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CAPÍTULO IV - SEÇÃO II - III. AS CAUSAS SUPRALEGAIS DE JUSTIFICAÇÃO 387 O cumprimento parcial do dever não torna o ato lícito, mas pode inter- ferir na culpabilidade do agente, cuja análise deve conduzir a eliminar a solução penal quando os efeitos do fato forem alcançados. Convém salientar que nenhuma norma legal impõe a quem quer que seja, nem mesmo aos agentes estatais, o dever de matar. Se o agente policial mata outrem, só poderá ter a antijuridicidade de sua conduta excluída pela legítima defesa uma vez observados seus requisitos, jamais por efeito de estrito cumprimento de dever legal. Também nenhuma norma impõe a tortura para !ns de investigação criminal. Quando o agente se excede no cumprimento do dever legal, res- ponde pelo excesso, conforme o art. 23, parágrafo único, do Código Penal. Quanto a esse excesso, convém fazer-se uma observação especí!ca no que toca ao dever de prender quem esteja em "agrante de acordo com o disposto no art. 301, do Código de Processo Penal. A norma, nesse caso, não se esgota na determinação do ato de prisão, ou seja, de privação imediata da liberdade, mas encerra também o dever de dar en- caminhamento aos protocolos de con!rmação da legalidade da prisão. Esse dever de encaminhamento está consignado no art. 304, do Código de Processo Penal, que manda apresentar o preso à autoridade compe- tente para a lavratura do auto de prisão em "agrante, o qual deverá ser comunicado imediatamente ao juiz competente, à família do preso ou à pessoa por ele indicada (art. 5º, LXII, da CR). Sem esse procedimento, que é decorrente do controle de legalidade previsto no art. 5º, LXV, da Constituição, a prisão será ilegal e, consequentemente, estarão violadas as condições de justi!cação. III. AS CAUSAS SUPRALEGAIS DE JUSTIFICAÇÃO São causas supralegais de justi!cação reconhecidas pela ordem ju- rídica: o consentimento presumido, o direito de correção dos pais, a liberdade de expressão e o processo de marginalização social. O consen- timento do ofendido, como já visto, não constitui mais uma causa de justi!cação, mas sim um puro elemento negativo do tipo, em face da renúncia do titular do bem jurídico à sua proteção.407 407. RO IN, Claus. (Nota 112), p. 4 ; reconhecendo, como causa de justificação, WESSEL- S/BEULKE/SATZGER. (Nota 128), p. 173. 388 FUNDAMENTOS DE TEORIA DO DELITO - JUAREZ TAVARES Os pressupostos dessas causas de justi!cação residem em que a ordem jurídica, embora não preveja em suas normas todas as situações em que o bem jurídico possa ser sacri!cado, pode admiti-las desde que compatíveis com os princípios que a informam. Uma vez que qualquer dessas causas supralegais encontre sua delimitação legal, passa a consti- tuir causa legal de justi!cação. Deve-se salientar, ademais, que as causas supralegais de justi!cação, na verdade, são extraídas da própria ordem jurídica, ora por força de uma interpretação do conteúdo de qualquer de suas normas, ora como expressão de um princípio. Nesse sentido, não são causas criadas segundo critério abstrato de pura racionalidade; são causas vinculadas a preceitos normativos genéricos. Incluem-se, por isso, nessas causas as permissões decorrentes dos princípios contidos em tratados ou convenções interna- cionais, de que o Brasil tenha sido subscritor, ainda que aqui não tenham sido mandados a executar pelo respectivo decreto presidencial. De qualquer modo, podem ser elencados, em todas elas, os seguin- tes requisitos: a) a existência de um motivo para atuar, que pode ser a prática de um ato desautorizado (do !lho, na correção pelos pais), ou uma situação de preservação da cidadania ou da própria condição de pessoa (nos processos de marginalização social); b) a execução da ação não implique uma grave violação do direito alheio ou ofenda a dignidade humana; c) os efeitos possam ser perfeitamente assimilados pela vítima ou terceiros; d) o bem jurídico possa ser descartado ou se situe fora do âmbito de proteção. 1. O CONSENTIMENTO PRESUMIDO Como os tipos penais estão compostos em função da delimitação das zonas do lícito e do ilícito, determinadas conforme a lesão ou o perigo de lesão do bem jurídico, estará excluída a imputação quando o titular do bem jurídico tenha consentido nesses eventos de lesão ou perigo. Isso porque a ordem jurídica não pode se sobrepor ao interesse dos particulares quando esses não se importem ou não se considerem afetados em seus direitos ou bens. Para que isso ocorra, é necessário, porém, que o titular do bem jurídico tenha manifestado, objetivamen- te, seu consentimento em sua afetação. Diversa será a questão quando CAPÍTULO IV - SEÇÃO II - III. AS CAUSAS SUPRALEGAIS DE JUSTIFICAÇÃO 389 inexistir esse consentimento. Apesar disso, será possível admitir que, em algum momento da produção do risco, o titular do bem jurídico, em face das circunstâncias, pudesse ter consentido na lesão ou no perigo, o que daria lugar ao consentimento presumido. A doutrina, ao admitir essa forma de consentimento, tem buscado, todavia, outro fundamento para seus efeitos. Se o consentimento expresso exclui a imputação, o consentimento presumido exclui a antijuridicidade. A pergunta que !ca é a seguinte: por que exclui a antijuridicidade e não também a imputa- ção? A razão parece consistir em três séries de fundamentos. Primeiro, a presença de um interesse positivo quanto à lesão ou o perigo de lesão do bem jurídico. Segundo, a ausência de interesse quanto à sua preservação. Terceiro, a necessidade de uma vinculação aos valores da ordem jurídica para o efeito de a!rmar a afetação do bem jurídico. Pelo primeiro fundamento, o consentimento presumido se con- funde com atuação no interesse do ofendido, ou seja, como verdadeira gestão de negócios, prevista no art. 861 do Código Civil. Essa ocorre justamente quando o titular do bem não estiver com capacidade de emitir seu consentimento, ou por não estar presente no momento do ato, ou por estar com sua capacidade de comunicação comprometida por qualquer outra causa (enfermidade mental, perda da memória