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Anemias Anemia Sarah Monte Alegre Olga Maria Fernandes de Carvalho Professoras assistentes doutoras da Disciplina de Semiologia e Medicina Interna do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Endereço para correspondência: Profa. dra. Sarah Monte Alegre Universidade Estadual de Campinas - Depto. de Clínica Médica Cidade Universitária Zeferino Vaz s/n Distrito de Barão Geraldo CEP 13081-970 - Campinas - SP Recebido para publicação em 06/2009. Aceito em 06/2009. © Copyright Moreira Jr. Editora. Todos os direitos reservados. Indexado na Lilacs Virtual sob nº LLXP: S0034-72642009002300001 Unitermos: anemia, hemoglobina, hematócrito Unterms: anemia, hemoglobin, hematocrit. Sumário As anemias constituem as doenças do sangue mais frequentes. O termo anemia significa redução da hemoglobina por unidade de volume de sangue, de acordo com a idade, sexo e tensão de oxigênio do ambiente. Pode referir-se ainda a uma síndrome clínica ou a um quadro laboratorial. As anemias podem ser provocadas por vários fatores e se classificam segundo os critérios morfológicos (normocítica/normocrômica microcítica/hipocrômica macrocítica/normocrômica) ou fisiopatológicos, considerando-se a etiologia, em anemias por falta de produção – hipoproliferação, por sobrevida diminuída dos eritrócitos – hemólise ou por perda sanguínea – hemorragia. As avaliações clínica e laboratorial são de fundamental importância para a elucidação diagnóstica e tratamento adequado. Sumary Anemia is present in adults if the hemoglobin is less than 13,5g/dl in males or less than 12g/dl in females. Congenital anemia is suggested by the patient’ s personal and family history. Poor diet may result in folic acid deficiency and contribute to iron deficiency, but bleeding is much more commonly the cause of iron deficiency in adults. Physical examination includes attention to signs of primary hematologic diseases (lymphadenophathy, hepatosplenomegaly or bone tenderness). Mucosal changes such as a smooth tongue suggest megaloblastic anemia. Anemias are classified according to their pathophysiologic basis, ie, manifestation of primary bone marrow disorders (resulting in impaired production of erythrocytes), primary abnormalities of erythrocytes (resulting in an increased rate of destruction) or loss of erythrocytes. Any condition can result in anemia if the bone marrow is unable to compensate for the rate of loss of red blood cells. Although this classification makes it easier to understand the pathophysiology of anemia and to determine the proper diagnostic studies to perform, more than one mechanism may occur Numeração de páginas na revista impressa: 229 à 237 Resumo As anemias constituem as doenças do sangue mais frequentes. O termo anemia significa redução da hemoglobina por unidade de volume de sangue, de acordo com a idade, sexo e tensão de oxigênio do ambiente. Pode referir-se ainda a uma síndrome clínica ou a um quadro laboratorial. As anemias podem ser provocadas por vários fatores e se classificam segundo os critérios morfológicos (normocítica/normocrômica microcítica/hipocrômica macrocítica/normocrômica) ou fisiopatológicos, considerando-se a etiologia, em anemias por falta de produção – hipoproliferação, por sobrevida diminuída dos eritrócitos – hemólise ou por perda sanguínea – hemorragia. As avaliações clínica e laboratorial são de fundamental importância para a elucidação diagnóstica e tratamento adequado. INTRODUÇÃO O termo anemia se refere a uma condição clínica caracterizada pela diminuição da concentração de hemoglobina (Hb) por unidade de volume de sangue. Fisiologicamente ocorre a diminuição da capacidade transportadora de oxigênio que é a principal função da Hb. Considera-se, em nível do mar, portador de anemia o indivíduo cuja concentração de Hb ou hematócrito (Ht) seja inferior aos dados apresentados na Tabela 1, de acordo com a fase de desenvolvimento, idade e sexo. Esses critérios se aplicam, também, aos indivíduos idosos, pois o baixo nível de Hb nesses pacientes indica a presença de doença e se correlaciona a risco aumentado de mortalidade. Podem-se observar valores normais mais altos de Hb em moradores de grandes altitudes ou em fumantes inveterados. O tabagismo ocasiona elevações nos níveis de Hb, refletindo uma compensação do normal devido ao deslocamento do O2 pelo CO2 na ligação pela Hb. AVALIAÇÃO CLÍNICA A realização de uma anamnese clínica minuciosa e exame físico detalhado e cuidadoso são de extrema importância