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Política contemporânea

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Filosofia Contemporânea 
Disciplina: Filosofia Política Contemporânea 
Pedagógico do Instituto Souza 
atendimento@institutosouza.com.br 
Modalidade de Curso 
Curso Livre de Capacitação Profissional 
 
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Caro (a) aluno (a), parabéns pela escolha! Começamos agora uma jornada de 
sucesso e muito aprendizado, lembrando que você já é um vencedor, pois o 
conhecimento é um bem que melhora nossa autoestima, nossa vida profissional e, 
principalmente, enriquece a nossa alma sem que ninguém possa tirá-lo de nós, ou 
seja, uma vez adquirido é um tesouro atemporal em nossa existência. 
Seu curso é composto de quatro disciplinas e uma avaliação de dez questões 
que pode abordar um resumo do conteúdo das quatro ou de uma delas por 
uma questão metodológica. Esteja atento (a) e leia as apostilas com muita 
atenção. Seja bem-vindo(a) e bons estudos! 
 
 
 
(Professora Mestre, Liliana Martino) 
 
 
1 - A tarefa prática da filosofia política em John Rawls (ADAPTADO) 
Álvaro de Vita 
Professor de Ciência Política na Universidade de São Paulo. 
 
Haveria alguma base sólida para a suposição de que as principais questões políticas 
de hoje em geral têm respostas corretas? A obra de John Rawls, em particular 
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sua Uma Teoria da Justiça1, pode ser considerada a mais importante tentativa, na 
teoria moral e na filosofia política de expressão em língua inglesa deste século, de 
responder a essa pergunta. Como procurarei mostrar a seguir, Rawls acredita que 
pelo menos algumas das questões políticas controversas do mundo contemporâneo, 
se não são passíveis de verdade, podem ter respostas razoáveis. 
Na tradição política ocidental, existem três grandes reinos de considerações morais 
que permitem julgar o que é objetivamente válido em relação a ações, escolhas 
públicas, instituições e estados de coisas: (1) a crença em uma ordem de direitos 
vistos como fundamentais (no sentido de que sua realização é assegurada, ou 
deveria ser, pelas instituições de uma sociedade) e absolutos (no sentido de que 
considerações baseadas em direitos não podem, ou não deveriam, ser 
sobrepujadas, quaisquer que sejam as circunstâncias, por considerações de outro 
tipo); (2) a "maximização" do bem-estar - identificado à utilidade, à felicidade ou à 
realização de desejos - de todos ou do maior número (utilitarismo); e (3) a promoção 
de atividades intrinsecamente valiosas (a concepção do que é bom para o homem 
que se encontra por exemplo, no ideal grego de vida virtuosa e que se exprime na 
revivescência, na filosofia moral contemporânea, da ética da virtude). 
Com algumas qualificações, é possível afirmar que a teria de Rawls é do primeiro 
tipo, isto é, baseada em direitos2. Uma Teoria da Justiça é parte, e talvez a 
expressão máxima, de um vigoroso renascimento de doutrinas éticas baseadas em 
direitos na filosofia política anglo-saxônica, em reação à ética utilitarista dominante 
desde Bentham e Stuart Mill3. Rawls critica o utilitarismo sobretudo por "adotar para 
a sociedade como um todo o princípio de escolha racional para um homem", o que 
significa dizer que "não leva em conta seriamente a distinção entre pessoas"4. 
Enquanto critério para orientar a escolha pública, o utilitarismo funde diferentes 
desejos, objetivos, valores e fins que possam ganhar a adesão dos indivíduos em 
um único sistema de desejos que, então, deve ser maximizado para o maior número. 
Como argumentam Amartya Sen e Bernard Williams5, o utilitarismo é permissivo o 
suficiente para considerar tudo -interesses, ideais, aspirações e desejos - como 
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451992000100002#nt01
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451992000100002#nt02
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preferências, mas singularmente restritivo no que se refere a que preferências são 
relevantes. Assim é que o princípio correto para a escolha pública, de um ponto de 
vista utilitário, não deveria se basear nas preferências efetivas dos agentes (que 
podem ser confusas, equivocadas ou egoístas) e sim nas preferências que o agente 
teria se completamente informado, se raciocinasse corretamente, se estivesse no 
estado mental conducente à escolha mais racional e assim por diante. Somente 
preferências "perfeitamente prudentes" contam, tais como interpretadas por um 
legislador utilitário ideal (que Rawls chama de "espectador imparcial benevolente"). 
Isso contraria não só as éticas pluralistas, que descartam a existência de uma 
magnitude cuja maximização possa se constituir na única consideração relevante do 
ponto de vista moral, e que adotam uma concepção mais complexa de pessoa - 
utilitarismo só se interessa pelas pessoas enquanto portadoras de utilidades6 - mas 
também o próprio apelo intuitivo da ética utilitarista: o de permitir que as pessoas 
façam e obtenham o que elas desejam. 
A concepção estreita de pessoa e a natureza agregativa do utilitarismo o tornam 
insensível às diferenças entre os indivíduos, o que oferece aos direitos uma base 
excessivamente frágil. É isso que, antes de mais nada, desagrada a Rawls. Sua 
teoria busca um fundamento mais sólido do que foi capaz de oferecer a tradição 
utilitarista (mesmo em suas expressões liberais, como o pensamento de Stuart Mill), 
em que assentar um âmbito de direitos e de liberdades para os indivíduos. Isso fica 
explícito logo nas páginas de abertura de Uma Teoria da Justiça: 
"Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na Justiça que mesmo o bem-
estar da sociedade como um todo não pode sobrepujar. Por isso, a justiça nega que 
a perda da liberdade por alguns possa ser justificada pelo bem maior compartilhado 
por outros. A justiça não permite que os sacrifícios impostos a alguns possam ser 
compensados pela soma maior de benefícios desfrutados por muitos. Em uma 
sociedade justa, por esse motivo, as liberdades da cidadania igual são vistas como 
estabelecidas; os direitos assegurados pela justiça não são sujeitos à negociação 
política ou ao cálculo de interesses sociais."7 
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Caracterizado o anti-utilitarismo da teoria de Rawls, volto à pergunta inicial - a de se 
haveria um padrão moral objetivamente válido, a partir do qual julgar o certo e o 
errado pelo menos no que se refere a algumas das questões mais centrais da vida 
coletiva. Primeiro é preciso notar por que a existência - ou a constituição - de um 
padrão desse tipo é importante: ele permite orientar as escolhas práticas, 
especialmente se elas precisam ser feitas em situações de forte pressão. Recorro a 
um exemplo - uma situação extrema, mas não de todo implausível - de G.A. Cohen8. 
Suponha que em uma sociedade em que todos são nazistas, menos o último judeu, 
que é capturado. Pode ele corretamente dizer, e você e eu junto com ele, que seus 
direitos estão violados? É claro que é desejável que essa afirmação seja possível. 
Entretanto, não é tão claro com base em-que se poderia dizer que ela é correta. 
Um padrão moral nos oferece essa base9. Mas aqui nos defrontamos com o 
problema da objetividade de qualquer moralidade que se considere superior - 
inclusive a baseada em direitos. Pois como podemos determinar objetivamente o 
que é e o que não é um direito? E quando nossos direitos conflitam entre si - a que 
devemos apelar para resolver tais conflitos? Uma possível resposta a essas 
questões é provida pelo que Rawls chama de "intuicionismo racional"10. Nesse caso 
argumenta-se, na tradição dodireito natural, no sentido da existência de uma ordem 
moral prévia e superior aos agentes e que lhes é acessível por meio de "reflexão 
moral adequada". Os princípios de justiça que devem governar a associação 
humana são os que derivam de certas crenças vistas como fatos morais. A defesa 
de Nozick do direito natural à propriedade privada legitimamente adquirida e 
transmitida - o que ele chama de "teoria da titularidade" - funda-se em uma forma de 
"intuicionismo racional". (É interessante observar que, por meio de "reflexão moral e 
adequada", podemos chegar a uma conclusão diametralmente oposta à de Nozick: a 
de que haveria um direito natural à propriedade comum dos recursos produtivos.11) 
Marx, Weber, Mackie - e Rawls - concordariam entre si em pelo menos um ponto: 
não há fatos morais. Adotando-se uma linha marxista de argumentação, se diria que 
não há como saber até que ponto nossas ideias morais são algo mais do que meras 
crenças ideológicas - consequentemente, e em particular em situações de conflito 
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agudo entre interesses e necessidades de diferentes grupos da sociedade, não há 
como apelar à "reflexão moral adequada" para determinar o certo e o 
errado;12 devido ao que chamava de "guerra inexplicável entre os deuses do Olimpo" 
(isto é, o conflito irredutível de valores), Max Weber viu a razão encarcerada na 
razão instrumental - e, portanto, capaz de determinar a escolha de meios eficazes 
mas não a correção de escolhas práticas; Mackie não vê motivo para que se 
considere as crenças morais como algo mais do que "demandas sociais". 
 