e da percepção, paralisia, estado comatoso, anestesia etc.). À medida que a atuação preencha os objetivos do titular do bem, estará excluída, por esse fundamento, a ilicitude da conduta. A conclusão acerca da anti- juridicidade não decorre exatamente por outro motivo, senão por uma transposição ao direito penal das normas de direito civil, que acolhem o ato como lícito, em oposição à atuação em desacordo com os interesses do titular, que constituiria ato ilícito. Observe-se também que a atuação no interesse do ofendido quase sempre está subordinada a uma situação de necessidade. Por exemplo, o vizinho invade a propriedade alheia para conter ali um incêndio que irrompera no ar condicionado: nítida atuação no interesse do ofendido, que exclui a ilicitude da violação de domicílio. De acordo com o segundo fundamento, a inexistência de opo- sição à lesão ou ao perigo ao bem jurídico autoriza a conduta, porque não interfere no âmbito de liberdade do titular quanto ao exercício de seu direito subjetivo de mantê-lo ou abandoná-lo. Aqui, não se trata 390 FUNDAMENTOS DE TEORIA DO DELITO - JUAREZ TAVARES de gestão de negócios, porque não se estará atuando em benefício do titular. Simplesmente, o bem jurídico não vem a sofrer qualquer lesão substancial. Por exemplo (citado por HEFENDEHL), uma pessoa saca da carteira de alguém cinco moedas de dois euros e as substitui por uma cédula de dez euros. Ainda que tenha havido uma intervenção indevida no patrimônio alheio, não se lhe produziu qualquer dano. Quanto ao terceiro fundamento, talvez o mais importante para justi!car o deslocamento do fato para o âmbito da antijuridicidade, reside em que a análise do acontecimento está subordinada aos valores da ordem jurídica. A exigência de um juízo de valor está presente na gestão de negócios, que não diz respeito propriamente a um processo de imputação, mas sim a um enfoque global da ordemjurídica. Será a norma do Código Civil que serve de substrato, no caso, para a!rmar a licitude da conduta. O mesmo não ocorre, porém, quanto à ausência de interesse, a qual pode ser posta em discussão em face do conteúdo do injusto, mas também, antecipadamente, diante do processo de imputa- ção. No exemplo dado por HEFENDEHL, em que se substituem cinco moedas de dois euros por uma cédula de dez, na verdade, não houve a criação do risco ao bem jurídico. Assim, sob esse aspecto, o consenti- mento presumido exclui o processo de imputação, tal como ocorre com o consentimento real. O consentimento presumido é sempre invocado no direito médico, quando, muitas vezes, não se pode contar com o consentimento expresso do paciente nem de seu representante para a realização de uma inter- venção. Por exemplo, o médico que, diante do agravamento do quadro do paciente, resolve operá-lo de urgência, retirando-lhe o apêndice in- "amado. Aqui, está nítida a atuação no interesse do ofendido. Pode ocorrer, também, que no próprio direito médico se trate de uma forma de exclusão da imputação. Por exemplo, durante uma operação de hérnia de hiato, o médico resolve corrigir-lhe também o esôfago, a !m de que a operação se torne mais e!caz, o que trará maiores benefícios ao paciente. A intervenção médica não criou nem aumentou o risco ao bem jurídico. Alguns autores falam também, no último caso, de um consenti- mento hipotético, o qual estaria subordinado, todavia, à atenção da lex artis. Uma vez que o médico atendesse às regras estritas de sua pro!ssão, CAPÍTULO IV - SEÇÃO II - III. AS CAUSAS SUPRALEGAIS DE JUSTIFICAÇÃO 391 estaria, assim, autorizado a intervir no corpo do paciente, porque atuaria sob a égide de um consentimento hipotético. Como a arte médica não pode ser disciplinada normativamente de modo que possa abranger atos especí!cos de atuação, senão em suas linhas gerais no sentido da cura, um suposto consentimento hipotético, nessas condições, poderá gerar intervenções indevidas no paciente.408 Imagine-se que o médico, não gostando do nariz de uma paciente, resolva lhe modi!car a forma. O fato será antijurídico, ainda que esteticamente a correção tenha apresen- tado bons efeitos. O médico não pode, segundo sua própria concepção e gosto, decidir como o corpo dos pacientes deve se apresentar. Para o médico, a correção do nariz pode parecer perfeita, mas para a pacien- te pode modi!car seu modo de estar no mundo, retirando-lhe certas particularidades que correspondem até mesmo ao sentido de sua per- sonalidade. Sob esses aspectos, o consentimento hipotético tem sido rechaçado pela doutrina porque deixa a a!rmação ou negação da anti- juridicidade sob exclusiva discricionariedade do julgador. Diversamente do que postula a doutrina majoritária, a análise dos fundamentos do consentimento presumido não deve ser feita de acordo com uma hipotética vontade do agente, o que daria lugar a um supos- to consentimento hipotético. Ao contrário, para evitar justamente essa confusão, os dados devem ser analisados objetivamente, sob a incidência de uma norma autorizadora da conduta, no caso da atuação no interesse do ofendido ou, concretamente, da criação ou aumento do risco em face da ausência de interesse. Por !m, as intervenções médico-cirúrgicas, como elucidam GRECO e SIQUEIRA,409 sofreram, no decorrer do tempo, uma acen- tuada evolução, no sentido de consagrar, cada vez mais, a autonomia do paciente de decidir acerca do tratamento e das intervenções sobre seu corpo e saúde. Se, no início, o que prevalecia era a vontade do médico – que, ao exercer sua pro!ssão, teria plena liberdade para tomar todas as medidas interventivas que achasse adequadas, mesmo contra a 408. HEFENDEHL, Roland. “Objektive Zurechnung bei Rechtfertigungsgründe? Begründbarkeit und Grenzen”, estschrift für risch, erlin: unc er umblot, 2013, p. 26 e ss. 409. GRECO, Luiz/SIQUEIRA, Flavia. “Promoção da saúde ou respeito à autonomia? Intervenção ci- rúrgica, exercício de direito e consentimento no direito penal médico”, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade, Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, 2018, p. 643 e ss. 392 FUNDAMENTOS DE TEORIA DO DELITO - JUAREZ TAVARES vontade do paciente, mas desde que o bene!ciassem, – hoje, a partir, inclusive, de modi!cações no Código de Ética da Alemanha e ainda conforme orientação dos demais países europeus, nenhuma interven- ção médica, mesmo em caso de urgência, pode ser justi!cada sem um prévio e expresso consentimento do afetado, o qual deve ser precedido da mais ampla informação acerca da enfermidade, dos atos especí!cos a serem praticados e de suas consequências. Caso não seja possível esse consentimento, deve-se obter o consentimento de seus responsáveis ou da própria família, aos quais devem ser, assim, repassadas as mesmas informações. Apenas em casos extremos, quando não se possa mesmo obter o consentimento, estará o médico autorizado a atuar. 