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No ano em que a JOSAPAR comemora 90 anos de história, contribuir com a viabilização do Almanaque do Bicentenário é motivo de orgulho para nós. São histórias que se entrela- çam e se eternizam. A elegância presente em cenários históricos, a beleza e im- portância deste passado de riquezas, lutas e glórias, o sabor dos tradicionais doces de Pelotas, o tempo impregnado nos ladrilhos hidráulicos, casarões e seus azulejos, a história viva sendo contada agora e a JOSAPAR fazendo parte, no passa- do, presente e futuro de nossa Princesa do Sul. A trajetória histórica que agora chega a suas mãos na forma deste Almanaque retrata com riqueza de detalhes a coloni- zação eclética e multicultural que fez de Pelotas uma cidade singular. Acompanhamos diferentes fases da cidade que nos recebeu de coração aberto e contribuímos para conquistar e manter a excelência, levando nosso município ao imenso território nacional, onde nossos produtos conquistaram a preferência na mesa dos brasileiros. Para nós, é uma honra contribuir com esta publicação em um momento tão especial, tanto para nossa empresa que se avizinha do seu centenário, quanto para Pelotas, que acaba de completar 200 anos. Somos fomentadores de investimentos. Contribuímos para que nossa cidade evolua cada vez mais e tenha um futuro promissor. Mas é na fonte do passado que vamos matar a sede de história, buscar suporte e exemplo para este pro- gresso sólido. Pela experiência nos tornamos mais seguros em busca de novos caminhos. Pensando em valorizar ainda mais a terra que nos acolhe desde 1922, abraçamos este importante projeto, o qual apresenta imagens que eternizam a memória da nossa ci- dade e que devem ser guardadas como relíquia, como parte indelével da história de todos os pelotenses, que assim como nós, se orgulham desse lugar. Planejamento Cultural: Gaia Cultura & Arte Produção Executiva: Lua Nova Produção Cultural Coordenação Geral: Duda Keiber Coordenação Editorial e Organização: Luís Rubira Co-produção: Beatriz Araújo Apoio: Instituto João Simões Lopes Neto Textos: A.F. Monquelat, Guilherme Pinto, Luís Borges e Luís Rubira Fac-símile: Revista do 1o Centenário de Pelotas, de João Simões Lopes Neto (Exemplares gentilmente cedidos por A. F. Monquelat) Pesquisa e Seleção das Imagens: Guilherme Pinto de Almeida e Luís Rubira Acervos e Fontes das Imagens: Eduardo Arriada ETH-Bibliothek Zürich, Bildarchiv Guilherme P. de Almeida Nelson Nobre / Pelotas Memória Ceres Chevallier (Vida e obra de Jose Isella) Esther Gutierrez (Barro e sangue. Mão-de-obra, arquitetura e urbanismo em Pelotas) Fernando Osório (A cidade de Pelotas) Francisca Michelon e Anaizi C. E. Santo (Catálogo Fotográfico – Século XIX/1930) Ferreira & C.; Florentino Paradeda (Almanach de Pelotas [1913-1917; 1917-1935]) Jacob e José Parmagnani, Otto Ruedell (Memorial do Colégio Gonzaga) Reginald Lloyd (Impressões do Brasil no século XX) Seleção de trechos literários: Luís Rubira (Trechos de Quadros Horripilantes, obra rara, gentilmente cedido por Eduardo Arriada) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP __________________________________________________ A445 Rubira, Luís (Org.) Almanaque do Bicentenário de Pelotas. / Luís Rubira (Projeto LIC: Gaia Cultura & Arte). v. 1: fac-símile da “Revista do 1o Centenário de Pelotas / João Simões Lopes Neto”, textos diversos e fotografias da cidade. – Santa Maria/RS: PRÓ-CULTURA RS / Gráfica e Editora Pallotti, 2012. p. 336 ISBN: 978-85-66303-00-1 1. Pelotas. 2. História de Pelotas – Rio Grande do Sul. I. Título. CDD 981.657 __________________________________________________ Ficha Catalográfica elaborada pela Bibliotecária Carla Michelle de Macedo Rodrigues - CRB-10/1657 Capa e Projeto Gráfico: Nativu Design Direção de Arte: Valder Valeirão (Nativu Design) Assistente de Designer: Saarah Gottinari Ilustração da Capa: Postal da cidade de Pelotas (detalhe). Vista dos Casarões nos 8, 6 e 2. Data aproximada: Década de 1890. Fotógrafo: desconhecido. Revisão: Duda Keiber Impressão e Acabamentos: Gráfica Editora Pallotti Impresso no Brasil Todos os direitos reservados 1a Edição, 2012 Tiragem: 1000 exemplares www.almanaquedepelotas.com.br Agradecemos à sincronicidade, permissora deste nosso encontro com cada um dos elementos que, de alguma forma, tênue ou profunda, colaboraram para a existência deste almanaque... e o dedicamos à memória e obra de João Simões Lopes Neto e à doce cidade de Pelotas. Duda Keiber, Fernando Keiber e Alexandre Mattos. Gaia Cultura & Arte | Novembro de 2012. APRESENTAÇÃO Almanaque do Bicentenário de Pelotas (Vol. 1) Luís Rubira REVISTA DO 1o CENTENÁRIO DE PELOTAS: Uma visão retrospectiva e prospectiva Luís Borges REVISTA DO 1o CENTENÁRIO DE PELOTAS JOÃO CARDOSO: dos Contos gauchescos para a História A. F. Monquelat e Valdinei Marcolla NOTAS INTRODUTÓRIAS À ICONOGRAFIA DO Almanaque do Bicentenário de Pelotas (Vol. 1) Guilherme Pinto de Almeida 33 69 113 241 301 Planta da Freguesia de São Francisco de Paula, executada por Maurício Ignácio da Silveira, a mando do Capitão-mor Antô- nio Francisco dos Anjos, no ano de 1815. “O desenho mostrou uma trama traçada ao agrado de tempos de milícia. Acom- panhando as direções norte-sul e leste-oeste [nesta disposição o norte do mapa aponta para baixo, a retícula heterogênea que estruturou as quadras, praça e vias, desconsiderou os limites da área aforada pelo proprietário. O desenho do piloto definiu ruas, mais largas, e travessas, mais estreitas, mesma solução proposta desde os tempos de Vitrúvio. Diferentemente do que acontecia segundo as espanholas, a pequena praça não estruturou o desenho urbano, recebendo em seu centro o minúsculo templo. Como nos projetos realizados pelos que passaram pelas aulas de arquitetura militar, a praça estava formada pela ausência de prédios nos quarteirões. Na freguesia de São Francisco da Paula, a praça da matriz situava-se deslocada do meio da área levantada. Para valorizar a igreja, uma travessa foi desviada, permitindo que a perspectiva ter- minasse na porta principal da capela. Ao norte, a área urbana estava limitada pelo Passeio Público [antiga Rua Conde D’Eu; atual Av. Bento Gonçalves]; ao sul, as linhas sugeriam a continuação no sentido do Porto, no Canal São Gonçalo”. (GU- TIERREZ, E. J. B. Barro e sangue. Mão-de-obra, arquitetura e urbanismo em Pelotas [1777-1888]. Tese de Doutorado. Porto Alegre: PUC-RS, 1999, p. 509-510). Fonte da imagem: ARRIADA, E. Pelotas. Gênese e desenvolvimento urbano [1780-1835]. Pelotas: Armazém Literário, 1994. 14 15 1. Rua Miguel Barcelos. Ao fundo a Catedral São Francisco de Paula [e o antigo chafariz] 2. Catedral São Francisco de Paula [e o antigo chafariz]. Aquarela. Pineau, 1883 1 2 16 3. Rua Gonçalves Chaves 4. Rua Gonçalves Chaves esquina Princesa Isabel 5. Praça Cel. Pedro Osorio. Vista dos Casarões nos 2 e 6 3 4 5 17 18 6 7 8 19 9 10 11 6. Praça Cel. Pedro Osorio. Ao centro o Teatro Sete de Abril. Litografia. Ludwig, década de 1840 7. Praça Cel. Pedro Osorio. Teatro Sete de Abril 8. Praça Cel. Pedro Osório. Chafariz (Fonte das Nereidas). Ao fundo, o Teatro Sete de Abril 9. Praça Cel. Pedro Osório, esquina Mal. Floriano [antiga Estação dos Bondes] 10. Rua XV de Novembro, vista da Rua Mal. Floriano em direção à Av. Bento Gonçalves 11. Praça Cel. Pedro Osório, vista da Prefeitura em direção à Av. Bento Gonçalves “Estamos no teatro. Foi-se a época, em que o teatro era o ponto de reunião de tudo e de todos; ou pelo gosto despertado da arte, ou então pela agradável sensação que aí nos causava a presença de olhares amigos.” Lobo da Costa. Espinhos d’Alma, 1872 22 12 13 14 15 16 23 12. Praça 7 de Julho, vista desde a Prefeitura. Mercado Público Municipal. Postal 13. Praça 7 de Julho, vista desde a Rua Andrade Neves. Mercado Público Municipal. Postal 14. Mercado Público Municipal, visto desde a Praça Cel. PedroOsorio 15. Mercado Público Municipal, do ângulo da Praça Cel. Pedro Osorio. Postal 16. Mercado Público Municipal, do ângulo do antigo Liceu. Postal 17. Mercado Público Municipal, do ângulo da Praça Cel. Pedro Osorio. Postal 18. Mercado Público Municipal, em ângulo próximo à Praça Cel. Pedro Osorio 19. Mercado Público Municipal. Pátio interno, em dia de comércio 20. Mercado Público Municipal. Pátio interno 17 18 19 20 “A cena representa o interior do Mercado com a torre ao centro; bancas de verdura, idem de leite, kioskes, bancos, etc.” João Simões Lopes Neto. O boato, 1894 26 21 22 23 27 21. Rua Andrade Neves esquina Gomes Carneiro. Beneficência Portuguesa 22. Beneficência Portuguesa. Postal 23. Beneficência Portuguesa, vista do ângulo da Rua Uruguai. Postado em 1904 24. Praça Piratinino de Almeida. Santa Casa de Misericórdia. Aquarela. Pineau, 1883 25. Praça Piratinino de Almeida. Caixa d’Água Escocesa 26. Rua Santos Dumont. Santa Casa de Misericórdia. Postal 24 25 26 28 27 28 29 29 27. Santa Casa de Misericórdia. Postado em 1903 28. Rua Santos Dumont. Praça Piratinino de Almeida e Santa Casa de Misericórdia. Postal 29. Rua Santos Dumont, próximo à Gal. Neto. Santa Casa de Misericórdia 30. Rua Santos Dumont, esquina Gal. Neto. Santa Casa de Misericórdia. Postal 31. Praça Piratinino de Almeida. Caixa d’Água Escocesa. Postal 30 31 30 31 APRESENTAÇÃO Almanaque do Bicentenário de Pelotas (Vol. 1) Luís Rubira* O HISTÓRICO E A IMPORTÂNCIA DA REVISTA DO 1o CENTENÁRIO João Simões Lopes Neto, como bem observou Carlos Reverbel, “foi quem mais contribuiu para o brilhantismo das celebrações do primeiro centenário de Pelotas. Na sua empolgação pelo acontecimento, chegou a fundar uma revista mensal, da qual saíram oito números, o primeiro em outubro de 1911, os dois últimos (aglutinados num único volume), em maio de 1912” (REVERBEL, C. Um capitão da guarda nacional: vida e obra de J. Simões Lopes Neto. Caxias do Sul: UCS, p. 75). É ainda Reverbel quem lamenta, nos anos oitenta, o fato de somente