1.1 - A META-ÉTICA DE RAWLS: UMA TEORIA ORIENTADA POR IDEAIS 
Estamos agora em condições de apreciar a especificidade do empreendimento 
ralwsiano. Do ponto de vista de seus princípios de segunda ordem, ou meta-éticos, a 
concepção de justiça como equidade procura um "ponto arquimediano", distinto do 
intuicionismo racional e, evidentemente, ainda mais distante do relativismo moral, a 
partir do qual seja possível derivar princípios primeiros de justiça que possam ser 
aceitos por todos os cidadãos de uma sociedade democrática. Rawls recusa o 
intuicionismo racional tanto porque considera que não há fatos morais quanto pela 
concepção de pessoa adotada por essa modalidade de reflexão moral: as pessoas 
são vistas não como agentes e sim como meras conhecedoras de uma ordem moral 
prévia. Em contraste com isso, Rawls nega que aquilo que deva contar como 
moralmente relevante possa ser suposto como existente; consequentemente, um 
padrão moral que assegure direitos inalienáveis aos indivíduos só poderá surgir de 
um procedimento de construção13. 
Mas não deveria qualquer construção dessa natureza ser considerada igualmente 
arbitrária? Rawls vê o máximo de objetividade que uma concepção de justiça pode 
atingir da seguinte forma: (1) ela deverá resultar da escolha que seria feita por 
agentes situados de uma certa maneira (comentarei este ponto logo a seguir); e (2) 
deverá se fundamentar em ideais morais pelo menos implicitamente reconhecidos 
na tradição e na cultura política ocidentais. Rawls considera que há duas idéias 
morais que, no interior dessa tradição, são prioritárias em relação às demais: uma 
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concepção de pessoa - uma concepção de nós mesmos como pessoas morais e 
como, em nossas relações com a sociedade, cidadãos livres e iguais; e uma 
concepção de "sociedade bem ordenada". 
É a concepção de pessoa moral que, sustenta Rawls, encontra-se no fundo de 
idéias fortemente enraizadas na tradição política ocidental, tais como a recusa à 
escravidão (mesmo voluntária). Essa concepção de pessoa exprime uma das 
intuições morais mais poderosas do mundo ocidental: a atribuição universal da 
personalidade moral. Supõe-se que os indivíduos sejam capazes de se tornar 
agentes morais no sentido pleno, isto é, sejam capazes de ter uma concepção de 
seu próprio bem e de constituir suas próprias convicções morais, políticas e 
religiosas; e igualmente capazes, em contrapartida, de respeitar o bem nas 
convicções de outros - de reconhecer que o bem de cada um é merecedor de um 
respeito igual (como diz Rawls, a suposição é a de que, enquanto pessoas morais, 
são potencialmente capazes, pelo menos em um mínimo, de um "senso de justiça", 
isto é, de agir segundo princípios de justiça14.) Essa é uma interpretação possível do 
imperativo kantiano de não tratar a outros seres humanos apenas como meios e sim 
sempre também como fins em si mesmos: os indivíduos são vistos como fontes 
geradoras de fins e os fins de cada um são merecedores de um respeito igual 
(Rawls: os indivíduos, e isso é um componente essencial da liberdade, são "fontes 
auto-suscitantes de pretensões válidas"); o escravo é tipicamente um ser cujos fins 
não são levados em conta e que sequer tem fins que possa considerar como seus 
— é um ser, em suma, privado de personalidade moral. 
O outro ideal que Rawls vê como pelo menos latente em crenças compartilhadas 
presentes na tradição política ocidental é o de "sociedade bem ordenada". Aqui nos 
movemos em um terreno mais especulativo do que no primeiro caso (a concepção 
de pessoa), até porque esse segundo ideal envolve, acredito, um nítido passo além 
das democracias "reais" de hoje, algo que Rawls em momento algum deixa explícito. 
As democracias liberais se caracterizam - do ponto de vista dos problemas que 
estamos considerando - pela vigência de um modus vivendi que busca acomodar os 
diferentes interesses sociais e forças políticas; em uma "sociedade bem ordenada", 
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a vida coletiva é dotada, mais do que de um modus vivendi, de um fundamento 
ético, o que significa dizer que: as instituições básicas da sociedade - políticas e 
econômicas - se organizam segundo princípios de justiça que poderiam ser 
escolhidos por pessoas morais livres e iguais; seus membros são capazes de agir 
segundo princípios de justiça; e a concepção de justiça que rege a vida coletiva é 
publicamente reconhecida e pode ser justificada para cada um dos membros da 
sociedade (é o que Rawls chama de "condição de publicidade"). A justificação 
política das instituições básicas da sociedade não é, nesse caso, meramente, 
digamos, hobbesiana; a idéia é a de que a estabilidade dessas instituições a longo 
prazo depende de elas serem vistas como um bem em si mesmo por seus 
participantes. 
Apesar de a concepção de "sociedade bem ordenada" ser um ideal que claramente, 
em meu entender, ultrapassa as democracias liberais contemporâneas, ainda assim 
inspira-se no liberalismo político em dois sentidos: 
(1) a "condição de publicidade" responde à exigência liberal (e iluminista) de que 
justificações inteligíveis para a vida social e política sejam acessíveis a cada um 
"porque a sociedade deve ser entendida pela mente individual e não pela tradição ou 
por um senso de comunidade"15. A legitimidade da sociedade e as bases da 
obrigação social devem ser compreensíveis para cada indivíduo. "A manutenção da 
ordem social", diz Rawls, "não depende de ilusões institucionalizadas ou 
historicamente acidentais ou de outras crenças equivocadas acerca de como suas 
instituições funcionam"16; 
(2) o escopo da concepção de justiça é limitado. O padrão moral publicamente 
reconhecido constitui-se em um tribunal último para solucionarapenas algumas 
questões práticas, a saber: de que forma as instituições de uma sociedade devem 
realizar o ideal de pessoas livres e iguais e como devem ser resolvidos os conflitos 
relativos à distribuição dos encargos e benefícios da cooperação social. Isso não 
significa a dotar nenhuma concepção abrangente do bem, como ocorre nos dois 
outros padrões morais mencionados no início deste artigo - o utilitarismo e a 
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promoção de atividades intrinsecamente valiosas. Rawls rejeita, como vimos, o 
utilitarismo enquanto critério para orientar a escolha pública ou a mudança social, 
mas nada impede que mesmo membros de uma "sociedade bem ordenada" o 
adotem como critério para escolhas individuais - isto é, que concedam a boa vida 
para eles mesmos em termos da maximização do bem-estar entendido como 
satisfação de desejos ou utilidade (desde que a única forma de fazer isso não seja 
violando os princípios de justiça estabelecidos). Comentarei mais adiante, em maior 
detalhe, a concepção do bem adotada pela teoria de Rawls. 
Vemos agora por que Rawls prefere considerar sua teoria como "orientada por 
ideais" mais do que "baseada em direitos". Os agentes de seus construtivismo não 
reconhecem uma ordem moral prévia (como os direitos humanos) mas também não 
exercem arbitrariamente suas vontades - a escolha dos princípios de justiça deverá 
se apoiar nos ideais morais implícitos em crenças fundamentais amplamente 
compartilhadas, pelo menos em uma determinada tradição política, tais como a 
recusa à escravidão e a tolerância religiosa. Falta agora localizar o "ponto 
arquimediano" a partir do qual seja possível a construção do padrão de justiça e a 
partir do qual seja possível julgar as instituições de uma sociedade. Se percorremos 
a teoria de Rawls até uma de suas extremidades encontramos o ideal de pessoas 
morais livres e iguais; se a percorremos até a outra de suas extremidades 
encontramos o ideal de sociedade bem ordenada. Entre as duas extremidades, há 
um ponto em que a escolha dos princípios de justiça que deverão reger as 
instituições de uma sociedade bem ordenada pode ocorrer de forma a dar expressão 
ao ideal de pessoa moral. A este ponto Rawls denomina "posição originária". 
 