2. O DIREITO DE CORREÇÃO Um dos temas ainda sob discussão diz respeito ao direito correcional dos pais. A norma reguladora do sistema correcional está subordinada aos objetivos da educação, a qual, de acordo com a Constituição, visa ao “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua quali!cação para o trabalho” (art. 205). Ao disciplinar a relação entre pais e !lhos menores, o Código Civil estabelece normas de conduta e de responsabilidade, as quais informam sobre como deve ser exercido o direito correcional. Inicialmente, cumpre assinalar que os pais são responsáveis pelos danos causados por seus !lhos menores (art. 932, I). Se são responsáveis, está claro que lhes compete um direito e um dever de educar para o efeito de evitar a produção desses danos. Não teria sentido atribuir-lhes responsabilidade sem lhes conferir a possibilidade real de dominar a causalidade do evento. Dando sequência a essa consideração, os arts. 1.566, IV, e 1.634, I, do Código Civil, impõem a ambos os pais, respectivamente, o sustento, a guarda e a educação dos !lhos, bem como sua criação. Essa matéria também está consignada na Constituição, que, além da norma geral do art. 205, ainda prevê no art. 229 os deveres de assistência, criação e educação dos !lhos menores, impostos aos pais. Essas normas constitucionais e legais indicam, assim, que o direito brasileiro impõe aos pais o dever de assistir, criar e educar os !lhos menores. Essa é a regra !xada na Constituição e, originariamente, na legislação civil. CAPÍTULO IV - SEÇÃO II - III. AS CAUSAS SUPRALEGAIS DE JUSTIFICAÇÃO 393 O tratamento de !lhos, contudo, vem sofrendo no Brasil profundas alterações. Buscando assegurar maior proteção a crianças e adolescentes, o art. 25, parágrafo único, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), o qual foi submetido a alterações, estendeu os deveres de educação e proteção também àqueles que, responsáveis por sua guarda, integrem a chamada família ampliada. Por esse conceito se entende “aquela que se estende para além da unidade pais e !lhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de a!nidade e afetividade”.## Na tentativa de regulamentar o exercício do direito correcional, a Lei nº 13.010/2014, ao dar nova redação aos artigos 18-A e 18-B, do ECA, estabeleceu, expressamente, a vedação de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante a crianças ou adolescentes, por parte da família ampliada, dos responsáveis, dos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou qualquer pessoa encarregada de cuidar-lhes, tratá-los, educá-los ou protegê-los. Segundo a lei, deve-se entender por castigo físico o uso da força que acarreta lesão ou sofrimento. Da mesma forma, considera-se tratamento cruel ou degradante aquele que exponha o educando à humilhação, à ameaça grave ou ao ridículo. Assim, de acordo com a lei, estáhoje expressamente vedado o uso de castigo físico ou humilhante aos !lhos menores, os quais incluem, agora, não apenas as crianças, mas também os adolescentes. Filhos me- nores são, portanto, aqueles até a idade de 18 anos. Essa proibição está de acordo, inclusive, com a estrutura do crime de maus-tratos (art. 134, CP), o qual tipi!ca o abuso do direito correcional quando implique a produção de atos que ponham em perigo a vida ou saúde do educando, bem com a norma que de!ne o crime previsto no art. 232 do ECA. Embora proibidas essas formas de castigo físico e humilhante, os pais ou os responsáveis têm também deveres especí!cos de educar, o que suscita a formulação de suas condições e de seus limites. Atendendo aos princípios gerais da ordem jurídica, principalmente, ao princípio da relação de causalidade e da criação do risco, a doutrina tem !xado para o direito correcional alguns pressupostos,410 entre os quais os seguintes: a) a existência de uma falta disciplinar por parte do !lho menor; b) a 410. WESSELS/BEULKE/SATZGER. (Nota 125), p. 192. 394 FUNDAMENTOS DE TEORIA DO DELITO - JUAREZ TAVARES necessidade da correção; c) a relação de temporalidade entre o ato e a correção; d) o emprego de meios adequados; e) a !nalidade objetiva de contribuir para a vida futura dos !lhos menores ou educandos; f ) a capacidade de correção. A primeira condição para o exercício da correção diz respeito à prática de falta disciplinar. A falta disciplinar, por sua ampla variedade, não precisa estar tipi!cada como tal, mas deve resultar das regras que foram traçadas para a convivência mútua no seio familiar ou social. Essas regras, salvo no que toca aos agentes públicos, não são dispostas pelo Estado; são regras próprias de cada família. Em atenção, porém, ao sistema da ordem jurídica democrática, essas regras devem observar, no que lhes for aplicável, os princípios constitucionais. Assim, para que o ato seja considerado falta disciplinar, a indicação do que é proibido precisa ser do conhecimento prévio do educando. Aqui, não pode vigo- rar, no entanto, o critério da potencialidade de conhecimento, mas sim o conhecimento atual. A criança não pode adivinhar que sua conduta seja desaprovada e nem está obrigada a se informar acerca do que lhe é proibido ou permitido. A comunicação acerca dos atos proibidos cabe aos pais ou responsáveis, ou aos agentes públicos, no caso de medidas socioeducativas. Como ser ainda em