para a avaliação do paciente com anemia. Desde os dados da história como relatos de sangramentos, presença de infecções, manifestações de doenças sistêmicas, como a insuficiência renal crônica, hipotiroidismo, doenças inflamatórias crônicas, a história clínica nutricional ou relacionada ao uso de medicamentos ou álcool, exposição a agentes tóxicos ou drogas, assim como história familiar de anemia devem ser considerados. Mesmo em relação aos antecedentes pessoais, a origem do paciente e a etnia podem estar associados à maior probabilidade de distúrbios da molécula de Hb. As manifestações clínicas e a intensidade dos sintomas são variáveis e dependem do grau de anemia, idade do paciente, atividade física e velocidade com que o quadro de anemia se estabeleceu. Os sintomas mais intensos, em geral, relacionam-se em níveis mais baixos de Hb, mas além da gravidade, a idade e a presença de comprometimento cardíaco prévio podem deixar o indivíduo mais sensível a quedas discretas da Hb. A redução na capacidade da Hb em transportar oxigênio no sangue e, consequentemente, menor oxigenação tecidual é a causa das manifestações clínicas. Para compensar esse déficit, numerosos mecanismos fisiológicos entram em ação na tentativa de minimizar a hipóxia tissular contribuindo, assim, para a gênese da sintomatologia. Tonturas, lipotimia, vertigem, cefaleia, zumbidos, cansaço, dispneia, mal-estar, fraqueza muscular, cãibras e angina são alguns dos sintomas mais frequentes. A presença de poucos sintomas em pacientes visivelmente anêmicos sugere quadros de instalação lenta, nos quais o organismo teve tempo de adaptar-se aos níveis reduzidos de Hb. Já os pacientes muito sintomáticos, em geral, correspondem a histórias de curta duração. O exame físico completo é fundamental e pode revelar sinais relativos ao mecanismo da anemia, assim, os achados clínicos de palidez cutânea, mucosas descoradas, icterícia e esplenomegalia podem indicar a existência de anemia hemolítica esplenomegalia e linfoadenomegalias, leucemias ou, ainda, a presença de parestesias e outras manifestações neurológicas, deficiência de vitamina B12. As principais manifestações compensatórias em relação à capacidade reduzida de transporte de oxigênio envolvem os aparelhos cardiovascular e respiratório e são elas: aumento do volume-minuto cardíaco, redistribuição do fluxo sanguíneo para os diferentes tecidos, redução da resistência vascular sistêmica global e diminuição da afinidade da hemoglobina pelo oxigênio. Um dos fatores contribuinte para essas manifestações é o aumento da frequência cardíaca, assim como o aumento do volume sistólico. A taquicardia é habitualmente vista nas atividades físicas leves ou em situações em que os níveis de Hb são muito baixos. A redução na resistência vascular periférica ocasiona redução na pressão diastólica com pulsos periféricos amplos. A redução na viscosidade sanguínea e o aumento da velocidade de circulação do sangue facilitam o aparecimento de turbilhonamentos contribuindo para o aparecimento de sopros cardíacos, em geral sistólicos suaves muitas vezesaudíveis no foco pulmonar e na borda esternal. Atenção especial deve ser dada aos pacientes com lesão cardíaca prévia, pois quando a anemia é acentuada, a capacidade de compensação é excedida e pode instalar-se um quadro de insuficiência cardíaca congestiva com aumento da área cardíaca, estase jugular, congestão pulmonar, hepatomegalia e edema periférico. AVALIAÇÃO LABORATORIAL DO PACIENTE ANÊMICO A análise dos resultados de exames laboratoriais complementares fornece dados relevantes que contribuem para a elucidação diagnóstica da anemia. Os exames utilizados na investigação inicial do paciente anêmico se encontram na Tabela 2. O hemograma completo é de grande valia, permitindo a confirmação do diagnóstico através dos níveis de hemoglobina e hematócrito, a análise morfológica das hemácias e, de acordo com os índices hematimétricos, contribuir para a classificação da anemia. A morfologia celular pode sugerir doenças específicas e orientar a investigação etiológica. Assim, a presença de hemácias em alvo pode apontar para o diagnóstico de doença hepática ou hemoglobinopatia granulações tóxicas e policromasia estão associadas à anemia hemolítica e, na doença falciforme, as células em foice são o marco diagnóstico. Os índices eritrocitários são parte importante, pois podem ajudar no esclarecimento da etiologia e na classificação. O volume corpuscular médio (VCM) inferior ao valor de normalidade (< 80 fl) reflete