Buscar

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 14 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 14 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 14 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Continue navegando


Prévia do material em texto

“Felicidade Clandestina” – resumo e análise da obra de Clarice Lispector
RESUMO
O livro Felicidade Clandestina, lançado em 1971, reúne 25 contos de Clarice Lispector. Alguns foram escritos para o Jornal do Brasil, na época em que a escritora colaborava com a publicação. O ponto de partida dos contos são acontecimentos banais, cujas repercussões acionam nas personagens reflexões a respeito da existência. 
1. Felicidade Clandestina. A narradora recorda um episódio de seu tempo de menina. Uma garota, cujo pai era dono de livraria, comentou certa ocasião que possuía o livro Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Tratava-se de um dos objetos de desejo da protagonista e ela o pediu emprestado. A dona se comprometeu a fazê-lo, mas, por dias seguidos, transferia a entrega para o dia seguinte sob as mais diversas justificativas. Até que, certa ocasião, a mãe da dona do livro descobriu tudo e fez a filha emprestar o livro. 
2. Uma amizade sincera. O narrador relata a relação de amizade com um colega de escola, que se estendeu pelos anos afora. Quando sua família se mudou para São Paulo, convidou o amigo para ocupar um quarto ali. Com o tempo, os assuntos diminuíram. Uma questão do amigo com a prefeitura os ligou e movimentou a amizade, mas, encerrado o caso, voltaram ao marasmo anterior. Por ocasião de umas férias, separaram-se, sabendo que era para sempre, embora soubessem igualmente que continuavam amigos sinceros. 
3. Miopia progressiva. Um menino míope dizia certas coisas que eram consideradas inteligentes pelos familiares. No entanto, esse juízo nem sempre ocorria e a instabilidade dessa opinião o exasperava. Certa vez, convidado para passar o dia com uma prima solitária cujo maior sonho era ter um filho, imaginou que ali poderia construir uma identidade para si. Ao se perceber amado como um filho desejado e impossível, sentiu uma irresistível atração pela paixão pura e simples. A partir disso, passou a ver o mundo com mais clareza e a acreditar que os óculos o atrapalhavam. Desde então, sempre que se via diante da confusão do mundo, tirava os óculos e “fitava o interlocutor com uma fixidez reverberada de cego”.
4. Restos do carnaval. A narradora recorda um carnaval de sua infância, no Recife, marcada pela debilidade física da mãe. Deixavam-na ficar até às onze horas da noite em frente ao sobrado onde morava com a família, com um saco de confete e um lança-perfume nas mãos. Era seu carnaval. No carnaval dos seus oito anos, a mãe de uma amiga aproveitou os restos da fantasia de rosa feita para a filha e fez uma para ela. No entanto, no momento de festejar, a saúde debilitada da mãe piorou, a família se agitou e ela foi convocada para ir até à farmácia comprar remédios. Quando tudo se acalmou, ela pôde ir até a frente do sobrado. Um menino de doze anos passou e cobriu seus cabelos de confete, como se jogasse água sobre uma rosa.
5. O grande passeio. Depois da chegada da velhice e da perda do marido e dos filhos, Mocinha se tornou uma mulher solitária. Perambulou de casa em casa, até se instalar, sem saber exatamente porque, em um quarto de fundos no bairro Botafogo. Um dia, a família que a hospedava resolveu enviá-la para a casa de Arnaldo, um dos filhos, que ficava em Petrópolis. Levaram-na até lá e a deixaram na esquina da residência. Mocinha aguardou por horas a chegada do proprietário, que, no entanto, recusou-se a recebê-la e, entregando-lhe algum dinheiro, ordenou que voltasse de ônibus para o Rio. Mocinha, no entanto, distanciou-se do caminho da rodoviária, resolvida a dar um passeio. Em certo momento “encostou a cabeça no tronco [de uma] árvore e morreu”. 
6. Come, meu filho. Pequeno episódio doméstico no qual a mãe tenta fazer o filho se alimentar, às voltas com os questionamentos que ele faz. 
7. Perdoando Deus. A narradora relata um passeio por Copacabana, satisfeita com a criação divina. Contudo, ao se deparar com um rato morto, cujo corpo quase pisou, revoltou-se contra Deus, perguntando porquê tinha acontecido aquilo justamente quando ela se sentia em paz com ele. Por vingança, resolve escrever o relato, para estragar a reputação de Deus. No entanto, ela mesma se contesta, afirmando que sua atitude supõe um determinado Deus, inventado por ela.
