estrutural de um dado contexto social, esta tem contornos próprios em diferentes contextos sócio-históricos. Interacionismo simbólico: Hebert Blumer cunhou o termo interação simbólica, teoria cujos princípios básicos são: 1) os atores agem em função do sentido que os indivíduos dão à ação, que é reciprocamente orientada; 2) a expressão dada à ação depende da interação; 3) as interações ocorrem dentro de uma lógica que lhes é própria. Nessa teoria, a sociedade é um processo, e não uma estrutura. Dessa maneira, a estrutura não teria influência direta na determinação das ações dos indivíduos. Como é uma teoria da interação, em especial face a face, propõe um método de investigação e análise microssociológica. Erving Goffman, um dos principais expoentes dessa perspectiva teórica, discorda de Blumer por reconhecer que as estruturas de fato influenciam as ações sociais. Nesse sentido, a partir da metáfora do teatro, desenvolve a ideia de papéis sociais. Para o autor, quando as pessoas participam de uma interação social, já conhecem previamente o quadro da interação (regras, estrutura etc.). Assim, lançam mão desse conhecimento prévio para projetar as suas ações de acordo com o que pensam que é esperado daquela situação. Goffmann entende que há, por vezes, situações inesperadas que mudam o quadro e se sobrepõem a ele. Assim, mesmo que os atores sociais busquem seguir um roteiro, a cada representação de si na vida cotidiana elementos novossurgem e modificam a cena inicialmente conhecida. Robert Park, um de seus grandes nomes, incentivava os alunos a fazer pesquisas in loco, dizendo que eles deveriam sujar as mãos e as calças. A busca por dados coletados pelo estudioso permeou esta geração de pesquisadores, que desejavam obter relatos de vida de indivíduos ou grupo que viviam em situações marginais diretamente do grupo consultado. Assim, valorizava-se a voz e a experiência relatada pelas pessoas conforme percebiam suas próprias vidas e ações na vida social, o que produz uma 81 SO CI - R ev isã o: V ito r - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 8/ 01 /2 01 5 TEORIA ANTROPOLÓGICA forma de fazer pesquisa que valorizava os sentidos e significados fornecidos pelas pessoas analisadas ao que vivenciavam ou sentiam. Figura 10 – Vitrine de estúdio de tatuagem A fotografia apresentada é da vitrine de um estúdio de tatuagem na Galeria do Rock (São Paulo), espaço comercial frequentado por pessoas adeptas de diversas tendências musicais, dentre eles punks, skinheads, metaleiros, rockabillies, entre outros, e que poderia ser considerado como um local de pesquisa entre os pesquisadores da Escola de Chicago. Dessa maneira, grupos historicamente marginalizados puderam ser ouvidos, como migrantes, grupos de marginais e criminosos, jovens membros de gangues, músicos, frequentadores de guetos etc. Essas pesquisas foram realizadas nas regiões mais carentes da cidade, em que havia deterioração das instituições sociais (família, escola etc.), muitas vezes com alto índice de criminalidade. Conforme Renato Cancian (2009, p. 55), “ao centrar seus estudos nos problemas sociais, [...] ela foi criticada por negligenciar a elaboração de teorias sociológicas a partir da reflexão intelectual dissociada da sociologia aplicada”. Embora a crítica faça sentido, isso não invalida as inúmeras contribuições que a Escola de Chicago forneceu às Ciências Sociais. A Escola de Chicago influenciou gerações de pesquisadores estadunidenses após a década de 1930 e teve grande impacto na formação da antropologia urbana no Brasil. Alguns de seus estudantes vieram ao Brasil para realizar suas pesquisas, como Ruth Landes e Donald Pierson. Robert Park chegou a visitar o país em idade avançada. Outro estudioso que teve um diálogo estreito com o Brasil foi Howard Becker, que mantinha expressiva troca intelectual com Gilberto Velho. Saiba mais Para saber mais sobre a Escola de Chicago, acesse: BECKER, H. A escola de Chicago. Revista Mana, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, out. 1996. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010493131 996000200008&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 9 dez. 2014. 