microcitose, enquanto valores elevados (> 100 fl) macrocitose. Os dados de hemoglobina corpuscular média (HCM) e da concentração de hemoglobina corpuscular média (CHCM) podem relacionar-se aos defeitos de síntese da Hb, quando reduzidos (hipocromia) já o RDW (red cell distribution width), fornecido pelos contadores automáticos, é um índice que mede com precisão a intensidade da anisocitose. A descrição pormenorizada do esfregaço fornece informações quanto a variações no tamanho (anisocitose) e forma das células (poiquilocitose) complementando as informações dos índices descritos acima. CLASSIFICAÇÃO DAS ANEMIAS Morfológica Baseia-se nos dados fornecidos pelos índices hematimétrico e não dá ideia da causa da anemia, mas do aspecto morfológico das hemácias. A partir disso, temos: I. Anemia hipocrômica microcítica - VCM, HCM e CHCM diminuídos · Anemia por deficiência de ferro ou Anemia por alterações no metabolismo do ferro (anemia sideroblástica) · Alterações na síntese de hemoglobina: talassemias · Anemia de doença crônica II. Anemia normocítica normocrômica - VCM, HCM e CHCM normais · Anemia por diminuição de produção: anemia aplástica · Anemia de doença crônica · Anemia secundária à insuficiência renal crônica · Anemias hemolíticas III. Anemia normocrômica macrocítica - VCM aumentado, HCM e CHCM normais · Anemias megaloblásticas (deficiência de folato e/ou vitamina B12) · Anemia secundária à doença hepática · Anemia secundária ao hipotiroidismo · Anemias hemolíticas Fisiopatológica Esta classificação considera o mecanismo pelo qual as anemias ocorrem, a saber: I. Anemias por falta de produção - hipoproliferação II. Anemias por sobrevida diminuída dos eritrócitos III. Anemias por perdas sanguíneas - hemorragia I. Anemias por falta de produção - hipoproliferação Corresponde à maioria dos casos de anemia. A hipoproliferação reflete insuficiência medular absoluta ou relativa e podem resultar de defeitos na produção medular, distúrbios na multiplicação celular ou distúrbios da hemoglobinização. Nestas situações existe uma diminuição na produção de células vermelhas com contagem de reticulócitos normal ou diminuída. A) Defeitos na produção medular Na presença de insuficiência renal crônica, com a redução da síntese de eritropoetina, a medula óssea não é adequadamente estimulada a produzir eritrócitos gerando um quadro de anemia. A necessidade tecidual reduzida de O2 em consequência a doenças metabólicas, como o hipotiroidismo, pode ocasionar, também, diminuição de ertitropoetina. Outras condições que cursam com deficiência de eritropoetina e apresentam anemia normocítica e normocrômica são diabetes mellitus e mieloma múltiplo. O comprometimento na diferenciação celular a partir das células progenitoras pluripotentes (stem-cell) gera prejuízo para a produção de todas as linhagens celulares, ocasionando o aparecimento de anemia, manifestações hemorrágicas e tendência a infecções. Este quadro pode ser em consequência a ações de substâncias variadas, como tóxicos, drogas, doenças imunológicas ou metabólicas, irradiações, medicamentos ou neoplasias. A anemia é do tipo normo/normo com reticulócitos normais ou reduzidos, leucopenia e plaquetopenia. No exame da medula óssea há hipocelularidade com aplasia ou hipoplasia mieloide, predomínio de tecido gorduroso dando o aspecto amarelado à medula, além da presença de linfócitos e plasmócitos o que caracteriza o quadro de anemia aplástica. A produção medular alterada pode dever-se à infiltração ou substituição do tecido normal por células neoplásicas mieloides nas leucemias agudas ou crônicas, mieloma múltiplo ou metástases carcinomatosas. Quanto ao tratamento, as transfusões sanguíneas devem ser indicadas de maneira cuidadosa, de acordo com a sintomatologia apresentada pelo paciente. Em geral, pacientes sem doenças cardiorrespiratórias suportam níveis de Hb acima de 8,0g/dl. É particularmente útil a reposição de eritropoetina e, muitas vezes, associada à reposição de ferro. Nos casos em que há insuficiência renal crônica a dose habitual de eritropoetina recombinante intravenosa é de 50 a 150 U/kg, administrados três vezes por semana. Nos casos de câncer, a não resposta à primeira tentativa de tratamento, a dose de eritropoetina pode chegar a 300 U/kg três vezes por semana. B) Distúrbios na multiplicação celular Os distúrbios de maturação podem ocorrer em duas condições: associados à macrocitose e desenvolvimento medular anormal e defeitos de maturação citoplasmática associados à microcitose por problemas na síntese