poucas pessoas terem acesso à “coleção dessa revista (infelizmente hoje raríssima)”, pois, nela, João Simões Lopes Neto disponibilizou uma importante documentação so- bre Pelotas, reunida ao longo de muitos anos, na qual constava, por exemplo, um “repertório de anúncios” capaz de fornecer uma “idéia das atividades econômicas da cidade no ano do seu centenário” (Idem, p. 78). O descaso e o esquecimento que pairavam sobre a reedição da Revista do 1º Cen- tenário de Pelotas, preconizados por Carlos Reverbel, levou o historiador Mario Osorio Magalhães, em 1994, a fazer uma seleção de textos da mesma, de modo a disponibilizar parte de seu conteúdo para um público mais amplo. A edição, sabe- mos, não pode apresentar aquele “repertório de anúncios”, e tampouco a repro- dução das fotos e desenhos que ilustravam o trabalho de Simões. O historiador, então, justificou que, “em concordância com os editores”, iria deixar, “para uma talvez futura edição os trechos em que [Simões] transcreve documentos, primários * Professor do Departamento de Filosofia da UFPEL 34 ou secundários”, bem como adiaria “a reprodução das variadas fotos e desenhos que ilustravam a Revista, com o objetivo, também no caso, de reduzir os custos, capazes de inviabilizar, não fosse assim, a confecção do livro” (Magalhães, M. O. Apontamentos referentes à história de Pelotas e de outros dois municípios da zona sul: São Lourenço do Sul e Canguçu. Pelotas: Armazém Literário, 1994, p. 7). Embora fragmentada, a Revista do 1º Centenário de Pelotas ganhava, “uma primeira edição, pois nunca se corporificou, antes, em livro” (Idem). A originalidade das reflexões de Carlos Reverbel, jornalista e pesquisador pionei- ro no estudo de Simões (Augusto Meyer já o elogia, em 1945, pelo “excelente trabalho biográfico” publicado na Revista Província de São Pedro), tornaria a encontrar eco, recentemente, no posicionamento de Mario Osorio Magalhães: A ideia de festejar o aniversário da cidade tomando por base a funda- ção da freguesia quem concebeu, projetou, promoveu, levou adiante até a plena aceitação, até a realização final, foi ninguém menos que João Simões Lopes Neto, o consagrado autor dos Contos gauchescos e das Lendas do Sul. (Magalhães, M. O. “Aniversário de Pelotas”, Diário Popular, 07/07/2011). Mario Osorio, assim, na esteira de Carlos Reverbel, volta a atribuir a Simões, a primazia no estabelecimento de uma data para comemorar o primeiro centená- rio da cidade (é importante notar que João Simões Lopes Neto também indicou, no primeiro volume da Revista, o ano de 1780 como o momento da “Fundação da hoje bela e adiantada cidade de Pelotas”, sendo que 1880 ele tinha apenas quinze anos). É o próprio historiador quem reconhece, ainda no mesmo artigo, o débito de seu avô para com o autor da Revista: “ao ampliar, com riqueza de informações, o seu primitivo texto de 1905 [uma monografia sobre a História de Pelotas, publicada nos Anais da Biblioteca Pública Pelotense], Simões Lopes facilitou o trabalho a que Fernando Osório se dedicaria, dez anos depois”, ou seja, na tarefa de elaboração do livro “A cidade de Pelotas” (Idem). *** João Simões Lopes Neto elegeu, portanto, a data de 7 de Julho de 1812 (mo- mento de criação da Freguesia), para comemorar o centenário da cidade. Foi, então, aos 47 anos que ele empreendeu, sozinho, a partir do segundo semestre de 1911, o esforço monumental para realizar os oito números da Revista (dentre os dez inicialmente previstos), sendo que os números 7 e 8 somente surgiram após a comemoração do centenário. O próprio autor justificava “o atraso das publicações por ter sido acometido de ‘moléstia grave e de demorada convales- cença’” (Sica Diniz, C. F. João Simões Lopes Neto: uma biografia. Porto Alegre: Editora AGE, p. 184). O Bicentenário da cidade, festejado em 7 de Julho de 2012, é, portanto, indissociável do nome e do gesto de João Simões Lopes Neto. Transcorridos cem anos desde a publicação dos oito números da Revista, ne- nhuma homenagem poderia ser mais justa, ao intelectual que procurou valorizar e pensar a singularidade de sua cidade, do que editá-la integralmente (e, pela primeira vez, de forma impressa). Por essa razão, a edição em fac-símile da Revista 35 do 1º Centenário ocupa o núcleo deste primeiro volume do Almanaque do Bicen- tenário de Pelotas. Se com ela Simões foi capaz de estabelecer o marco para a data de comemoração do centenário da cidade, bem como de percorrer uma senda que facilitaria o percurso do historiador Fernando Osório, é certo, então, que, ao alcan- çar um vasto público de leitores, a Revista do 1º Centenário de Pelotas não somente recebe o seu justo apreço (cem anos depois), mas abre o caminho para novas possi- bilidades de reflexão e pesquisa em muitas áreas do conhecimento. NOTAS SOBRE A REVISTA: A DISPOSIÇÃO DOS TEXTOS E O PERFIL INTELECTUAL DE SIMÕES Cosmopolitismo e regionalismo Logo na página de abertura, Simões Lopes Neto define a programação da Re- vista do 1º Centenário de Pelotas: “O nosso programa abrange o registro tão completo quanto possível da gênese da fundação da cidade, os fundadores, os beneméritos, filhos ilustres, comércio e indústria, jornalismo, colégios – profes- sorado –, repartições, os notáveis da cidade, sociedades locais, notas diversas, estatísticas, curiosidades, etc” (no 1, p. 01). De fato, ao nos determos nos oito exemplares, é possível verificar que o autor dedicou diversas passagens aos te- mas do programa, excetuando-se um significativo caso. A seção “Curiosidades” surge somente no sexto número, à página 95, trazendo apenas um registro, retirado do “Almanak Pelotense, para 1862, de Joaquim Ferreira Nunes”. Não parece ser ao acaso que, em meio a tantas possibilidades de resgatar uma in- formação para a seção “Curiosidades” (em diversos documentos disponíveis, entre eles o Almanak de 1862), Simões tenha escolhido justamente a propagandade produtos de um refinado armazém da cidade de Pelotas, a propósito da qual ele observa: “vão completar-se cinquenta anos, que foi publicado o seguinte anúncio (...) e parece um anúncio da atualidade; por ele também se aprecia a antiguidade de alguns artigos e marcas”. A seguir, então, o autor da Revista faz a reprodução do mesmo (a atualização da grafia de algumas palavras é nossa): ARMAZÉM DE COMESTÍVEIS TORRES & TASSIS No armazém acima encontra-se um completo sortimento de secos e molhados por preços cômodos, pois recebem grande parte dos seus artigos diretamente. VINHOS Champagne, Porto, Jerez, Valdepeñas, Marsala, Sauternes, Bordeaux, Madeira, Muscatel, Lisboa e Priorato. MANTEIGA inglesa superior. QUEIJOS flamengos em pelicas. PRESUNTOS de Westphalia e do Porto. SALAME de Bolonha. DOCES secos e em calda. AMÊNDOAS com casca e cobertas francesas, em vidros. CONSERVAS inglesas e americanas. AMEIXAS secas de la qualidade. PASSAS em caixas, meias, quartos e em caixinhas como para mimo. CERVEJA branca e preta, inglesa e francesa. LICORES de todas as qualidades, entre eles o afa- mado D’anthieh. GENEBRA em frascos e garrafões. CHOCOLATE espa- nhol. SUPERIOR CHÁ Hysson preto e pérola. ARARUTA americana em 36 pacotes de 1/2 libra. VELAS de espermacete e composição. CHARUTOS de todas as qualidades. FUMO para cachimbo. CAPORAL CWERVICK. CAFÉ em grão e moído de 1a sorte, garantido. AÇUCAR cristalizado, refinado, Pernambuco de 1a sorte. BISCOITOS ingleses e bolachinhas da terra. TERRA romana em barricas de superior qualidade.” João Simões Lopes Neto, então, resgata um anúncio de produtos refinados, de alta qualidade, oriundos de diversas partes do mundo, próprios de uma socie- dade que, ainda em 1911 (“parece um anúncio da atualidade”), mantém não só o poder aquisitivo, mas o refinamento do gosto. Na estratégia de seleção do texto está implícita, necessariamente, tanto a face cosmopolita da cidade quanto a de seu filho pródigo. Todavia, para bem podermos ter uma compre- ensão da personalidade do autor da Revista, é preciso pensar que o anúncio retirado do Almanak de 1862, está colocado no volume que data de 30 de março de 1912. Ora, é justamente no dia imediatamente após, ou seja, em 31 de março, que o homem de gosto cosmopolita começa a publicar os Contos Gauchescos, no jornal Diário Popular: Domingo, 31.03.1912 No Manantial Quinta-feira, 04.04.1912 Trezentas Onças Domingo, 07.04.1912 O Boi Velho Quinta-feira: 11.04.1912 Correr Eguada Domingo: 14.04.1912 Melancia-Coco Verde Quinta-feira: 18.04.1912 O Anjo da Vitória Domingo: 21.04.1912 Os cabelos da China Quinta-feira: 25.04.1912 O mate de João Cardoso Domingo: 28.04.1912 O Chasque do Imperador Quarta-feira: 1º. 05.1912 O jogo do Osso Domingo: 05.05.1912 Penar de Velhos (Sica Diniz, C. F. João Simões Lopes Neto, p. 191) A face cosmopolita e regional de João Simões Lopes Neto reluzem, assim, num mesmo período. É preciso, aqui, fazer uma pausa, de modo a perceber que estes elementos já estavam presentes, há bastante tempo, em nosso intelectual. Aten- temos, então, para uma página conhecida da crítica literária brasileira. Quando Augusto Bosi trata da “Literatura regionalista” de João Simões Lopes Neto, ele escreve que em Simões a matéria rural é tomada a sério, isto é, assumida nos seus preci- sos contornos físicos e sociais dentro de uma concepção mimética da prosa (...). Na medida em que esse trabalho foi consciente acres- centou algo à praxis literária herdada do Naturalismo. Este algo pode interpretar-se como o lado brasileiro da oscilação pendular nacional- -cosmopolita, que marca as culturas de extração colonial. E prossegue, dizendo que “o fato” de João Simões Lopes Neto e Valdomiro Silveira terem pensado a terra e o homem do interior já era um sintoma de que nem tudo tinha virado belle époque no Brasil de 1900. O projeto explícito dos regionalistas era a fidelidade ao meio a descrever: no 37 que aprofundavam a linha realista estendendo-a para a compreensão de ambientes rurais ainda virgens para a ficção. Voltando as costas para as modas que as elites urbanas importavam, tantas vezes por mero esnobismo, puseram-se a pesquisar o folclore e a linguagem do interior, alcançando, em alguns momentos, efeitos notáveis (...): alguns dos nossos regionalistas precederam, em contex- to diferente, o vivo interesse dos modernos pela realidade brasileira total, não apenas urbana. Hoje, quando já se incorporaram à nossa consciência literária o alto regionalismo crítico de Graciliano Ramos e a experiência estética universal do regionalista Guimarães Rosa, é mais fácil reconhecer o trabalho paciente e amoroso de um Valdomiro e de um Simões Lopes, voltados para a verdade humana da província” (Bosi, A. História concisa da literatura brasileira. 