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Letícia Fugita BBPM 3 – TUTORIA 02 Paciente do sexo masculino, 14 anos, estudante, chega à UPA acompanhado de seus pais referindo episódio de síncope após entrar na piscina para praticar natação em competição escolar. Não relatou a presença de pródromos, mas relatou que um de seus tios ainda jovem faleceu em decorrência de afogamento em lago após uma parada cardiorrespiratória enquanto atravessava a nado. Além disso, os pais ainda relatam ser o segundo episódio de síncope e o primeiro tendo ocorrido a cerca de 1 ano enquanto jogava bola com seus colegas. No momento do exame físico apresentava-se em estado geral bom, normocárdico (93 bpm), normotenso (130 x 90 mmHg), eupneico (20 ipm), anictérico, afebril, acianótico, normocorado, sem edema ou presença de pontos dolorosos. Na ausculta pulmonar o murmúrio vesicular estava presente, com ausência de ruídos adventícios. Ausculta cardíaca, bulhas rítmicas normofonéticas, em 2 tempos sem sopros. Ao realizar ECG não foram encontradas alterações. Devido ao quadro súbito, sem pródromos e ao histórico familiar foram realizados um teste ergométrico e o Holter 24h para buscar apurar o diagnóstico, então, foi constatado durante o estresse físico do teste ergométrico a presença de uma Taquicardia Ventricular Polimórfica que depois assumiram um aspecto bidirecional (Figura 1). Ao fazer o teste com Holter também foi confirmado a presença de uma TV polimórfica. Após confirmação do quadro, e a pesquisa por mutações genéticas características desta desordem, foram orientadas algumas condutas, entre elas: avisar os familiares e recomendação para fazer a avaliação genética, restrição aos exercícios e práticas de relaxamento, prescrição de fármaco antiarrítmico e a implantação de um cardioversor desfibrilador implantável (CDI). PALAVRAS DESCONHECIDAS Síncope: sinônimo de desmaio, perda súbita da consciência e do tônus postural; nela, o indivíduo fica flácido, cai e se recupera espontaneamente, geralmente antecedido por membros frios, pulso fraco e respiração superficial. Pródromos: sinal ou grupo de sintomas que pode indicar o início de uma doença antes que sintomas específicos surjam. SISTEMA NERVOSO AUTÔNOMO O coração sofre regulação autonômica do sistema nervoso simpático e parassimpático. Assim, sabe-se que o simpático inerva a musculatura cardíaca, sendo responsável por aumentar a frequência cardíaca (70bpm → 180bpm a 200bpm) e a força de contração (praticamente dobrar), enquanto o parassimpático faz o oposto: diminui a frequência cardíaca (70bpm → até a parada) e um pouco da força de contração (20-30%). Anatomicamente, o SNA simpático inerva principalmente o músculo ventricular, parcialmente o dos átrios e os nós Letícia Fugita sinoatrial e atrioventricular, diferente do parassimpático que tem influência muito grande nos nós e pouca nos músculos. COMPLEXO ESTIMULANTE A contração do coração é rítmica e coordenada, sendo dependente de um complexo estimulante responsável por gerar um potencial de ação (PA) e levá-lo para todo o órgão. Esse PA tem início no nó sinoatrial e, por meio dos ramos internodais (anteriores, posteriores ou médios), vai para toda a musculatura do átrio direito e esquerdo (por meio do feixe de Bachmann), além de chegar no nó atrioventricular. A partir daqui o PA segue pelo feixe de Hiss (com seus ramos esquerdo e direito, que também se subdividem) para, então, atingir toda a musculatura cardíaca – ramos subendocárdicos ou fibras de Purkinje. LIBERAÇÃO DE CÁLCIO Na fibra muscular esquelética, quando há a promoção de um impulso nervoso, na porção terminal do neurônio motor (junção neuromuscular) é liberado acetilcolina, que vai se ligar aos receptores nicotínicos e permitir a entrada de sódio e saída de potássio – mais sódio entra do que potássio sai, por isso a despolarização. O PA se espalha para os dois lados da fibra (bidirecional) e se adentra nos túbulos T (invaginações da membrana), ativando os receptores de diidropiridina. Quando isso acontece, um segundo receptor que está ligado ao de diidropiridina, chamado rianodina, é ativado, fazendo com que o os canais de Ca++ sejam ativados e liberem o cálcio no citoplasma. A liberação do cálcio armazenado age na troponina C, aumentando a interação entre as miofibrilas contráteis, permitindo que ocorra a contração muscular. Na musculatura estriada cardíaca, nos túbulos T existem vários canais de cálcio que são abertos conforme o PA avança na membrana. É bom lembrar que neste caso, esses túbulos T possuem mucopolissacarídeos, que são carregados negativamente e, portanto, atraem íons de carga positiva, como o cálcio extracelular. Dessa maneira, com os canais de cálcio abertos, esse cálcio extracelular é atraído para o interior da célula – isso é importante porque a capacidade de armazenamento do retículo sarcoplasmático da musculatura cardíaca é menor. O cálcio que entrou na célula ativa o receptor de rianodina e o cálcio armazenado também é liberado, seguindo para auxiliar na contração. Durante o relaxamento muscular é necessário “devolver” o cálcio. Nessa situação, o receptor de rianodina se fecha e existe uma bomba de cálcio (SERCA) que bombeia o cálcio do meio intracelular para dentro do retículo sarcoplasmático para ele ser armazenado e utilizado na próxima contração. Parte do cálcio é também bombeado para fora da célula por meio de um trocador sódio/cálcio, que manda o cálcio para fora e traz o sódio para dentro da célula. Para manter o potencial de membrana, então, a bomba de sódio e potássio entra em ação, removendo três moléculas de sódio e trazendo duas de potássio. O QUE SABER INICIALMENTE ● Taquicardia ventricular? QRS alargado, maior do que três quadradinhos no ECG; ● Taquicardia ventricular polimórfica? Complexo QRS que varia, não tem padrão; ● Taquicardia ventricular polimórfica com QT normal? Considerar em primeiro lugar a isquemia miocárdica e depois a forma familiar; ● Síndrome do QT longo? Pode ser congênita ou adquirida; ● TV polimórfica degenerada de ritmo sinusal com QT longo? Torsades de pointes - sulfato de magnésio; ● Tem taquicardia ventricular polimórfica? Lembrar de distúrbios hidroeletrolíticos (canalopatia - hipocalemia e hipomagnesemia) e medicamentos; ● Taquicardia ventricular polimórfica? Sala de emergência; ● Instabilidade clínica? Desfibrilação! Orientar, sedar, oxigênio e choque; Letícia Fugita Frequências cardíacas elevadas não são interessantes por aumentar o trabalho cardíaco – o coração para um tempo maior em contração do que em relaxamento, sendo no relaxamento o momento em que ele recebe o aporte sanguíneo muscular para o músculo cardíaco (se o tempo em diástole está diminuído, o órgão não recebe o aporte sanguíneo adequado). TAQUICARDIA VENTRICULAR POLIMÓRFICA (TV POLIMÓRFICA) É preciso saber que toda taquicardia de origem ventricular é definida como uma sequência de dois ou mais complexos QRS alargados com uma frequência maior de 100bpm, isso é, cuja origem se dê abaixo da bifurcação do feixe de Hiss (QRS alargado é o QRS que tem mais de três quadradinhos no eletrocardiograma - maior que 120ms). Taquicardia ventricular polimórfica é definida com um ritmo instável e complexo QRS que varia sua morfologia - pelo menos 2 variados na mesma derivação do ECG (não segue um padrão). As TV polimórficas surgem a partir de uma degeneração do ritmo sinusal. CLASSIFICAÇÃO de acordo com o intervalo QT ● QT normal: antes apresentava uma ECG normal, com intervalo entre o complexo QRS e a onda T dentro da normalidade; a principal causa secundária é a isquemia miocárdica aguda, mas doenças estruturais crônicas na presença de disfunção ventricular podem acabar se degenerando em TVP. ○ Menos frequente e associadas às TV polimórficas, temos a taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica (TVPC). É uma forma familiar (se associa a história familiar de síncope ou morte súbita) e dependente dascatecolaminas (tônus adrenérgico), desencadeada pelo exercício físico intenso ou estresse agudo e que acomete principalmente crianças e adolescentes. ● QT longo: temida torsades de pointes (alusão à típica imagem torcida do ECG). TAQUICARDIA VENTRICULAR POLIMÓRFICA CATECOLAMINÉRGICA (TVPC) Possui como manifestação clínica a síncope, seguida por sintomas menos frequentes, como tonturas ou palpitações e até mesmo a morte súbita. Pode existir um intervalo de dois anos entre o primeiro e o segundo episódio de síncope. História familiar de morte súbita ou síncope em pessoas jovens está presente em aproximadamente 30% dos casos, indicando uma correlação genética. O diagnóstico é geralmente por ECG de esforço, pois o basal geralmente se apresenta normal. A TVPC é uma canalopatia (doença hereditária caracterizada por alterações nos canais iônicos que leva a um maior risco de arritmias cardíacas) com padrão de herança autossômica dominante. Em alguns casos, no entanto, pode ser autossômica recessiva. O primeiro gene identificado foi RYR2, que codifica o receptor cardíaco de rianodina, sendo esse o principal. Suas variantes, em cerca de 60% dos casos, são decorrentes de outros genes menos prevalentes. Onde os receptores de rianodina são importantes? Esses receptores participam da liberação de cálcio armazenado dentro do retículo sarcoplasmático. Na musculatura cardíaca, diante de um PA, a membrana despolariza e canais de cálcio voltagem dependentes nos túbulos T (que também é rico em mucopolissacarídeos) se abrem, permitindo um influxo de cálcio extracelular para dentro da célula. Essa maior concentração de cálcio ativa os receptores de rianodina, o que causa a liberação do cálcio no citoplasma. Esse cálcio se liga à troponina C para a contração se seguir. Durante o relaxamento da musculatura eles também são importantes, pois se mantêm fechados para o retículo sarcoplasmático poder armazenar novamente o cálcio. Assim, receptores defeituosos devido a defeito em seu gene codificador podem causar problemas em todo esse processo. A terapia/tratamento indicada é a utilização de betabloqueadores, com resultados Letícia Fugita favoráveis. Em casos em que ocorrem recidiva de sintomas está indicado o implante do cardiodesfibrilador - o CDI. O CDI é um equipamento implantável completamente automático, utilizado para detectar e tratar arritmias graves por meio de impulsos elétricos - funciona como um marca-passo convencional. Ele evita a ida ao pronto socorro e, também, a morte súbita. CONDUTAS PÓS TRATAMENTO Foi realizada uma abordagem completa para buscar melhorar o prognóstico do paciente, por isso é imprescindível a prescrição de betabloqueador (nadolol e propanolol) e implantação do cardiodesfibrilador. Mais importante ainda, é necessário orientar o paciente quanto ao novo estilo de vida, além de alertar os familiares sobre a patologia, visto que é hereditária - isso é, fazer o mapeamento genético é importante. CONDUTAS DE LONGO PRAZO Em pacientes com diagnóstico de TVPC que apresentam síncope recorrente pode ser considerada a desnervação simpática cardíaca esquerda. Além disso, vários choques apropriados do CDI durante o uso de betabloqueador ou naqueles que são intolerantes ou contraindicados à terapia com esses medicamentos. É importante considerar sempre os efeitos colaterais, por isso a terapia farmacológica deve ser otimizada antes de se considerar a simpatectomia. Por que a desnervação simpática cardíaca esquerda é interessante? Primeiro é importante saber que as fibras simpáticas inervam principalmente a musculatura cardíaca dos átrios e ventrículos, sendo responsáveis, portanto, por aumentar a FC e a força de contração. Além disso, sabe-se que se removemos a inervação simpática e a parassimpática, o coração não para