1.2 - A PRIORIDADE DO DIREITO 
O "ponto arquimediano" procurado por Rawls pode ser interpretado simplesmente 
como o conjunto de injunções (constraints) que se apresentam à argumentação 
pública quando o que está em questão é avaliar as instituições básicas da 
sociedade. Quando debatemos de que forma essas instituições devem se organizar 
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para exprimir adequadamente o ideal de pessoas morais livres e iguais, ou então em 
que medida as instituições de uma dada sociedade se aproximam desse objetivo, o 
que pode ser levado em conta e o que não deve ter peso algum? 
Neste ponto é preciso esclarecer o componente meta-ético - epistemológico - da 
teoria de Rawls que é correlato a seu componente fundamental, mencionado no 
início deste artigo, enquanto uma concepção moral de primeira ordem, isto é, 
enquanto um padrão moral que busca proteger direitos de cálculos utilitaristas17. 
Justiça como equidade é uma teoria "deontológica" - ou, o que é a mesma coisa: 
kantiana. Em uma concepção deontológica, o que é correio fazer tem precedência 
sobre o que é bom ser. (O oposto a isso seria uma teoria "teleológica", isto é, que 
estabelece a primazia de uma certa concepção de boa vida humana; Rawls rejeita 
as teorias teleológicas porque elas oferecem um fundamento excessivamente frágil 
para direitos e liberdades - cuja violação pode ser justificada em nome do peso 
absoluto e atribuído a um fim último.) 
Em termos epistemológicos, a prioridade do que é direito sobre o que é bom 
significa que o padrão de justiça deve ser derivado independentemente de 
concepções específicas de bem. Um requisito complementar a este, também 
característico de uma concepção deontológica, é o de que a justificação dos 
princípios de justiça deve ser independente das contingências de vida humana em 
sociedade. Alguém ocupar uma certa posição social ou ser dotado de determinados 
talentos e capacidades não são razões suficientes, que possam ser invocadas em 
um debate público, para justificar uma dada forma de organizar as instituições 
básicas da sociedade em que precisamente essa posição e esses talentos são os 
mais beneficiados; em que aqueles assim situados (ou dotados) conseguem se 
apropriar de uma parcela maior dos resultados da cooperação social. A distribuição 
de posições iniciais na sociedade, e também de talentos e capacidade (pouco 
importando para a teoria de Rawls se hereditários ou socialmente adquiridos), é 
vista como arbitrária de um ponto de vista moral (porque fruto de contingências). A 
derivação do direito, em resumo, deve ser autônoma tanto de concepções 
específicas do bem quanto de contingências sociais ou naturais. 
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451992000100002#nt17
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Essas exigências deontológicas, que caracterizam o tipo de construtivismo proposto 
por Rawls como "kantiano", são incorporadas à posição originária por meio de um 
artifício de representação. No momento em que nos colocamos na posição originária 
- isto é, sempre que se trate de avaliar as instituições de uma sociedade do ponto de 
vista da justiça - estamos obrigados a realizar nossos julgamentos e escolhas por 
trás de um "véu de ignorância". Se argumentamos a partir da posição originária, não 
podemos levar em conta as distintas concepções do bem que nos dividem, e sobre 
as quais jamais estaremos de acordo se há uma delas que possa ser considerada 
superior18, nem os diferentes talentos, capacidades e posições na sociedade com 
que a fortuna nos brindou. Dito de outra maneira, o véu de ignorância é um artifício 
que tem o objetivo de representar os agentes de construção, na posição originária, 
unicamente enquanto pessoas morais livres e iguais, excluindo informações relativas 
e atributos contingenciais. Esta é a forma fair de representá-los quando se trata da 
adoção de princípios primeiros de justiça e, diz Rawls, "conjeturamos que a 
equidade das circunstâncias sob as quais o acordo é alcançado transfere-se para os 
princípios de justiça acordados; uma vez que a posição originária situa pessoas 
morais livres e iguais de uma forma equitativa entre si, qualquer concepção de 
justiça que adotem será igualmente equitativa. Daí a denominação: 'justiça como 
equidade'."19 
1.3 - CONCEPÇÃO FRACA DO BEM 
O que foi dito antes caracteriza suficientemente, acredito, a natureza kantiana da 
concepção de justiça como equidade. O ponto arquimediano constituído por Rawls 
permite que o padrão de justiça resultante tenha certo distanciamento da sociedade 
que deve ser avaliada - das contingências que determinam as oportunidades de vida 
de seus membros e da pluralidade de valores, objetivos e fins aos quais eles 
devotem lealdade. Esse componente kantiano - a primazia da justiça - deve ser 
considerado predominante na teoria de Rawls. 
Mas as exigências deontológicas de distanciamento na forma de representar as 
partes na posição original não podem ir até o ponto de os princípios de justiça 
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451992000100002#nt18
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451992000100002#nt19
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produzidos nada terem a ver com as circunstâncias reais de uma sociedade 
humana. A ambição da teoria de Rawls é a de elaborar um padrão moral de tipo 
deontológico que seja realizável não por seres transcendentes de um mundo 
transcendente e sim pelos habitantes de um mundo distintivamente humano. Se asexigências deontológicas representadas pelas injunções do véu de ignorância levam 
a que certas informações não tenham peso moral, há outras informações que terão 
que ser levadas em conta, se o que se quer é chegar a uma concepção de justiça 
que seres humanos de uma sociedade real possam adotar. As informações desse 
segundo tipo dizem respeito ao que Rawls, inspirado, neste ponto, na filosofia de 
Hume, chama de "circunstâncias da justiça".20 
Entre as circunstâncias "objetivas" da justiça, "que tornam a cooperação humana 
tanto possível quanto necessária", está a condição de "escassez moderada": os 
recursos existentes e os benefícios que resultam da cooperação social em uma 
sociedade não são abundantes ao ponto de não emergirem reivindicações 
conflitantes sobre a parcela que cabe a cada um de seus membros, e nem tão 
exíguos ao ponto de qualquer forma de cooperação ser impossível. As 
circunstâncias "subjetivas" da justiça podem ser resumidas no que Rawls chama de 
o "fato do pluralismo" (ou, como quer Nozick, o "fato de nossas existências 
separadas"): as sociedades ocidentais contemporâneas são caracterizadas por uma 
inescapável pluralidade de concepções do bem - tanto de concepções da boa vida 
para si próprio quanto de concepções acerca de boa vida humana em sociedade. 
Levar o "fato de pluralismo" em conta significa dizer que a adoção de uma 
concepção pública de justiça não poderá se apoiar em premissas muito fortes 
acerca da motivação dos agentes - supor, por exemplo, que eles sejam movidos 
pelo altruísmo ou pela benevolência. Este é, justamente, um dos problemas do 
utilitarismo: a adoção de uma ética militarista como padrão moral de uma sociedade 
pressupõe que seus membros sejam motivados por um senso de benevolência 
universal - propor a maximização da soma total de utilidade como a única 
consideração ética relevante pressupõe que cada membro da sociedade se 
interesse pela utilidade dos demais tanto ou mais do que pela sua própria; a 
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451992000100002#nt20
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concepção utilitarista de justiça, nesse sentido, pode ser considerada simplesmente 
utópica. Rawls evita fazer suposições motivacionais muito fortes dizendo que as 
partes, na posição original, são "mutuamente desinteressadas": 
"pode-se dizer, em suma, que as circunstâncias da justiça se verificam sempre que 
pessoas mutuamente desinteressadas fazem reivindicações conflitantes acerca de 
divisão dos benefícios sociais em condições de escassez moderada. Se essas 
condições não existissem não haveria oportunidade para a virtude da justiça, assim 
como na ausência de ameaças à vida ou à própria integridade não haveria 
oportunidade para a coragem física."21 
Como já foi dito antes (quando comentei o escopo de justiça como equidade), a 
teoria de Rawls se propõe oferecer respostas razoáveis somente às questões 
práticas que emergem das circunstâncias objetivas da justiça. Mas os problemas 
mais intratáveis surgem das circunstâncias subjetivas, do "fato do pluralismo". Afinal, 
o que levaria agentes "mutuamente desinteressados" a adotarem princípios comuns 
de justiça? 
A resposta já está pelo menos implícita no que já foi visto até aqui. Trata-se de uma 
das suposições mais centrais, e também mais controversas, da teoria de Rawls - e 
um dos fundamentos do liberalismo político em geral. A idéia é que os cidadãos de 
uma sociedade democrática podem ter interesse em compartilhar de 
uma concepção fraca (ou mínima) de bem, e encarar isso como algo não 
contraditório com as lealdades que devotem a determinadas concepções plenas do 
bem. A estratégia argumentativa de Rawls é a de focalizar a justificação das 
instituições básicas da sociedade em crenças fundamentais e interesses 
compartilhados, de tal forma que essas instituições possam ser vistas por todos 
como um bem em si mesmo - como uma pré-condição para que quaisquer valores, 
objetivos e fins possam ser realizados. A boa vida humana em sociedade é aquela 
em que a estrutura comum que determina as oportunidades de vida de cada um 
pode ser publicamente justificadas (daí a necessidade de oferecer respostas 
razoavelmente correias aos conflitos que emergem das circunstâncias objetivas da 
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justiça); e é aquela em que, de outra parte, cada um pode cultuar a divindade com 
que esteja comprometido, desde que tolere o mesmo nos demais. Como diz Jeremy 
Waldron: 
"A intuição é a de que, apesar de não compartilharem dos ideais uma das outras, as 
pessoas podem abstrair de sua experiência um sentido de como é estar 
comprometido com um ideal de boa vida; elas podem reconhecer isso em outro e 
focalizar esse sentido como algo a que a justificação política pode se dirigir."22 
Essa concepção fraca do bem é incorporada por Rawls à justificação da posição 
originária e da escolha dos princípios de justiça. As partes na posição originária, 
apesar de "mutuamente desinteressadas", têm um interesse comum, supõe Rawls, 
em um conjunto de "bens primários" - isto é, os bens que qualquer um desejaria para 
poder realizar sua própria concepção de boa vida (isso inclui coisas tais como 
direitos - e liberdades básicas, oportunidades para ocupar posições de 
responsabilidade em instituições políticas e econômicas, renda, riqueza e as "bases 
sociais do auto-respeito"23). O bem humano assim entendido é visto por Rawls 
como neutro, isto é, como não favorecendo a nenhuma concepção plena da boa 
vida em particular. É por isso que Rawls pode supor que tal concepção fraca do bem 
seja prévia à própria adoção dos princípios de justiça, sem que isso comprometa a 
exigência deontológica de primazia do que é correto sobre o que é bom. 
Essa neutralidade, entretanto, pode ser colocada em dúvida. Há pessoas que veem 
seus vínculos com uma determinada comunidade, classe, grupo político, étnico ou 
religioso como algo tão determinante de sua própria identidade pessoal que 
simplesmente não conseguiriam se conceber como tendo algo em comum com 
pessoas comprometidas com outras associações, grupos ou objetivos. Há ainda 
aqueles que somente concebem a busca da realização de sua própria concepção de 
boa vida tentando impô-la aos demais. Uns e outros muito provavelmente 
recusariam a neutralidade da concepção fraca do bem proposta por Rawls. 
É um problema espinhoso para justiça como equidade (e para o liberalismo político 
de modo geral). Aqui a resposta é a de que a justificação política, tal como 
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concebida pela teoria de Rawls, só pode encontrar ressonância entre aqueles que 
concebem seus próprios vínculos e lealdades (com associações, comunidades e 
concepções do bem diversas) em um certo espírito "liberal"24. Isto é: aqueles que se 
concebem como pessoas que, enquanto cidadãs, mantêm uma certa independência 
de qualquer sistema particular de fins. Alguém mudar sua concepção da boa vida, 
ou abandonar lealdades que antes via como constituindo sua própria identidade 
pessoal, em nada altera sua identidade pública de pessoa moral livre e igual. A 
apostasia, em uma sociedade democrática, não é crime e nem tem implicações para 
a concepção que as pessoas têm de si mesmas enquanto cidadãs.25 A estratégia 
argumentativa, como não é difícil de perceber, apoia sua plausibilidade em crenças 
fundamentais, supostas como amplamente compartilhadas (na tradição política 
ocidental pelo menos), presentes na aceitação da tolerância religiosa. Explicitar as 
intuições morais que se encontram no fundo dessas crenças, de forma que possam 
servir de matéria-prima a um construtivismo de tipo kantiano, eis o que John Rawls 
acreditaser a tarefa prática da filosofia política. 
Até aqui concentrei-me nos problemas da meta-ética rawlsiana. Passo agora a uma 
discussão dos princípios primeiros de justiça. 
 
