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A Influência da Religião no ordenamento jurídico Brasileiro

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A Influência da Religião no ordenamento jurídico Brasileiro
 Marcella Gasperini
INTRODUÇÃO
Há séculos os conceitos de direito, justiça e religião são discutidos sob a ótica da ética e da moral e por vezes se misturaram.
Para Platão, por exemplo, a conduta ética e seu regramento possuíam raízes no Além. Tinha a justiça como um valor absoluto, dualismo radical onde em um lado encontrava-se o mundo sensível – o mundo do corpo, da alma. E do outro o mundo inteligível – o mundo das ideias. Para ele a justiça agradaria a Deus e a injustiça o desagradaria. Sendo a Justiça a causa de bem para aquele que a pratica e causa de mal para aquele que a transgride.
Aristóteles, discípulo de Platão, considerava justo o homem respeitador da lei e injusto o sem lei. Para ele a justiça se trata de uma virtude.
Já para Santo Agostinho a justiça é dar a cada um o que é seu. Ele proclamava a existência de uma luta constante entre o princípio do bem e o do mal.
Para ele a justiça era dita como humana e divina, onde a lei humana se inspiraria na divina.
Como os conceitos de religião e direito estiveram sempre interligados de alguma forma durante a história, o presente trabalho tem como escopo analisar a influência da religião no Direito pelo tempo e especialmente como ela se apresenta no atual ordenamento jurídico pátrio.
HISTÓRICO
Âmbito externo
A Religião e o Poder sempre andaram juntos durante a História da Humanidade. Alguns povos e culturas usavam e ainda usam até hoje a religião como modelo de conduta e de vida social.
Segundo a obra de De Coulanges, as mais antigas gerações, antes mesmo de existir filósofos, creram numa segunda existência depois desta. Elas encararam a morte como uma simples mudança de vida e não como dissolução do ser.
Segundo as velhas crenças dos italianos e dos gregos, não era num mundo estranho ao que conhecemos que a alma ia passar sua segunda existência.
Para eles a alma permanecia bem perto dos vivos e continuava a pairar sobre a terra.
A partir dessa crença primitiva derivou-se a necessidade do sepultamento para guardar o corpo. Para que a alma fosse fixada nessa morada que lhe convinha para a sua segunda vida, era preciso que o corpo ao qual ela permanecia presa fosse recoberto de terra.
O homem era na época era atormentado pelo medo de que depois da morte os ritos não fossem observados. Era pungente a angústia existente. Temia-se menos a morte do que a privação da sepultura, pois sem ela não haveria felicidade e nem o repouso eterno.
A opinião primitiva dessas antigas gerações era de que o homem vivia no túmulo, que a alma não se separava do corpo e que ela permanecia presa a essa parte do solo em que os ossos eram enterrados. O homem, para eles, uma vez posto no túmulo, não tinha nenhuma conta a prestar sobre a sua vida pregressa.
O fato é que essas crenças logo levaram a formação de regras de conduta.
Os mortos eram tidos como seres sagrados. Os antigos os veneravam e no pensamento deles cada morto representava um próprio deus. Assim, a religião da morte (que parece ser a mais antiga da raça humana) se estabeleceu. Seus dogmas desapareceram rapidamente, mas seus ritos duraram até o triunfo do cristianismo. (Ainda hoje os hindus continuam a fazer oferendas aos antepassados).
A morte foi então o primeiro mistério descoberto pelo homem e elevou o pensamento do visível para o invisível. O home deixou de ver o humano e passou a observar o divino.
Após essa fase, começou o culto do fogo como se este representasse uma divindade. O fogo seria a alma dos mortos antes cultuados e ficavam agora dentro das casas.
Vale ressaltar que o culto dos mortos não se assemelha ao culto dos santos pelos cristãos, pois uma das primeiras regras daquele culto era que cada família só podia culturas os mortos de sua descendência. O culto dos mortos era o culto dos antepassados, pois os antigos não tinham a ideia de criação. O mistério para eles era a geração da vida, (o gerador era um ser divino) o que atualmente é o da criação da espécie humana.
Para De Coulanges:
“A pequenez dessa sociedade primitiva correspondia à pequenez da ideia que se fazia da divindade. Cada família tinha os seus deuses, e o homem só concebia e adorava divindades domésticas (...)
