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A Singularidade da Língua de Estamira

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XII Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação - SEPesq 
Centro Universitário Ritter dos Reis 
XII Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação 
SEPesq – 24 a 28 de outubro de 2016 
 
A singularidade da língua de Estamira 
Diele Martins Silveira 
Mestranda em Letras 
Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter) 
E-mail: dielems@hotmail.com 
 
Resumo: Este artigo trata da singularidade da língua de Estamira, uma senhora excepcional que tem a vida 
retratada em um premiado e inquietante documentário, lançado em 2005, dirigido por Marcos Prado e 
produzido por José Padilha. Visa destacar a força de expressão desta mulher performática, a qual utiliza a 
linguagem de forma única para expor os problemas sociais do País e que, devido às suas limitações 
psicológicas, descobre outra forma de expressão, uma língua própria, que lhe permite a possibilidade de 
interagir com as pessoas, de reconhecer seu lugar na sociedade e de ir além dos limites impostos por sua 
dura realidade. Deste modo, em meio a frases desconexas, expressões inventadas e vocabulário próprio, 
nasce um novo idioma, o “Estamirês”. Ainda, o artigo tem o objetivo de ressaltar a importância da linguagem 
como experiência, uma vez que é nela e por ela que Estamira ganha vida, isto é, que sua identidade é 
construída em meio a uma cruel e avassaladora realidade. Para isso, é necessário levar em consideração as 
concepções de linguagem e experiência, propostas por Walter Benjamim, a noção de significado abordada por 
Vigotski, bem como as contribuições sobre cultura, linguagem e identidade, de Stuart Hall. 
 
Palavras-chave: Linguagem, Identidade, Experiência 
 
1 Introdução 
 Ao longo da minha carreira de professora, evitei ao máximo transmitir a ideia de 
“conhecimento fragmentado”, isto é, optei por não reforçar o pensamento retrógrado que 
promove a separação dos estudos da linguagem em apenas duas áreas: os estudos 
linguísticos e os estudos literários. Ao redigir este artigo, senti-me satisfeita em dar 
prosseguimento a essa proposta, uma vez que ele traça um panorama geral do objeto de 
estudo, a língua, e estabelece conexões entre a linguística, a psicolinguística e a 
sociolinguística, tendo como pano de fundo a produção cinematográfica “Estamira”. 
 O filme, além de impactar milhões de pessoas ao redor do mundo, rendeu vários 
prêmios e homenagens à sua brilhante direção e produção. Surpreende pelo caráter 
reflexivo, já que apresenta a triste história de Estamira, protagonista que sofre de 
transtornos psicológicos, e mora em um aterro sanitário, no Rio de janeiro. O artigo relata de 
que forma se desenvolveu sua trajetória e, principalmente, como foi construída sua 
identidade, elevando essa corajosa representante dos menos favorecidos a um nível que 
poucos atingem: o da busca pela compreensão humana. 
mailto:dielems@hotmail.com
 
 
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O texto expõe, ainda, de que forma a condição psicológica dessa mulher inquieta 
passou a afetar seu mecanismo de comunicação. Entretanto, mostra que, apesar das 
adversidades, Estamira descobre outra forma de expressão, uma língua própria, que lhe 
permite a possibilidade de interagir com as pessoas, de reconhecer seu lugar na sociedade 
e de ir além dos limites impostos por sua dura realidade. Deste modo, em meio a frases 
desconexas, expressões inventadas e vocabulário próprio, nasce uma nova língua, o 
“Estamirês”. Tal linguagem/língua (aqui tratada como ato individual) transforma não só o 
universo habitado pela protagonista, mas também o do espectador, que se vê 
completamente preso à tela, sentindo as mais variadas reações. Logo, o discurso de 
Estamira é atemporal, impactante, surpreende por provocar a reflexão, pois nos permite 
enxergar os problemas sociais que assolam o País. 
O artigo visa, assim, proporcionar uma leitura reflexiva acerca da singularidade da 
língua de Estamira, permitindo ao leitor transitar pelas teorias da linguagem, de Walter 
Benjamim e Vigotski, “conversar” com as expressões identitárias de Stuart Hall e 
estabelecer relações com outros tantos que também deram suas contribuições sobre o 
assunto. A seguir, será visitada a mente perturbada, porém brilhante de Estamira, para, 
então, constatar-se se em sua língua há sentido, se há identidade, se há experiência e, 
sobretudo, se há Estamira. 
 