43 ed. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 207. Grifo nosso). O intelectual que valoriza os abolicionistas e republicanos à frente de seu tempo Após definir o “Programa” da Revista, é significativo que Simões indique o método como irá trabalhar na abordagem dos temas: “Daremos os retratos e traço biográfico das individualidades de destaque como fator pensante, dirigen- te, responsável, da nossa vida urbana” (no 1, p. 1. Grifo nosso). É, portanto, a capacidade intelectual que ele considera como um valor de primeira ordem. O acento é importante, pois, embora Simões diga, na sequência, que não irá fazer uma abordagem cronológica das “individualidades de destaque”, ao tratar dos “Filhos ilustres”, ele opta por começar por um abolicionista: Antonio Ferreira Viana (que nasce numa charqueada em Pelotas, no ano de 1833). Assim, no exíguo espaço que possui para fornecer um “traço biográfico” de Ferreira Viana, Simões destaca justamente o seguinte: “É sua a glória de ter formulado o pro- jeto de abolição absoluta e incondicional da escravatura. A lei de 13 de maio, como foi concebida e formulada é de sua inspiração” (no 1, p. 6). Não se trata, todavia, de um caso isolado. No segundo número da Revista, por exemplo, em “Notícia sobre a fundação das xarqueadas”, Simões observa que “João Baptista Roux, francês, que pelo fim da revolução farroupilha estava em Jaguarão”, veio trabalhar em Pelotas com “seu compatriota Eugène Salgues”, sendo que, na qualidade de charqueador, “J. B. Roux [foi] o primeiro a empregar o braço livre num meio e numa época por inteiro oposto à inovação” (no 2, p. 11). E, do mesmo modo, onde volta a apresentar a relação dos “Filhos ilustres”, elege Felisberto Ignácio da Cunha, o “Barão de Corrientes”, pois, como enfatiza Simões, “antes da lei do ventre livre (28 de setembro [de 1871]) já os filhos das suas escravas eram por ele reconhe- cidos livres; antes da libertação do município, já ele havia concedido a liberdade plena a uns e a curto prazo de serviço a outros dos seus servos” (no 2, p. 12-13). Vê-se, portanto, que além de privilegiar vultos abolicionistas, a ordem dos “Fi- lhos ilustres”, de fato, coloca o acento no “fator pensante, dirigente, responsável de nossa vida urbana”. Isto explica o fato de inicialmente surgir um advogado e político (Ferreira Viana), em seguida um charqueador (Felisberto Ignácio da 38 Cunha), outro advogado, jornalista e político (Henrique Bernardino Marques Canarim), e, em seguida, um poeta: Francisco Lobo da Costa “um dos poetas mais populares de todo o Rio Grande” (no 2, p. 13) – único homem de letras a quem ele se refere na Revista do 1º Centenário de Pelotas. Do destaque intelectual, passando pelo dirigente e responsável da vida local, Si- mões faz questão de colocar o foco não só nos engajados do movimento aboli- cionista, mas também nos partidários do regime político republicano. É por esta razão que, na “Galeria dos Fundadores”, o segundo nome que surge é o do por- tuguês Antonio José Gonçalves Chaves, que “aportou no Rio Grande do Sul em 1805”, vindo domiciliar-se “no incipiente – povinho – de S. Francisco de Paula [Pelotas]”, onde se tornou charqueador, tendo sido,entre 1810 e 1812, um dos que mais “se interessavam pela fundação da freguesia; e no seguimento um dos melhores propugnadores do seu engrandecimento” (no 1, p. 8). Simões, então, faz questão de enfatizar que Gonçalves Chaves era um homem culto, admirado por Saint-Hilaire por falar “bem o francês” e ser possuidor “de uma excelente biblioteca”, tendo publicado, em 1822, as Memórias econômico-políticas sobre a administração pública do Brasil, “um trabalho notável para a época”, visto que ali “pregava ele sobre a abolição da escravatura” (Idem). Gonçalves Chaves, sabemos, tomou partido pelo lado republicano durante a revolução farroupilha. Simões Lopes Neto, simpático aos conterrâneos que tomaram partido pelo mo- vimento republicano, dá, então, especial atenção a um dos descendentes de Gonçalves Chaves: Dr. Álvaro José Gonçalves Chaves. Nasceu em 13 de setembro de 1861 (...), fundador do “Clube Republicano 20 de Setembro” e redator-chefe de “A República”, de São Paulo; organizador do Partido Republicano Pelotense, e abolicionista (...). Ao lado de Saldanha Marinho foi o verda- deiro organizador do Partido Republicano no Rio de Janeiro. Aí, em 20 de agosto de 1885, fundou o Clube Republicano Sul Riograndense, que, ao depois, foi um dos melhores esteios abolicionistas (...). Achando-se doente seguiu para a Europa, e em Paris, teve a notícia da proclamação da República no Brasil, e regressou, vindo pela Espanha (no 1, p. 10). Em síntese, João Simões Lopes Neto percebe que sua terra natal abrigou ou gerou homens bem à frente de seu tempo. Talvez pelo fato de que, em muitos aspectos, e, em particular, nos movimentos abolicionistas e republicanos, a ci- dade e seus “filhos ilustres” tenham tido destaque no cenário nacional, ele faça questão de pontuar no quinto número da Revista: “existe em Pelotas, (na Costa) o único monumento no Brasil publicamente erguido ao ideal republicano, du- rante o regime monárquico” (no 5, p. 68). O repertório de anúncios: o potencial econômico e cultural de Pelotas na visão do empresário e homem de letras Buscando dar ao leitor uma idéia da intensidade das atividades econômicas que movi- mentavam a vida urbana da cidade que estava prestes a comemorar o seu centenário, 39 Simões apresenta um dado recente sobre Pelotas no primeiro número da Revista: “Da estatística municipal de 1910 verifica-se que nesse ano existiam 188 fábricas, 278 oficinas e 822 casas diversas de negócio, ou seja, 1288 firmas em atividade” (no 1, p. 13). Ciente, portanto, das mais de mil firmas existentes no município, ele apresenta aproximadamente 70 delas (as demais são de Piratini e Canguçu), justificando, na página inicial da Revista, que não se trata tão somente de propaganda das empresas: Os anúncios aqui publicados devem ser tomados mais como atestados, documentos, da capacidade industrial-comercial desta época da cida- de, do que propriamente como reclamos. O conjunto deles, no futuro, dirá o que éramos e o que valíamos. (no 1, p. 1). O intelectual e empresário para quem o valor maior não era o monetário (ele mesmo escreve na página de abertura do segundo número: “Não nos move o cálculo dos ganhos”), seleciona, então, criteriosamente, os “documentos” que representam o diagnóstico de uma época e de uma sociedade. A grande maioria dos anúncios (cerca de 40) está concentrada no primeiro número da Revista. Vá- rios também são os “atestados” que irão surgir em outros números (é o caso dos anúncios dos agentes que representam o “Comércio e navegação” e os “Automó- veis Ford”, da refinada “Relojoaria-Ótica de Henrique Krentel”, da “Livraria Ameri- cana”, do “Salão Le Chic”, da Fábrica de Fumo “S. Raphael”, das lojas “Bromberg & Comp.”, da “Sociedade Rio-grandense Protetora dos Animais”, dentre outros). A escolha do primeiro anúncio apresentado (do “Agente da Companhia de Vapo- res – Comércio e Navegação”), não parece ser fortuita. A hidrovia teve, desde o momento da fundação da cidade, um papel determinante para o seu desenvolvi- mento. Neste sentido observemos que, das qualidades visionárias e empresariais que Simões destacou em Antonio José Gonçalves Chaves (o segundo nome que surge na lista da “Galeria dos Fundadores”), encontra-se justamente esta: Dentre os empreendimentos de maior alcance em que se envolveu, destaca-se o trabalho que com Domingos José de Almeida iniciou para preparar a abertura da barra do S. Gonçalo (...); trabalho de previsão, esse, de tão fecundo resultado, e que só quarenta e quatro anos mais tarde devia ser executado (no 1, p. 9). Ele ressalta, é importante notar, que foi o filho de Gonçalves Chaves, Antonio (cujos traços biográficos surgem imediatamente após o nome do pai), que, nasci- do em Pelotas em 1813, “organizou a Companhia da Desobstrução da Foz do S. Gonçalo (...) realizada em fevereiro de 1876, data (dia 11) em que transpuseram a barra do S. Gonçalo – pela vez primeira – navios de alto bordo” (idem, p. 9 e 10). Mas se a ordem dos anúncios pode ser objeto de reflexão, a diversidade dos mesmos é ainda mais interessante. O biógrafo Carlos Reverbel, quando tomou contato com o repertório de anúncios, destacou: “Chama a atenção, por exemplo, o número de firmas dedicadas à industrialização de fumo. Era considerável, também, o contingente de empresas locais empenhadas na produção de medicamentos. A indústria cervejeira igualmente figurava 40 com destaque no parque industrial da cidade” (Reverbel, C. Op. cit., p. 78). Impressionam também, a nosso ver, os anúncios de armazéns, confeitarias, livrarias, lojas de roupas e de fazendas, de louças, vidros e cutelaria; as pro- pagandas de hotel, bazar musical, floricultura e perfumaria; as fábricas (de preparo de massas e moagem de café, de carros de época, de sabão e velas, de móveis, de fumos e cigarros, de malas, de cerveja, de calçados e tecidos); as casas de importação de produtos (mercadorias da França, Alemanha, In- glaterra, China, Japão), ou daquelas cujos estabelecimentos encontram-se em cidades do exterior (Paris, Hamburgo, Buenos Aires) ou espalhadas pelo país (São Paulo, Rio de Janeiro, Pará) e também no próprio estado (Porto Alegre, Bagé, Rio Grande, Santa Maria, Dom Pedrito, Alegrete). Destacam-se, ainda, os bancos, companhias de seguro e profissionais liberais dos ramos imobiliário, odontológico, advocatício. Mas caberá ao leitor, por certo, es- miuçar a riqueza de cada um destes anúncios. Por fim, se destacamos o primeiro anúncio apresentado por Simões na Revista, é também importante prestarmos atenção ao último. Trata-se de uma propagan- da que começa a ter destaque já no segundo número da Revista: a “Sociedade Rio-grandense protetora dos animais”. Criada em 25 de maio de 1911, seu pri- meiro presidente é João Simões Lopes Neto (cf. Reverbel, C. Op. cit., p. 196), o escritor que concebe uma frase impregnada de reflexão filosófica para compor o anúncio da Sociedade: Srs. Auxiliai a propaganda contra a crueldade: sem justiça para os animais o civilizado nivela-se ao selvagem Quando pensamos no teor deste anúncio e na atualidade da proposta de uma Sociedade Protetora dos Animais em Pelotas, percebemos o quão lamentável é o fato da Revista não ter sido reeditada nos últimos cem anos. Sobre a primeira charqueada e o primeiro charqueador Talvez nenhuma outra informação constante na Revista do 1º Centenário tenha causado tanta polêmica, nos últimos anos, quanto a informação que Simões Lopes Neto transmitiu para a posteridade de que caberia a José Pinto Martins, natural do Ceará (...) a primazia na fundação (...) da cidade de Pelotas. Em 1780 estabeleceu uma xarqueada sobre a margem direita e a cerca de uma légua da foz do rio das Pelotas (...). Do estabelecimento de José Pinto Martins, irradiou pois, sem constes- tação, a fundação (no 1, p. 7). Em primeiro lugar, é preciso atentar para o seguinte fato: João Simões Lopes Neto, desde a página inicial da Revista, ao abrir a seção “A fundação de Pelo- tas”, justificou em epígrafe:As linhas que se vão ler não [se] impõem como afirmativa intangível: representam, antes, concurso para trabalho escoimado (Idem, p. 03). 41 Do mesmo modo, ao iniciar a “Galeria dos Fundadores”, ele escreve em nota de rodapé: “A ausência do arquivo da Igreja Matriz no bispado, em Porto Alegre, muito dificulta certa ordem de verificações” (Idem). Mas, se no primeiro mo- mento em que tratou de Pinto Martins ele era enfático em sua informação, que parecia, então, ter sido retirada de uma fonte direta, já no segundo número da Revista existe uma oscilação no modo como ele trata o assunto: “Sabe-se que em 1780 (...), numa parte dos terrenos de M. Carvalho de Souza (arroio Pelotas) fundou José Pinto Martins, vindo do Ceará, uma charqueada” (n 2, p. 4). Ora, o “Sabe-se”, aqui, indica que Simões não estava diante de um documento sólido para afirmar que Pinto Martins fundou a primeira charqueada em Pelotas no ano de 1780. Na verdade, logo a seguir, no mesmo número da Revista, ele nos fornece a (única) pista de onde teria retirado tal informação: Quando, em 1835, na Assembleia Provincial, tratou-se da elevação da Vila de S. Francisco de Paula à categoria de cidade, foram-lhe propos- tos diversos nomes. Domingos José de Almeida defendendo o de – Pelo- tas – argumentava por esta forma: “que o nome proposto memorava o fato histórico que aglomerara com a rapidez do raio a gente e a riqueza da localidade, pois fora no arroio Pelotas que, em fins do século passado José Pinto Martins, vindo do Ceará, estabelecera uma charqueada e... atraindo a população... que aí começou a fixar-se, espalhando-se depois até o sítio onde mais tarde foi criada a freguesia” (no 2, p. 7). Domingos José de Almeida, como sabemos, era contemporâneo de Pinto Mar- tins. Todavia, ele precisa a data exata de fundação da charqueada (“fins do sé- culo passado”), e oscilação de Simões indica que a informação sobre a fundação em 1780 carece de documentos. Que Simões estava certo de que Pinto Martins teria sido aquele que mais contribuiu para o desenvolvimento da indústria sala- deiril no Rio Grande do Sul, sobre isto não há dúvida. Pelotas, é certo, teve um papel extremamente importante no desenvolvimento desta indústria, pois, tal como observa o próprio autor, foi de “quarenta e cinco milhões o número de rezes abatidas nas xarqueadas de Pelotas” (no 3, p. 46). João Simões Lopes Neto, como buscamos mostrar, tinha ciência de não ser his- toriador. Ademais, ele insiste nisto quando, novamente, na abertura do terceiro número da Revista, ao tratar da abordagem histórica de outros municípios, escreve, indicando seu método de trabalho: Inseriremos, não o histórico, mas apenas – notas – referentes aos ditos municípios (...). Tais notas dispersas, são apenas linhas de subsídio, que não dissertação histórica (no 3, p. 33). É, por fim, nosso intelectual quem lamenta, nos últimos dois números, o fato de não ter tido acesso a muitos documentos que poderiam ter contribuido para um trabalho histórico mais exaustivo: “Parte valiosa de informações não nos foi respondida, apesar de reiterada solicitação, de forma que nosso inquérito sobre a vida local – antiga – ressentir-se-á de lacunas: para suprí-las as empregamos os nossos melhores esforços” (nos 7 e 8, p. 97). *** 42 A nosso ver, as contribuições documentais mais significativas que surgiram nos últimos anos sobre esse tema (ou seja, aqueles que fizeram jus ao pedido de Simões de realizar um “trabalho escoimado”) são duas: a investigação de Paulo Xavier, em artigo publicado no Jornal Correio do Povo (datado de 11 de de- zembro de 1971), que mostrou que José Pinto Martins não era cearense, mas sim português; bem como as teses do livro Desfazendo mitos: notas à história do continente de São Pedro, de A. F. Monquelat e V. Marcolla, publicado no presente ano de 2012, onde são defendidas as seguintes teses: a) João Cardoso da Silva é o primeiro a instituir estabelecimento de indústria saladeiril no Continente; b) O rio Piratini (e, portanto, Arroio Grande, e não Pelotas) é o berço da indústria saladeiril; c) O “processo inicial de ocupação dos campos denominados ‘das Pe- lotas’ não foi obra fortuita ou tão pouco de um único empreendimen- to: a charqueada de Pinto Martins’”. Pelo contrário: Pelotas, nos seus primórdios “é consequência do agro-pastoreio”; d) Devido aos documentos até agora encontrados, José Pinto Martins somente partiu do Ceará para estabelecer-se por aqui “nos anos 90 do século XVIII”. Além dos pesquisadores acima citados, é também o historiador Mário Osório Magalhães quem afirma, em texto publicado recentemente numa prestigiosa revista do estado do Rio Grande do Sul, cuja edição presta “homenagem aos 200 anos da cidade de Pelotas”: (...) a verdade é que se desconhece inteiramente o exato instante em que José Pinto Martins aportou por estas plagas; tampouco se sabe o momento preciso em que adquiriu o imóvel, o estabelecimento em que iria implantar sua indústria. (Magalhães, M. “Sobre o bicentenário de Pelotas”. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, no 146, 2012, p. 120). SOBRE A PRESENTE EDIÇÃO Visto que a Revista do 1º Centenário de Pelotas é capaz de nos colocar na atmosfera econômica e cultural em que vivia a cidade há cem anos, fizemos questão de trazer para o leitor, no primeiro volume do Almanaque do Bicente- nário de Pelotas, um conjunto de fotografias e imagens da cidade anteriores ao término do ano de 1912. Por certo não é uma reconstituição exaustiva (e talvez até mesmo eivada de algum erro cronológico), mas uma tentativa de reunir e disponibilizar para um público mais amplo imagens que somente constam, até o presente momento, em publicações especializadas, de modo a fornecermos uma impressão do que a cidade foi e do ambiente sobre o qual João Simões Lopes Neto procurou se debruçar. 43 No entorno do fac-símile da Revista encontram-se, criteriosamente posicio- nados, os textos dos pesquisadores Luís Borges e Adão Monquelat. A escolha justifica-se pelo seguinte: o primeiro é um dos investigadores pelotenses mais entusiastas no trato da obra de Simões, dedicando-se ao autor há mais de dez anos (em 2001 publicou, em parceria com Agemir Bavaresco, História, resis- tência e projeto em João Simões Lopes Neto, que recebeu, no ano seguinte, na categoria de ensaio, o Prêmio Açorianos de Literatura; bem como autor de Trocando orelhas. Ensaios de crítica, pesquisa e hermenêutica lopesnetina, de 2003; dentre outras). Ademais, ele aporta um texto que visa penetrar em determinados aspectos da Revista que ocupa o núcleo da presente edição. O se- gundo pesquisador, Adão Monquelat, foi convidado a comparecer aqui por duas razões: em primeiro lugar por ser, certamente, um daqueles que mais insuflou a retomada das investigações sobre Simões na cidade, bem como por ter colabora- do decisivamente para o tombamento do imóvel e a fundação da, hoje, Casa de Cultura João Simões Lopes Neto. Neste sentido, basta lembrar de seu artigo publi- cado nos anos noventa, precisamente intitulado “Tributo a Simões Lopes Neto”, no qual, após dizer que o “levantamento, feito por nós, da produção literária de Simões Lopes no período de 1897 a 1907”, desfere: “Podemos afirmar com abso- luta convicção que, Simões Lopes escreveu os trabalhos acima em sua residência da Dom Pedro II” (Diário Popular, 10/06/1995). Em segundo lugar pelo fato de Monquelat vir apresentar uma nova tese: a de que o “João Cardoso”, do conto de João Simões Lopes Neto, é o mesmo indivíduo que teria instituido o primeiro estabelecimento saladeiril nas margens do Rio Piratini, no ano de 1780. Como, então, João Cardoso foi parar há quilômetros do antigo forte de São Gonçalo (onde estava sua primitiva charqueada), e estabelecer-se, ainda nas margens do rio quilômetros acima, é algo que fica reservado para o leitor do texto. Trata-se, por certo, de uma justa homenagem aos cem anos do conto O mate do João Cardoso, publicado, comovimos, no jornal Diário Popular de abril de 1912. A idealização do Almanaque do Bicentenário de Pelotas (que surgiu no final de 2010) e o projeto que (elaborado em 2011) foi aprovado e financiado pelo Procultura/RS (no ano de 2012), é de autoria de Duda e Fernando Keiber, irmãos que integram a Gaia Cultura & Arte. Já a seleção das imagens foi realizada em parceria com Guilherme Pinto de Almeida, este promissor talento que, para nos- sa surpresa e contentamento, trouxe a público, em maio de 2012, uma edição eletrônica da Revista do 1º Centenário de Pelotas – gesto inédito até então. O projeto gráfico e a edição das imagens são assinados pela Nativu Design, com toda a dedicação e empenho de Valder Valeirão. Agradecemos especialmente à Secretaria de Cultura do Estado do Rio Grande do Sul e à empresa Josapar, bem como a todos aqueles que, de forma direta ou indireta, contribuíram com a presente edição. Ao centenário da Revista. Ao bicentenário de Pelotas. 