Se ainda lhe seriam necessários muitos séculos para chegar a se representar Deus como um ser único, incomparável, infinito (...)”
A ideia religiosa e a sociedade humana iriam crescer juntas e foi o que aconteceu.
Algumas famílias formaram grupos e no momento que elas se agrupavam, essas famílias conceberam uma divindade superior às suas divindades domésticas, que lhes era comum a todas as pessoas desse novo grupo.
Com o passar do tempo, quando a divindade de uma família adquiria prestígio entre os grupos, pois representava o sucesso e prosperidade daquela família, toda a cidade queria adotá-la e prestar-lhe um culto público para obter o mesmo êxito.
O Estado já estava intimamente ligado a religião. A cidade surgiu e cresceu juntamente com o pensamento religioso das antigas gerações.
Por isso que em uma cidade primitiva, todas as instituições políticas haviam sido instituições religiosas; as festas, cerimônias de culto; as leis; os sacerdotes, entre outros.
Nessa época começou-se a conceber a ideia de natureza imaterial. Agora, os homens compreendiam a morte de forma diversa e as antigas crenças não estavam mais à altura do espírito humano. Acreditavam que o divino era algo elevado demais para se comparar com os mortos.
Após isso vieram os sofistas que examinaram e discutiram as leis que ainda regiam o Estado e a família. Propagaram princípios novos, ensinando uma nova justiça. Ensinaram os gregos que para governar um Estado já não bastava invocar os velhos constumes e as leis sagradas, mas era preciso usar de persuasão para que o homem agisse sobre as vontades livres. (370)
O fim da sociedade antiga é marcado pela vitória do Cristianismo. Com a religião nova se dá o fim da transformação social iniciada a seis séculos antes.
Essa nova relligião dará luz ao Direito, as relações entre os homens, a propriedade, a hereditariedade, o procedimento jurídico, tudo se vira determinado, não mais mantidos pelos princípios da equidade natural mas pelos preceitos dessa nova religião. (401 a 403)
Tudo veio a partir dessa religião que estabeleceu um governo entre os homens. A opinião do homem aqui era sua própria divindade. (403)
Aos poucos, como vimos a sociedade se modificou. A religião deixou de ser altamente associada ao Estado, pois ocorreram mudanças no Governo e no Direito. (403)
Como bem aponta De Coulanges:
"Com o cristianismo, não só o sentimento religioso foi revivescido, mas assumiu também uma expressão mais alta e menos material. Ao passo que antes se haviam criado deuses da alma humana ou das grandes forças físicas, começou-se a conceber Deus como realmente estranho, por essência, à natureza humana, por um lado, ao mundo, por outro." (404)
O cristianismo mudou a nova forma de adoração. Representou a adoração de todos os homens a um Deus único.
Jesus cristo em seus ensinamentos, ensina que seu reino não é desse mundo. Separa a religião do Governo. Não sendo mais terrestre, a religião já só se envolve o mínimo possível nas coisas da Terra. Jesus Cristo acrescenta "Dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de César". Fora aqui a primeira vez que o Estado foi literalmente dissociado da religião. (406)
Sendo assim, a natureza do direito também mudou. E pelo simples fato fo Estado não ter mais uma religião oficial, as regras do governo dos homens mudaram para sempre. (409).
2.2 Âmbito Interno: Do Estado Confessional para o Estado Laico
O período colonial foi marcado pela união entre a Coroa Portuguesa e a Igreja Católica.
A reforma protestante no século XVI influenciou a chegada dos Jesuítas ao Brasil pois como a Igreja Católica perdia fiéis na Europa, viu na descoberta das novas terras a possibilidade de reforçar seus laços e adquirirnovos membros.
Para que isso acontecesse houve um interesse em comum entre a Coroa de Portugal e os Jesuítas da Igreja. Um detinha a necessidade de colonizar o povo encontrado nas novas terras e o outro a necessidade de converter novos fiéis.
Os jesuítas integravam-se ao mesmo tempo na tarefa colonizadora e a tornavam mais fácil, apresentando os colonizadores portugueses e agindo em nome de Deus.
Os jesuítas catequizavam os indígenas e educavam os herdeiros da elite rural e dos funcionários do governo. Criaram ainda colégios nas províncias e assumiram praticamente o controle e monopólio da educação colonial.