1.1 Esta experiência, esta identidade, “Esta mira” 
Para chegar à compreensão do objeto de análise deste artigo, é preciso conhecer a 
vida de Estamira, sua família, sua condição social, suas limitações psicológicas e suas 
batalhas diárias. Porém, não será contada sua biografia completa, visto que a finalidade do 
artigo é discorrer sobre a singularidade da língua de Estamira. Para começar, se faz 
necessário responder a uma pergunta fundamental: qual é a história de Estamira? 
Trata-se de uma história real, que se distancia em todos os quesitos de um filme 
romântico ou de uma narrativa literária, daquelas com final feliz. Para iniciar a contar sua 
história, a qual foi retratada em um premiado documentário, dando destaque ao gênero no 
 
 
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universo cinematográfico, basear-me-ei nos princípios que Culler (1999, p.86) utilizou para 
explicar como se conta uma boa história, já que, para ele, “Uma mera sequência de 
acontecimentos não faz uma história. Deve haver um final que se relacione com o começo - 
de acordo com alguns teóricos, um final que indique o que aconteceu com o desejo que 
levou aos acontecimentos que a história narra.” Assim sendo, a trajetória de Estamira será 
contada a partir do seu fim. 
Estamira morreu em 2011, nos corredores de um hospital público, devido a uma 
infecção generalizada no braço. A idosa de 70 anos teve um triste fim: foi vítima do sistema 
precário que tanto criticava. Sua história abarcou sucessões de eventos marcantes, os 
quais encaminharam sua vida para seu trágico desfecho. Ao longo de sua penosa 
existência, Estamira enfrentou todos os tipos de “monstros”, como maridos abusivos, fome, 
miséria, violência sexual e a separação de sua família. Perdeu a razão, desenvolveu um 
quadro de psicose e morou por mais de vinte anos em um aterro sanitário, no Rio de 
Janeiro. Apesar de todo sofrimento, Estamira era irreverente, tinha uma personalidade forte, 
intensa e possuía uma capacidade única, a de intrigar quem estivesse por perto. 
O documentário relata a vida de uma mulher sem esperança, com uma condição 
precária. Condição essa que fez com que ela se apaixonasse pelos “descuidos” que a 
inatingível sociedade depositava no aterro. Massey (2008) define “lugar” como lar, refúgio, o 
oposto de “espaço”, que é aberto, marcado por pluralidade, complexo. Nesse sentido, o 
lixão é o “lugar” de Estamira, é onde ela se sente segura, e é justamente essa segurança 
que impede seus familiares de retirá-la de lá. Nas palavras de Estamira “Isso aqui é um 
depósito de uns restos. Às vezes, é só resto, e às vezes, vem também descuido. Resto e 
descuido”. Por outro lado, para Estamira, o lixão é “espaço”, abrange vestígios de uma 
sociedade heterogênea, é uma forma de adquirir conhecimento, experiência, uma vez que 
“É incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a 
quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o 
ameaça, a quem nada ocorre.” (LAROSSA, 2002, p. 21) . 
 