8. Tentação. Uma menina ruiva observava o movimento diante de sua casa. De repente, um pequeno cachorro de pelos ruivos passou diante dela, preso a coleira. Ambos se olharam. A menina imaginou ter encontrado um irmão naquele subúrbio carioca. O cachorro retomou o caminho, puxado por sua dona. A menina o acompanhou com os olhos, mas “ele foi mais forte que ela”, não se voltando nenhuma vez. 
9. O ovo e a galinha. Um dos textos mais estranhos da autora. Trata-se de uma reflexão em torno da existência e do significado do ovo, para além do que se associa à comida. Mas vai muito além, assumindo o sentido de um questionamento em torno dos limites da linguagem e de seu esforço de nomeação do que simplesmente existe. Na tentativa filosófica de desvelar o ser do ovo, o texto trata também da galinha e de sua relação com o ovo. 
10. Cem anos de perdão. Recordação de episódio infantil, no qual a narradora, com a ajuda de uma amiga, invadiu um jardim e roubou uma rosa. Depois da primeira empreitada bem sucedida, vieram outras, sempre com a ajuda da amiga vigilante. O gesto estendeu-se também às pitangas saborosas escondidas por entre as folhagens de uma sebe.
11. A legião estrangeira. Uma família de origem hindu ocupou, por um tempo, o apartamento vizinho ao da narradora. Encontros casuais no elevador eram geralmente constrangedores, porque ela percebia que o casal preferia manter distância. Mas a filha do casal, Ofélia, de oito anos, passou a visitar a narradora com frequência. Ficava sentada na sala enquanto ela batia à máquina e tinha a mania de criticá-la em tudo, desde a maneira de criar os filhos até as compras feitas na feira. Certa vez, a narradora comprou um pintinho para divertir os filhos pequenos. Ofélia o descobriu na cozinha e encantou-se com ele. A narradora percebeu, encantada, que a menina resgatava a própria infância naquele interesse infantil. Subitamente, a menina foi embora. A narradora, desconfiada, dirigiu-se à cozinha e encontrou o pintinho morto, assassinado pelo excesso de amor de Ofélia.
12. Os obedientes. Casal envolvido pela mesmice do cotidiano. Um dia, a mulher mordeu uma maçã e quebrou um dente da frente e “em vez de ir ao dentista, jogou-se pela janela do apartamento”.
13. A repartição dos pães. Um almoço com pessoas pouco conhecidas e menos ainda queridas fez a narradora pensar ter perdido seu sábado. Mas a dona da casa pareceu se comportar como quem é hospitaleira mesmo com pessoas estranhas, esmerando-se no serviço de mesa e nos pratos servidos, engolidos com voracidade e prazer por todos os convidados.
14. Uma esperança. Aparecimento de uma esperança (inseto), encantando a narradora e seu filho, que, para protegê-la, atacou a vassouradas uma aranha que a ameaçava.
15. Macacos. A narradora relata aqui as duas ocasiões em que, para alegrar os filhos, comprou micos. O primeiro foi levado por meninos que apareceram em sua casa. O segundo, uma macaquinha de nome Lisette, foi adquirida em uma feira e logo mostrou estar doente. A visita ao veterinário não adiantou e Lisette morreu. 
16. Os desastres de Sofia. A protagonista-narradora se viu às voltas com um professor cuja “controlada paciência” ela percebeu e passou a provocar, tentando fazê-lo explodir para ajudá-lo a libertar-se da vida que tinha e que o deixava de “ombros contraídos”. Passou a se comportar mal em sala de aula. Certa vez, ele pediu aos alunos que fizessem uma redação a partir de um pequeno episódio que contou. A menina percebeu que ele desejava que os estudantes extraíssem da história certa moral e ela a inverteu em seu texto. Depois de tê-lo entregado, ela saiu para o intervalo. Ao retornar para apanhar alguma coisa, foi interpelada pelo professor a respeito da redação. Ele elogiou o texto. Sem sequer apanhar o caderno que ele lhe estendiapara devolução, ela se retirou correndo da sala. 
