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DELIRIUM INTRODUÇÃO E DEFINIÇÕES Delirium é uma síndrome clínica caracterizada por alterações agudas da consciência e das funções cognitivas com um caráter flutuante no curso temporal diário. A alteração cognitiva angular do delirium é a desatenção, habitualmente acompanhada por desorientação, desorganização do pensamento e por vezes quadros alucinatórios e delusionais. Comprometimento do nível de consciência evidenciado por sonolência e torpor é comum, entretanto estados de hipervigilância e agitação são mais comuns (até 80% dos casos diagnosticados). Em 98% dos casos, o delirium é uma manifestação neuropsiquiátrica de um insulto orgânico subjacente, sendo quadros infecciosos os mais comuns; porém, é possível que fatores ambientais como isolamento e restrição física também sejam os responsáveis pela sua precipitação. Delirium acomete principalmente indivíduos que já possuem comprometimento da reserva cognitiva, sendo o diagnóstico prévio de demência o fator de risco mais comum, acompanhado por fatores como idade acima de 70 anos e polifarmácia. ETIOLOGIA E FISIOPATOLOGIA A etiologia do delirium está principalmente relacionada a quadros infecciosos, dos quais a pneumonia e a infecção do trato urinário são os principais desencadeantes. Podemos dividir os fatores de risco para delirium em fatores predisponentes (Tabela 1) e fatores precipitantes (Tabela 2). TABELA 1 Fatores predisponentes para quadros de delirium · Idade > 70 anos · Diagnóstico prévio de demência · Perda prévia de funcionalidade · Imobilidade · Múltiplas comorbidades · Polifarmácia · Déficits sensoriais (auditivo, visual) · Acidente vascular cerebral (AVC) prévio · Depressão · Etilismo · Episódio prévio de delirium TABELA 2 Fatores que podem precipitar episódios de delirium Infecções Infecção do trato urinário, pneumonia, infecção do sistema nervoso central Distúrbios metabólicos Distúrbios hidroeletrolíticos, disglicemias, hipoxemia, distúrbios tireoidianos, encefalopatia hepática, uremia Neurológico AVC, crise convulsiva, TCE, encefalopatia hipertensiva Cardiovascular IAM, IC, arritmias Medicações/intoxicações Psicotrópicos, suspensão abrupta de medicamentos, introdução de novos medicamentos, intoxicação crônica por medicamentos de uso regular, intoxicação ou abstinência a álcool e a drogas de abuso Outros Contenção física, dispositivos invasivos (sonda vesical, sonda nasoenteral), privação de sono, mudança de ambiente AVC: acidente vascular cerebral; IAM: infarto agudo do miocárdio; IC: insuficiência cardíaca; TCE: traumatismo cranioencefálico. A identificação dos fatores precipitantes é essencial, uma vez que a investigação e o tratamento devem ser direcionados a eles. É importante reconhecer os fatores predisponentes para compreender o risco de delirium de cada paciente e realizar diagnóstico diferencial adequado com suas condições de base e limitações funcionais prévias. A fisiopatologia do delirium é complexa, multifatorial e pouco compreendida. Algumas teorias foram desenvolvidas, entretanto nenhuma delas isoladamente é capaz de esgotar a multiplicidade causal e de manifestações do estado confusional agudo. ACHADOS CLÍNICOS O delirium é uma condição de diagnóstico clínico que requer alto índice de suspeição e rastreio, uma vez que apenas cerca de 12 a 35% dos episódios de delirium são clinicamente reconhecidos. Como já descrito, o quadro clínico do delirium envolve alteração qualitativa e quantitativa da consciência, com caráter flutuante ao longo do dia. Assim, devemos pensar em delirium quando um paciente apresentar evolução aguda e flutuante das seguintes alterações: · Alteração na atenção. · Desorientação e confusão. · Alteração do nível de consciência (sonolência, torpor). · Alterações comportamentais. · Mudança no ciclo sono-vigília. · Distúrbios da percepção (delírio, alucinação, ilusão, delusão). · Comprometimento da funcionalidade. O diagnóstico de delirium é realizado utilizando-se os critérios do DSM-5: TABELA 3 Critérios diagnósticos para delirium (DSM-5) · Distúrbio de atenção (reduzida capacidade de direcionar, focar, manter e desviar a atenção) e consciência · O distúrbio se desenvolve ao longo de um curto período de tempo (geralmente horas a dias), representa uma mudança ao habitual do paciente e tende a flutuar durante o decorrer do dia · Um distúrbio adicional na cognição (déficit de memória, desorientação, linguagem, habilidade visuoespacial ou percepção) · As alterações não são mais bem explicadas por um transtorno neurocognitivo preexistente, em evolução ou já estabelecido, e não ocorrem no contexto de um nível neurológico gravemente reduzido, como coma · Há evidências a partir da história, do exame físico ou de achados laboratoriais de que o distúrbio é causado por uma condição