Tão forte era a parceria Igreja/Coroa, que Portugal entregava aos cofres da Companhia 10% de todos os impostos arrecadados, no que se chamava de "redízima".
Mas essa aliança não permaneceu por muito tempo como demonstra Rainer Sousa em seu texto sobre a história dos jesuítas no Brasil:
“ No ano de 1750, um acordo estabelecido entre Portugal e Espanha, dava direito de posse aos portugueses sobre o aldeamento jesuíta de Sete Povos das Missões. Nesse mesmo tratado ficava acordado que os jesuítas deveriam ceder as terras à administração colonial portuguesa e as populações indígenas deveriam se transferir para o Vice-Reinado do Rio Prata. Os índios resistiram à ocupação, pois não queriam integrar a força de trabalho da colonização espanhola; e os jesuítas não admitiam perder as terras por eles cultivadas. O conflito de interesses abriu espaço para o início das Guerras Guaraníticas. Os espanhóis e portugueses, contando com melhores condições, venceram os índios e jesuítas no conflito que se deflagrou entre 1754 e 1760. Depois do incidente o ministro português Marques de Pombal ordenou a saída dos jesuítas do Brasil. Tal ação fazia parte de um conjunto de medidas que visavam ampliar o controle da Coroa Portuguesa sob suas posses.”
Na época colonial, o preconceito religioso era muito forte.
A relação entre a Coroa Portuguesa e a Igreja Católica foi mantida praticamente durante todo período colonial, sendo alterada somente após a chegada da família real portuguesa, em 1808 ao Brasil, em função de interesses econômicos que Portugal mantinha com a Inglaterra à época.
Uma das primeiras referências sobre liberdade religiosa no Brasil foi assinatura de um tratado de Comércio e Navegação com a Inglaterra, datado de 1810.
Em 1822 houve a Proclamação da Independência do Brasil e a partir daí as coisas tendiam a mudar.
A independência total entre o Estado e a Igreja marcou a tônica da Constituição de 1891. O objetivo era a aniquilação do apoio do catolicismo ao Estado Monárquico e a busca do exercício do poder estatal sem a interferência da Igreja Católica. (o dia) http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-09-14/frei-betto-estado-laicoeestado-confessional.html
2. RELIGIÃO PELAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS
2.1 A Constituição Imperial A primeira Constituição foi feita em 1824 e estava inserida no contexto de pós independência do Brasil. Para constitui-la ocorreu um grande confronto entre as principais forças politicas da época.’ Por existir esse conflito de interesses Dom Pedro I com medo de perder poder, dissolveu a Assembleia Constituinte Brasileira que já estava formada, convocou alguns cidadãos conhecidos por ele, e de portas fechadas começou a redigir o que seria a nossa primeira Constituição.
A constituição de 1824 é conhecida por estabelecer no Brasil o governo de Monarquia hereditária e aplicar quatro poderes sendo eles o Executivo, o Legislativo o Judiciário e o Moderador. O poder moderador era exercido pelo imperador (D. Pedro).
A constituição de 1824 foi a que teve maior vigência no Brasil pois durou mais de 65 anos.
A Constituição do Império, outorgada em nome da “Santíssima Trindade”, trazia a religião católica romana como religião oficial, mas era permitido aos seguidores das demais religiões o culto doméstico.
De acordo com Celso Ribeiro Bastos, havia, no Brasil Império, liberdade de crença sem liberdade de culto. Segundo ele, “na época só se reconhecia como livre o culto católico. Outras religiões deveriam contentar-se com celebrar um culto doméstico, vedada qualquer forma exterior de templo”.
Desta forma a Igreja Católica era a religião oficial do Império, com todos os benefícios advindos dessa qualidade de Estado confessional e o na prática o cidadão que optasse por outra religião sofreria forte discriminação.
2.2 A Constituição Republicana A segunda Constituição tinha como contexto a pós Proclamação da República e ocorreu no ano de 1891. Era repleta de interesses principalmente da elite latifundiária, com destaque aos cafeicultores. Essa elite influenciava o eleitorado e fraudava as eleições impondo assim o seu domínio sobre o país.
A Constituição de 1891 estabelecia uma República Presidencialista no país, excluindo o poder moderador e ficando agora com três poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário.
Houve uma mudança significativa quanto as questões religiosas pelo Estado com a Proclamação da República em 1889. Os Republicanos queriam se desvencilhar da forte ligação oficial do Estado com a Igreja Católica.