 
 1.4 - O PRINCÍPIO DE DIFERENÇA 
Se somente levássemos em conta nossa natureza de pessoas morais livre e iguais, 
e as circunstâncias da justiça, então, supõe Rawls, escolheríamos para reger a 
estrutura comum de nossas vidas dois (ou talvez três) princípios de justiça: um 
primeiro (e prioritário) que estabelece um sistema igual de liberdade para todos; e 
um segundo (que, como veremos logo a seguir, divide-se em duas partes bastante 
distintas) que estabelece sob quais condições desigualdades sociais e econômicas 
seriam justificáveis. Discutirei um pouco mais detalhadamente o segundo princípio, 
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que, acredito, gera controvérsias maiores (há quem coloque em dúvida também o 
caráter absoluto atribuído ao primeiro princípio). 
Antes disso, porém, chamo a atenção para a natureza hipotética da sentença que 
abre esta seção. O construtivismo de Rawls, como talvez já tenha ficado evidente, é 
inteiramente hipotético, isto é, não supõe nenhuma forma de consentimento efetivo 
— de exercício da vontade por parte de agentes reais: 
"Nenhuma sociedade pode ser, é claro, um esquema de cooperação no qual os 
homens entrem voluntariamente em um sentido literal; cada pessoa, ao nascer, 
encontra-se situada em uma determinada posição em uma determinada sociedade, 
e a natureza dessa posição afeta materialmente suas perspectivas de vida. Contudo, 
uma sociedade que satisfaça os princípios de justiça como equidade aproxima-se 
tanto quanto possível de ser um esquema voluntário, porque satisfaz os princípios 
com os quais pessoas livres e iguais consentiriam em circunstâncias equitativas. 
Nesse sentido, seus membros são autônomos e as obrigações que reconhecem são 
auto-assumidas."26 
A pergunta relevante para a teoria de Rawls não é de que forma o mundo político 
deve se organizar para que agentes reais possam participar da tomada de decisões 
coletivas, e sim quais são as restrições a serem obedecidas uma vez que essa 
participação já esteja assegurada - já estabelecida a democracia política, portanto. 
(Injunções desse tipo negam que uma decisão coletiva possa violar a concepção de 
pessoa moral livre e igual, como ocorreria no caso, por exemplo, de a pena de morte 
ser instituída simplesmente porque isso exprime a vontade da maioria. O 
consentimento hipotético requer que o ato de consentir seja algo mais do que a 
mera expressão de uma ou mais vontades - é preciso indagar por suas razões.) Não 
há uma teoria da democracia, estritamente falando, em Uma teoria da justiça.27 O 
que há, talvez, é um amplo critério para orientar a ação política e a escolha pública 
em sociedades de democracia política consolidada. 
Volto aos princípios de justiça. O segundo princípio estabelece que as 
desigualdades sociais e econômicas são moralmente aceitáveis se, e somente se, 
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(a) estiverem vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de 
igualdade equitativa de oportunidade, e se (b) beneficiarem os membros pior 
situados da sociedade (é o que Rawls chama de "princípio de diferença"). 
O componente fundamental da concepção substantiva de justiça de Rawls consiste 
na neutralização de desigualdades sociais e naturais, que, fruto da fortuna social ou 
genética, são moralmente arbitrárias. Não há justiça ou injustiça em indivíduos 
nascerem em determinadas posições sociais (mais privilegiadas ou menos) ou então 
dotados de certos talentos e capacidades (que, adequadamente treinados e 
utilizados, permitirão a seus portadores se apropriar de uma parcela maior ou menor 
dos benefícios sociais); estes são apenas, como diz Rawls, fatos naturais. O que 
pode ser considerado justo ou injusto é a forma como as instituições da sociedade 
lidam com esses "fatos naturais". O princípio de diferença não supõe a abolição de 
diferenças decorrentes de contingências, porque isso seria impossível, e sim tanto 
quanto possível neutralizar seus efeitos: 
"O princípio de diferença representa, com efeito, um acordo no sentido de encarar a 
distribuição de talentos naturais como um recurso comum e de compartilhar os 
benefícios dessa distribuição, seja ela qual for. Aqueles que foram favorecidos pela 
natureza, quem quer que seja, podem tirar proveito de sua boa fortuna somente de 
forma a melhorar a situação dos menos favorecidos. Os que são naturalmente 
privilegiados não devem ser beneficiados apenas porque são mais talentosos, mas 
somente na medida necessária para cobrir os custos de treinamento e de educação 
dos naturalmente desafortunados e para exercitarem seus talentos de formas que 
também beneficiem estes últimos. Ninguém merece sua capacidade natural maior e 
nem é merecedor de um ponto de partida mais favorável na sociedade."28 
Esta é uma das passagens mais célebres, e também mais controversas, de Uma 
Teoria de Justiça, devido à surpreendente ideia de que a distribuição de talentos 
deve ser vista como um "recurso público". Mas não é tão surpreendente se 
lembrarmos quão impenetrável é o "véu de ignorância" adotado pela teoria da justiça 
de Rawls. As exigências deontológicas da posição original, como vimos, excluem 
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que quaisquer contingências sociais ou naturais - entre as quais a distribuição de 
talentos e de capacidades e até mesmo variações de preferências individuais - 
possam contar como informações moralmente relevantes. Se nos colocássemos na 
posição original, refletindo sob as injunções do véu de ignorância, escolheríamos, 
acredita Rawls, algo semelhante ao princípio de diferença para determinar as formas 
de desigualdades aceitáveis, até porque a fortuna poderia ter nos colocado entre os 
membros em pior situação da sociedade. Se nos encontrássemos entre estes 
últimos, pelo menos gostaríamos que as diferenças contingenciais trabalhassem 
também a nosso favor.29 
Note-se que o princípio de diferença enfrenta o problema das. desigualdades 
moralmente arbitrárias de uma forma inteiramente distinta da parte (a) do segundo 
princípio - a igualdade equitativa de oportunidade. Uma concepção de justiça 
fundada nesta última seria meritocrática. Digamos que o véu de ignorância seria 
bem mais fino: quando a estrutura comum de suas vidas estivesse em questão, os 
indivíduos poderiam levar em conta seus próprios talentos, capacidades e 
preferências e somente as informações relativas a status e posições na sociedade 
seriam excluídas como moralmente irrelevantes. A concepção de justiça adotada 
autorizaria a implementação de políticas redistributivas - oportunidades educacionais 
iguais, por exemplo - para compensar certas desvantagens sociais. A noção de 
igualdade envolvida nesse caso é a da igualização dos pontos de partida para os 
que têm talentos similares. 
O princípio de diferença, em contraste, não altera apenas as condições sob as quais 
os talentos são exercidos; ele procura enfrentar a própria distribuição natural de 
talentos. O espesso véu de ignorância adotado pela teoria de Rawls é, no fundo, 
uma forma de exprimir a ideia de que o bem-estar dos cidadãos de uma sociedade 
democrática não deveria depender das contingências dessa distribuição. O princípio 
de diferença estabelece uma base moral a partir da qual certas restrições à 
propriedade privada dos próprios talentos e capacidades tornam-se legítimas. Os 
cidadãos de uma "sociedadebem ordenada" teriam plena liberdade (assegurada 
pelo primeiro princípio de justiça) para desenvolver, tanto quanto possível, seus 
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talentos, mas não teriam direito a todos os benefícios sociais resultantes de seu 
exercício (parte desses benefícios seria destinada, por meio de políticas 
redistributivas, a compensar aqueles em pior situação pela desfortuna social ou 
genética). 
Para comparar, pensemos em uma concepção de justiça ainda mais distante da de 
Rawls do que a igualdade meritocrática. É o caso de uma teoria que adote um véu 
de ignorância finíssimo. Os indivíduos levam em conta sua posição social, seus 
talentos e preferências, e apenas desconhecem como estarão em algum ponto 
futuro do tempo. Para lidar com a incerteza em relação ao futuro, eles podem querer 
contribuir para um fundo comum, que depois distribuirá benefícios na medida da 
capacidade de contribuição de cada um. Os que não têm capacidade de 
contribuição não estão intitulados a benefício algum. Essa é uma concepção de 
justiça fundada exclusivamente no que Charles Taylor denominou "princípio de 
contribuição" (isto é, em uma concepção de justiça comutativa, em contraste com 
uma concepção de justiça distributiva).30 A ideia subjacente é a da auto-suficiência 
individual. Se adotamos, para argumentar, a ideia de um contrato inaugural, é como 
se os indivíduos viessem do estado de natureza já intitulados (e uma titularidade 
cujo reconhecimento é acessível a todos por meio de "intuicionismo racional") não só 
a seus direitos e propriedades mas também a seus talentos e capacidades próprios; 
como estes últimos têm um valor desigual para a associação humana, então seus 
portadores fazem jus a parcelas desiguais dos produtos e serviços da sociedade. Se 
na teoria de Rawls a sociedade bem ordenada é concebida como um "sistema 
equitativo de cooperação social", uma sociedade cujas instituições se organizem 
com base em uma concepção de justiça comutativa seria (idealmente) um arranjo 
para benefício exclusivo dos que têm capacidade de contribuição. 
Se recorremos à esclarecedora distinção que faz Charles Taylor31 entre teorias 
atomistas e teorias sociais do homem e da sociedade, então a concepção 
substantiva de justiça de Rawls deve ser localizada entre estas últimas. A ideia 
fundamental não é a da auto-suficiência individual (premissa, quase sempre não-
examinada, de teorias atomistas como a de Nozick, por exemplo); e sim a de que o 
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indivíduo - o indivíduo autônomo, capaz de escolher seus próprios fins, das 
sociedades ocidentais - só pode desenvolver suas capacidades especificamente 
humanas em cooperação com outros e em certo tipo de sociedade, de cultura e 
instituições políticas. A primazia já não cabe ao indivíduo e seus direitos prévios e 
sim a uma dada forma de organizar as instituições básicas da sociedade que investe 
o indivíduo de direitos, que lhe permite buscar a realização da sua própria 
concepção do bem, que lhe assegura, enfim, um âmbito de liberdade negativa. 
 