médica, intoxicação ou retirada de substância, ou efeito colateral de medicamentos Fonte: 5ª edição do Manual diagnóstico e estatístico feito pela Associação Americana de Psiquiatria (DSM-5). O rastreamento de delirium pode ser realizado por médicos e por enfermeiros, utilizando o sCAM – Short Confusion Assesmente Method (Tabela 4), ferramenta validada em português para aplicação no departamento de emergência, com sensibilidade de 94% e especificidade de 89%. TABELA 4 Escala de avaliação de delirium sCAM – Short Confusion Assessment Method 1. Início agudo e curso flutuante Informação pode ser obtida de familiares ou da equipe de enfermagem. · Há evidência de mudança aguda no estado mental basal do paciente (dias a semanas)? · Alteração comportamental variou ao longo do dia? Isto é, apareceu e despareceu ou mudou de intensidade? 2. Desatenção Evidenciada por: · O paciente teve dificuldade em focar a atenção, por exemplo, sendo facilmente distraído ou tendo dificuldade em acompanhar o que estava sendo dito · > 2 erros em executar: aperto de mão ao ouvir a letra A na frase: S-A-V-E-A-H-A-A-R-T 3. Pensamento desorganizado Evidenciado por: · O paciente apresenta pensamento desorganizado ou incoerente, como conversação irrelevante ou inadequada, fluxo de ideias ilógico ou mudança imprevisível de assunto? 4. Alteração do nível de consciência Evidenciado por qualquer resposta diferente de “normal – alerta” ou RASS diferente de 0: · Como você classificaria o nível de consciência deste paciente? Normal – Alerta Hiperalerta – Vigilante Sonolento, facilmente despertável – Letárgico Dificilmente despertável – Torporoso Irresponsivo – Comatoso O diagnóstico de delirium requer a presença dos itens 1 e 2 mais 3 ou 4. Após o rastreamento positivo, é importante classificar o episodio nas formas existentes para guiar aspectos específicos do manejo. Os episódios de delirium podem se apresentar de três formas: · Delirium hipoativo: o paciente apresenta letargia, está apático e pouco reativo a estímulos externos. · Delirium hiperativo: caracteriza-se por hiperatividade, labilidade emocional, agitação, pode incluir recusa do tratamento pelo paciente. · Delirium misto: consiste em uma alternância entre os dois primeiros; o paciente pode se mostrar com nível de reatividade normal, mas com alteração de atenção ou flutuação do nível de consciência. EXAMES COMPLEMENTARES O diagnóstico de delirium é essencialmente clínico; até o momento não foram identificados marcadores séricos diagnósticos para essa síndrome. O objetivo dos exames subsidiários é identificar a causa precipitante e afastar ou confirmar diagnósticos diferenciais. Todo paciente admitido com alteração neurológica deve ser submetido ao ABC do paciente grave e a mensuração de glicemia capilar e de oximetria de pulso. Naqueles pacientes que apresentam história e exame físico sugestivos de alguma patologia, os exames solicitados devem ser direcionados para a doença em suspeita. É importante estar atento à presença de sinais e sintomas que indiquem acometimento neurológico com sinais localizatórios a fim de indicar exame de imagem (tomografia de crânio) precocemente. Na ausência de suspeição clínica da doença subjacente, deveser realizado rastreio infeccioso e metabólico: · Hemograma, hemocultura, gasometria arterial, creatinina, ureia. · Eletrólitos: sódio, cálcio, magnésio e fósforo. · Urina 1, urocultura. · Raio X de tórax. · Eletrocardiograma. · Estudo toxicológico deve ser realizado em pacientes em uso de drogas com considerável potencial tóxico (benzodiazepínicos, antipsicóticos, lítio, digoxina). · Avaliação de função hepática, tireoidiana e adrenal pode ser útil, assim como dosagem de vitamina B12. Naqueles pacientes em que a causa precipitante do delirium não for identificada com o rastreio inicial, deve-se progredir a investigação com tomografia de crânio. A punção lombar é útil naqueles pacientes com suspeita de meningismo e encefalite, entretanto, mesmo nos pacientes sem sinais localizatórios, deve ser realizada quando nenhuma outra causa for identificada. Pacientes com delirium que não tiverem o fator precipitante identificado devem ser mantidos em observação para avaliação do curso clínico. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL Pacientes com suspeita de delirium podem ter como diagnósticos possíveis também doenças psiquiátricas e demência. Ao contrário do quadro agudo do delirium, os outros diferenciais apresentam processos insidiosos que se prologam por meses ou anos. ABELA 5 Principais diferenciais entre delirium, demência e doenças psiquiátricas Característica Delirium Demência Doença psiquiátrica Instalação Abrupta Lenta Abrupta Evolução em 24 h Flutuante Estável Estável Atenção Reduzida Sem alterações Pode estar alterada Consciência Flutua: reduzida a hiperalerta Normal Pode estar alterada Orientação Alterada Alterada Pode estar alterada Memória Alterada Alterada Normal Percepção Alucinações visuais e raramente auditivas Intacta Alucinações auditivas Pensamento Desorganizado Vago Pode estar alterado e delirante Linguagem Lentificada Dificuldade em achar palavras Pode estar alterada Alteração de movimento Pode ter flapping Usualmente sem alterações Sem alterações TRATAMENTO Em pacientes idosos que chegam ao departamento de emergência confusos ou com outras alterações de consciência, é importante a verificação dos sinais vitais e a mensuração imediata da glicemia, assim como oferecer suporte circulatório e respiratório conforme necessidade. O manejo específico do paciente é focado em alguns pontos, como manter o paciente a salvo, procurar e remover as possíveis causas e tratamento sintomático. Eliminar o fator precipitante é o principal objetivo inicial. Dentro do tratamento não farmacológico os fatores ambientais ganham importância ao melhorar a orientação e reduzir a provação do sensório. Isso inclui: · Promover uma comunicação clara com o paciente, evitando linguagem médica e repetindo sempre que necessário o dia e local. · Disponibilizar relógios, calendários, uso de óculos e aparelhos auditivos. · Visitas e envolvimento de familiares para reorientação e conforto. · Ambiente calmo e escuro à noite com o uso de protetores de ouvido, ajudando o ciclo circadiano, assim como ofertar um ambiente claro e adequado durante o dia. Protocolos de sono podem ajudar a melhorar os sintomas. · Controle de dor ou outros sintomas que podem estar incomodando o paciente (como retenção urinária ou obstipação), monitorizando débito intestinal e urinário, preferencialmente sem o uso de sonda vesical de demora ou outros dispositivos invasivos (excetuando-se retenção urinária aguda), e disponibilizar dieta laxativa ou até mesmo uso de laxantes. · Estimular a deambulação quando esta não indicar perigo ao paciente. · Evitar a contenção física e, se e quando indicada, deve ser descontinuada o mais precocemente possível. O tratamento farmacológico deve ser limitado a pacientes muito agitados, principalmente quando existe o risco para si e para terceiros, ou em pacientes com sintomas psicóticos e delirantes. Muitas drogas têm potencial de causar ou piorar os sintomas de delirium. Duas classes de medicação são as mais discutidas dentro do tema: antipsicóticos e benzodiazepínicos. · Para o uso de antipsicóticos não existe evidência de que essa medicação reduza a incidência, gravidade, mortalidade ou duração e necessidade de cuidados hospitalares do delirium. O seu uso estaria embasado no controle do sintoma de agitação no delirium hiperativo, mas mesmo com esse objetivo, o alvo do tratamento não é a sedação; apenas uma dose seria suficiente para diminuir esse sintoma. · O haloperidol mantem-se como a droga mais utilizada, mesmo não existindo estudos que comprovem sua superioridade. A dose inicial de 1 a 2 mg pode ser suficiente, com possíveis doses adicionais a cada 30 a 60 minutos até o efeito desejado. olanzapina e risperidona também são opções a serem consideradas. · Independentemente da escolha, para pacientes idosos existe uma máxima que podemos seguir: “start low, go slow”. Comece com doses menores que as calculadas para adultos jovens e observe a condição clínica do paciente, aumentando aos poucos quando possível e sempre revendo possíveis efeitos colaterais. · Benzodiazepínicos são particularmente escolhidos quando o delirium tem provável causa na abstinência alcoólica ou no uso dos próprios benzodiazepíncos. Como segunda opção, ainda são indicados em pacientes que não responderam a outras formas de tratamento da agitação. A preferência é para drogas com início de ação e duração pequenos como o lorazepam. TABELA 6 Intervenções que podem ser utilizadas no manejo do delirium Categoria de risco da intervenção Detalhes Baixo risco – para todos os pacientes Tratar condições coexistentes, reintroduzir medicações de uso contínuo se possível Tratamento não farmacológico da agitação Médio risco – agitação moderada ou para pacientes com risco para si ou para terceiros Step 1 – medicações por via oral: preferência por medicamentos que o paciente já utiliza. Opções: · Risperidona ≤ 1 mg · Quetiapina 25-50 mg · Haloperidol 1-2 mg – atenção a reações extrapiramidais Step 2 – medicações intramusculares ou intravenosas: · Ziprasidona 10-20 mg IM · Olanzapina 2,5-5 mg IM · Haloperidol 0,5-1 mg IM Alto risco Evitar benzodiazepínicos, pois podem causar sedação profunda, excetuando-se pacientes em uso contínuo dessa classe. · Opção: lorazepam 0,5 mg Evitar Difenidramida – possui propriedades sedativas e anticolinérgicas Fonte: Medicina de Emergência, abordagem prática. 14ed.
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