44 45 46 32 33 34 35 47 32. Rua Gal. Neto, quase esquina Félix da Cunha. Clube Comercial 33. Rua Pe. Anchieta, quase esquina Gal. Neto. Clube Comercial 34. Rua Gal. Neto, quase esquina Félix da Cunha. Clube Comercial 35. Rua Gal. Neto, esquina Félix da Cunha. Clube Comercial. Postal 36. Rua Sete de Setembro, esquina Pe. Anchieta. [Antigo depósito de Oliveira Coelho & Cia] 36 48 37 38 39 40 49 37. Praça Cel. Pedro Osorio. Bibliotheca Pública Pelotense [Edifício original] 38. Bibliotheca Pública Pelotense. [Edifício original. Sala de Leitura]. Postal 39. Praça Cel. Pedro Osorio. Bibliotheca Pública Pelotense. [Edifício original]. Postal 40. Praça Cel. Pedro Osorio. À esquerda, os casarões nos 8, 6 e 2 41. Praça Cel. Pedro Osório, próximo à Rua Barão de Butuí 41 50 51 52 53 42. Praça Cel. Pedro Osorio, esquina Rua Barão de Butuí [Antigo casarão. Destruído] 43. Praça Cel. Pedro Osório, próximo à Rua Barão de Butuí [à esquerda, o casarão destruído]. Postal 44. Praça Cel. Pedro Osório [à esquerda, antigo sobrado. Destruído, restando somente parte da fachada]. Postal 42 43 44 54 45 46 47 48 55 49 50 51 52 45. Praça Cel. Pedro Osório, esquina Rua Princesa Isabel [Antigo casarão. Destruído]. Postado em 1906 46. Praça Cel Pedro Osório. Alameda. Ao fundo, casarões nos 8, 6 e 2 47. Praça Cel. Pedro Osório, desde ângulo próximo à Rua Lobo da Costa 48. Praça Cel. Pedro Osório, vista da confluência das Ruas Félix da Cunha e Princesa Isabel 49. Praça Cel. Pedro Osório. Alameda. [À esquerda, a Gruta; ao fundo, a torre do Mercado Público]. Postal 50. Praça Cel. Pedro Osorio. Lago. Postal 51. Praça Cel. Pedro Osorio. Fonte das Nereidas. Postal 52. Praça Cel. Pedro Osorio. [Antigo quiosque, visto do ângulo da Prefeitura Municipal]. Postal “Rareava o movimento que minutos antes transbordava pela Praça da República. Já se viam poucos fregueses nos Cafés. (....) Da torre do mercado, a qual imita, como um grande compasso aberto, a torre Eiffel, vinham as badaladas compassadas, solenes, graves das últimas horas da madrugada.” Jorge Salis Goulart. A vertigem, 1925 58 53 54 59 56 57 53. Praça Cel. Pedro Osorio. Quarteirão entre as Ruas Pe. Anchieta e Félix da Cunha. Aquarela. Pineau, 1883 54. Praça Cel. Pedro Osório, esquina Rua Pe. Anchieta. Clube Caixeiral [em construção]. Postal 55. Clube Caixeiral. Postal 56. Praça Cel. Pedro Osorio. Quarteirão entre as Ruas Pe. Anchieta e Félix da Cunha. Postal 57. Praça Cel. Pedro Osorio, desde a Rua Princesa Isabel. [Ao fundo, antigo sobrado. Destruído]. Postal 55 60 58 59 60 61 61 62 63 64 65 58. Praça Cel. Pedro Osorio. Prefeitura Municipal e Bibliotheca Pública Pelotense. Aquarela. Pineau, 1883 59. Prefeitura Municipal e Bibliotheca Pública Pelotense (em obras) 60. Prefeitura Municipal 61. Prefeitura Municipal 62. Prefeitura Municipal. Ao fundo, o antigo Liceu. Postal 63. Prefeitura Municipal e Bibliotheca Pública Pelotense. Postal 64. Praça 7 de Julho. Antigo Liceu 65. Antigo Liceu. [À esquerda, prédio anexo com telhado original] 62 66 67 68 63 69 70 66. Largo de Portugal. Estação Ferroviária. [Ângulo do antigo leito do Arroio Santa Bárbara] 67. Estação Ferroviária 68. Estação Ferroviária. Postal 69. Estação Ferroviária. Postal 70. Estação Ferroviária. Vista dos fundos “Em madrugada serena e límpida partiram em uma das diligências que da campanha conduzem passageiros a Pelotas (...). Chegados os nubentes a Pelotas tomaram passagem no dia seguinte para o Rio Grande e d’ali para a capital.” Francisco de Paula Pires. Quadros Horripilantes, 1883, p. 54 66 67 REVISTA DO 1o CENTENÁRIO DE PELOTAS: Uma visão retrospectiva e prospectiva Luís Borges* A obra de Simões Lopes foi escrita em uma outra época, com uma outra metodologia e outros recursos. De qualquer forma, deixou-nos [...] a primeira história impressa da cidade de Pelotas. (A.F. Monquelat) Salve! Povo Pelotense, De heróis filho, Povo ardente Fita os olhos no futuro, Que se mostra sorridente!... (Estrofe do Hino do Centenário) Esta edição Depois que a Revista do 1º Centenário de Pelotas apareceu entre outubro de 1911 e maio de 1912 ela não mais foi reeditada. Podem-se elencar para isso vários motivos. Um deles, com certeza, é o grande número de páginas e de ilustrações que tornam a impressão custosa. Outro, foi a limitada circulação, provavelmente pela pequena tiragem, que fez com que a publicação se tornasse rara e, por isso, quase desconhecida. Se podemos considerar estes alguns dos principais fatores que colocaram a Re- vista no ostracismo, há, por outro lado, uma razão positiva que também colabo- rou para que ela ficasse por tanto tempo olvidada: o crescente reconhecimento de Simões Lopes Neto como ficcionista. O historiador Mario Osorio Magalhães sintetiza a opinião geral: J. Simões Lopes Neto (1865-1916), natural de Pelotas, neto de um charqueador-visconde e filho de estancieiro, é considerado um dos * Professor de Filosofia, Teologia e Literatura. Pesquisador do CEIHE/UFPEL e NEL/IFSUL. 70 mais talentosos escritores brasileiros de todas as épocas. Sua obra prin- cipal, já traduzida para o italiano e o espanhol, com diversas edições brasileiras, resume-se a três livros: Contos Gauchescos (1912), Lendas do Sul (1913) e Casos do Romualdo, este último publicado postuma- mente. São todos de ficção, do gênero contos ou histórias curtas1. Tal concepção, certamente, contribuiu para que suas outras facetas, como a de historiador, ficassem obscurecidas. Magalhães, adiante, acrescenta: Entre as muitas facetas do intelectual Simões Lopes Neto, houve a de historiador, e no que se refere a este aspecto já se editou, postuma- mente, um volume de sua autoria: Terra Gaúcha, sobre a história do Rio Grande do Sul, que ele havia escrito em dois tomos – o segundo, porém, parece irremediavelmente perdido. Há outros textos seus sobre história, publicados em anais, almanaques e revistas, quase todos inédi- tos em livro. Referem-se ou à história do Rio Grande como um todo, ou à história de Pelotas e de municípios da Zona Sul de modo particular2. Evidentemente, o fato de novas pesquisas sobre a história do município terem surgido por intermédio de historiadores como Alberto Coelho da Cunha3 e Fer- nando Osório4, sem falar dos hodiernos trabalhos historiográficos, tais como os de Mario Osorio Magalhães5, Ângelo Pires Moreira6, Heloísa Assumpção Nasci- mento7, Eduardo Arriada8 e Adão Monquelat9, entre outros, fez com que – em- bora pioneiro e importante – o trabalho de nosso Escritor tivesse, naturalmen- te, no decorrer do tempo, mais interesse histórico que historiográfico10. Deste modo, a presente edição assumiu dois critérios, a saber: privilegiar um público de não-especialistas, sem descurar do rigor, e fazer acessível um raro e precioso documento historiográfico da cidade de Pelotas, produzido por seu escritor maior, João Simões Lopes Neto.Portanto, buscou-se um difícil equilíbrio, entre não ceder a simplificações, quer nas explicações e explicitações referentes ao próprio texto e contexto (intra e extratextual), e não sobrecarregar o leitor de informações, truncando a leitura ao invés de facilitá-la. Não há sentido, pois, numa edição fac-similar, rechear o texto de notas eruditas a ponto de produzir um metatexto. Ora, o objetivo do fac-símile é fazer o leitor ter contato com um texto de época, cuja legibilidade ao não-especialista implica numa compreensão mais geral, sem necessidade de descer a minudências, cuja utilidade para tal leitor é quase nula. O esforço hercúleo de uma atualização ou corrigenda seria, nesse caso, interferência indevida e, quiçá, inócua. Deve-se levar em conside- ração também que houve uma reedição parcial, organizada por Mario Osorio Maga- lhães, em 1994. O citado organizador realizou uma seleção de textos da Revista do 1º Centenário, deixando de fora a transcrição de documentos, relações de nomes, propagandas e fotos em função do custo11. O critério de seleção, conforme opinião expressa pelo organizador, foi o de reunir “os mais significativos [textos] de toda produção historiográfica simoniana”12. O livro consta de 11 capítulos, em que se respeitou os títulos adotados pelo Autor, embora não na mesma ordem. O historiador Mario Osorio Magalhães, nesse meritório trabalho, adicionou às notas do Autor as suas, muito esclarecedoras. Esse paratexto, conforme se disse, 1 MAGALHÃES, Mario Osorio. “Apresentação”. In: LOPES NETO, João Simões. História de Pelotas. Pelotas: Armazém Literário, 1994, p. 5. 2 Idem, p. 7. 3 Para mais detalhes vide BORGES, Luís. Breviário da prosa romanesca em Pelotas. Vol. 1. Subsídios para uma história literária. Século XIX. Síntese histórica e crítica para uso escolar. Pelotas: JC Alfar- rábios, 2007, p. 127-145. 4 OSORIO, Fernando. A cidade de Pelotas. 3ª edição. Pelotas: Armazém Literário, 1997-1998. 2 vol. 5 MAGALHÃES, Mario Osorio. Opulência e cultura na província de São Pedro do Rio Grande do Sul: um estudo sobre Pelotas (1860-1890). Pelotas: UFPEL, 1993. 6 MOREIRA, Ângelo Pires. Pelotas na tarca do tempo. 