de contrair: as células do NSA e NAV são células marca-passo, assim a FC apenas diminui, mas a contração permanece síncrona. Por fim, devemos lembrar que FC cardíacas muito elevadas não são interessantes porque aumentam o débito cardíaco. Removendo, portanto, a inervação simpática, temos redução da FC com a diminuição da frequência de disparos de potenciais de ação, podendo ser uma solução para a taquicardia. EXAMES Eletrocardiograma - ECG: É um exame que avalia a atividade elétrica do coração por meio de eletrodos fixados na pele, avaliando o ritmo do coração e o número de batimentos por minuto, além de também poder monitorar se os dispositivos mecânicos implantados no coração estão funcionando adequadamente ou se os medicamentos utilizados estão causando efeitos colaterais no coração. Leva cerca de 5 a 10 minutos. São colocados eletrodos na região frontal do peito, punhos e tornozelos, e aplica-se um gel sobre esses dispositivos para facilitar a medição da corrente elétrica. O eletrocardiógrafo é ligado e conectado aos eletrodos por meio de fios que irão registrar a atividade elétrica. Após o exame, o aparelho para a impressão de 12 visões distintas no órgão. Resultados são normais quando o coração bate em ritmo regular, entre 60 e 100 bpm, e anormais quando bate em ritmo não regular, ou muito devagar (abaixo de 60 bpm) ou muito rápido (acima de 100 bpm). Como interpretar um ECG? Não sei. Teste ergométrico (diagnóstico de Taquicardia Ventricular Polimórfica): Também é conhecido como teste de esforço, serve para analisar como o coração se comporta diante de esforço físico. Utiliza uma esteira ou bicicleta, aparelho de pressão e ECG. Coloca-se 11 eletrodos no tórax do paciente, que deve se movimentar com intensidade progressiva, mas respeitando seu condicionamento. A velocidade é diminuída gradativamente após atingir exaustão espontânea Letícia Fugita ou 100% da FC máxima para a idade. Quanto à FC, é considerado satisfatório ao alcançar pelo menos 85% da FC esperada para a idade. No caso clínico, fez o teste ergométrico porque no ECG não foram identificadas alterações - a TVPC geralmente não se manifesta em repouso. Holter 24h: É um tipo de eletrocardiograma, mas que avalia a atividade cardíaca por um período de, no mínimo, 24 horas. É solicitado quando o paciente apresenta quadro frequente de síncope, palpitações ou falta de ar. Mais especificamente, avalia as alterações no ritmo e na FC ao longo do dia, por isso é importante, pois identifica arritmias ocasionais que um ECG comum não registra devido ao seu curto tempo de duração. Ele auxilia na programação de ajustes de aparelhos marcapasso ou CDI, além de fornecer apoio para tomada de decisão clínica. Em um exame normal a FC deve estar entre 50 bpm e 100 bpm em repouso. O exame Holter também é capaz de observar outras alterações no coração como bloqueios cardíacos e sinais sugestivos de isquemia, ou seja de áreas do coração que não estão recebendo suprimento sanguíneo suficiente. DIAGNÓSTICOS DIFERENCIAIS Síndrome do QT longo (SQTL): É uma doença genética caracterizada pelo prolongamento anormal do intervalo QT. Ela ocorre por uma anormalidade nos canais de potássio ou sódio do coração e podem cursar com arritmias cardíacas graves em indivíduos jovens e saudáveis. Cardiomiopatia arritmogênica do ventrículo direito (ARVC): É uma doença em que se verifica a substituição do miocárdio por tecido fibroso ou fibroadiposo predominantemente no VD e que se caracteriza por arritmias potencialmente letais. Se manifesta geralmente dos 30 aos 50 anos em episódios de arritmias ventriculares que podem evoluir para morte súbita. Síndrome de Andersen-Tawil: É uma condição rara composta por arritmias ventriculares, paralisia periódica e dimorfismo. É uma doença do canal iônico cardíaco, possui herança de padrão autossômico dominante e é classificada como tipo 7 da síndrome do QT longo congênito.