1.5 - EPISTEMOLOGIA "INDIVIDUALISTA" E JUSTIÇA SUBSTANTIVA 
"COMUNITÁRIA"? 
Vimos qual é a resposta de Rawls à pergunta colocada no início deste artigo. A 
meta-ética de sua teoria, em essência, esforça-se para encontrar um "ponto 
arquimediano" em que seja possível a adoção de um padrão moral com o máximo 
de objetividade atingível e que ofereça soluções razoáveis a pelo menos algumas 
das questões práticas mais importantes do mundo contemporâneo. Vimos também 
de que forma os princípios morais de segunda ordem - as injunções deontológicas 
que estabelecem a primazia da justiça sobre o bem, representadas no ponto 
arquimediano pelo dispositivo do véu de ignorância - relacionam-se com os 
princípios primeiros de justiça (a concepção substantiva de justiça de Rawls). 
Uma última, e excessivamente breve, observação é a seguinte. Como o próprio 
Rawls admite, é possível aceitar uma parte da sua teoria mas não a outra; aceitar os 
princípios primeiros e não os procedimentos meta-éticos de justificação -ou vice-
versa. A teoria de Nozick adota a primazia da justiça sobre o bem (sob um véu de 
ignorância quase transparente), mas sustenta que se essa primazia for levada a 
sério nenhuma forma de justiça distributiva será justificável. Similarmente, mas em 
uma direção oposta à de Nozick, Michael Sandel32 não acredita que o princípio de 
diferença, com os valores comunitários que nele se exprimem, possa ser derivado 
da epistemologia "individualista" de Rawls. Sandel argumenta que a meta-ética 
rawlsiana, evitando partir de um sujeito "radicalmente situado" (ocupando uma 
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determinada posição na sociedade, comprometido com Urna concepção específica 
do bem, com certos grupos ou associações e assim por diante) acaba por adotar 
uma concepção do sujeito moral como "radicalmente desencarnado", isto é, como 
prévio às formas de cooperação com outros que possam ser constitutivas de 
identidade pessoal. 
No artigo publicado nesta edição, Rawls argumenta que justiça como equidade 
envolve uma concepção de pessoa moral, que ele procura precisar, mas não supõe 
nenhuma teoria específica (individualista ou outra) da identidade pessoal ou da 
natureza humana. Nada melhor, portanto, do que passar a palavra ao próprio John 
Rawls. 
NOTAS 
1 RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge-Mass., Harvard University Press, - 
1971. (Há uma edição brasileira da UNB.) 
2 Rawls prefere dizer que sua teoria é "orientada por ideais". Ver nota 19 de "Justiça 
como equidade: concepção política, não metafísica" nesta edição. 
 
3 A despeito das diferenças que mantém entre si, outras expressões importantes 
dessa tendência são: DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge - 
Mass., Harvard University Press, 1978 - NOZICK, Robert. Anarchy, State and Utopy. 
Nova Iorque, Basic Books, 1974; MACKIE, J.L. Ethics. Inventing Right and Wrong. 
Londres, Penguin Books, 1977. 
4 RAWLS, J., op., p. 26-27. 
5 SEN, Amartya e WILLIAMS, Bernard. "Introduction: Unitilarianism and Beyond." In: 
& (org.). Utilitarianism and Beyond. Cambridge University Press, 1982. 
6 É essa concepção estreita de pessoa, que considera como informações 
eticamente relevantes somente as relativas ao bem-estar dos agentes - e bem-estar 
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identificado à satisfação de desejos ou à utilidade — que Sen considera inaceitável 
na teoria econômica normativa ou descritiva. Ver, nesta edição, "Comportamento 
econômico e sentimentos morais". 
7 A Theory of Justice, p. 3-4. 
8 Ver discussão em Kai Nielsen, "Arguing about Justice: Marxist Immoralism and 
Marxist Moralism:" (Philosophy and Public Affairs, vol. 17, 3, 1983). 
9 Minha discussão limita-se a dois dos padrões antes mencionados: as teorias 
baseadas em direitos e o utilitarismo. O terceiro, a promoção de atividades 
intrinsecamente valiosas, é criticado por Elster na forma em que se exprime por 
exemplo, no pensamento de Hannah Arendt. Ver "Auto-realização no trabalho e na 
política: a concepção marxista deboa vida" nesta mesma edição. A despeito da 
crítica a Arendt, a defesa de Elster, com algumas qualificações, da noção marxista 
de auto-realização tem evidentes afinidades com uma moralidade desse terceiro 
tipo. 
10 RAWLS, John. "Kantian Constructivism in Moral Theory". The Journal of 
Philosophy, vol. LXXVII, 9, 1980. pp. 554-560. 
11 Este é o ponto de vista defendido por G. A. Cohen em "Freedom, Justice and 
Capitalism" (New Left Review, 126, 1981). 
12 Essa forma de amoralismo marxista é energicamente defendida por Richard 
Miller em "Rights and Reality" (The Philosophical Review, XC, 3, 1981). 
13 RAWLS, J. "Kantian Constructivism...", op. cit. 
14 A Theory of Justice, § 86, p. 567-577. 
15 WALDRON, Jeremy. "Theoretical Foundations of Liberalism." The Philosophical 
Quarterly, vol. 37, 147, 1987. p. 135. 
16 "Kantian Constructivism..." op. cit. 
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17 Michael Sandel faz uma interessante discussão da epistemologia rawlsiana 
em Liberalism and the Limits of Justice (Cambridge, Cambridge University Press, 
1982). 
18 No artigo publicado nesta edição, Jon Elster, no entanto, argumenta no sentido 
da superioridade de uma forma de vida orientada para a auto-realização. Ver "Auto-
realização no trabalho e na política: a concepção marxista de boa vida". 
19 "Kantian Constructivism...", p. 522. A tradução de fairness por "equidade" não 
ocorre sem alguma variação de sentido, mas parece não haver um termo mais 
adequado em português. 
20 A Theory of Justice, § 22, p. 126-130. 
21 Idem, ibidem, p. 128. 
22 WALDRON, J., op. cit., p. 145. 
23 Sobre as "bases sociais do auto-respeito", ver S 65, 66 e 67 de A Theory of 
Justice. 
24 WALDRON, J., op. cit., p. 14.5. 
25 Esta é a linha de argumentação desenvolvida por Rawls em seu artigo publicado 
nesta edição. Ver "Justiça como equidade: uma concepção política, não metafísica". 
 