de Hb (este último será abordado a seguir). No processo de diferenciação celular a proliferação é intensa, assim como a atividade sintética das células primitivas até a formação dos eritroblastos. Os defeitos de maturação nuclear resultam de deficiência de vitamina B12 ou folato, elementos essenciais à síntese de DNA. O retardo na síntese desse ácido nucleico tem como consequências a não divisão celular, mas a maturação citoplasmática é mantida dando prosseguimento à síntese de RNA, proteínas e Hb. A multiplicação celular é retardada, os níveis de eritropoetina, aumentados, há hiperplasia medular eritróide, mas com reduzido número de reticulócitos no sangue periférico refletindo a eritropoese ineficaz. O resultado final é a macrocitose muitas vezes acompanhada por hipercromia, um desequilíbrio no crescimento das células e bloqueio da divisão celular, gerando a expressão “ anemia megaloblástica” . O exame do esfregaço sanguíneo revela hemácias macrocíticas (VCM > 94 fl), neutrófilos hipersegmentados, sendo este último de grande valor na diferenciação das anemias megaloblásticas de outras anemias macrocíticas. Há, ainda, transformação megaloblástica na série megacariocítica. A macrocitose precede, muitas vezes, o desenvolvimento da anemia. As causas mais comuns de anemia megaloblástica são: 1. Deficiência de vitamina B12 (cianocobalamina): dieta deficiente, deficiência de fator intrínseco (anemia perniciosa), gastrectomia total, má absorção seletiva de B12, doenças que afetam o íleo terminal (ileítes regionais) 2. Deficiência de folato: dieta deficiente, aumento das necessidades (gravidez, alcoolismo, infância), má absorção, induzida por drogas (anticonvulsivantes, anticoncepcionais),cirurgias com ressecção intestinal extensa 3. Deficiência mista (vitamina B12 e folato): doença celíaca 4. Uso de drogas: antagonistas do folato (metotrexato, trimetropina, pirimetamida), agentes alquilantes (ciclofosfamida, sufassalazina etc.). No quadro clínico, além dos sintomas próprios da anemia, salienta-se, na deficiência de cobalamina, as manifestações neurológicas do tipo neuropatia periférica ou mielopatia com degeneração axonal, por alteração na síntese da bainha de mielina, caracterizadas por sintomas como parestesias, distúrbios da propiocepção, irritabilidade, alterações da memória, entre outros. Laboratorialmente, o hemograma revela anemia macrocítica, muitas vezes acompanhada por leucopenia e plaquetopenia, reticulócitos diminuídos. A dosagem de hemocisteína está elevada. Fazem-se necessárias, também, as quantificações séricas de cobalamina e ácido fólico que estarão diminuídas. Macrocitose menos pronunciada, menor número de reticulócitos e ausência de hipersegmentação dos neutrófilos podem estar presentes nas anemias macrocíticas não megaloblásticas como consequência de doença hepática ou tiroidiana ou, ainda, nas síndromes mielodisplásicas e anemia aplástica onde outras citopenias fazem parte do quadro. Além disso, os efeitos tóxicos do álcool na medula óssea podem ser acompanhados por macrocitose na ausência de anemia. A deficiência de folato deve ser tratada com reposição de 5 mg de ácido fólico ao dia. O ácido folínico deve ser reservado para os quadros de anemia megaloblástica induzidos por drogas antagonistas do ácido fólico. Já o tratamento da deficiência de vitamina B12 deve ser por via intramuscular, com doses de 1.000 mg em dias alternados até a normalização da Hb. Após esse período, pode-se manter 1.000 mg intramuscular uma vez ao mês, principalmente para o tratamento da anemia perniciosa. Naqueles casos em que há manifestações neurológicas da deficiência de B12, mantém-se 5.000 mg a cada duas semanas durante os primeiros seis meses e uma vez ao mês daí em diante. C) Distúrbios da maturação ou hemoglobinização A Hb representa 95% do peso da hemácia e começa a ser sintetizada quando o eritrócito está na fase de proeritroblasto, acumulando-se até a completa maturação dos eritrócitos. Para que essa síntese ocorra sem nenhum comprometimento, o ferro é o elemento essencial e, na sua ausência, o resultado é anemia com redução do suprimento de O2 aos tecidos, pois o principal papel do ferro nos mamíferos é transportar o O2 como parte da Hb. Desta forma, anemia será hipocrômica e microcítica ou ferropriva. As causas mais comuns de deficiência de ferro estão listadas na Tabela 3. Os maiores estoques de ferro no organismo, além do circulante nos glóbulos vermelhos, encontram-se na forma de ferritina, hemossiderina e, também, nos macrófagos. Uma