 
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Quando Estamira diz “[...] conservar as coisasé proteger, lavar, limpar, e usar mais o 
quanto pode. Você tem sua camisa, você está vestindo, você está suado, você não vai tirar 
sua camisa e jogar fora. Você não pode fazer isso.”, ela faz uma crítica ao capitalismo, ao 
consumismo, à inevitabilidade da globalização. Tal afirmação torna-se ainda mais 
impactante pelo fato de provir de uma pessoa que vive em meio a uma realidade brutal, na 
qual as minorias são esquecidas, enquanto “o global” tece suas teias, cada vez mais 
poderosas e alienantes” (MASSEY, p.25). Ainda, o documentário denuncia os preconceitos 
sofridos por ela, seja pela condição social, seja pela condição psicológica, fazendo com que 
o espectador reflita sobre as próprias atitudes, em oposição ao fato de que estamos cada 
vez mais cegos, isto é, pobres em experiência na sociedade da informação. Conforme 
Benjamin, 
Pobreza de experiência: não se deve imaginar que os homens aspirem a novas 
experiências. Não, eles aspiram a libertar-se de toda a experiência, aspiram a um 
mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e 
interna, que algo de descente possa resultar disso. Nem sempre eles são ignorantes 
ou inexperientes. Muitas vezes, podemos afirmar o oposto: eles “devoraram” tudo, a 
“cultura” e os “homens”, e ficaram saciados e exaustos.” (1985, p.118) 
 
Nesse sentido, o discurso de Estamira, é a voz que evidencia a indiferença e a 
segregação no âmbito social. E ela sabe disso. Há uma passagem no filme em que 
Estamira demonstra ter consciência sobre a importância do seu papel na sociedade. Em 
suas palavras, “Eu, Estamira, sou a visão de cada um. Ninguém pode viver sem mim. 
Ninguém pode viver sem Estamira”. A partir da declaração de Estamira, presume-se que 
ela quer nos alertar para o fato de que é chegada a hora de acordarmos, de vermos o que 
estamos fazendo com a nossa essência, de não nos deixarmos engolir pelas “garras” do 
capitalismo e da globalização. No entanto, esse “despertar” só será possível se nos 
posicionarmos, se propusermos uma mudança nos nossos hábitos de pensar. 
Stuart Hall (1997) assegura que assim como o mundo e a vida social passam por 
transformações impostas pelo homem, o conceito de cultura, de forma geral, também sofre 
mudanças. Para ele, essa revolução em torno da noção de cultura 
Refere-se a uma abordagem da análise social contemporânea que passou a ver a 
cultura como uma condição constitutiva da vida social, ao invés de uma variável 
 
 
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dependente, provocando, assim, nos últimos anos, uma mudança de paradigma nas 
ciências sociais e nas humanidades que passou a ser conhecida como a ―virada 
cultural. 
 
A partir das afirmações de Hall (1997), conclui-se que a formação das nossas 
identidades pessoais e sociais está centralizada na nossa cultura, na nossa sociedade e, 
sobretudo, na nossa linguagem, já que “[...] a cultura não é nada mais do que a soma de 
diferentes sistemas de classificação e diferentes formações discursivas aos quais a língua 
recorre a fim de dar significado às coisas.”. Assim, dentro do mundo particular dessa mulher 
notável estão sua experiência, sua cultura e sua linguagem, elementos que compõem sua 
identidade e que lhe conferem o poder de “ser” Estamira, de lutar contra o fato de que as 
pessoas pobres já nascem fadadas a viver às margens da sociedade. Hall relata, ainda, que 
A virada cultural amplia esta compreensão acerca da linguagem para a vida social 
como um todo. Argumenta-se que os processos econômicos e sociais, por 
dependerem do significado e terem conseqüências em nossa maneira de viver, em 
razão daquilo que somos — nossas identidades — e dada a forma como vivemos, 
também têm que ser compreendidos como práticas culturais, como práticas 
discursivas. (HALL, 1997, p. 10) 
 