formação, a criança e o adolescente devem ir apreendendo com os adultos a forma correta de se comportar. Caso não lhes tenha sido ensinada a conduta correta, carece de funda- mento o direito correcional. Em linhas gerais, pode-se conceituar como falta disciplinar o ato que viole direito subjetivo dos pais ou de terceiro, aí incluindo os atos de desrespeito ou contrários às normas de educação. Por exemplo, o !lho menor lança uma pedra na janela da sala de sua casa ou na janela da sala do vizinho, ou desfere uma bofetada em seus responsáveis, ou lhes ofende a honra, ou desobedece a uma ordem para estudar em vez de sair de casa para se divertir. São inúmeras as variedades de faltas, não se podendo de!nir cada uma delas. Pode-se também dizer que todas elas devem estar associadas ao direito educacional, que deve ser sempre invocado para delimitar o direito de traçar as regras de conduta familiar e, assim, conter o abuso da própria proibição. A necessidade de correção implica considerar que a falta não pode ser negligenciada, mas exige uma atuação dos pais para que não se repita. CAPÍTULO IV - SEÇÃO II - III. AS CAUSAS SUPRALEGAIS DE JUSTIFICAÇÃO 395 O sentido da correção não é atender a um imperativo categórico de re- primir, como efeito retributivo, senão educar, conforme o escopo traçado pela Constituição. A necessidade de correção está vinculada à gravidade da falta. Uma falta leve tem que ser relevada e será satisfeita com pa- lavras de orientação. Por outro lado, a correção tem que guardar uma certa atualidade, ou seja, a correção tem que ser efetuada tão logo seja constatada sua necessidade. Uma correção por ato que se tenha realizado há dias ou meses será abusiva. Outro pressuposto relevante diz respeito ao emprego dos meios ade- quados à correção. Nesse sentido, os responsáveis devem evitar o emprego de meios que possam produzir lesão ou sofrimento. Essa exigência decorre não apenas da proibição contida no ECA, como também da própria reda- ção do crime de maus-tratos, que, ao englobar em seus elementos a lesão corporal leve, indica que todo meio de correção que a produza constitui exercício abusivo do poder disciplinar. Nesses termos, é vedada qualquer intervenção física dos pais ou dos responsáveis sobre a integridade corporal ou a saúde dos !lhos menores. Nada obsta a que, porém, os pais possam restringir outros direitos dos !lhos. Por exemplo, o pai que deixa o !lho de castigo no quarto diante do fato de haver este rabiscado indevidamente a parede da sala não comete sequestro, porque está no exercício do poder correcional. Claro, haverá abuso se o con!namento se prolongar indevi- damente. O castigo deve ser adequado e moderado. Em face da proibição de castigos humilhantes ou degradantes, será necessário proceder a uma diferenciação entre o que, efetivamente, constitua humilhação ou degradação e o que se inclua no âmbito da reprovação. Pode-se dizer que não constitui humilhação ou degradação a manifestação de desagrado diante do fato praticado, ainda que efetu- ada de modo enérgico. Para evitar a orientação com base exclusiva nas palavras ou nas expressões, a análise do que possa implicar humilhação deve levar em conta, inclusive, o costume, o idioma e o local em que a desaprovação foi manifestada. Um grito de reprovação dentro de casa ou na rua tem signi!cado diverso, conforme a forma de sua divulgação. Do mesmo modo, as expressões próprias de certo idioma ou de certa nacionalidade podem ser bastante diversas de outros que se vinculem a pautas culturais mais contidas. 396 FUNDAMENTOS DE TEORIA DO DELITO - JUAREZ TAVARES Se toda correção visa à educação, é fundamental, ademais, que essa orientação também esteja vinculada a uma !nalidade objetiva de contribuir para que os !lhos menores possam construir uma forma- ção própria de cidadania. Ao contrário do que pode parecer, aqui não importa o ânimo do agente, que indicaria a presença de um elemento subjetivo de justi!cação. O que vale é a orientação objetiva da conduta correcional como instrumento de, nos termos da Constituição, servir de aperfeiçoamento de vida dos !lhos. No sentido do que está !xado no ECA, o direito correcional só pode ser exercido pelos pais ou responsáveis pela guarda. Nos casos especí!cos, pelos tutores, curadores e mestres, ou os agentes públicos encarregados da execução de medidas socioeducativas. Condição desse exercício é também que os pais e os demais aqui elencados não tenham sido destituídos do respectivo poder. Não há, por sua vez, delegação de direito correcional. Caso os !lhos estejam sob a vigilância de um terceiro que não detenha a guarda, a disciplina pode ser justi!cada pelo consen- timento presumido, mas não pelo direito correcional. 3. O DIREITO DE EXPRESSÃO Com a solidi!cação das liberdades públicas, entre elas a liberdade de expressão, assegurada pelas constituições de pós-guerra, entre as quais a brasileira (art. 5º, IV, CR), acentuou-se a necessidade de sua disciplina também no âmbito do injusto. Nesse tema, duas questões devem ser ressaltadas: a liberdade de narrar, como forma da liberdade de informar e de crítica, e a notoriedade do fato. Geralmente, quando se trata de analisar a narrativa dos fatos, con- signa-se que o simples ato de narrar, sem emissão de juízo de valor pelo próprio agente, exclui o dolo em relação às possíveis ofensas à reputação dos envolvidos. Na verdade, se o fato está associado ao ânimo de narrar, não se pode con!gurar a vontade de ofender. Independentemente disso,porém, o próprio ato da narrativa pode ser apreciado também sob outros enfoques. Se o ato de narrar se limita a reproduzir os fatos sem outra !nalida- de, senão a de informar, estar-se-á no exercício da liberdade de expressão. Convém observar que a narrativa é algo diverso da simples descrição. A CAPÍTULO IV - SEÇÃO II - . O DIREITO DE E PRESSÃO 397 narrativa faz dos fatos um objeto vivo, de modo a despertar no leitor seu interesse, destacando os pontos essenciais e relevantes, fazendo-o cami- nhar pelos acontecimentos como se ele mesmo se transformasse em seu personagem. Nisso