O que transformou a relação entre Religião e Estado foi um Decreto de 1890 que fez com que o Brasil deixasse de ser um Estado Confessional para se tornar um Estado laico.
O Decreto foi um marco na história do Brasil, pois pela primeira vez o Brasil se via separado de uma religião oficial e permita a liberdade de crença e de culto.
Em seu artigo 1º, referido Decreto determinava que “é proibido a autoridade federal, assim como a dos Estados federados, expedir leis, regulamentos ou atos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e criar diferenças entre os habitantes do país, ou nos serviços sustentados à custa do orçamento, por motivos de crenças, ou opiniões filosóficas, ou religiosas”.
O artigo 2º preconizava a ampla liberdade de culto, enquanto os artigos 3º e 5º previam a liberdade de organização religiosa sem a intervenção do poder público.
Segundo Aldir Guedes Soriano:
“ A constitucionalização do novo regime republicano consolidou, através da Constituição de 1891, a separação entre a Igreja e o Estado, fazendo do Brasil um estado laico.
Segundo Fábio Dantas de Oliveira:
“A Constituição Federal de 1891 representou um marco no que tange à laicidade do Estado, pois todas as Constituições que lhe sucederam mantiveram a neutralidade inerente a um Estado Laico, ainda que teoricamente”.
A nova opção pela separação entre Igreja e Estado foi confirmada pela A primeira constituição republicana de 1891, consagrando o Estado Laico e a liberdade de religião. Ainda, não há menção a Deus em seu preâmbulo.
2.3 A Constituição Social-Corporativa A terceira Constituição Em 1934, seu contexto político estava incluído na chamada Era Vargas, onde Getúlio Vargas era o presidente. Aqui foi criado o voto secreto, o voto feminino, além da criação da Justiça do Trabalho e de Leis trabalhistas. Foi a Constituição com menor duração.
Nessa constituição a laicidade foi mantida, mas em moldes diferentes do que na constituição anterior. Aqui a religião não foi afastada por completo e há menção a figura de Deus no preâmbulo da Constituição. Ainda, reconheceu a liberdade de culto desde que essa não contrariasse a ordem pública e os bons costumes.
2.4 A Constituição "Polaca" A quarta Constituição ocorreu três anos depois, em 1937, ainda inserida no contexto da Era Vargas. O que aconteceu aqui foi um golpe de Estado. Como seu mandato terminava em 1938, Vargas para continuar no poder tornou-se um ditador em um período conhecido como Estado Novo.
Essa constituição tinha inspirações fascistas, era um regime ditatorial, perseguia opositores, o estado intervinha na economia, havia a abolição de partidos políticos junto com a liberdade de imprensa.
Essa constituição também previu a questão da ordem e dos bons costumes como possíveis restrições a liberdade religiosa, o que poderia, de acordo com interesses políticos dominantes, servir como instrumento jurídico para cerceamento de alguma religião.
Em comparaçãocom a Constituição anterior, apresentou retrocessos em alguns temas ligados a religião.
2.5 A Constituição "Liberal"
A quinta constituição ocorreu no ano de 1946. Ela nasceu no contexto de redemocratização do país.
Nesse cenário, Getúlio Vargas havia sido deposto e era de grande importância ter uma nova ordem constitucional pois o pais tinha se redemocratizado.
A Constituição de 1946 tentou conciliar a Justiça Social com o Estado Liberal, buscando resguardando a democracia. Manteve a proibição de a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios estabelecerem, subvencionarem ou embaraçarem cultos religiosos.
Não há previsão expressa de o Estado manter “relação de aliança ou dependência com qualquer culto ou igreja”, ao contrário da constituição anterior.
Já no capítulo de direitos e garantias individuais, a Constituição de 1946 assegura o livre exercício dos cultos religiosos, sendo defeso os que contrariem a ordem pública ou os bons costumes.
Aqui ainda, as organizações religiosas adquirem a personalidade jurídica.
Houveram ainda inovações importantes quanto ao tema ao estabelecer a previsão da imunidade tributária, com relação a impostos, para tempos de qualquer
culto. Há uma limitação a essa imunidade. Para que obtenham os templos devem aplicar suas rendas integralmente no País.