dieta balanceada oferece, diariamente, a quantidade de 10 a 15 mg de ferro, sendo que apenas 5% a 10% serão absorvidos, ou seja, 1 a 2 mg por dia. A forma absorvida mais eficiente é o presente nos grupamentos heme, 10% a 20%, e a não heme, 1% a 5% e, nestes últimos, a absorção sofre interferência de substâncias presentes nesses alimentos (taninos, fosfatos etc.). A perda menstrual pode ter significado maior no metabolismo do ferro. Mensalmente a quantidade de perda sanguínea é de 50 ml, aproximadamente, e corresponde a 0,7 mg de ferro/dia. Para manter os estoques adequados é necessário que a mulher absorva cerca de 3 a 4 mg de ferro por dia. Se as perdas extrapolarem os limites da absorção, a mulher com metrorragia tornar-se-á deficiente em ferro sem a suplementação. Essas necessidades de ferro, aumentadas na gravidez e lactação, podem atingir as cifras de 2 a 5 mg/dia. A dieta normal não é suficiente para suprir, fazendo-se, então, necessária a suplementação. A absorção normal de ferro acontece na parte superior do intestino delgado e a ausência desse segmento por cirurgias gástricas ou no trato digestório, envolvendo as primeiras porções do duodeno, levará a diminuição da absorção e, consequentemente, à anemia. Na deficiência de ferro é primordial a pesquisa de sangramento em trato digestório e em outros locais como útero (metrorragias e hirpermenorreias). As doações de sangue repetidas e, em países em desenvolvimento, a infestação por parasitas intestinais como Necator americanus e Ancylostoma duodenale, também são causas de anemia ferropriva. Mas, a causa mais importante desse tipo de anemia é a perda sanguínea gastrointestinal. O uso prolongado de anti- inflamatório ou ácido acetilsalicílico pode ser causa de sangramentos, mesmo sem a documentação de lesão estrutural. A hemoglobinúria como causa de deficiência de ferro, por perda urinária, é incomum. No quadro clínico da anemia ferropriva, além dos sinais e sintomas já relatados, podem estar presentes alterações de trofismo da pele, atrofia de papilas linguais, queilose, unhas finas e perversão do apetite ou picacismo. Laboratorialmente, a anemia é microcítica e hipocrômica (VCM e HCM diminuídos) e a contagem de reticulócitos pode ser normal (1% a 2%) ou apresentar reticulocitose relativa discreta. Há anisocitose, poiquilocitose e plaquetas em número aumentado. As dosagens de ferro sérico e ferritina estão diminuídas e TIBC e RDW aumentados. Na medula óssea é encontrada hiperplasia de eritroblastos com redução nos grumos de ferro (sideroblastos). A reposição de sulfato ferroso é recomendada na dose de 300 mg/dia de ferro elementar, o que corresponde a três ou quatro comprimidos divididos em duas a três tomadas, preferencialmente, uma hora antes das refeições. É sabido que 25 mg de sulfato ferroso contêm 5 mg de ferro elementar, mas 330 mg de hidróxido de ferro corresponde a 100 mg de ferro elementar. A resposta ao tratamento é considerada adequada quando há normalização da Hb ou Ht em dois meses e a manutenção da terapia por mais três a seis meses visa a reposição de estoques. A terapia com ferro parenteral está indicada em três situações: má absorção com grave deficiência de ferro, perda sanguínea incontrolável e persistente e intolerância ao ferro oral, em geral por efeitos colaterais gastrointestinais intratáveis. Atenção especial deve ser dada à preparação intravenosa de ferro dextran por sua associação a reações anafiláticas graves. As apresentações como gluconato férrico e sucarato de ferro apresentam muito menor risco de efeitos adversos. A quantidade de ferro a ser reposta pode ser calculada pela seguinte equação: A administração do ferro por via intravenosa deve corrigir o déficit de Hb e fornecer uma reserva de 500mg e isto pode ser feito administrando-se a dose total ou, como é mais comum, em baixas doses de 100 mg semanais de ferro elementar. A infusão deve ser feita com diluição do composto férrico em solução glicosada ou fisiológica e de forma lenta, sob constante observação, e por um período mínimo de 60 a 90 minutos. Se durante essa terapia o paciente apresentar sintomas como dor torácica, sibilos, queda de pressão arterial, a infusão deve ser suspensa. A hemoglobinização deficiente pode estar presente, também, nas talassemias e anemias sideroblásticas. Nos indivíduos adultos normais, cerca de 97% da Hb é do tipo HbA que é uma proteína composta por dois pares de cadeias polipeptídicas a e b ligadas de forma covalente ao grupo heme. Existem grupos de genes independentes