2 vol. Pelotas; s/e, 1988-1989. 7 NASCIMENTO, Heloísa Assumpção. Nossa cidade era assim. Pelotas: Livraria Mundial, 1989-1999. 3 vol. 8 ARRIADA, Eduardo. Pelotas, gênese e desenvolvi- mento urbano (1780-1835). Pelotas: Armazém Literário, 1994. 9 MONQUELAT, A. F.; MARCOLLA, V. O processo de urbanização de Pelotas e a fazenda do arroio Moreira. Pelotas: UFPEL, 2010; e Desfazendo mitos. Pelotas: Livraria Mundial, 2012. 10 São bastante complexas as relações entre história, teoria da história e historiografia. Para mais detalhes sobre esse assunto vide MALERBA, Jurandir (Org.). A história escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. 11 Idem, p. 7. 12 Idem. 71 exigiria um aparato crítico destoante dos fins precípuos desta edição, isto é, possi- bilitar ao leitor o contato direto com o texto, tal como saiu da lavra do grande fic- cionista pelotense – daí uma edição fac-similada –, reduzidas as notas ao essencial. Para o leitor que está interessado na Revista do 1º Centenário de Pelotas como fonte da história da cidade e não exatamente na produção simoniana, recomen- da-se a História de Pelotas, título que Mario Osorio Magalhães concedeu a sua seleção de textos, com minuciosas notas, embora algumas já vencidas por novas investigações. Isto em nada desabona a publicação, apenas reforça a diferença que existe entre esta edição fac-similar e outra de orientação crítica. Assim, optou-se por um texto introdutório mais longo, em que se procura detalhar elementos que possibilitem relacionar e analisar de maneira retrospectiva, isto é, histórica, e prospectiva, a fim de ressaltar a importância cidadã da Revista do 1º Centenário e seu significado para a atualidade. Sob esta ótica, os objetivos principais desta publicação são devolver à circulação um importante documen- to para a história de Pelotas e região, trazer à tona uma faceta praticamente desconhecida do criador de Blau Nunes e revitalizar o sonho do Capitão de dar perenidade às comemorações de aniversário da cidade. Começando pelo começo A Revista do 1º Centenário de Pelotas, certamente, foi o mais importante empre- endimento historiográfico de João Simões Lopes Neto. Não o único, contudo, pois ele concebeu vários outros textos e projetos de cunho histórico. Foi talvez o mais bem-sucedido. Entende-se assim porque seus demais trabalhos históricos ficaram inéditos13 ou obtiveram pouca ou desfavorável recepção14. Dois outros aspectos cor- roboram a importância da Revista: à exceção de A cidade de Pelotas – apontamen- tos para alguma monografia para o seu centenário15, os textos que nela aparecem se constituem na primeira história impressa da cidade. O outro motivo é que, a despeito da raridade da publicação, aparece citada nas referências bibliográficas até os dias de hoje em trabalhos acadêmicos sobre a história local ou a ela relacionada16. Entre seus outros textos e projetos de cunho historiográfico, o mais conhecido é Terra Gaúcha (quiçá, a obra que o escritor mais estimava)17, editada postuma- mente, em 1955, pela editora Sulina, de Porto Alegre. Se compararmos o destino de Terra Gaúcha com o da Revista do 1º Centenário, esta última ainda leva a vantagem de estar completa, uma vez que o primeiro trabalho chegou até nós mutilado, pois o 2º volume se extraviou18. Cabe aqui um pequeno esclarecimento. Há dois trabalhos assim denominados. O biógrafo Carlos Diniz, a fim de diferen- ciar ambas as obras, chama ao livro de leituras escolares (com mais de duzentas páginas), composto para o ensino primário, de “verdadeiro Terra Gaúcha”19. O outro é uma história elementar do Rio Grande do Sul, a que nos referimos acima. Como se pode observar na primeira versão da conferência Educação Cívica, proferida em 17 de julho de 1904, na Bibliotheca Pública Pelotense, em que anuncia a apresentação de seu livro Terra Gaúcha (que Diniz denomina “o ver- dadeiro”), o Velho Capitão explicita seus objetivos. Quer um livro 13 LOPES NETO, João Simões. Glória Farroupilha (manuscrito); Arquivo documental ilustrado da Revolução Federalista no Rio Grande do Sul (manuscrito) e o volume 2 de Terra Gaúcha, que se perdeu. 14 Spalding em sua “Introdução” à Terra Gaúcha afirmou estar o autor “numa verdadeira nebulosa”, [...] “e por isso, os erros que cometeu, as interpre- tações infiéis e as conclusões pouco exatas”. Os debates sobre esses “equívocos” vão aparecer mais claramente no ano seguinte, 1956, na guerra que se tornou a discussão sobre a questão do monumento a Sepé Tiaraju. Para uma discussão sobre a polêmi- ca do monumento vide TORRES, Luiz Henrique. Historiografia sul-rio-grandenese: o lugar das Missões Jesuítico-Guaranis na formação histórica do Rio Grande do Sul (1819-1975). Porto Alegre: PUCRS, 1997. Tese de doutorado em História. 15 Esse trabalho foi publicado nos Anais da Biblio- theca Pública Pelotense, ano I, 1904, vol. I. Pelotas: Livraria Comercial, 1905, p. 47-59. 16 Entre os vários exemplos possíveis vide MOLLER, Cláudia Daiane Garcia. Trabalho e correção de mul- heres negras na cadeia da cidade de Rio Grande (1864-1875). X Encontro Estadual de História. O Brasil ao Sul: cruzando fronteiras entre o regional e o nacional. Santa Maria, 26 a 30 de julho de 2010. Disponível em <html//:www.eeh2010-rs.org.br/ resouces/anais/9/1279413800_ARQUIVO_texto- completo.pdf> Acesso: 13/03/2012. 17 REVERBEL, Carlos. Um Capitão da Guarda Nacional. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1981, p.77. 18 Para mais detalhes vide REVERBEL, Carlos. Um Capitão da Guarda Nacional. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1981, p. 231-237; p. 268-271. 19 Para mais detalhes vide DINIZ, Carlos Francisco Sica. João Simões Lopes Neto, uma biografia. Porto Alegre: AGE, 2003, p. 125-137. Foi anun- ciada a publicação dos cadernos do “verdadeiro Terra Gaúcha” para setembrode 2012. 72 em que se concretizasse a tradição, a história, o ensinamento cívico e as aspirações pátrias, que eu dedicaria, mais vibrante hausto da mi- nha pobre vida, à terra rio-grandense, mão de raça forte, túmulo de ossadas venerandas, berço de incomedido patriotismo. Um livro que vivesse nos ranchos das margens do Uruguai e no palácio das plagas do oceano; e que das suas páginas simples e sinceras refulgisse nítida e vivaz, amorosa, exemplificadora e saudosa, a plaga dos pampas, o berço dos farrapos, a Terra Gaúcha...!20 Sobre esse trabalho didático dedicado às crianças, assim manifestou-se Manoelito de Ornellas: [...] no trabalho de feição elementar, que foi o do pequeno manual de iniciação na História, nos hábitos, nos costumes e tradições gauches- cas, João Simões Lopes deixou muito daquela simplicidade humana que ele soube comunicar às páginas vivas dos “Contos Gauchescos”. [...] é possível que o autor de “Lendas do Sul” houvesse pensado no imenso benefício que representaria à formação moral e espiritual das novas ge- rações do Rio Grande, esse pequeno livro de leitura que lhes falaria dos fatos históricos nacionais na linguagem acessível e própria da terra.21 Acredito não ser necessário multiplicar citações. Fica evidente a importância da “historicidade” dentro da visão de mundo simoniana, entendendo-se por isso algo mais amplo que a produção historiográfica em si mesma. A questão histó- rica também contamina o plano estilístico. Conforme afirma Walter Spalding, Simões Lopes Neto não modifica sua arte de escrever, no que tange ao registro linguístico e à simplicidade, mesmo redigindo textos não ficcionais: Neste TERRA GAÚCHA, como nos “Contos Gauchescos”, nos “Casos do Romualdo”, está João Simões Lopes Neto de corpo inteiro, com todas as qualidades e vícios estilísticos, com todas as suas virtudes de escritor regionalista, ardentemente apaixonado por sua terra e sua gente.22 Seguindo essa trilha, é necessário percorrer duas picadas que se apresentam. A primeira delas se refere ao lugar do Periódico dentro do programa das celebrações do aniversário da Cidade, em 1912. A outra estrada, ainda vicinal, é o lugar que os textos históricos ocupam no conjunto da obra simoniana e como podem servir de instrumento hermenêutico capaz de iluminar sua alta literatura. Um terceiro aspecto, a respeito do qual nos deteremos muito ligeiramente, é qual o papel que a Revista exerceu ou exerce na historiografia referente à história municipal. As celebrações do aniversário da Cidade, em 1912 Quase uma década antes o Capitão já estava preocupado com as comemorações do aniversário de 100 anos de Pelotas, tanto que, em 1905, fez publicar um texto a que subintitulou “Apontamentos para alguma monografia para o seu centenário”. Depois de uma reunião, em 09/04/1910, na Bibliotheca Pública, que aprovou a “Semana Centenária”, o Conselho Municipal (equivalente ao que seria hoje a Câmara de Vereadores) autorizou o intendente José Gonçalves 20 LOPES NETO, J. S. Educação Cívica. Terra Gaúcha (apresentação de um livro). Anais da Biblioteca Pública Pelotense. Vol. 1. Pelotas: Livraria Comer- cial, 1905, p. 58-59. Os grifos são meus. 21 ORNELLAS, Manoelito de. “Prefácio”. In: LOPES NETO, João Simões. Terra gaúcha. Porto Alegre: Sulina, 1955, p. 7. Grifos nossos. 22 SPALDING, Walter. “Introdução”. In: LOPES NETO, João Simões. Terra gaúcha. Porto Alegre: Sulina, 1955, p. 9. 