é que reside o sucesso da narrativa, porque assinala, em cada caso, os momentos decisivos que caracterizam o fato, pincelando seus contornos e acentuando-lhe as particularidades, despertando-o de sua amor!a, movendo-lhe as pernas e os braços dentro de cada expressão e de cada palavra. No preciso dizer de GEORG LUKÁCS, um dos mais expressivos críticos e !lósofos da estética moderna, “o contraste entre o participar e o observar não é casual, pois deriva da posição de princípio assumida pelo escritor, em face da vida, em face dos grandes problemas da sociedade, e não de mero emprego de um diverso método de repre- sentar determinado conteúdo ou parte do conteúdo”.411 O escritor que se envolve no drama, às vezes porque dele fez parte, às vezes porque o vê com olhos de participante, não pode ser apenas um observador, que constata e descreve, mas um narrador, que sente a necessidade de ade- quá-lo às novas formas com que se apresenta na vida social. A questão da extensão e dos limites da intenção de narrar só pode ser elucidada a partir de como se processa a participação do escritor no ato de narrar, como extrai a notícia dos relatos nebulosos. É, pois, im- possível traçar a priori a extensão e os limites da narração. Dependem eles, antes de tudo, dos próprios fatos. São os fatos que lhe moldam os lindes. À medida que os fatos exigem, pode a narrativa se estender para mais ou menos, avançar ou recuar. Haverá abuso do direito de narrar, no entanto, quando o texto já não mais corresponda à narrativa, já passe a designar outros fatos, introduza no processo de informação outro com- ponente, orientado para a execração da pessoa afetada. A inserção de elemento estranho à narrativa, sem signi!cação, quando exclua os fatos e se volte para simples enunciados, viola os fundamentos do direito de expressão. Isso não obsta, porém, que se inclua no direito de expressar o próprio direito de crítica. Como complemento desse mesmo processo de narrar, nosso Código Penal considerou não haver injúria ou difamação punível quando as palavras ofensivas ou a imputação desonrosa impliquem manifestação 411. LUKÁCS, Georg. Ensaios sobre literatura, tradução brasileira sob coordenação de Leandro Kon- der, Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1965, p. 50. 398 FUNDAMENTOS DE TEORIA DO DELITO - JUAREZ TAVARES de crítica literária, artística ou cientí!ca (art. 141, II). As manifesta- ções desfavoráveis a que se refere o código são, agora, não apenas o conjunto narrativo, mas os enunciados valorativos sobre os próprios fatos, sobre os erros ou acertos de seus personagens. Nesse contexto, deve ser compreendida por crítica toda manifestação que, tendo em vista a apreciação de fatos e seu desenrolar causal, expresse de qualquer modo o legítimo direito de informar seus leitores acerca desses mesmos fatos e de seus personagens, demonstrando-lhes as mazelas e desacertos, ainda que duros e desagradáveis. Fazem parte do processo de melhoria da comunidade a narrativa e a crítica dos fatos narrados, desde que se constituam dentro dos limites da narrativa e da própria crítica dos fatos e de seus protagonistas, como seus elementos integrantes e só criticáveis em face desses mesmos fatos. A crítica que se move dentro dos fatos se inclui nos limites do risco autorizado e exclui a imputação. Não se inclui, porém, no direito de expressão a narração de fato inverídico. A veracidade do fato constitui pressuposto do direito de expressão. Nesse passo, não há que se confundir entre a narração de fato inverídico com a expressão de opinião sobre o fato. Pode-se dar ao fato determinada interpretação, e isso se inclui no direito de narrar, mas não se pode falsear a verdade. Se um jornalista informa que o fato se passou de uma forma, mas a realidade mostra que o fato nem existiu ou que ocorreu de outro modo completamente discrepante da narração, abusa do direito de expressão e não está acobertado pela justi!cação. Por exemplo, quem critica um político por sua atuação desastrosa na administração pública ou no Parlamento não comete difamação porque está no exercício de sua liberdade de expressão, salvo se animado com a intenção exclusiva de ofender-lhe a honra ou narrar sobre ele fato inverídico. O mesmo vale quanto à crítica a magistrados, desde que limitada ao contexto dos fatos e de suas decisões. No processo da narrativa, ademais, pode ocorrer que o fato in- formado já seja do conhecimento público. Apesar de o Código Penal brasileiro não contemplar diretamente outra hipótese de prova da verda- de, mas apenas aquela relativa ao funcionário público, distinguindo-se, neste caso, do modelo francês, o art. 523 do Código de Processo Penal contempla a hipótese da notoriedade do fato. Com isso, poder-se-á dizer que o sistema penal brasileiro acolhe, neste particular, a orientação do CAPÍTULO IV - SEÇÃO II - . O DIREITO DE E PRESSÃO 399 antigo regime adotado no código napoleônico, posteriormente alterado pela lei de imprensa, de só punir os delitos contra a honra, em qualquer de suas formas, quando falsa a imputação ou quando a sua veracidade não puder ser provada. Caso assim não fosse, resultaria letra morta a expressão contida no art. 523 do Código de Processo Penal. No direito brasileiro, a difamação não se assenta estritamente na mera e simples imputação ou divulgação de um fato ofensivo à reputa- ção. Pelo contrário, a sua con!guração típica depende das características de comprovabilidade do fato imputado relativamente à qualidade da vítima ou ao seu conhecimento público. No que toca à qualidade da vítima, a comprovação da veracidade do fato está restrita, exclusiva- mente, ao caso de imputação feita a funcionário público em razão de suas funções (art. 139, parágrafo único, do Código Penal). No que diz respeito ao conhecimento do fato, a veracidade da imputação independe de prova se o fato for notório. A eliminação do conteúdo típico da difamação quando o fato imputado for notório tem, por outro lado, outro fundamento, além daquele que poderia resultar de seu aspecto puramente processual. Se o fato é notório, não se pode mais ofender a honra da pessoa afetada, em seu aspecto social, porque a conduta de informar não é capaz de criar ou aumentar um risco ao bem jurídico. Com isso, já não mais se estará atri- buindo à vítima um comportamento desonroso em virtude de sua vida privada, da qual os demais não deveriam tomar conhecimento. Apenas, aqui se reproduz o que todos já sabem. Quando se reproduz o que todos já sabem, a conduta se mantém nos limites do risco autorizado, ou seja, nos limites do que se admite como normal em uma vida comunitária. 