26 A Theory of Justice, p. 13. 
27 Alguns críticos de Rawls confundem o consentimento hipotético a um padrão de 
justiça com uma teoria específica da deliberação política. É o caso, acredito, de 
Bernard Manin em "Volonté générale ou délibération?" (Le Débat, 33, 1985, pp. 72-
93). 
28 A Theory of Justice, pp. 101-102. 
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29 O princípio de diferença, acredita Rawls, oferece uma interpretação política para 
a ideia de fraternidade. A Theory of Justice, pp. 105-6. 
30 TAYLOR, Charles. Philosophy and the Human Sciences. Philosophical Papers (v. 
2). Cambridge, Cambridge University Press, 1985. pp. 285-317. 
31 Idem, ibidem, pp. 187-210. 
32 SANDEL, Michael,op. cit., pp. 50-65. 
 
 
 
 
 
 
 
 
2 - FILOSOFIA E EDUCAÇÃO 
ANÍSIO S. TEIXEIRA1 
As relações entre filosofia e educação são tão intrínsecas que John Dewey pôde 
afirmar que as filosofias são, em essência, teorias gerais de educação. Está claro 
 
1 TEIXEIRA, Anísio. Filosofia e educação. Revista Brasileira de Estudos 
Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.32, n.75, jul./set. 1959. p.14-27. 
 