que codificam a síntese das cadeias de Hb, sendo que os genes da cadeia globínica a estão no cromossomo 16 e os da cadeia b, no cromossomo 11. A síntese desses dois tipos de cadeias é equilibrada e em quantidades equivalentes, na proporção de 1:1. As talassemias são doenças hereditárias caracterizadas por deficiência seletiva da síntesede uma ou mais cadeias de globinas, acarretando desequilíbrio entre a síntese de cadeias a e não-a e, consequentemente, a redução na Hb (anemia hipocrômica e microcítica) e acúmulo da cadeia cuja síntese é preservada levando, esta última, à formação de agregados que se depositam nos eritrócitos, lesando a membrana celular com destruição precoce (eritropoese ineficaz) e hemólise. Assim, a redução na síntese das cadeias a ou b são chamadas genericamente de a ou b-talassemia, respectivamente. O quadro clínico é caracterizado por anemia hemolítica crônica de gravidade variada, sendo que a homozigose para a mutação do gene da cadeia b é denominada talassemia maior, na qual não há produção de cadeia b e, portanto, não há síntese de HbA, elevação da HbA2 (até 10%) e HbF (hemoglobina fetal). Na evolução, após alguns meses do nascimento, a criança apresenta palidez cutânea, esplenomegalia e anemia hemolítica grave com índices de Hb ao redor de 3-5 mg/dl. Há aumento nos níveis de eritropoetina e tecido eritropoético extramedular resultando em deformidades ósseas, principalmente em face e crânio. Há dependência de transfusões sanguíneas com consequente hemossiderose. A homozigose para alguns genes da cadeia b permite a formação parcial dessa globina com presença de quantidades variadas de HbA (entre 7 e 10), quadro clínico esse da talassemia intermédia. A presença de HbA2 aumentada (até 10%), HbA e HbF são as características da eletroforese de Hb desse tipo de hemoglobinopatia. Já a talassemia minor, a heterozigose para o gene da globina b, apresenta anemia microcítica hipocrômica leve, muitas vezes confundida com anemia ferropriva. A a-talassemia é caracterizada pela ausência de um ou mais genes que controlam a síntese da cadeia a-globínica, resultando em formas diferentes da doença. A ausência dos quatro genes, com formação da Hb de Bart, é incompatível com a vida ocasionando a morte intraútero. O traço de talassemia a-2, com deleção de um gene corresponde aos portadores silenciosos ou assintomáticos o traço da talassemia a-1, com deleção de dois genes, assemelha-se à b-talassemia minor. Quando há a dupla heterozigose para as talassemias a-1 e a-2, o quadro é mais grave apresentando a doença da HbH, onde a HbA corresponde a apenas 25% a 30% do normal. A homoglobina H forma inclusões nos eritrócitos circulantes o que gera uma anemia hemolítica moderadamente grave, mas com leve eritropoese ineficaz. A sobrevida não é dependente de transfusão. Nos casos de talassemia em que a Hb é menos que 6,6 g/dl há o risco de descompensação cardiocirculatório e necessidade de suporte transfusional programado e contínuo de hemácias fenotipadas, realizado, de preferência, em instituições capacitadas para oferecer esse tipo de transfusão. As transfusões devem ser regulares, a cada três a quatro semanas, com o objetivo de manter a Hb ³ 9,5 g/dl, no período pré-transfusão. Simultaneamente ou quando a ferritina sérica atingir as cifras de 1.000 g/ml ou mais, inicia-se o tratamento com quelante de ferro, desferoxamina, com doses entre 40 e 50 mg/kg/dia em infusão subcutânea, por bomba de infusão, durante 8 a 10 horas. Apesar de os níveis de ferritina nem sempre evidenciarem o grau de siderose cardíaca ou hepática, essa dosagem continua sendo a que melhor revela o controle da quelação. O diferiprone parece ser tão efetivo quanto à desferoxamina, administrado por via oral, mas pode apresentar efeitos tóxicos como agranulocitose, dores articulares, náuseas e vômitos. Ainda como quelante de ferro, o deferasirox, na dose de 5 a 20 mg/kg ao dia por via oral, apresenta boa tolerância e poucos efeitos adversos. A condução de pacientes talassêmicos é quase sempre feita pelo hematologista capacitado para realizar o tratamento de suporte clínico que, além das transfusões, deve estar atento a outras necessidades, como reposição hormonal, controle das manifestações cardíacas e tratamento da osteoporose. A anemia sideroblástica congênita apresenta, também, microcitose e hipocromia pela incapacidade de incorporação do ferro para a formação do heme, com menor formação de Hb e acúmulos de ferro nas mitocôndrias que circundam o núcleo do eritroblasto, dando