4. O PROCESSO DE MARGINALIZAÇÃO SOCIAL Deve-se ainda acrescentar que as próprias condições sociais de marginalização de pessoas podem conduzir ao reconhecimento de fatos justi!cados. Diferentemente do que ocorria com as teorias tradicionais da conduta, que se !xavam na relação entre meio e !m, as concepções ofertadas pela teoria do discurso levaram a se ocupar do processo de in- teração jurídica, de tal modo que também o sujeito passou a fazer parte integrante do conceito de ação. Essa foi uma longa luta das escolas 400 FUNDAMENTOS DE TEORIA DO DELITO - JUAREZ TAVARES integracionistas, que acolhiam a norma jurídica como instrumento de sedimentação da igualdade. Nesse sentido, as concepções acerca do injustopenal se modi!caram para proceder a uma análise da capa- cidade do sujeito de se orientar pela norma. A relação entre sujeito e norma ocorre, assim, em três planos distintos: na ação, no injusto e na culpabilidade. Esses três planos devem ser compreendidos como etapas de contenção do poder de punir e não como simples elementos de qua- li!cação da conduta. Assim, nesses três planos não se trata de a!rmar a relevância da conduta diante do direito, mas sim de analisar, nega- tivamente, todos os seus elementos para puri!car sua noção e poder situá-la fora da incidência da reprovação penal. Na ação, que se situa como pressuposto do próprio injusto, promove-se um confronto entre a conduta concreta e o contexto normativo ao qual o sujeito pertence, no sentido de veri!car a possibilidade de excluir, desde logo, do direito penal todos aqueles que não possam internalizar as proibições ou os comandos porque não estejam vinculados aos mesmos fundamentos motivacionais de conduta engendrados pela norma criminalizadora. No âmbito da antijuridicidade, trata-se de analisar a incapacidade do sujeito de ser partícipe da tarefa da proteção de bem jurídico diante de situações con"itivas. Já no campo da culpabilidade, cumpre confrontar a relação concreta entre sujeito e norma com vistas à sua compreensão do injusto e, com isso, discutir a possibilidade de subordinar a solução do con"ito a consequências menos invasivas. No campo da antijuridicidade, o que importa é a análise das condi- ções do sujeito em face da tarefa de proteção de bem jurídico. Observe-se, também, que o próprio bem jurídico desempenha papéis diferenciados nos planos de contenção do poder de punir. Se, na tipicidade, tem ele a função de ser tomado como objeto de lesão ou perigo, e não como objeto de proteção, já na antijuridicidade é acolhido como objeto de proteção. A diversidade de tratamento do bem jurídico nesses planos corresponde exatamente ao objetivo de traçar limites à intervenção do Estado na li- berdade da pessoa. Na tipicidade, o enfoque se centraliza na produção da antinormatividade: o Estado é que se dedica a dizer o que é típico. Então, importante é condicionar a de!nição da tipicidade à demonstração de que o bem jurídico tenha sido lesado ou posto em perigo. Nas causas de justi!cação, ao contrário, o enfoque é outro: excluir a pessoa do campo CAPÍTULO IV - SEÇÃO II - . O DIREITO DE E PRESSÃO 401 do ilícito, ao conferir-lhe as permissões de conduta para que possa pro- teger o bem jurídico em situações con"itivas. Na tipicidade, limita-se o poder do Estado de de!nir a antinormatividade; na antijuridicidade, busca-se excluir a pessoa do ilícito, ao acentuar as condições para que o bem jurídico possa ser protegido. Nesse sentido, a exclusão da ilicitude tem por base a permissão para que a própria pessoa proteja o bem jurídi- co. Quando o próprio titular do bem jurídico o tenha descartado ou não esteja em condições de protegê-lo ou se situe fora do âmbito normativo de proteção, tampouco haverá ilicitude. A tarefa dogmática consiste, aqui, em analisar todas as possibili- dades de exclusão do ilícito a partir do ponto em que o bem jurídico possa ser protegido ou não mais necessite dessa proteção. As próprias limitações impostas às causas de justi!cação partem também desse fun- damento. Na legítima defesa, por exemplo, as limitações ao seu exercício estão sedimentadas justamente nessa relação de proteção: quando a agressão provier de alguém que não domine o processo causal, caberá ao agredido moderar ainda mais sua atuação, porque mais intensamente inserido estará na tarefa de proteção do bem jurídico. À medida que o sujeito não esteja imbricado nessa proteção ou tenha maiores di!culdades para fazê-lo, por força de seu afastamento social ou marginalização, terá que ter excluída a antijuricidade de sua conduta. O mendigo, por exemplo, que mantém relações sexuais, du- rante a noite, em plena via pública, ou ali faça suas outras necessidades !siológicas, não comete o crime de ato obsceno porque, em face da sua condição de marginalização, não se lhe pode exigir uma atuação no sentido da proteção do bem jurídico. Da mesma forma, o marginalizado que, para seu sustento, cace animal silvestre, não poderá ser punido pelo crime ambiental correspondente (art. 29, da Lei 9.605/98). A margi- nalização e a ausência de política jurídica integrativa não preenchem os elementos necessários a caracterizar sua ação como ilícita. À vista da unidade da ordem jurídica, se a própria Constituição impõe ao Estado a eliminação da pobreza e da marginalização social (art. 3º, III), não se pode exigir da pessoa marginalizada o compromisso de proteção de bem jurídico, quando não lhe tenham sido proporcionadas as mínimas condições de convivência. 