A Constituição de 1946 previu pioneiramente ainda a “escusa de consciência”, onde a lei poderia estabelecer obrigações alternativas àqueles que se recusassem a cumprir obrigações impostas por lei a todos os brasileiros.
Há, também, previsão de assistência religiosa aos militares e aos internados em habitação coletiva. Sendo permitida essa assistência religiosa somente por brasileiro.
Os cemitérios poderiam ser administrados pelos Municípios ou mantidos por entidades religiosas. As organizações religiosas poderiam praticar seus ritos, mesmos nos cemitérios seculares.
Também havia previsão da instituição de descansos remunerados, em dias de feriados religiosos.
Previu-se a possibilidade de efeitos civis ao casamento religioso. Também há a previsão do ensino religioso facultativo.
Essa constituição portanto consagrou o direito à liberdade de culto e ainda trouxe importantes novidades para implementar o exercício desse direito.
A Constituição Autoritária
A Constituição de 1967 manteve praticamente a mesma orientação da Constituição anterior quanto à liberdade religiosa, inclusive a ressalva quanto à ordem pública e aos bons costumes.
A colaboração de interesse público referia-se expressamente aos setores educacional, assistencial e hospitalar. A novidade aqui era a dispensa dos eclesiásticos de participar do serviço militar obrigatório, o que demonstrou a disposição dos militares que ascenderam ao poder em formar uma força cada vez mais distante da moral religiosa cristã.
A Constituição de 1967, proíbe o Estado de estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos. Tendo porém a previsão expressa de colaboração entre o Estado e as organizações religiosas, no interesse público, especialmente nos setores educacional, assistencial e hospitalar.
No Capítulo “Dos Direitos e Garantias Individuais” há afirmação de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de credo religioso.
Não há ainda “escusa de consciência”.
São assegurados a liberdade de consciência e o exercício de cultos religiosos, desde que “não contrariem a ordem pública e os bons costumes”.
Há a previsão de assistência religiosa, prestada por brasileiros, às forças armadas e nos estabelecimentos de internação coletiva.
Igualmente são assegurados o repouso remunerado, nos feriados religiosos; o casamento religioso de efeitos civis; o ensino religioso facultativo.
Mantém a previsão da imunidade tributária, no tocante aos impostos, dos “templos de qualquer culto”. A liberdade de culto também foi mantida.
3. CONSTITUIÇÃO FEDERAL CIDADÃ DE 1988
“ Em 5 de outubro de 1988, o Congresso Nacional brasileiro estava em polvorosa. Do lado de fora, tropas militares saudavam parlamentares com tiros de canhão e fogos de artifício. Lá dentro, os políticos sabiam que estavam vivendo um momento histórico.
Após subir a rampa do Planalto com o presidente José Sarney e Raphael Meyer, ministro do STF, o deputado Ulysses Guimarães, então presidente da Assembleia Nacional Constituinte, assinou os documentos no plenário da Câmara dos Deputados e disse a frase que todos esperavam: “Declaro promulgado o documento da liberdade, da dignidade, da democracia e da justiça social do Brasil”.
Estávamos diante da tão esperada"constituição cidadã"que foi intitulada assim por ter sido um marco para a cidadania e os direitos humanos. Também foi a primeira Constituição que contou com a participação efetiva da população durante o processo de aprovação das leis.
Dentro das principais mudanças dessa Constituição encontramos o capítulo sobre a Liberdade Religiosa onde alguns doutrinadores acreditam que seja o princípio jurídico fundamental que regula as relações entre o Estado e a Igreja em consonância com o direito fundamental dos indivíduos e dos grupos a sustentar, defender e propagar suas crenças religiosas, sendo o restante dos princípios, direitos e liberdades, em matéria religiosa, apenas coadjuvantes e solidários do princípio básico da liberdade religiosa.
Conforme José Afonso da Silva: “A liberdade de religião engloba, na verdade, três tipos distintos, porém intrinsecamente relacionados de liberdades: a liberdade de crença; a liberdade de culto; e a liberdade de organização religiosa.
Quanto à liberdade de crença, José Afonso da Silva diz que ela compreende a liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o direito) de mudar de religião, e também a liberdade de não aderir a religião alguma, bem como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o agnosticismo. Não engloba, contudo, a liberdade de embaraçar o livre exercício de qualquer religião, de qualquer crença, “pois aqui também a liberdade de alguém vai até onde não prejudique a liberdade dos outros”.