Nessa perspectiva, ao dizer “Eu sou a “beira” do mundo”, por exemplo, Estamira 
assume uma posição crucial, a de representante de uma classe desfavorecida, marcada 
pela miséria, pela exploração e pelo esquecimento. A escolha da palavra “beira” exprime de 
forma categórica não só a situação desesperadora de Estamira, mas também a de todos 
aqueles que do mesmo modo se sentem marginalizados e silenciados pelo sistema. Embora 
Estamira seja considerada a parte “muda” da sociedade, a parte que brada, mas não é 
ouvida, ela encontra na linguagem uma forma de existir, de fazer a diferença, 
independentemente do quadro psíquico e da dificuldade na fala. 
O fato de Estamira ser negra, pobre, mentalmente desequilibrada e de morar em um 
lixão, não quer dizer que ela deva ser rotulada como uma pessoa incapaz de pensar, 
incapaz de se expressar, incapaz de utilizar as palavras, posto que 
O homem é um vivente com palavra. E isto não significa que o homem tenha a 
palavra ou a linguagem como uma coisa, ou uma faculdade, ou uma ferramenta, mas 
que o homem é palavra, que o homem é enquanto palavra, que todo humano tem a 
ver com a palavra, se dá em palavra, está tecido de palavras, que o modo de viver 
próprio desse vivente, que é o homem, se dá na palavra e como palavra. Por isso, 
 
 
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atividades como considerar as palavras, criticar as palavras, eleger as palavras, 
cuidar das palavras, inventar palavras, jogar com as palavras, impor palavras, proibir 
palavras, transformar palavras etc. não são atividades ocas ou vazias, não são mero 
palavrório. (LAROSSA, 2002, p.21) 
 
Com isso, vemos que Estamira é exatamente o oposto do que concebemos como 
superficial, pois Estamira é um ser “que simplesmente “ex-iste” de uma forma sempre 
singular, finita, imanente, contingente” (LARROSA, 2002, p.25). Também, Estamira é um 
sujeito que luta, visto que “o sujeito da experiência é também um sujeito sofredor, 
padecente, receptivo, aceitante, interpelado, submetido.” (LARROSA, 2002, p.25). 
Entretanto, entre calar-se e permanecer na inércia da vida, Estamira escolhe viver. E viver, 
nesse caso, implica fazer uso da língua, implica criar uma língua particular para se fazer 
entender, para se fazer existir, para adquirir experiência. 
 
2 Nasce uma nova língua: o estamirês 
O que está em questão, aqui, é a linguagem de Estamira como ato individual, isto é, 
sobretudo o sentido do seu discurso, não nos interessando a escrita, a forma, ou a estrutura 
sistêmica de sua língua própria, então, é necessário que se avalie algumas das percepções 
abordadas por Benveniste sobre o caráter subjetivo da linguagem, já que para ele “É na 
linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem 
fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito de “ego” (1998, 
p.286). 
Então, levando em consideração o conceito de subjetividade da linguagem revelado 
por Benveniste, bem como a forma particular de comunicação da qual Estamira se vale, 
torna-se possível compreender, ainda que com algumas ressalvas, como se dá o processo 
de criação de seu idioma único, o “Estamirês”. Ao criar um vocabulário próprio, Estamira 
imprime sua identidade e, dentro da sua realidade subjetiva, confere poder a si mesma, 
superando, de certa forma, suas limitações. Sobre isso Benveniste afirma, 
A “subjetividade” de que tratamos aqui é a capacidade do locutor para se propor 
como “sujeito”. Define-se não pelo sentimento que cada um experimenta de ser ele 
mesmo (esse sentimento, na medida em que podemos considerá-lo, não é mais que 
 
 
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um reflexo)mas como a unidade psíquica que transcende a totalidade das 
experiências vividas que reúne, e que assegura a permanência da consciência. Ora, 
essa “subjetividade” quer apresentemos em fenomenologia ou em psicologia, como 
quisermos, não é mais que a emergência no ser de uma propriedade fundamental da 
linguagem. É “ego” que diz ego. Encontramos aí o fundamento da “subjetividade” que 
se determina pelo status lingüístico da “pessoa”. (1988, p.286) 
 