402 FUNDAMENTOS DE TEORIA DO DELITO - JUAREZ TAVARES O apelo às condições de marginalização como fundamento justi- !cante está de acordo, inclusive, com uma visão comunicativa de uma sociedade democrática, a qual não pode extrair os princípios de impu- tação de responsabilidade unicamente da vontade individual de se opor à lei, como se todos estivessem submetidos às mesmas condições de socialização, que os tornassem aptos a dirigir sua conduta de conformi- dade com a norma. Nesse sentido, observa KLAUS GÜNTHER: “Por outro lado, contudo, a conclusão de que as condições de socialização de determinada sociedade são adequadas pode ser questionada por parte de seus membros. A!nal, ainda que a convicção de uma maioria política, social e econômica dominante possa ser a de que sua ordem normativa é justa e legítima, essa forma de ver as coisas pode ir contra a opinião de uma minoria que se percebe como desprivilegiada, como discriminada pelas normas vigentes e pela prática normativa dominante ou como alvo de uma distribuição inequânime de bens e de oportunidades de crescimento. Nesses casos, será ilegítimo achar que todas as pessoas serão capazes de observar o Direito de forma autônoma e, consequentemente, será injusto responsabilizar exclusivamente o agente em caso de violação de uma regra”.412 A exclusão da antijuridicidade, no entanto, por força do processo de marginalização social deve ser condicionada aos seguintes pressu- postos: a) a existência objetiva de grupos de marginalização, os quais se situam fora da cadeia de produção social; b) a vinculação do sujeito a esses grupos; c) a prática da ação no contexto dessa marginalização; d) a impossibilidade de incluir o sujeito na tarefa de proteção do bem jurídico, tendo em vista a inexistência de uma política concreta de inte- gração; e) a correspondência entre o bem jurídico ofendido e a relação entre sujeito e condição social. Conforme tem sido destacado pela sociologia contemporânea, o processo de exclusão social está vinculado, hoje, a uma desagregação da personalidade e da vida de relação das pessoas que se situam fora do mer- cado de trabalho.413 Desde que fora considerado o grande instrumento 412. G NT ER, laus. “Somente em uma sociedade humana todo ato tem seu autor”, in Marta de Assis Machado e Flavia Portella Püschel (orgs.) Responsabilidade e pena no Estado Democrático de Direito, São Paulo: FGV, 2016, p. 25. 413. SENNET, Richard. A corrosão do caráter, as consequências sociais do trabalho no novo capita- lismo, Lisboa: Terramar, 2001, p. 130. CAPÍTULO IV - SEÇÃO II - . O DIREITO DE E PRESSÃO 403 de realização social, pelo qual os próprios indivíduos formaram sua cons- ciência acerca do mundo e deles mesmos, o trabalho tem sido situado também como uma forma de marginalização. À medida que o sujeito não trabalhe e, assim, não participe da produção da riqueza social estará situado também fora do direito. Quatro fatores são assinalados para ex- plicar o fenômeno da crescente desigualdade e também da exclusão social no capitalismo atual: a) a rarefação do trabalho e o crescente aumento do desemprego; b) a segmentação do trabalho, pela qual se intensi!ca a distinçãoentre trabalho quali!cado e trabalho precário; c) a diluição dos direitos trabalhistas e o consequente aumento da vulnerabilidade dos envolvidos;414 d) o desligamento de grupos excluídos da rede de comunicação e, consequentemente, de todos os meios proporcionados pelo progresso. Sob a égide desses fatores, constroem-se grupos humanos que, uma vez alijados da condição de empregados, são de!nitivamente envolvidos em situações permanentes de exclusão, porque jamais poderão recuperar sua função social originária. Esses grupos humanos, aos quais se somam também egressos do sistema penal, caracterizam-se por habitarem locais insalubres e absolutamente infectos, no mais das vezes, as próprias ruas, debaixo de marquises, viadutos ou galerias, em verdadeira negação de cidadania, cujo preceito só vale para imbricá-los, cada vez mais, como objetos descartáveis e submissos do aparato punitivo.415 A condição de viverem deslocados de endereço !xo, no qual possam exercitar sua liber- dade e sua vida íntima, não apenas corrói a própria personalidade, como também os situa fora da destinação da norma. Reproduz-se, aqui, sob outra perspectiva, o que a antiga sociologia funcionalista caracterizava como uma “vida social fora da sociedade”. Os grupos sociais que compõem essa parcela dos excluídos, ao contrário, porém, de outros grupos quali!cados ou identitários, não possuem uma estrutura homogênea, são caóticos e precários, como a própria atividade de sobrevivência de seus membros e estão fora do 414. SILVESTRE, Agostinho Rodrigues e FERNANDES, Luís. “Trabalho e processo da marginaliza- ção social no século I: aproximações teóricas e dados estatísticos”, in Sociologia, Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, XXVII, 2014, p. 27 e ss. 415. WACQUANT, Loïc. Parias urbanos. Marginalidad en las ciudades a comienzos del milenio, Buenos Aires: Manantial, 2001; NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil, São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 248 e ss. 404 FUNDAMENTOS DE TEORIA DO DELITO - JUAREZ TAVARES mercado e de todo o processo de comunicação. O que caracteriza, por- tanto, a vinculação do sujeito a esses grupos é a ausência de residência e de trabalho, a falta de atendimento médico e social, a mínima percepção de valores, a vulnerabilidade, a diversidade de raças e de formação, o alijamento do consumo e dos produtos essenciais, o risco constante de perecimento, consciência acerca da necessidade de proteção diante das incursões dos aparatos repressores e o desligamento social. No dizer de BOLTANSKI e CHIAPELLO, “excluídos são aqueles que tiveram seus vínculos rompidos com os demais, aqueles que foram enviados para a margem da rede, ali onde se perde toda a visibilidade, toda necessidade e, praticamente, toda a existência”.416 A falta de uma política de atendimento e proteção pelos órgãos de promoção social deixa-os também à margem de todas as tarefas des- tinadas ao desenvolvimento