origem aos sideroblastos em anel. II. Anemias por sobrevida diminuída dos eritrócitos A sobrevida da hemácia pode estar reduzida na circulação como consequêcia do aumento da destruição – hemólise. Nesta situação, a eritropoese está estimulada com maior produção de reticulócitos e presença de células imaturas no sangue periférico (eritoblastos). Tipicamente a anemia é nomocrômica, refletindo o número aumentado de reticulócitos. Em condições normais as hemácias são destruídas no interior de macrófagos após a fagocitose no fígado ou no baço e na própria medula óssea. As anemias hemolíticas são, geralmente, classificadas de acordo com o defeito intrínseco da hemácia ou devido a algum fator externo (Tabela 4). A doença hemolítica, embora marcante, está entre as formas menos comuns de anemia. Manifesta-se de diferentes maneiras, algumas vezes como episódio agudo, súbito, autolimitado, intra ou extravascular visto nos quadros de hemólise autoimune ou defeitos hereditários, como na deficiência de piruvatoquinase e de glicose-6- fosfato desidrogenase (G-6-PD). Os pacientes com doença hemolítica crônica são, em geral, pouco sintomáticos e podem apresentar, além da anemia, icterícia (hiperbilirrubinemia indireta), cálculos biliares e esplenomegalia, como resultado do catabolismo aumentado da Hb, sendo também mais suscetíveis a crises aplásticas desencadeadas por processo infeccioso. Nos quadros agudos, dependendo da intensidade da hemólise, a queda brusca da Hb pode resultar em intensa sintomatologia, como fraqueza, tonturas, lipotimias, taquicardia e insuficiência renal aguda. A anemia falciforme apresenta manifestações de hemólise crônica, com acentuação nos episódios de crises de falcização desencadeados por infecções, distúrbios hidroeletrolíticos, estresse, alterações climáticas, entre outros. Essa hemoglobinopatia hereditária autossômica, caracterizada pela presença de HbS, é o resultado de mutação única na posição 6, com substituição do ácido glutâmico por uma valina na cadeia b-globínica. Os eritrócitos com alta concentração de HbS, na presença de condições com baixa tensão de oxigênio ou alterações do ph, apresentam a cristalização da Hb anormal e formação de hemácias em foice, desencadeando fenômenos obstrutivos, isquemia e consequentes infartos tissulares. Essas obstruções geram crises álgicas intensas que são características da doença falciforme. Os indivíduos heterozigotos para a HbS, traço falciforme, apresentam sintomas clínicos quando sob condições de hipóxia acentuada ou estresse intenso, como infecções graves, grandes cirurgias. A crise álgica requer cuidadosa avaliação quanto à sua etiologia e a internação pode facilitar tanto a investigação quanto o tratamento. A hidratação por via intravenosa deve ser criteriosamente monitorada, assim como a analgesia. Oxigenioterapia é sempre útil e protege a saturação arterial. A avaliação do diagnóstico etiológico quanto à presença de pneumonias ou outras infecções, embolia pulmonar e eventos vaso- oclusivos, deve ser minuciosa, pois os sintomas podem ser atípicos. As transfusões para manter o Ht>30% devem fazer parte da conduta para a melhoria do quadro álgico. Para pacientes com sintomas graves e crises frequentes pode-se cogitar a prescrição de hidroxiureia na dose de 10 a 30 mg/kg ao dia, com a finalidade de aumentar a síntese de hemoglobina fetal (HbF). Essa dose deve ser adequada para que o número de leucócitos se mantenha entre 5.000 e 8.000/mm³, pois um dos efeitos dessa medicação é a supressão dos leucócitos e plaquetas.A deficiência de G-6-PD é a mais comum das enzimopatias hereditárias associada à hemólise. Herança ligada ao sexo em que as hemácias não conseguem produzir glutationa reduzida (GSH) em quantidade suficiente para detoxificar o peróxido de hidrogênio, ocasionando a oxidação da Hb, a meta-hemoglobina e consequente hemólise. A manifestação é a de anemia hemolítica dois a três dias após a exposição a drogas ou infecções. O quadro é autolimitado e o diagnóstico pode ser confirmado por exames que quantifiquem a atividade da enzima. O tratamento se baseia na suplementação de ácido fólico e acompanhamento constante, além de evitar fármacos ou situações que levem à crise hemolítica. O diagnóstico diferencial entre anemia hemolítica aguda e crônica exige avaliação cuidadosa da história pregressa da doença, antecedentes familiares e quadro clínico. Exames laboratoriais complementares podem ser necessários como eletroforese de Hb e dosagens de enzimas eritrocitárias (desidrogenase