A forma com que cada um de nós se comunica, portanto, é única e existe na medida 
em que nos nomeamos como sujeitos sociais dentro dos nossos discursos individuais. A 
linguagem de Estamira existe e é marcada pela subjetividade porque leva em consideração 
somente sua condição linguística, a qual carrega seus traços identitários e reflete sua 
natureza. 
Não obstante, a língua de Estamira é mais que isso. Devido ao seu alto nível de 
abstração (como discurso, por vezes, desconexo), demanda uma análise mais filosófica, um 
suporte teórico que nos possibilite atingir um grau de compreensão da essência humana. 
Nessa perspectiva, dentre os vários autores que contribuíram com as teorias da linguagem, 
há Walter Benjamin, uma figura memorável, conhecida por sua originalidade e ousadia e 
que, assim como a língua de Estamira, não se ajusta a apenas um padrão específico 
(ensaísta, tradutor, etc.). Benjamin foi de tudo um pouco e sobre a linguagem afirma 
Não há acontecimento ou coisa, seja na natureza animada, seja na inanimada que, 
de certa forma, não participe na linguagem, porque a todos é essencial a 
comunicação do seu conteúdo espiritual. Mas a palavra “linguagem” assim entendida 
não é de modo algum uma metáfora. De facto, é uma evidência plena de conteúdo a 
afirmação de que nada podemos imaginar que não comunique a sua essência 
espiritual, manifestando-a através da expressão; o maior ou menor grau de 
consciência a que tal processo de comunicação está ligado aparentemente (ou 
realmente) em nada altera o facto de sermos incapazes de imaginar a total ausência 
da linguagem no que quer que seja. (1992, p.177 e p.178) 
 
A partir da afirmação de Benjamin, conclui-se que o mundo só existe porque temos a 
linguagem para expressar sua essência espiritual (do mundo). Na linguagem encontramos o 
significado de tudo, já que é nela que passamos a existir e não através dela. Nesse sentido, 
é possível compreender que, assim como Benjamin, Estamira aponta, mesmo que 
inconscientemente, para esse fato, quando, na falta das palavras certas para expressar seu 
pensamento, desenvolve um vocabulário próprio. Ao sentir dores nas costelas, na cabeça e 
 
 
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no estômago, por exemplo, Estamira declara estar com problemas no “controle remoto”, 
substituindo sistema digestivo e/ou sistema nervoso pela expressão “controle remoto”. 
Apesar de estranha e, de certa maneira, difícil de ser interpretada, a referida construção é 
utilizada várias vezes dentro de contextos específicos, acompanhada de gestos e sons, não 
comprometendo seu entendimento. É isso que caracteriza sua forma de comunicação como 
peculiar e sobre a singularidade da linguagem Benjamin alega 
A essência lingüística das coisas é a sua linguagem. Esta frase, aplicada ao homem, 
significa: a essência lingüística do homem é a sua linguagem. Isto é, o homem 
comunica a sua própria essência espiritual na sua linguagem. Mas a linguagem do 
homem fala por palavras. O homem comunica, pois, a sua própria essência espiritual 
(na medida em que é comunicável) denominando todas as outras coisas. (1992, 
p.180) 
 
Portanto, o “Estamirês” nasce com o intuito de revelar a essência de Estamira. 
Quando identificamos o significado do seu vocabulário próprio, aproximamo-nos da 
compreensão do seu interior. Em algumas situações, Estamira constrói frases desconexas. 
Entretanto, são essas construções que nos permitem ver o quão rica é sua língua, que por 
sua vez exprime a beleza dessa mente brilhante. No trecho “Olha lá, os “morro”, as serras, 
as montanhas... paisagem, esta mira, esta mar, esta serra... “Esta Mira”. Estamira “tá” em 
tudo quanto é canto!”, Estamira acidentalmente faz um trocadilho com o próprio nome, 
demonstrando que, apesar da sua condição psíquica, possui uma incrível capacidade de 
“brincar” com as palavras, de produzir sentidos. Por outro lado, ao tentar fazer um “trocadilo” 
(expressão utilizada por ela para se referir à palavra trocadilho), de forma intencional, 
Estamira demonstra não ter domínio sobre o uso da palavra em si, conforme a passagem 
“O “trocadilo” vem de uma tal maneira que quanto menos as pessoas têm, mais elas 
menosprezam”. Esses são apenas alguns dos fatos que nos inquietam e nos fazem refletir 
sobre a seguinte questão: não é irônico o fato de Estamira saber fazer trocadilhos, mas não 
ter ideia de como empregar a palavra trocadilho em uma frase? Por que isso acontece? 
Talvez Estamira não saiba o significado da palavra em si. Vejamos, então, de que forma se 
organiza o pensamento de Estamira. 
 