humano. Estão, dessa forma, desprovidos de qualquer interesse na proteção de bens jurídicos, salvo aqueles que digam respeito à própria subsistência, como a vida, a integridade física e a liberdade. Uma vez, assim, que sua conduta viole outros bens jurídicos fora do âmbito dos bens pessoais, que são os únicos que os podem interessar e proteger, deve-se admitir a exclusão da antijuridicidade por força do fato de que a marginalização social impede a identi!cação dos elementos da zona do ilícito. Veja-se que, aqui, não se está cogitando de erro de proibição ou inexigibilidade de conduta diversa, que é matéria da culpa- bilidade. O que se cogita é que o processo de marginalização social não permite identi!car, objetivamente, os elementos prévios de de!nição do ilícito, quando os bens jurídicos afetados não estejam no âmbito social de proteção do sujeito. Poder-se-ia, ademais, pensar aqui em uma falta de antinormati- vidade: por se situarem fora do contexto para o qual fora elaborada a norma criminalizadora e, além disso, com sua conduta não haverem gerado um con"ito com direitos subjetivos de outra pessoa, os margi- nalizados, no fundo, não violam a norma proibitiva ou mandamental. A inserção de seus atos, contudo, como atos justi!cados e não como atos 416. BOLTANSKI, Luc/CHIAPELLO, Ève. El nuevo espíritu del capitalismo, Madrid: Akal, 2002, p. 448. CAPÍTULO IV - SEÇÃO II - . O DIREITO DE E PRESSÃO 405 estranhos à antinormatividade leva em conta também outros fatores, como a necessidade da própria sobrevivência mesmo com a violação de direitos subjetivos alheios. Nesse sentido, o chamado furto famélico pode ser, aqui, perfeitamente incluído como ato justi!cado pela pró- pria marginalização do sujeito, sem depender das condições que sempre conduziram à discussão em torno da caracterização do estado de neces- sidade, se o perigo era ou não atual ou se poderia ser evitado de outro modo. O processo de marginalização social é de tal forma excludente das mínimas condições de existência que, por si só, supera qualquer indagação dogmática acerca da necessidade do atuar. O cerne, portanto, da exclusão da antijuridicidade reside em que o processo de marginalização social gera condições extremas de sobrevivên- cia, de tal ordem que prevaleçam sobre os bens jurídicos ou direitos de terceiro. Ainda que essas condições se assemelhem àquelas de um estado de necessidade, dele diferem porque englobam um perigo permanente a bens jurídicos essenciais à própria existência, o que dispensa as exigên- cias relativas à indisponibilidade de outro recurso para a salvaguarda de direito próprio ou alheio e ao critério de ponderação. Deve repetir, contudo, que se a questão diz respeito, neste caso, à defesa da própria subsistência, o processo de marginalização social, por si mesmo, não poderá gerar a exclusão da antijuridicidade, quando se trate de ofensa a bens pessoais, salvo se presentes os pressupostos da legítima defesa ou do estado de necessidade. Não obstante, como demonstra SALO DE CARVALHO, a mar- ginalização social deve ter um tratamento especial no direito penal, em face do conceito de vulnerabilidade e também de seletividade. Dentro da perspectiva de que essas condições não são devidas a defeitos do sujeito, mas sim a condições externas, que lhe escapam ao controle e para as quais não contribuíram voluntariamente, como ocorre com a inércia dos poderes públicos ou próprias adversidades do sistema capitalista, isso geraria, mesmo fora do injusto, pelo menos mais duas outras consequências, ou uma exclusão de culpabilidade ou sua ate- nuação obrigatória.417 417. CARVALHO, Salo. Penas e medidas de segurança no direito brasileiro, São Paulo: Saraiva, 2015, p. 237 e ss, p. 428 e ss. 406 FUNDAMENTOS DE TEORIA DO DELITO - JUAREZ TAVARES Portanto, à medida que o processo de marginalização apenas di- !culte a atenção ou a proteção dos bens alheios, de modo a interferir concretamente no poder de agir de outro modo, pode-se aplicar aos agentes a cláusula geral de exculpação da inexigibilidade de conduta diversa, em face, inclusive, de sua condição de vulnerabilidade. CAPÍTULO V O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS I. A ESTRUTURA DA TIPICIDADE Atendendo à con!guração diferenciada do injusto, conforme as formas do processo de imputação, o tipo dos delitos culposos se compõe de uma ação descuidada (excedente ao risco autorizado), do resultado, da relação de causalidade e da imputação do resultado ao agente, aí se incluindo a previsibilidade e evitabilidade do evento. A ação descuidada é aquela que excede o risco autorizado. Enten- de-se que o risco autorizado será excedido quando, nas circunstâncias, o perigo provocado pela conduta do agente não pode ser, juridicamente, suportado pelos demais. Isso quer dizer o seguinte: a ordem jurídica admite que várias condutas podem gerar perigos para as pessoas, con- tudo, só estarão desautorizadas aquelas condutas que sejam intoleráveis à convivência e cuja execução crie ou aumenteum risco grave ao bem jurídico, em escala além do que seja juridicamente admitido. Há vários modos de caracterizar a ação descuidada. Há modos legais, quando o próprio direito traça os modelos de conduta; há modos não legais, quando a ação ponha em risco indevido bem jurídico alheio. São modos legais aqueles que disciplinam as pro!ssões e também al- gumas atividades, cujo exercício esteja subordinado a uma autorização do poder público. Os atos médicos, por exemplo, são disciplinados por resoluções dos respectivos conselhos de medicina; os atos de construção são regulamentados por normas técnicas, assim como os atos relaciona- dos à produção industrial; os atos de direção de veículos são regulados pelo código de trânsito. A regra a ser seguida no que toca à caracterização desses atos é a seguinte: se a conduta se realizou nos limites da autorização ou das in- dicações legais, não há ação descuidada, salvo se manifesta a necessidade de até mesmo se omitir da ação, porque, se realizada, produziria a lesão.
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