82 SO CI - R ev isã o: V ito r - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 8/ 01 /2 01 5 Unidade II 7.3 Gilberto Velho O antropólogo fluminense Gilberto Velho (1945-2012), professor titular e decano, até sua morte, do Departamento de Antropologia do Museu Nacional/UFRJ, é o mais proeminente autor da área de antropologia urbana no Brasil. Possui diversas publicações sobre teoria e método em antropologia urbana, tendo formado diversas gerações de pesquisadores que realizaram estudos dentro desse campo. Autor de uma obra extensa, também orientou a pesquisa de mais de 100 (cem) alunos ao longo de sua carreira, o que faz dele o dirigente com maior número de orientandos da antropologia brasileira. Ganhou diversos prêmios, além de haver ocupado posições de destaque nas instituições mais relevantes da área. Foi também membro da Academia Brasileira de Ciências. Saiba mais Para conhecer melhor o pesquisador, leia: VELHO, G. Antropologia urbana: encontro de tradições e novas perspectivas. Sociologia, Problemas e Práticas, n. 59, jan. 2009. Disponível em: <http://sociologiapp.iscte.pt/ fichaartigo.jsp?pkid=10120>. Acesso em: 8 dez. 2014. 7.4 Etnografia na antropologia urbana Imagine-se o leitor sozinho, rodeado apenas de seu equipamento, numa praia tropical próxima a uma aldeia nativa, vendo a lancha ou o barco que o trouxe afastar-se no mar até desaparecer de vista. Suponhamos, além disso, que você seja apenas um principiante, sem nenhuma experiência, sem roteiro e sem ninguém que o possa auxiliar. Isso descreve exatamente a minha iniciação na pesquisa de campo, no litoral sul da Nova Guiné. Lembro-me bem das longas visitas que fiz às aldeias durante as primeiras semanas; do sentimento de desespero e desalento após inúmeras tentativas obstinadas mais inúteis para estabelecer contato real com os nativos e deles conseguir material para minha pesquisa. Passei por fases de grande desânimo, quanto então me entregava à leitura de um romance como um homem que, numa crise de depressão e tédio tropical, se entrega à bebida (MALINOWISKI, 1976, p. 23). Vale discutir e analisar brevemente o método etnográfico, o qual foi inaugurado por Bronislaw Malinowski (1976) a partir de autores como Clifford Geertz (1997) e Gilberto Velho (1999), a fim de discutir sobre a antropologia urbana. Importa pensar aqui o impacto das noções de “experiência próxima” e “experiência distante” de Geertz, traçando um paralelo com o debate sobre a pesquisa do que é “familiar” proposta por Velho. Conjuntamente a tal avaliação, articula-se aos conceitos de Geertz a questão que diferencia o que é “familiar” e “conhecido”, proposta por Velho, em relação ao estudo feito pelo pesquisador em seu próprio grupo. Ainda, é necessário acrescentar que, se o método – qualquer método – funciona como uma régua, como uma medida, cada um corresponde a uma necessidade de avaliação. Assim, para obter várias 83 SO CI - R ev isã o: V ito r - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 8/ 01 /2 01 5 TEORIA ANTROPOLÓGICA medidas, é preciso utilizar várias metodologias. A realidade é tão rica que não existem modelos suficientes que consigam mensurar toda a realidade da vida (social). Geertz, ao pensar sobre as noções de “experiência próxima” e “experiência distante”, parte da publicação do Diário de Malinowski para desenvolver seu argumento. Assim, faz-se necessária uma abordagem sobre o autor antes de entrar no tema da etnografia propriamente dita. Malinowski é conhecido como o pai da etnografia, como o primeiro antropólogo a “ir a campo” e fazer uma “observação participante”. É evidente que, na época, o interesse da etnografia era descrever (e quiçá entender) as sociedades tribais, cujo modelo de sociedade era bastante diferente da europeia. Portanto, a distinção e distância entre a sociedade a que pertencia o investigador e as populações pesquisadas era, em si, um pressuposto da pesquisa. Seu manuscrito, o clássico Argonautas do Pacífico Ocidental, publicado em 1922, já na introdução define o que entende por etnografia: A meu ver, um trabalho etnográfico terá valor científico irrefutável se nos permitir distinguir claramente, de um lado, os resultados da observação direta e das declarações e interpretações nativas e, de outro, as inferências do autor, baseadas em seu próprio bom-senso e intuição psicológica. [...] Na etnografia, é frequentemente imensa a distância entre a apresentação final dos resultados da pesquisa e o material bruto das informações coletadas pelo pesquisador através de