 
 
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2.1 O estamirês e o significado 
Como podemos entender o que se passa na mente de Estamira se não é possível 
habitá-la? Sobre o documentário, alguns podem dizer que Estamira não pensa, que sua 
mente é apenas uma fábrica de produzir palavras sem sentido. Outros, que é difícil não se 
deixar tocar por sua maneira desorientada de ser, por sua mente tão peculiar. O fato é que 
mesmo que se tenha pouco conhecimento sobre psicologia e áreas afins, é inegável que há 
lógica no delírio de Estamira. Ao afirmarmos que sua linguagem e sua mente nada têm de 
especial, cometemos um grave erro, caímos em contradição, uma vez que seu idioma, o 
“Estamirês”, é dotado de significação. 
Para Vygotsky (1989) é no significado que encontramos respostas para as relações 
entre pensamento e linguagem. Para ele, pensamento é linguagem, pois “o significado pode 
ser visto igualmente como fenômeno da linguagem por sua natureza e como fenômeno do 
campo do pensamento.” (1989, p. 10). Sobre o processo de aquisição de línguas (materna 
ou estrangeira), o autor afirma que a aprendizagem torna-se mais complexa quando não 
sabemos o significado de uma palavra nova. Destarte, conclui-se que uma palavra sem 
significado é apenas um som vazio. Ainda, Vygotksy alega que pensamento e linguagem 
relacionam-se e passam por vários processos de transformação, tendo o significado como 
elo principal. Na visão do autor, o pensamento passa a existir a partir do significado das 
palavras. 
Mas, para expor tal teoria de forma clara é necessário que consideremos algumas 
palavras ou expressões presentes no discurso de Estamira. Em sua apresentação, Estamira 
diz “Eu nasci no 07 do 04 do 41, a carne e o sangue, o formato...o formato homem “par”, 
mãe e avó”. A partir da afirmação é possível concluir que as palavras escolhidas por ela 
são diferentes das que são utilizadas para designar gênero, espécie, sexo, etc. Para ela 
“formato” esta para gênero/espécie, assim como “par” está para sexo feminino. Embora a 
palavra “par” pareça uma palavra “vazia”, visto que não temos o hábito de nos designarmos 
“par” ou “ímpar” na nossa língua padrão, no discurso de Estamira, essa palavra assume um 
novo sentido: mulher. Isso pode ser depreendido através dos detalhes fornecidos por ela 
 