No que tange à liberdade de culto, José Afonso da Silva explica:
(...) a religião não é apenas sentimento sagrado puro. Não se realiza na simples contemplação do ente sagrado, não é simples adoração a Deus. Ao contrário, ao lado de um corpo de doutrina, sua característica básica se exterioriza na prática dos ritos, no culto, com suas cerimônias, manifestações, reuniões, fidelidades aos hábitos, às tradições, na forma indicada pela religião escolhida. (...)
Diz, no art. 5º, VI, que:
“ Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
VII - e assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;”
Ou seja, é evidente que a constituição ampliou essa liberdade e até prevê-lhe uma garantia específica.
O dispositivo transcrito compõe-se de duas partes:
1 - Assegura a liberdade de exercício dos cultos religiosos, sem condicionamentos, e
2 - Protege os locais de culto e suas liturgias.
Não será a lei que vai definir os locais do culto e suas liturgias. Sendo isso parte da liberdade de exercício dos cultos, que não está sujeita a condicionamento.
Enfim, cumpre aos poderes públicos não embaraçar o exercício dos cultos religiosos, conforme o Art. 19º que dispôe:
“ Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público’.
"Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança,o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA FEDERATIVA DO BRASIL."
Quanto ao preâmbulo, pouca coisa mudou. O preâmbulo é o enunciado que antecede o texto constitucional. Nem todas as constituições o possuem. Nas constituições brasileiras ele esteve sempre presente, embora nem todas mencionassem o nome de Deus.
A Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988 foi promulgada “sob a proteção de Deus”, como é possível verificar em seu preâmbulo.
Há uma grande discussão quanto a menção a Deus no preâmbulo da carta magna de 1988. Alguns doutrinadores defendem que ele vai de encontro com a Liberdade Religiosa.
De acordo com Jorge Miranda, a doutrina se divide em três correntes explicativas da natureza jurídica do preâmbulo:
a) Corrente da irrelevância jurídica
Para essa corrente o preâmbulo da Constituição é despiciendo, desprovido de qualquer relevância, de modo a não fazer diferença sua existência ou inexistência no pórtico duma Carta Magna;
b) Corrente da normatividade
A qual enuncia o mesmo caráter cogente, injuntivo e vinculante de qualquer outra norma constitucional, podendo, destarte, servir como parâmetro de aferição de constitucionalidade das normas infraconstitucionais;
c) Corrente da relevância jurídico-interpretativa
No sentido de que, não obstante não tenha valor normativo, isto é, cogente e vinculante como qualquer norma constitucional, é parte integrante da Constituição.
4. QUESTÕES POLÊMICAS
Transfusão de Sangue em Testemunha de Jeová
As origens das Testemunhas de Jeová remontam ao movimento adventista do século 19 na América. Esse movimento com um pregador baptista leigo que, no ano 1816, começou a proclamar que Cristo regressaria em 1843.
Encaram a sua religião como um modo de vida, sendo que todos os outros interesses, incluindo o emprego e a família, giram em torno da adoração exclusiva que prestam a Jeová, o seu Deus. Assim, não importa o que façam, tudo deverá ser influenciado pela decisão e juramento que tomaram de dedicar a sua vida incondicionalmente ao Deus que adoram. A Bíblia para eles é um verdadeiro manual de aplicação prática e obrigatória em todos os campos da vida. Dão grande importância à conduta baseada no que consideram ser elevados padrões morais que afirmam encontrar nesse livro que consideram sagrado. Têm profundo respeito pela santidade da vida e pelo sangue.
Por encararem o sangue como símbolo da vida, entendem pela leitura de vários versículos bíblicos que Deus reclama como Seu o sangue de qualquer criatura, como representação de que a vida Lhe pertence. Assim, não utilizam o sangue animal na alimentação nem o sangue humano, incluindo o seu próprio, em procedimentos médicos que envolvam o armazenamento ou transfusão. Essa afirmação encontraria respaldo nos seguintes textos bíblicos: * Gênesis 9:4. Embora tivesse permitido que Noé e sua família passassem a se alimentar de carne animal após o Dilúvio, Deus os proibiu de comer o sangue. Ele disse a Noé: “Somente a carne com a sua alma — seu sangue — não deveis comer.” Desde então, isso se aplica a todos os humanos, porque todos são descendentes de Noé. * Levítico 17:14. “Não deveis comer o sangue de qualquer tipo de carne, porque a alma de todo tipo de carne é seu sangue. Quem o comer será decepado da vida.” Para Deus, a alma, ou vida, está no sangue e pertence a Ele. Embora essa lei tenha sido dada apenas à nação de Israel, ela mostra a importância que Deus dava a não comer sangue. * Atos 15:20. ‘Abstenham-se do sangue.’ Deus deu aos cristãos a mesma proibição que deu a Noé. A História mostra que os primeiros cristãos não consumiam sangue, nem mesmo para fins medicinais.