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451992000100002#tx29
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451992000100002#tx30
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451992000100002#tx31
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451992000100002#tx32
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que se referia à filosofia como filosofia de vida. Sendo a educação o processo pelo 
qual os jovens adquirem ou formam "as atitudes e disposições fundamentais, não só 
intelectuais como emocionais, para com a natureza e o homem", é evidente que a 
educação constitui o campo de aplicação das filosofias, e, como tal, também de sua 
elaboração e revisão. Muito antes, com efeito, que as filosofias viessem 
expressamente a ser formuladas em sistemas, já a educação, como processo de 
perpetuação da cultura, nada mais era do que meio de se transmitir a visão do 
mundo e do homem, que a respectiva sociedade honrasse e cultivasse. 
E, como que para confirmá-lo, não deixa, por isso mesmo, de ser significativo o fato 
de a primeira grande formulação filosófica, no Ocidente, se iniciar com os mais 
evidentes propósitos educativos. Os primeiros filósofos são também os primeiros 
mestres, procurando reformular os valores da sociedade e, na realidade, reformar a 
educação corrente. 
Eram, pois, filósofos e reformadores. Os estudos filosóficos formais nascem, assim, 
como estudos de educação. Os sofistas foram os "primeiros educadores 
profissionais" da civilização ocidental. 
O traço distintivo dessa civilização, na frase de André Siegfried, desde então 
consistiu no "hábito de tratar os problemas à luz da razão, liberta do mágico, do 
supersticioso e do irracional ". 
Daí por diante, a mentalidade ocidental não mais se afastou dessa tradição, 
buscando subordinar a própria religião à razão e, na realidade, toda a vida humana é 
um esquema coerente de ideias, compreendendo teorias do homem, do 
conhecimento, da sociedade e do mundo. Como tais teorias são, todas elas, 
fundadas na teoria do conhecimento, faz-se esta a teoria-chave, não só para 
iluminar e esclarecer as demais, como, sobretudo, para comandar as consequências 
da filosofia, como um todo, sobre o processo educativo. 
Já mencionamos que, antes de quaisquer formulações explícitas de filosofia, a 
humanidade havia elaborado as culturas em que vivia imersa e que lhe davam os 
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instrumentos para a ação e para a fantasia, para o trabalho e para o consumo, para 
o prazer e para o sofrimento. Tais culturas continham em estado de suspensão, 
digamos assim, as teorias que viriam depois a ser formuladas expressamente. 
Baseadas em costumes e rotinas imemoriais, as culturas, quando a história delas 
nos deu conhecimento, já apenas podiam mudar por acidente ou por pressões 
externas, por choques e conflitos, desprovida a prática dos atos humanos de 
qualquer elemento intencional e mesmo de qualquer plasticidade para mudança ou 
progresso percebidos e ordenados. 
Tudo leva a crer que nem sempre foi assim eque períodos houve em que a 
humanidade praticou e aprendeu pela experiência, com poder criador considerável. 
A domesticação dos animais, a produção de animais híbridos, a confecção de 
ferramentas e instrumentos, a organização social e religiosa, com toda a 
complexidade de ritos e instituições, demonstram que o homem usou amplamente a 
inteligência e a usou com eficácia e corretamente. 
Com o apogeu das "civilizações" é que vamos encontrar os homens mergulhados 
em um estágio de triunfo e estagnação, mais devotados ao lazer e à suntuosidade 
do que à criação, endurecidos e cristalizados em intricados contextos de costumes, 
ritos e rotinas. 
Os sofistas e Platão não eram, assim, os reveladores da vida grega, mas os seus 
reformadores. Ao investirem contra os costumes e as práticas correntes, tão hirtos e 
mortos, que pareciam decorrer da adaptação cega do homem aos seus rudes 
apetites e necessidades, criaram virtualmente a sociedade dinâmica que se iria 
fundar na mudança e no cultivo da mudança. 
Dispondo de uma língua excepcionalmente avançada para o tempo, contavam os 
gregos não somente com este instrumento verbal de alta perfeição como também 
com a disposição especial para criar, por desenhos, simbolizações intelectuais para 
a especulação nos campos da geometria e da matemática. Se a isso acrescermos a 
peculiaridade helênica de não estar a sua civilização, tanto quanto outras 
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civilizações contemporâneas, acorrentada ao poder sacerdotal, detentor habitual e 
cioso do saber tradicional, teremos alguns elementos para esclarecer a mudança de 
direção na aventura humana, a que Renan veio chamar de "milagre grego". 
Capacidade especulativa, decorrente do desenvolvimento da língua e da 
simbolização geométrica, aliada ao secularismo da civilização grega, deu a esse 
momento histórico oportunidade para a formulação do pensamento filosófico da 
humanidade em condições jamais até então imaginadas. Tão definitivas se 
revelaram certas formulações, que A. N. Whitehead pôde afirmar que "a melhor 
caracterização geral da tradição filosófica do Ocidente é a de ser ela uma série de 
notas" - notas de pé de página, diz ele - "ao pensamento de Platão". 
Não se pode, pois, analisar a filosofia de educação de nossa época sem que antes 
nos detenhamos nesses recuados primórdios da civilização. 
A construção filosófica então erguida pelo homem é um prodígio de bom-senso e de 
capacidade especulativa, dentro das limitações de conhecimento do tempo. A 
experiência, antes criadora, se havia tornado rotina ou acidente e, esvaziada do 
conteúdo plástico, já não oferecia condições para progresso contínuo ou ordenado. 
A razão, pelo contrário, recém-descoberta, estava em pleno esplendor de criação 
especulativa, extasiando a imaginação grega com a maravilha das proporções, do 
ritmo, da simetria, da harmonia, do completo, do acabado, do ordenado, do perfeito. 
Não há como admirar haver chegado Platão à concepção de um mundo racional 
suprassensível, mais real que o mundo das coisas desordenadas e passageiras, e 
de que este último seria apenas a sombra fugaz e ilusória. A alegoria da caverna 
consagrou, sob forma literária, essa concepção de um mundo de ideias, real, eterno 
e imutável, a que o homem podia chegar pela educação da mente e do espírito. 
A descoberta do conhecimento racional, como algo em que se pudesse apoiar o 
homem, constituiu aquisição de tal modo segura que daí por diante as filosofias 
flutuaram e oscilaram, mas dificilmente se puderam libertar e, ainda hoje 
incompletamente, dos quadros com que as balizou o gênio de Platão. 
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Duas ordens de conhecimento eram possíveis, o empírico, fundado em experiência 
e erro e, por conseguinte, insuscetível de produzir a certeza, e o racional, fundado 
na especulação matemática e filosófica, nas leis da harmonia e da simetria, 
construção intelectual do espírito em sua intuição reveladora do real, do perene e do 
imutável. 
Dar a esse segundo conhecimento, que se elaboraria na contemplação e no lazer, a 
nobreza e a dignidade da única realidade que importava, era algo como uma 
conclusão lógica, tanto mais consequente quanto a sociedade grega, aristocrática e 
baseada na desigualdade entre homens livres e escravos, veria nessa conclusão 
uma justificação de seu próprio regime social. 
Estavam aí os elementos para as teorias do homem e da sociedade, que Platão 
desenvolve na República, propondo a organização de um Estado que, mais do que 
nenhum outro, se iria fundar na educação e no treinamento dos indivíduos para 
atender às diferentes funções sociais que lhes fossem reservadas pelas respectivas 
ordens de sua natureza humana. 
Filosofia e educação se fazem campos correlatos de estudo e de prática, e em 
nenhum outro período da história se registra afirmação mais decisiva, primeiro, 
quanto à função da educação na formação e distribuição dos indivíduos pela 
sociedade e, em segundo lugar, quanto ao reconhecimento de que sociedade 
ordenada e feliz será aquela em que o indivíduo esteja a fazer aquilo a que o 
destinou sua natureza. 
Como se distribuiriam os homens? A observação do senso-comum estava a mostrar 
que se escalonavam eles em graus diversos de capacidade mental, alguns mal se 
libertando dos apetites e necessidades do corpo, outros alcançando a coragem e a 
generosidade, e outros ascendendo, afinal, à contemplação intelectual e ao gosto 
das ideias e das formas do espírito. 
Com tais elementos não seria difícil a fórmula especulativa pela qual se ordenasse o 
complexo do mundo e do homem. O pressuposto fundamental aí estava: tudo que 
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existe se divide em Formas e Aparências, as primeiras reais, eternas, e, só elas, 
suscetíveis de conhecimento, e as últimas, passageiras, mutáveis, em processo de 
ser mas não chegando a ser, suscetíveis apenas de produzir opiniões e crenças, 
sem valor de saber, isto é, saber racional. 
O conhecimento das Formas é uma intuição mediata do intelecto sob a provocação 
dos sentidos, e o fim do homem é a contemplação dessas Formas. Composto de 
alma e corpo, substâncias diversas e, de certo modo, independentes, o homem, pela 
alma, que não é propriamente Forma, mas aparentada com as Formas e aprisionada 
no corpo, vive num aspirar ao mundo das Formas, que é o seu verdadeiro mundo. 
Como o corpo pertence ao mundo das aparências, cabe-lhe subordinar-se à alma e 
ser atendido apenas em seus apetites "necessários", e em grau mínimo. Alcança o 
homem o seu destino na medida em que se liberta das ilusões e aparências e 
depara com o mundo das realidades ou das formas, que vem a conhecer pela 
atividade intelectual e a amar pela sua harmonia e beleza. 
A natureza e a sociedade decorrem desses pressupostos, distribuindo-se os homens 
na medida em que se libertam do corpo e ascendem na capacidade de 
contemplação da Verdade, do bem e do belo, isto é, do conhecimento, que produz a 
virtude como uma consequência. Aos filósofos, que seriam, por excelência, tais 
homens, competiria a função de governo, descendo, depois, a hierarquia aos 
capazes de generosidade e coragem (defensores), até aos artesãos e produtores, 
dominados pelos apetites e sentidos. A sociedade é, assim, rigorosamente 
aristocrática e se funda na desigualdade e que os homens se distribuem por esses 
três degraus da escala humana. 
Temos nessa filosofia, aí toscamente esboçada, uma teoria do universo, uma teoria 
do homem e uma teoria da sociedade, que vêm governando a vida humana e a 
educação no Ocidente até os nossos dias. 
Absorve-a, depois de longos séculos de confusão, o cristianismo, que lhe acrescenta 
as teorias da criação e do pecado original. Compreende-se a fascinação dos 
primeiros filósofos da Igreja pelo pensamento platônico. Parecia uma antecipação ao 
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pensamento eclesiástico em elaboração e uma fundamentação teórica para ospressupostos orientais da religião nascente. 
Pela teoria platônica, a natureza não chegava a ser digna de estudo e os homens 
estavam todos distribuídos em três classes, apenas, de indivíduos, conforme 
atingissem os dois únicos níveis de desenvolvimento além do nível dos simples 
apetites do corpo. Aos desse último grupo caberia o trabalho, para atender às 
necessidades da matéria; aos que, ultrapassando os apetites, alcançassem a 
coragem e a generosidade, competia a defesa da sociedade; e, finalmente, aos que 
se elevassem ao estágio da razão e da visão universal, o poder e o governo. 
A educação seria o processo pelo qual os indivíduos desvendariam suas 
potencialidades e se distribuiriam pelas diferentes classes, formulando, desse modo, 
o filósofo grego a mais perfeita teoria das funções de processo educativo. 
Não lhe foi, porém, intelectualmente possível prever nem a unicidade de cada 
indivíduo, nem a extrema variedade de suas potencialidades, o que o levou a um 
conceito aristocrático de sociedade e, em rigor, depois de realizado, a uma forma 
limitada e estática para essa mesma sociedade. 
A ideia da criação do mundo e a do pecado original, trazidas pelos cristãos e 
oriundas da tradição judaica, viriam, por um lado, tornar a "natureza" respeitável, por 
haver sido criada por Deus, e, por outro, dar nova explicação aos elementos 
constitutivos do homem, já agora carne e espírito, os quais, longe de serem 
suscetíveis de controle pelo desenvolvimento do espírito, se encontrariam em luta 
permanente, não sendo a vitória do espírito sobre a carne o privilégio de alguns, 
mas a luta de todos os homens, do mais humilde ao mais bem dotado. 
Não se alteram as grandes estruturas do mundo, do homem, da natureza e da 
sociedade, mas surgem duas novas linhas de desenvolvimento. A primeira é o 
fermento democrático, decorrente da igualdade substancial de todos os homens; a 
segunda é a de estudo da "natureza", como algo em que se esconderiam as formas, 
pois já não era a natureza a extravagância de um demiurgo, mas a criação de Deus. 
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O dualismo de forma e matéria, assim tomado aos gregos na formulação aristotélica, 
viria, mais tarde, sofrer a reformulação tomista e reconciliar-se com a doutrina 
judaico-cristã, dando origem ao desenvolvimento moderno e às filosofias de Bacon, 
Descartes, Locke, Kant, Fichte e Hegel, todas oriundas e, no fundo, destinadas 
apenas a complementar Platão, em face da evolução da sociedade e dos 