suas próprias observações, das asserções dos nativos, do caleidoscópio da vida tribal. O etnógrafo tem que percorrer essa distância ao longo dos anos laboriosos que transcorrem desde o momento em que pela primeira vez pisa numa praia nativa e faz as primeiras tentativas no sentido de comunicar-se com os habitantes da região, até a fase final dos seus estudos, quando redige a versão definitiva dos resultados obtidos. Uma breve apresentação acerca das atribulações de um etnógrafo – as mesmas por que passei – pode trazer mais luz à questão do que qualquer argumentação muito longa e abstrata (MALINOWSKI, 1976, p. 23-23). Figura 11 – Turistas na Torre Panorâmica, em Curitiba (2012) 84 SO CI - R ev isã o: V ito r - Dia gr am aç ão : F ab io - 2 8/ 01 /2 01 5 Unidade II O pesquisador em antropologia urbana pode fazer de qualquer espaço de sociabilidade da cidade fonte de pesquisa. Os lugares turísticos são espaços de interação social e, portanto, de trocas sociais entre pessoas de pertencimentos sociais. Em sua obra clássica, Malinowski, (polonês com tradição intelectual britânica), traça alguns pressupostos do trabalho etnográfico: 1) define seus princípios metodológicos (hipóteses x preconceitos); 2) relata o contato com os nativos (solidão, cotidiano); 3) defende a etnográfica como meio de descobrir a “ordem nativa”; 4) os objetivos da etnografia seriam: 4.1) recusa do exótico: busca da “totalidade da cultura tribal”, “trabalho construtivo” e observação; 4.2) chegar aos “imponderáveis da vida real” – a importância do diário de campo no desvelamento das peculiaridades dos costumes nativos; 4.3) apreender as perspectivas e opiniões nativas sobre seus costumes e modos de vida. É preciso viabilizar, contudo, uma passagem entre a experiência de campo e as interpretações analíticas. Para tanto, devemos desdobrar o método etnográfico em cinco etapas: – estranhamento (de algum acontecimento no campo); – esquematização (dos dados empíricos); – desconstrução (dos estereótipos preconcebidos); – comparação (com exemplos análogos tirados da literatura antropológica); – sistematização do material em modelos alternativos (FONSECA, 1999, p. 66). Dentro da perspectiva proposta pela autora, concentrar-se em casos exemplares que ocorram durante o trabalho de pesquisa é um meio eficaz de fazê-lo. Podemos, para tanto, retirar inspiração do modelo proposto por Max Gluckman (1987) e seguido por J. Clyde Mitchell (1959). Gluckman propõe como padrão de análise uma descrição diacrônica, em que se torna possível, por meio da reconstrução de processos sociais de um dado evento ou situação, compreender como aquele grupo ou sociedade se pensa e se articula e quais são as questões que fazem com que elas signifiquem de uma forma ou de outra aquilo que fazem. A partir dessa análise, torna-se possível destacar os elementos que nortearão as bases para os argumentos desenvolvidos ao longo de toda a análise proposta pelo antropólogo e que podem servir de guia para compreender como o grupo pesquisado pensa e significa o que está fazendo (GEERTZ, 1997). Em certo sentido, esse modo de fazer pesquisa se insere dentro de uma tradição de análise microssociológica (GEERTZ, 1978) e diz respeito às situações vivenciadas e observadas com o grupo estudado ao longo da pesquisa etnográfica. A tradição antropológica, ao falar da relação do pesquisador com quem pesquisa, com os nativos, desde o início se preocupou em situar o antropólogo como alguém que está naquele local e que participa, de certo modo, da construção de sentido das coisas que observa ou ao menos as traduz por meio de seus próprios conceitos culturais o que lhe é relatado ou que observa em campo. Busca-se, ainda, apesar de 85 SO CI - R ev isã o: V ito r - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 8/ 01 /2 01 5 TEORIA ANTROPOLÓGICA sua tendência a realizar estudos que parecem “micro”, fugir de qualquer reducionismo individualizante. O objetivo é escrutinar as relações e inserções sociais de quem é pesquisado. Nesse contexto, foge-se da ideia de que “cada caso é um caso” (FONSECA, 1999). A pesquisa antropológica funciona como um meio de coibir esse tipo de reducionismo. O aspecto social da análise deve ser reforçado como meio de combater uma tendência do individualismo metodológico de isolar o sujeito de seu contexto (FONSECA, 1999). Assim, vale