Acontece que na prática, a não aceitação ao tratamento hemoterápico pode resultar na morte do paciente, pondo em confronto dois princípios garantidos constitucionalmente: o direito à liberdade religiosa e o direito à vida.
Conforme matéria do site do STJ em 29/03/2015 sobre o tema podemos entender o posicionamento do STJ:
“ Fé é a certeza das coisas que se esperam e a convicção de fatos que não se veem (Hebreus 11:1). A crença religiosa dispensa lógica e razão. Quem crê, crê e pronto. É algo que, teoricamente, não se discute. Um direito fundamental reconhecido pela Constituição de 1988.
Isso não significa, entretanto, que não existam limites ao que é feito em nome da liberdade de crença. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por exemplo, já encerrou muitas discussões envolvendo atos abusivos praticados sob o manto da religião. Um deles foi o julgamento do HC 268.459, que discutia a responsabilidade criminal de um casal pela morte da filha, de 13 anos.
A menina, portadora de anemia falciforme, foi levada ao hospital com uma crise de obstrução dos vasos sanguíneos. Alertados pelos médicos de que seria necessário realizar uma transfusão, os pais não autorizaram o procedimento invocando preceitos religiosos das Testemunhas de Jeová.
Em primeira instância, os pais foram pronunciados para ir a júri popular, acusados de homicídio com dolo eventual, decisão mantida em segunda instância.
No STJ, a Sexta Turma entendeu pelo trancamento da ação penal. Para o colegiado, os pais não poderiam ser responsabilizados porque, ainda que fossem contra o procedimento, não tinham o poder de impedi-lo, já que a menina estava internada. Os médicos é que deveriam ter agido e cumprido seu dever legal, mesmo diante da resistência da família.
O julgamento ficou empatado, e como nesses casos a regra é prevalecer a posição mais favorável, o habeas corpus foi concedido. No acórdão, ficou registrado o entendimento de que a invocação religiosa deve ser indiferente aos médicos, que têm o dever de salvar a vida.”
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise histórica realizada por este trabalho científico deixa evidente que Religião e Direito sempre foram questões difíceis de dissociar.
Durante muitos séculos foi praticamente impossível conseguir separar as duas matérias e o Direito foi extremamente influenciado pelos dogmas da Igreja. Com o passar dos anos as constituições brasileiras foram demonstrando maior flexibilidade quanto a liberdade religiosa.
A laicidade do Estado é uma das mais importantes conquistas culturais da civilização. A dissociação entre direito e religião retrata o desenvolvimento de uma cultura jurídica. A separação entre o temporal e o divino permitiu o surgimento de uma capacidade humana de estabelecer regras de convívio e de decidir seus próprios conflitos.
Todavia a religião nunca deixou de ser fonte de conteúdo, o que é refletido até hoje nas grandes discussões encontradas nos tribunais.
A liberdade religiosa tratada na Constituição Federal de 1988 constitui um importante avanço democrático que visa garantir o direito do cidadão de acreditar ou desacreditar do que lhe convier.
Apesar da doutrina da Igreja Católica estar extremamente arraigada na maioria da população brasileira, hoje já podemos conviver com a pluralidade de religiões e essas sendo tratadas de forma igualitária pelo Estado.
O Judiciário ainda encontra grande dificuldade em decidir questões envolvendo a liberdade de religião e os princípios indisponíveis, mas aos poucos podemos perceber uma certa autonomia quanto a isso.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Dispon´vel em: https://marcellagasperini.jusbrasil.com.br/artigos/332813246/a-influencia-da-religiao-no-ordenamento-juridico-brasileiro acesso em 10/10/2017.

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