láctica). Os defeitos adquiridos são mediados imunologicamente e exigem testes da antiglobulina direto e indireto, títulos das crioglobulinas para detectar a presença de anticorpos hemolíticos. A hemólise intravascular ocorre em consequência a traumas diretos as hemácias, fixação de complemento na membrana do glóbulo vermelho ou por toxinas. A Hb é liberada no plasma em quantidade que pode exceder à capacidade de captação das proteínas transportadoras (haptoglobinas), sendo então filtrada pelos rins, originando a hemoglobinúria. Já nos casos de hemólise extravascular, a destruição dos eritrócitos acontece no interior de macrófagos presentes no fígado, baço e medula óssea. Normalmente a função do baço é captar e destruir as hemácias envelhecidas e defeituosas. Em situações em que há esplenomegalia pode ocorrer a destruição de hemácias normais, processo esse denominado hiperesplenismo. A anemia hemolítica autoimune pode ser causada por autoanticorpos eritrocitários da classe IgG cuja etiologia é desconhecida. As hemácias sensibilizadas por IgG são eliminadas pelos macrófagos esplênicos, principalmente hemólise. O reflexo dessa destruição de células vermelhas é o aumento de reticulócitos no sangue periférico, além de hemácias policromáticas, macrocitose, pontilhado basófilo e esferocitose. Há que se mencionar, também, distúrbios como hemoglobinúria paroxística noturna ou linfoproliferativos, como linfomas, leucemia linfocítica crônica, macroglobulinemia de Waldenström e infecções virais podem apresentar anemia hemolítica como primeira manifestação do quadro clínico. O tratamento de suporte inclui hidratação adequada para prevenir lesão renal. As transfusões devem ser cuidadosamente indicadas para que a hemólise não venha a acentuar-se. A plasmaferese traz benefício clínico transitório podendo ser utilizada nos casos mais graves. A terapia inicial para a anemia hemolítica autoimune é o uso de glicocorticoides na dose de 1 mg/kg de peso ao dia por via oral. A pulsoterapia útil na hemólise fulminante deve ser realizada com metilprednisolona por via intravenosa. Em uma ou duas os níveis de Hb aumentam e após sua estabilização, os glicocorticoides devem ser progressivamente diminuídos num prazo de 30 a 60 dias. Nos casos secundários a doenças linfoproliferativas o tratamento deve enfocar a doença de base. A hemoglobinúria paroxística noturna é autolimitada, não necessitando de tratamento específico III. Anemias por perdas sanguíneas A anemia da hemorragia crônica se manifesta na forma de anemia por deficiência de ferro, já as perdas subagudas de sangue podem estar associadas a aumento moderado no número de reticulócitos. A perda aguda de sangue que é a causa, em geral, diagnosticada mais facilmente, não se associa a número aumentado de reticulocitos, pois não há tempo suficiente para aumentar a secreção de eritropoetina e, consequentemente, estímulo para a proliferação medular. O quadro de hemorragia aguda por sangramento do trato gastrointestinal, acidentes, sangramento genital, cirurgias etc. necessita de intervenção imediata com reposição volêmica e da massa eritrocitária para evitar complicações como as do choque hemorrágico ou hipovolêmico. Imediatamente após o sangramento, a avaliação da gravidade do quadro deve basear-se em sinais do exame físico como palidez cutâneo-mucosa, presença de sudorese, pulso, pressão arterial, estado de consciência e diurese, pois a análise do hemograma (Hb, Ht) não reflete o real volume de sangue perdido. Na tentativa de recuperação do volume circulante entram em ação os mecanismos hormonais (hormônio antidiurético, renina-aldosterona) aumentando a reabsorção de sais e água acarretando hemodiluição. Nesse momento a Hb começa a apresentar-se diminuída. Há aumento da produção de eritropoetina em consequência à hipóxia renal, com estímulo para a proliferação eritrocitária na medula óssea e mobilização dos estoques de ferro para a síntese de Hb. O aumento no número de reticulócitos, após o terceiro dia, faz o diagnóstico dessa produção celular. Em duas a três semanas o organismo recupera a massa eritrocitária perdida, desde que os estoques de ferro sejam adequados caso contrário, instala-se um quadro de anemia crônica por deficiência de ferro. Nos casos em que a perda sanguínea seja mais expressiva, a intervenção deverá ser imediata para que se estanque o sangramento e o volume seja reposto através de transfusões de hemácias e plasma perdidos. Bibliografia 1. Tefferi A. 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