dizer também que a pesquisa etnográfica almeja descrever o nativo de forma “simpática”, no sentido de não etnocêntrica. É nessa questão que voltamos à publicação dos diários de Malinowski. Essa ação rompe com uma tradição antropológica que entendia que o antropólogo deveria tentar ver o mundo do ponto de vista dos nativos. A quebra desse paradigma se explica pelo fato de que se encontram nos relatos as impressões pessoais de Malinowski sobre seus informantes, nem sempre complacentes ou, para usar termos boasianos, “relativizadores”. Malinowski chega a declarar que gostaria de estar longe dali e faz comentários pouco amistosos, inclusive relatando a chatice de alguns indivíduos. Evans-Pritchard é explícito em sua etnografia Os Nuer ao afirmar, na introdução, que é possível desenvolver “neuroses” ao pesquisar seus nativos. Para Geertz, daí se pode depreender dois modelos conceituais que substituiriam este último, em que o antropólogo tenta apreender a realidade por meio da mesma lente com que o nativo vê o mundo: a noção de experiência próxima e a noção de experiência distante. Observação Experiência próxima é aquela utilizada pelo informante para definir sua própria cultura. Já a experiência distante é empregada por qualquer especialista para atingir seus objetivos científicos, práticos ou filosóficos. Para Geertz (1997), alguns pressupostos fazem-se fundamentais: • entender uma pessoa não nos transforma nela; • um antropólogo não se transforma em seu “nativo” e não apreende e toma para si o “eu” deste apenas por pesquisar sua cultura; • este seria o grande “racha” provocado pela publicação do Diário de Malinowski; • o etnógrafo não percebe o que seus informantes percebem; • o etnógrafo percebe (com insegurança) “com que” e/ou “por meio de que” os outros percebem suas realidades. De acordo com Gilberto Velho (1999), há um envolvimento de quem pesquisa com seu objeto de estudo, o que não é necessariamente prejudicial ao desenvolvimento do trabalho de campo. Esta ideia 86 SO CI - R ev isã o: V ito r - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 8/ 01 /2 01 5 Unidade II põe em cheque as noções de “neutralidade” e “imparcialidade”, caras a um método mais positivista/ cartesiano. Quanto às noções de “neutralidade” e “imparcialidade”, pode-se perguntar qual o lugar delas na escolha que o pesquisador faz pelo recorte temático/analítico, a opção do referencial teórico e a própria história de vida de quem está coletando e analisando os dados de campo. O contato é caro à antropologia, (tradição em cujo “mito de origem” está o próprio Malinowski). Em antropologia, busca-se o tempo todo familiarizar-se com o exótico e explicitar o familiar, como forma de pensar sobre os dados de campo. Mesmo que algo próximo esteja sendo avaliado, há uma distância entre o “eu” do pesquisador e do pesquisado. Para Geertz (1997), o etnógrafo não percebe o que seus informantes percebem. É a leitura do nativo acerca de sua realidade que é transmitida a ele. Nesse contexto, voltando a Velho (1999), o distanciamento é fabricado/produzido histórico/culturalmente. Nem sempre aquilo que é familiar é necessariamente conhecido, tampouco aquilo que não vemos, o exótico, é desconhecido. Para o autor, isso torna possível que o antropólogo pesquise em sua própria cidade, especialmente pela multiplicidade de identidades existentes e sua difusão neste contexto. A realidade é filtrada, sendo ela familiar ou exótica, pelo ponto de vista do pesquisador (e este sentido encontra-se também na argumentação de Geertz), mas isso não implica que não haja rigor científico na investigação. É por meio do confronto intelectual/emocional de diferentes versões/interpretações de fatos/situações que acontecem durante a pesquisa que “estranhar o familiar” torna-se possível. Por fim, há quatro termos que precisam ser “amarrados” aqui, que são importantes ao fazer antropológico, sobretudo a antropologia urbana: • experiência próxima; • experiência distante; • familiaridade; • conhecimento. Aquilo que nos é conhecido até poderia ser considerado como uma experiência próxima. Essa interpretação pode ser falha, como lembra Velho, pois o que vemos todos os dias pode nos ser familiar, mas não ser compreendido de fato. Algo muito próximo pode parecer incomum. Voltando a Geertz
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