conhecimentos humanos. 
Ainda na Idade Média, os primeiros estudiosos da "natureza" já se chamam de 
platonistas, pois estão a buscar, além das aparências e do bom-senso, o segredo 
das formas, de que a natureza seria a cópia ou a imitação. 
Por outro lado, os homens passaram a ser julgados pelo esforço com que lutavam 
pela vitória do espírito sobre a carne, e o mérito humano, em oposição ao critério 
grego, a se medir pela sinceridade na luta e não pelas vitórias alcançadas. 
São dois elementos quase-novos, a vontade do homem na luta entre o bem e o mal 
e o julgamento do homem pelas intenções. O grego virtuoso e sábio era um vitorioso 
de fato. Havia-se desenvolvido até alcançar o saber e a virtude. O cristão virtuoso 
era um lutador, sempre vencido e sempre em luta, a ser julgado não pelos 
resultados, mas pelas intenções e pela intensidade da vontade de luta. 
Por isso mesmo, a fórmula platônica era intelectualista e aristocrática e a fórmula 
cristã "voluntarística" e "potencialmente" democrática, na expressão de W. H. Walsh, 
resumindo-se nestes pontos as diferenças mais substanciais, originárias em 
essência da distinção entre a concepção grega de alma e corpo e a cristã de espírito 
e carne. Recordemos que, para São Tomás, corpo e espírito constituiriam certa 
unidade, o que dificulta o conceito de imortalidade, e leva os cristãos ao dogma da 
ressurreição dos corpos, proeza de raciocínio que, de certo modo, santifica o corpo 
na luta de espírito sôbre a carne e ameniza os rigores do ascetismo helênico. 
É com estes novos elementos que elabora Bacon a primeira revolta, com a 
reformação da teoria do conhecimento racional. Legitimado o estudo da natureza, e 
dignificado o corpo humano, de um lado sob a inspiração platônica, de que a 
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natureza escondia as formas do real, e, de outro, sob a inspiração cristã, de que a 
natureza era obra de Deus, o novo filósofo lança as bases da experimentação como 
processo do conhecimento e cria o novo conhecimento racional, o das leis da 
natureza reveladas, não pela simples especulação intelectual, fundada na 
observação do bom-senso, mas pela especulação intelectual fundada nos novos 
processos de experimentação. 
A formulação medieval da filosofia platônica, mantendo o mesmo critério do racional 
que recebera dos gregos, "antecipava a natureza", emprestando-lhe características 
arbitrárias e fundadas em opiniões humanas, que importava substituir pela 
descoberta de suas verdadeiras leis. Para tais descobertas se inventara o método 
experimental, que mais não era que o método imemorial de observar a manipular as 
coisas, a fim de ver o que se podia fazer com elas; no fim de contas, o método do 
trabalho humano. 
O encontro entre o trabalho e o conhecimento, desde que, dezenove séculos antes, 
se dera o encontro entre a razão e o conhecimento, constitui a segunda grande 
revolução da inteligência humana. 
Platão substituíra o mágico, o supersticioso, o "empírico", no sentido de acidental, o 
costume, a rotina, pela reflexão especulativa racional, mas tal reflexão revelaria uma 
verdade estática e puramente lógica. Rompendo com a natureza e com os 
processos empíricos de trabalho, que não julgava sequer dignos de estudo, achara a 
solução para sociedades aristocráticas e reduzidas, capazes de viver de literatura e 
de lazer. 
Somente Bacon abre as portas para as sociedades numerosas e ricas, em perpétuo 
desenvolvimento, ao trazer o conhecimento racional para o campo do prático, com o 
que inaugura nova era de criação e originalidade permanentes para a espécie 
humana. As sociedades destinadas a mudar e agora devotadas ao culto da 
mudança ressurgiram afinal sob o céu. 
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A volta à observação, que as concepções platônicas, de certo modo, haviam tornado 
possível interromper, religa o espírito científico aos períodos anteriores à época de 
Platão e de Aristóteles, restaurando cosmologia anteriormente descoberta e criando, 
com o método experimental, uma física e uma nova ciência da natureza. 
As estruturas do pensamento lógico e filosófico são as mesmas de Platão, mas 
abre-se um campo novo de estudos e se refazem, pela experimentação, os métodos 
de observação, antes os do senso-comum e, agora, os da pesquisa e da 
descoberta. 
São estas estruturas de pensamento que retoma Descartes, no século XVII, para 
reformular o que se veio chamar de filosofia moderna. A sua posição, entretanto, 
ainda é a de um platonismo-cristão. 
Conserva o dualismo de res cogitans e res extensa, em substituição ao de formas e 
aparências; recria o conceito platônico de conhecimento pela "intuição intelectual"; 
recomenda a observação antes com o olho da mente do que com os olhos dos 
sentidos; e antecipa os conceitos de Leibnitz de "cognitio intuitiva" como base da 
"cognitio symbolica", ou descritiva. Acrescenta, contudo, para mostrar a origem cristã 
de sua posição, a idéia da alma dotada das faculdades de compreender e de querer, 
esta mais extensa do que aquela, dando origem ao primado da vontade, que vai 
encontrar em Kant a sua expressão mais decisiva. 
Com efeito, Descartes consolida a liberdade para o estudo da ciência física, 
separando as esferas de influência entre o mecânico e o espiritual. Deixa este para 
os teólogos e moralistas e o mundo físico para os cientistas, de certo modo 
reconciliando os esforços de uns e outros. 
É Kant, porém, que tenta a últimapacificação, com o seu dualismo, ainda platônico, 
entre noumeno e fenômeno. Todo conhecimento é conhecimento de fenômeno, ou 
de aparências. O categórico absoluto só é possível no campo da razão prática. 
Substituiu-se pela fé o conhecimento. "Pura fé prática" é, afinal, o motor da ação 
humana. O homem progride nesse campo, não pelo conhecimento mas pela 
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vontade e pela experiência ancestral da vida humana. O primado do prático sobre o 
teórico faz dele, já o disse alguém, o filósofo do protestantismo, e mostra as suas 
raízes cristãs. A estrutura dualista do seu pensamento é platônica, mas as 
consequências são "voluntarísticas" e cristãs. 
Toda essa tradição filosófica se reflete na educação, com a sua organização 
intelectualista e a sua prevenção contra o técnico. Seja o sistema inglês, seja o 
francês, seja o alemão, são organizações educativas fundadas na teoria do 
conhecimento pela intuição intelectual, na teoria moral do treino da vontade, na 
nobreza de estudos literários e na prevenção contra o prático e o técnico. Bacon 
ficará, ainda por muito tempo, simples profeta da ciência. 
Até nos tipos de escolas encontra-se a hierarquia platônica, com a maior dignidade 
assegurada às formas contemplativas do saber, depois, em uma segunda ordem, as 
do conhecimento científico experimental e, afinal, as de ensino prático ou técnico, 
como último escalão da ordem educacional. 
Quase que até o fim do século XIX pode-se considerar pacífica essa classificação, 
sendo as instituições educativas mais famosas as instituições em que Platão 
facilmente se reconheceria, com alguns rápidos esclarecimentos sobre modificações 
de detalhes em suas concepções. Os próprios empiricistas, a despeito de 
divergências aparentes, não repudiavam os pressupostos básicos de Descartes, e 
deste modo também se ligavam a Platão. 
Só recentemente essa tradição entrou em real ataque, com o repúdio ao 
cartesianismo e ao kantismo, mas não se pode dizer que os novos filósofos já 
estejam influindo decisivamente nas instituições educativas. 
Estas vêm de origem demasiado remota para se transformar rapidamente, e os 
professores, em sua esmagadora maioria, refletem a posição filosófica tradicional e 
não a que começa a se esboçar em face da nova ciência das culturas e dos novos 
desenvolvimentos da filosofia científica. 
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A filosofia mais recente repele o conceito cartesiano de alma e o seu conceito de 
conhecimento. Alma passa a ser um nome para designar certas formas de 
comportamento humano, suscetíveis de explicação natural, e o conhecimento, a 
descoberta muito mais de "como" são as coisas do que de "que" são elas. 
A busca da certeza que moveu Descartes continua a motivar os filósofos, mas estes 
se mostram bem mais modestos e começam a se contentar com a garantia 
provisória da prova experimental em constante processo de renovação. Do lado 
lógico, o progresso tem sido sensível, considerando-se diversas formas de lógica, 
fundadas em convenções diversas, válidas segundo os casos a que se aplicam. A 
ciência toda se vem fazendo convencional, em sua parte matemática, e 
experimental, na parte física, com reflexos poderosos sobre as filosofias. 
Assim que se generalizarem os novos conceitos sôbre a natureza do homem, a 
natureza do conhecimento e a natureza do comportamento social e moral do 
homem, a educação refletirá os novos conceitos, que, depois, se verão 
institucionalizados nas escolas. 
Com efeito, o método desenvolvido pela pesquisa científica - originário do retorno à 
experiência recomendada inicialmente por Bacon, depois de séculos de pensamento 
puramente especulativo e racional - constituiu algo de tão característico e amplo que 
veio a refletir-se sobre a filosofia, produzindo primeiro os "empiricistas", depois, em 
contraste com esses, os "racionalistas", e afinal os "pragmatistas", 
"instrumentalistas" ou "experimentalistas", que buscam reconciliar as posições dos 
dois primeiros mediante uma reconstrução fundamental dos conceitos de 
experiência e de razão, à luz desse novo método científico. 
A reformulação desses conceitos se fez em face da alteração real sofrida pela 
natureza do ato de experiência e das modificações introduzidas na psicologia pelo 
progresso da ciência biológica. 
A mudança do caráter da experiência pode ser condensada na diferença entre os 
termos "empírico" e "experimental". A experiência, no conceito tradicional, consistia 
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no processo de tentativa e erro, só podendo produzir o saber por acidente, saber 
que se consubstanciava em hábitos e procedimentos cegos, os quais, por sua vez, 
se cristalizavam em costumes e rotinas hirtos e duros. Daí ser a experiência um 
instrumento de escravização ao passado e não de renovação e progresso. A 
experiência, como a concebeu Bacon, seria a Experimentação, o produzir 
voluntariamente a experiência para se conseguir o resultado novo e o novo 
conhecimento. 
A psicologia dos séculos dezessete e dezoito retardou, se não impediu, que se 
extraísse desse novo conceito da experiência uma teoria experimental do 
conhecimento. O atomismo associacionista dos "empiricistas" teve, por certo, a sua 
eficácia no desencorajamento das racionalizações especulativas, mas não forneceu 
os elementos para uma teoria satisfatória do saber, dando assim lugar ao 
surgimento dos "racionalistas", que buscaram completar o vácuo produzido pela 
psicologia inadequada dos sensacionalistas, com os conceitos e categorias a 
priori de Kant e dos pós-Kant. 
Foi a abordagem, antes biológica do que psicológica, já no século XIX, do fenômeno 
da experiência humana que permitiu desenvolver-se o conceito de experiência 
como interação do organismo vivo com o meio, e elaborar-se uma teoria psicológica 
adequada à explicação do comportamento humano face à experiência e ao 
conhecimento. 
Segundo essa teoria, o processo de vida é uma sequência de ações e reações, 
coordenadas pelo organismo para o seu ajustamento e reajustamento ao meio. Os 
sentidos e as sensações não são meios ou caminhos do conhecimento, mas 
estímulos, provocações e sugestões de ação, mediante os quais o organismo age e 
reage, ajustando-se às condições ou modificando as condições para esse 
reajustamento. 
Conhecimento ou saber é um resultado, um derivado dessa atividade, quando 
conduzida inteligentemente. A mente não é algo de passivo em que se imprima o 
conhecimento, nem a razão uma faculdade superior e isolada que elabore as 
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categorias, os conceitos. Estes conceitos ou categorias resultam da percepção das 
conexões e coordenações dos elementos constitutivos dos processos de experiência 
e constituem normas de ação ou padrões de julgamento. 
A integração desses novos conceitos na filosofia veio permitir a sua reformulação, 
com a elaboração de uma teoria geral do conhecimento fundada no método do 
conhecimento científico, uma teoria da sociedade adaptada aos novos meios de 
trabalho industrial criados pela ciência e uma nova teoria política da democracia, a 
qual essa mesma ciência veio afinal tornar possível. Em nosso continente, de forma 
mais marcante, contribuíram para essa reconstrução os pensadores William James, 
Ch. S. Peirce e John Dewey. 
A designação mais corrente dessa filosofia como "pragmatismo" e a identificação de 
pragmatismo com a frase saber é o que é útil concorreram para incompreensões, 
deformações e críticas as mais lamentáveis. John Dewey, a quem coube a 
formulação mais demorada e mais completa dêsse método de filosofia (mais do que 
sistema filosófico), muito se esforçou para afastar as confusões e desinteligências, e 
a sua contribuição foi decerto das maiores, se não a maior, na empresa de integrar 
os estudos filosóficos de nossa época no campo dos estudos de natureza científica, 
isto é, fundados na observação e na experiência, na hipótese, na verificação

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