73 Barbosa a destinar a quantia de cinco contos de réis para viabilizar o evento, que ocorreu entre os dias 7 e 15 de julho de 1912. Numa outra reunião na Bi- bliotheca Pública, em 09/08/1911, Simões Lopes Neto apresentou um longo e detalhado programa para os festejos do 1º centenário. Para essas celebrações foi que o Capitão criou a Revista. As comemorações se deram sob o auspício da Bibliotheca Pública Pelotense, de cuja diretoria Simões Lopes Neto era 1º secretário. A programação, para julho de 1912, foi bastante extensa e variada. Divulgada no primeiro número da Revista (outubro de 1911), constava, entre outras ativi- dades, do seguinte: instalação de um Congresso Comercial; toque de apitos das charqueadas, navios e das fábricas no final do expediente; salvas de tiro; desfile de bandas pelas ruas da cidade; visitas aos cemitérios rurais; missas e procissões, atos e sessões solenes na Bibliotheca Pública; corais de estudantes executando hinos (Hino da Independência, Hino da Proclamação da República, Hino Na- cional, Hino do Centenário de Pelotas); partidas de futebol, retretas, concurso de “reclames” luminosos e balões, concursos de beleza para bebês, concurso de tiro; evoluções de ginástica; exercícios do Corpo de Bombeiros; formatura do Tiro Brasileiro e dos Ginásios uniformizados, “horas cívicas”; corridas de cavalo, espetáculo de ópera; uma “merenda dos pretos velhos”, em homenagem aos trabalhadores negros da fundação da cidade, desfiles dos colégios com estandartes, aos quais foi entregue uma medalha comemorativa; espetáculo pirotécnico sobre a margem direita do S. Gonçalo; cavalhadas da União Gaú- cha, matinée em todos os cinemas e outras diversões. Além disso, houve bailes e discursos, muitos discursos... Não bastasse tudo isso, numa nota adicional, se afirma que a comissão da Bibliotheca responsável pelas comemorações poderia ainda acrescentar, se assim entendesse adequado, inaugurar a herma do dr. Miguel Barcellos e de Domingos José de Almeida. Como se vê, o programa era enorme e lotadíssimo. Não sabemos com precisão determinar se chegou a realizar tudo o que foi anunciado, embora possamos afirmar, pelo que já apuramos, que o foi em grande parte. Talvez reconhecendo as dificuldades na execução de tão vasto programa, se advertia, cautelosamente, que, embora tivesse o projeto sido aprovado pela diretoria da Bibliotheca, estaria ainda sujeito a possíveis modificações, as quais seriam divulgadas oportunamente. A Revista do 1º Centenário de Pelotas No número inaugural da Revista Simões Lopes Neto expõe os objetivos da publi- cação. Afirma que, embora existam no estado municípios mais antigos, nenhum deles comemora “seu simbólico estirão histórico”, e que será Pelotas o primeiro a fazê-lo, “solenizando [...] o auspicioso fasto”. Além disso, intentava fazer da Revista o “repositório de tudo quanto importa que, por o merecer, fique consignado como expressão da vitalidade presente, para estima e estímulo dos vindouros, tanto como a geração hodierna bendiz o exemplo que lhe legaram os antepassados”. Pretendia ainda que, em meio aos festejos, recheados de eventos, por assim dizer, “voláteis”, 74 algo de mais permanente e útil se fizesse. Ainda sobre o intuito da publicação, um elemento de clarividência nos soa notável, pois o Capitão já via nos “reclames” uma fonte para a história. O diretor e redator único da Revista alerta o leitor para os anúncios, que devem ser tomados mais como “atestados [...] da capacidade indus- trial-comercial desta época da cidade [...]. O conjunto deles, no futuro dirá o que erramos e o que valíamos; e, mesmo atualmente, provará a potencial econômica municipal, em cotejo frizante com outras da mesma ou maior idade.” Ao lançar a Revista o escritor assinala duas lacunas: uma referente ao indi- ferentismo quanto à data de fundação da cidade, e outra, quanto ao registro de sua história. Simões Lopes Neto tinha condições de escrever uma história de Pelotas, mas não o fez. O autor explicita que, desde o texto divulgado em 1905, ele não pretendia dar a público um trabalho sistemático e acaba- do, preferia dar a lume documentos e dados que possibilitassem a outrem realizar “trabalho escoimado”. A Revista traz os mais diversos aspectos relativos à história de Pelotas: as origens da urbe; uma galeria dos fundadores, na qual figuram José Pinto Martins23 e Mateus Gomes Vianna – o primeiro poeta pelotense24; a desobstrução do São Gonçalo, sendo o Visconde da Graça – avô de nosso escritor – um dos realizadores da obra. A respeitodessa empreitada, afirma Reverbel25 que foi a “obra administrativa mais im- portante para o desenvolvimento de Pelotas no século XIX”. Traz um levantamento sobre a data de fundação das charqueadas; um sumário histórico da imprensa com a data de fundação e o nome do fundador dos jornais, desde 1851 até a Procla- mação da República; aparece também a nomenclatura antiga das ruas; a lista dos integrantes da câmara, da intendência, das juntas e conselhos municipais, desde 1832, com a instalação da vila, até 1912. Além da “galeria dos fundadores”, orga- niza outras duas, a dos “filhos ilustres (em que está incluído Lobo da Costa) e dos “decanos da praça”, na qual figura, entre outras, as famosas Casa Scholberg (surgi- da em 1884), e a fábrica Lang (1864). Além disso, aparecem resenhas históricas dos municípios de São Lourenço, Canguçu, Piratini e Cacimbinhas.26 João Simões Lopes Neto historiador Para uma compreensão mais profunda da condição de historiador do criador de Blau Nunes é necessário que captemos os índices de seu modus politicus. A faceta de historiador de João Simões Lopes Neto manifestou-se antes mesmo de sua obra ficcional. Conforme já se disse, em 1905, nos Anais da Bibliotheca Pública Pelotense fez registrar sua “A cidade de Pelotas, apontamentos para uma mono- grafia sobre seu centenário”27. Considerando a abalizada opinião de seu biógrafo pioneiro, Carlos Reverbel28, o escritor levava muito a sério, talvez até mais que a sua atividade ficcional, a escrita da história. Sua ligação com a investigação histórica fez com que fosse escolhido para integrar a Comissão de História na Academia de Letras do Rio Grande do Sul, entidade em que ingressou em 1910. Quem efetivamente atribuiu a condição de historiador ao escritor pelotense foi o historiador Walter Spalding: 23 Para a discussão a respeito de Pinto Martins vide, em especial, MONQUELAT, A. F.; MARCOLA, V. “Pinto Martins, o mito de um século”, Diário da Manhã, Pelotas, 04/09/2011. 24 Cf. MONQUELAT, A. F.; FONSECA, G. R. Coletânea e notas biográficas de poetas pelotenses. Pelotas, 1985, p. 21-25. Inédito. 25 REVERBEL, Carlos. Um Capitão da Guarda Nacional. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1981, p. 79. 26 Cacimbinhas é hoje o município de Pinheiro Machado. Simões Lopes Neto reagiu contra a mudança de nome, embora politicamente ligado ao Castilhismo e seus herdeiros políticos, no caso, Borges de Medeiros. Cassiano do Nascimento, por exemplo, a quem Simões muito admirava, foi representante da primeira geração republicana. Em 1903, após a morte do “Patriarca” como era chamado Júlio de Castilhos, assumiu a liderança do Partido Republi- cano Rio-grandense (PRR). A repercussão da morte do “Chefe Republicano”, em Pelotas e em todo país, foi enorme, como se pode observar pelos editoriais do Diário Popular, do Correio Mercantil e da Opinião Pública, além do discurso de Frederico Bastos e do vigário Marcolino Maya (vide Homenagem da Brigada Militar ao emérito estadista Rio-Grandense Dr. Júlio Prates de Castilhos, no 30º dia de seu falecimento. Porto Alegre: Globo, 1903, p.174-180). É interessante observar que as relações de amizade e familiares de Simões Lopes Neto estavam, em grande parte, envolvidas com a política castilhista, conforme se pode constatar ao conferir a lista de telegramas de pêsames pela morte de Júlio de Castilhos. Entre os mais chegados estavam: Joaquim Luis Osório (Idem, p. 229), Salles Lopes (Idem, p. 228), dr. Francisco Simões (Idem, p. 230) e até o futuro editor dos Contos Gauchescos, Guilherme Echenique (Idem, p. 230). O próprio Simões Lopes Neto enviou um telegrama com o seguinte teor: “Apresento v. exa. meu profundo pesar extraordinária perda egrégio rio grandense” (Idem, p. 229). Cassiano do Nascimento, a quem, em 1912, Simões escreverá um Elogio Fúnebre, manifestou-se na Câmara dos Deputados solicitando a inserção na ata de um voto de pesar pelo faleci- mento do político gaúcho (Idem, p. 149) e depois proferiu um discurso (Idem, p. 149-150). Alexandre Cassiano do Nascimento foi presidente do Estado do Rio Grande do Sul, (indicado por Júlio de Castilhos), e procurou dar continuidade ao projeto político do cas- tilhismo, sendo fiel executor do programa positivista. Apesar de Simões Lopes Neto estar ligado aos políti- cos herdeiros do castilhismo e, consequentemente, ao senador assassinado, não pode concordar com o autoritarismo do decreto baixado por Nei Costa Lima, intendente provisório. A indignação do escritor pode ser vista no texto que publicou, sem assinatura, no Correio Mercantil, de Pelotas, em 05/11/1915. 27 Anais da Biblioteca Pública Pelotense, ano II, vol. 2, 1905, p. 47-59. 28 REVERBEL, Carlos. Um capitão da Guarda Nacio- nal. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1981, p. 231. 