 
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como “mãe” e “avó”, características próprias do sexo feminino. Ao atribuir um novosignificado para a palavra “par”, Estamira produz um pensamento, reafirmando a ideia de 
Vygotsky de que o significado é um ato de pensamento (1989). 
Nessa perspectiva, é em um de seus delírios que o Estamirês atinge o ponto máximo. 
Ao simular uma conversa telefônica, todas as palavras proferidas por Estamira são 
inventadas e, nesse caso, impossíveis de serem entendidas. Apesar da angústia que a 
incompreensível conversa gera no espectador, constata-se que é na e pela linguagem que 
Estamira passa a existir. Toda e qualquer alteração dentro do seu idioma particular ocorre a 
partir dos significados produzidos por ela. Hall (1997, p. 10) alega “O significado surge, não 
das coisas em si – a “realidade” – mas a partir dos jogos da linguagem e dos sistemas de 
classificação nas quais as coisas são inseridas. O que consideramos fatos naturais são, 
portanto, também fenômenos discursivos.” Nesse sentido, o “Estamirês” deve ser 
considerado como uma forma única de manifestação, independentemente das lacunas 
presentes em seu discurso. 
Dentro dessa perspectiva, Estamira acredita possuir domínio sobre tudo e sobre 
todos. Acredita no poder do seu pensamento, da palavra, do significado das coisas, do 
nome. Sobre isso Benjamin argumenta que 
O homem é quem denomina e, por essa razão, reconhecemos que dele emana a 
linguagem pura. Toda a natureza, na medida em que se comunica, fá-lo na 
linguagem e, portanto, finalmente, no homem. Por isso ele é o senhor da natureza e 
pode denominar as coisas. Só através da essência lingüística das coisas ele alcança, 
por si próprio, o conhecimento delas – no nome. (1992, p.182) 
 Deste modo, Estamira afirma e reafirma seu nome incansavelmente. Em suas 
palavras “Eu posso tudo porque sou Estamira”. Ela acredita que pode curar as pessoas, 
controlar o céu, a chuva, os trovões e até mesmo Deus. Tudo isso porque seu nome é 
Estamira. O caso é que Estamira sabe que não só o próprio nome é poderoso, mas todos 
os demais. Seria o nome “Estamira” o responsável por traduzir sua essência espiritual ou o 
contrário? O fato é que, à sua maneira, Estamira traduz a teoria Benjaminiana, a qual afirma 
que “O nome é aquilo através de que nada mais se comunica e, no qual, a própria 
 
 
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linguagem se comunica em absoluto. No nome, a essência espiritual que se comunica é a 
linguagem.” (1992, p.181). 
Para finalizar, concluímos que quando Estamira designa a si mesma e designa o 
mundo ao seu redor, ela exprime a essência espiritual das coisas, assim como sua própria 
essência espiritual. Em suma, por intermédio da sua língua particular, Estamira fala, pensa, 
significa. O “trocadilo”, o “controle remoto”, o “par”, o próprio nome “Estamira”, todos têm 
poder porque traduzem a própria essência linguística, Assim, a linguagem, ou essência 
linguística das coisas, é o que constitui a essência espiritual de Estamira. 
 
3 Conclusões 
No presente artigo, analisamos a singularidade da língua de Estamira, a partir de 
várias concepções de linguagem. Para tal, foi necessário fazer uma breve visita à sua 
mente inquietante, levando em consideração seu vocabulário próprio e algumas de suas 
formulações poéticas e filosóficas, no intuito de descobrir se em seu “Estamirês” há sentido, 
identidade e experiência. Constatamos, primeiramente, que Estamira é coragem, é luta e, 
sobretudo, que ela é a voz que representa as minorias raciais e sociais contra a negligência 
do poder público. 
Confirmamos, por conseguinte, que o árduo processo de interpretação da língua de 
Estamira resulta em uma experiência enriquecedora, que ajuda a expandir nossa 
capacidade de perceber o mundo. Sem apresentarmos um resumo detalhado, esperamos 
que a leitura desse artigo tenha sido útil para comprovar que o “Estamirês” não segue 
regras, tampouco as prescreve. É discurso, é sociedade, é subjetividade. Tem em Stuart 
Hall um importante alicerce, na medida em que é processo cultural, é identidade, é 
linguagem que atua como protagonista na construção e circulação do significado. Encontra 
respostas em Vygotsky, uma vez que é significado, pensamento e linguagem. 
Finalmente, verificamos que o que torna o “Estamirês” tão expressivo e especial é o 
fato de ele traduzir a essência espiritual de Estamira, encontrando “nos braços” da teoria 
 
 
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Benjaminiana sua forma mais plena, posto que é delírio, é experiência, é espírito, é 
essência e, sobretudo, é Estamira. 
 
Referências 
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio 
Paulo Rouanet. Vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1985. 
 
BENJAMIN, Walter. Sobre arte, técnica, linguagem e política. Trad. Maria Luz Moita; 
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