75 Obra de fôlego deveria ser essa “Terra gaúcha” (sic) se não se tivesse perdido o segundo volume do original onde o autor trataria do Rio Grande do Sul desde o advento de Silva Pais à época em que escreveu a obra, ou seja, até mais ou menos 1910. Entretanto, o que ficou, esta primeira parte e a nota preliminar, de- monstram a capacidade imensa de J. Simões Lopes Neto e lhe dão di- reito de figurar entre nossos historiadores do período “pré-histórico”, isto é, do Rio Grande terra de ninguém, às Missões Jesuíticas e pri- meiras incursões portuguesas e ao advento do brigadeiro José da Silva Pais criando o primeiro grande núcleo português na entrada da barra diabólica (sic) – o povoado, hoje cidade do Rio Grande, em volta do Forte Jesus-Maria-José.29 João Simões Lopes Neto foi ou não historiador? A especulação a esse respeito, em abstrato, pouco nos logra em conhecimento. O fato é que ele escreveu e publicou obras de cunho histórico. O que são A cidade de Pelotas (1905), A forca em Pelotas (1917) ou o já citado Terra gaúcha (1955), a Revista do 1° Centenário de Pelotas (1911-1912)? Talvez o mais difícil, para compreendermos a posição de Simões Lopes Neto como historiador, seja o entre lugar30 que sua obra tem gozado perante à crítica, de maneira semelhante aos Sertões (1902), de Euclides da Cunha. Tomemos um exemplo aleatório: Sílvio Júlio, um dos primeiros críticos a fazer a recepção do escritor.31 O crítico, que morou no Rio Grande do Sul enquanto Simões ainda vi- via, sem notícia de tê-lo encontrado pessoalmente, considerou sua obra mais de dialetologista ou folclorista32, ao retratar as lendas – embora, reportando-se aos contos, destaque sua imaginação e vivacidade –, do que de verdadeiro ficcionis- ta, ao estilizar literariamente a tradição oral. Sobre esse aspecto, afirma Arendt: A ficção simoniana é entendida pela crítica como um arquivo em que se encontra depositada a história sul-riograndense, desde os seus pri- mórdios até o começo do século XX, sendo esse o motivo pelo qual o escritor não obteve o reconhecimento literário dos seus livros na época da publicação. O próprio trabalho de recolhimento do material folclóri- co assume, assim, um ar de pesquisa historiográfica.33 Na verdade, a recepção simoniana padeceu desse mal desde os primeiros textos críticos, tais como os de Coelho da Costa (1912)34 e Antônio de Mariz (1913)35, até os atuais, como o de Everton Pereira da Silva (1998)36, uma vez que estes entendem o realismo dos contos e a recolha da tradição popular como um tra- balho quase documentalista, tratando de considerar a escritura simoniana como um repositório fiel da história rio-grandense37. Não resta dúvida quanto às preocupações históricas de João Simões Lopes Neto. Elas atravessam toda sua obra, tanto ficcional quanto não-ficcional. Entre os diversos exemplos possíveis, temos o conto “Duelo de Farrapos”, em que se en- frentam Bento Gonçalves e Onofre Pires, expoentes da Revolução Farroupilha. Textos que integram a parte não literária de sua escritura, tais como “Farroupi- lhas” (1913) ou ainda o “Glória Farroupilha”38, confirmam essa preocupação. 29 SPALDING, Walter. “Introdução”. In: LOPES NETO, João Simões.Terra Gaúcha. Porto Alegre: Sulina, p. 10. 30 Utilizamos essa expressão no sentido em que a usou Leopoldo Bernucci em “Interdiscursividade, rasuras e leituras de Euclides da Cunha”. In: Espaço Aberto, INES, Rio de Janeiro, n. 12, p. 41-55, jul./dez. 2009. 31 Mais detalhes sobre Sílvio Júlio podem ser encon- trados em PETERSEN, Júlio. “Sílvio Júlio e o Rio Grande do Sul”. In: FLORES, Moacyr (Org.). Cultura sul-rio-rio-grandense. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1981, p. 121-144. Para uma discussão profunda sobre o autor vide MEDEIROS, Carlos Túlio. A literatura sul-rio-grandense sob os olhos de Sílvio Júlio de Albuquerque Lima. Porto Alegre: UFRGS, 2007. Dis- sertação de mestrado em Literatura Comparada. 32 JÚLIO, Sílvio. Estudos gauchescos de literatura e folclore. Natal: Clube Internacional de Folclore, 1953, p. 148: “Se sabia Simões Lopes Neto em demasia quaisquer minúcias da prosódia, da semân- tica, do léxico, do folclore dos gaúchos, por que nos não apresentou tanto material num estudo especial- izado? Meter tais farripas, fagulhas, e cacos – nem sempre atraentes – numa página de imaginação, que precisa de fluência, é prejudicial e pedante”. 33 ARENDT, João Cláudio. Histórias de um Bruxo Velho. Caxias do Sul: UCS, 2004, p. 93. 34 COSTA, Januário Coelho da. “Contos Gauchescos”, Diário Popular, Pelotas, 02/11/1912. Edição mais acessível: ANTUNES, Cláudia. A poética do conto de Simões Lopes Neto. O exemplo de “O negro Bonifá- cio”. Porto Alegre: Edipucs, 2003, p. 243-248. 35 MARIZ, Antônio de [pseudônimo do historiador e crítico José Paulo Ribeiro]. “Contos Gauchescos”. In: LOPES NETO, João Simões. Contos gauchescos, Lendas do Sul, Casos do Romualdo. Edição crítica de Lígia Chiappini. Rio de Janeiro/Brasília: Presença/ INL, 1988, p. 353-355. 36 SILVA, Everton Pereira da. Do regional ao universal. Contos gauchescos. Porto Alegre: L&PM, 1998, p. 8-12. 37 BORGES, Luís. “O folclore e a ficção como artifício didático-pedagógico em Simões Lopes Neto”. In: BA- VARESCO, Agemir; BORGES, Luís (Orgs.). Identidades ameríndias. Porto Alegre: EST/Edigal, 2006, p. 14. 38 Glória Farroupilha. Coleção de elementos para subsídio histórico, reproduzido de originais autênticos Pró-Memória de Bento Gonçalves da Silva – Presi- dente da República Rio-Grandense e servente de seu Exército. Publicação comemorativa da inauguração do monumento farroupilha na cidade do Rio Grande. (Manuscrito inédito, Pelotas, 20/09/1909). 76 Considerações Terminais Acredito que João Simões Lopes Neto estava imbuído de uma verdadeira “obsessão historiográfica”. Profundamente influenciado pelo positivismo de Augusto Comte, o pensamento de Spencer e Taine, nas versões de Sílvio Ro- mero, José Veríssimo e Manoel Bomfim, o escritor defendia ardorosamente as idéias de evolução , progresso, ciência, educação e nacionalismo. Deste modo, embora se tenha consagrado pelo alto valor estético de sua literatura, estou convencido de que mesmo esta só poderá ser analisada e compreendida em sua inteireza mediante o estudo de sua obra não ficcional, sobretudo cívico- -pedagógica e historiográfica. A questão da História, de um ou outro jeito, velada ou explícita, perpassa to- dos os gêneros que o Autor cultivou: no Cancioneiro Guasca (1910)40 há uma secção reservada às “poesias históricas”; nas Lendas do Sul (1913) é evidente o motivo histórico na Salamanca do Jarau; nos Contos Gauchescos (1912) exis- tem várias estórias que trazem um fundo histórico, do que é exemplo o conto “Duelo de Farrapos”. O próprio Romualdo, com seus casos inverossímeis, foi inspirado num personagem histórico, conforme declarou Ivete Massot: Eram casos que João Simões cansou de ouvir do próprio Romualdo de Abreu e Silva, cidadão respeitável, amigo íntimo da família, em cujas casas entrava sob olhares respeitosos de todos, pela elegância de por- te, sempre de luvas e cartola. Após a morte deste senhor, João Simões pensou em publicar suas fantásticas narrativas, mas não o fez sem consultar seus descendentes, que lhe deram autorização. Papai – dis- seram suas filhas – seria incapaz de contar suas façanhas em prejuízo de alguém; contava-as inocentemente e talvez seja esta a versão mais certa: convencido de que os amigos estivessem acreditando...41 Por isso, ao retomarmos duas questões principais e profundamente relacionadas – dir-se-ia praticamente inextrincáveis –, quais sejam, de que modo a Revista se insere no sentido que o Autor atribuiu aos festejos dos cem anos de Pelotas, isto é, uma afirmação da cidadania; e de que maneira os textos de cunho histórico se articulam com o conjunto da obra de Simões Lopes Neto, percebe-se que eles só vêm a corroborar a “compulsão historiográfica” do ficcionista de Contos Gauchescos. Talvez ainda não se tenha dito com todas as letras: não a despeito ou à margem, mas inclusive na condição de literato, Simões Lopes Neto era um escritor com aguçado senso político.42 Evidentemente, toda preocupação ideológica necessita localizar-se historica- mente, uma vez que é nesse palco em que se disputa a hegemonia. Daí, pois, advém sua fixação na história, de um lado, como elemento mediativo, e, de outro, como realização concreta, seja na consecução de atividades cívicas ou participando de diversas instituições, seja na produção de conhecimento. A Revista constitui-se numa fonte básica da história local, uma vez que Si- mões Lopes Neto, na condição de historiador, privilegiou alguns documentos e fontes primárias de difícil acesso, do que é exemplo o manuscrito de José 39 LOPES NETO, J. S. “Uma trindade científica: La- marck, Haeckel, Darwin”. Série de artigos no A Opinião Pública, de Pelotas, publicada em janeiro de 1913. 40 Para mais detalhes vide BORGES, Luís. “Uma teoria sobre o Cancioneiro Guasca”. In: Mundo das Letras, Periódico da Academia Pelotense de Letras, ano 10, p. 4, dez. 2010. 41 MASSOT, Ivete. Simões Lopes Neto na intimidade. Porto Alegre: Bels/Sec, 1974, p. 144. Para mais det- alhes vide BORGES, Luís. Trocando orelhas. Ensaios de crítica, pesquisa e hermenêutica lopesnetina. Porto Alegre: Edigal, p. 136-146, 2003. 42 Um de seus textos menos conhecidos é A lei de expulsão dos estrangeiros, aparecido no A Opinião Pública, Pelotas, em 31/12/1912, no qual o aspecto político fica evidente. 43 Os últimos dois números da Revista saíram acop- lados, correspondendo aos meses de abril e maio de 1912. Nesse fascículo derradeiro, que circulou depois dos eventos da Semana Centenária, Simões Lopes Neto justifica o atraso em função de ter sido acometido de “grave moléstia e de demorada convalescença”. 44 Carlos Reverbel, há 31 anos, já considerava rarís- sima a coleção da Revista do 1º Centenário de Pelotas (Cf. Um Capitão da Guarda Nacional. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1981, p. 78). 77 Vieira Pimenta, de 1856. O periódico mensal, certamente, circulou em pequena tiragem e, para o fim, saiu com muita dificuldade43, tornando-se uma raridade bibliográfica44, o que ainda mais justifica a presente edição. Nessa medida, ao nos debruçarmos sobre a Revista, superando a mera curiosidade pelo pitoresco de sua obra “menor” ou “secundária” ou o interesse por uma fonte clássica da história de Pelotas, escrita por um literato da estatura de Simões Lopes Neto, podemos vê-la não mais como um elemento isolado dentro de sua obra, porém, como valioso auxílio para o desvelamento das raízes político-filosóficas que ins- tigaram o gorado historiador/educador. De qualquer forma, na Revista se abe- beraram os historiadores fundamentais da historiografia municipal, quais sejam Fernando Osorio e Alberto Coelho da Cunha e, mesmo atualmente, repetimos, ela continua a aparecer nas referências de trabalhos acadêmicos. Finalmente, vê-se que, após cem anos, a Revista continua em pauta, pois o pes- quisador A. F. Monquelat, ao proceder seu trabalho de revisão da história de Pe- lotas45, divulgada pela imprensa em longa coleção de artigos, mais tarde coligidos
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