17. A criada. Eremita tinha dezenove anos e era empregada. Embora vez ou outra respondesse de forma ríspida, no geral era quieta e introvertida, mergulhada em seu próprio mundo, de cuja riqueza ela não desconfiava. 
18. A mensagem. Casal de adolescentes se aproximou a partir do momento em que identificaram em ambos o mesmo sentimento de angústia. No entanto, o desenrolar da relação não encontrou outros pontos de identidade e a companhia passou a ser incômoda para os dois. Um dia, viram-se diante de uma enorme casa velha e ela os assombrou, como se fosse o passado a anunciar a velhice que também os atingiria. Subitamente crescida, a menina corre para apanhar o ônibus e o rapaz a segue, ele também repentinamente adulto. 
19. Menino a bico de pena. A mãe observava uma criança cujos dentes tinham acabado de nascer. Observava-o em seu “vazio profundo”. Colocou-o para dormir e, quando o menino despertou e se viu estranhamente só, chorou. A mãe entrou no quarto com a fralda na mão para trocá-lo. Ele ouve o ruído de um carro e diz “fonfom!” A mãe exulta pela descoberta da linguagem.
20. Uma história de tanto amor. Uma menina, apaixonada por galinhas, tinha duas delas: Pedrina e Petronilha. Cuidava delas com dedicação e carinho, conseguindo remédios quando estavam doentes. Certa ocasião, durante uma ausência sua, os parentes comeram Petronilha. Sobrou-lhe Pedrina, que, pouco tempo depois, morreu de velha. Já mais crescida, a menina ganhou outra galinha, Eponina. Quando Eponina morreu, a menina já compreendia que esse era o destino de todas as galinhas e por isso comeu-a com voracidade. 
21. As águas do mundo. Uma mulher diante do mar preparando-se para o mergulho, duas existências ininteligíveis, segundo o narrador. A cena é narrada com riqueza de detalhes, que captam os sentimentos da mulher. Depois de se banhar e sorver a água do mar, a mulher retorna à areia. 
22. A quinta história. Neste conto, a autora apresenta ao leitor diferentes maneiras de contar a mesma história, a partir de um núcleo comum: depois de aprender a receita de um veneno infalível, ela o aplica para eliminar as baratas que a perturbam. As histórias vão se ampliando e detalhando as sensações da mulher, até o final perturbador, em que ela pressente que novas baratas surgiriam.
23. Encarnação involuntária. A autora revela aqui sua tendência a encarnar-se em pessoas, passando a experimentar suas sensações e a imitar-lhes o comportamento. Durante um voo, aconteceu quando observou uma missionária. Adotou seus gestos comedidos e sua vergonha do mundo. Recorda que em uma ocasião tentou encarnar uma prostituta, fixando nos homens os olhos entrefechados. Mas o alvo de seu olhar estava interessado na leitura de um jornal. 
24. Duas histórias a meu modo. A partir de narrativas do escritor francês Marcel Aymé, a escritora conta duas histórias. Na primeira delas, o dono de um vinhedo vivia o drama de não gostar de vinhos. Na segunda, um grande apreciador de vinhos não tinha dinheiro para sustentar seu prazer. Este último, enlouquecido de vontade, dispôs-se a beber o mundo inteiro, sendo por isso internado em um asilo. Enquanto isso, o dono do vinhedo aprendeu a gostar da bebida.
25. O primeiro beijo. Enciumada, uma moça pergunta ao namorado quando tinha sido o primeiro beijo dele. Ele relata então uma história ocorrida na infância: durante uma excursão, ao beber água de uma fonte, deu-se conta de que esta brotava da boca de uma estátua. Aproximou-se dela e a beijou. Foi tomado de uma estranha perturbação que não chegou a compreender plenamente. Logo, porém, sentiu que se tornara homem naquele momento.
CONTEXTO
Sobre o autor
Clarice Lispector é a mais importante escritora brasileira. Desde que começou a publicar periodicamente na imprensa, nos anos 1960, tornou-se conhecida, ganhando uma legião de admiradores, intrigados e envolvidos por suas frases enigmáticas e por suas imagens surpreendentes. 
Importância do livro
Felicidade Clandestina é um livro antológico, já que muitos de seus contos mereceriam figurar em qualquer seleção de exemplares perfeitos da forma narrativa do conto, como “Felicidade clandestina”, “O grande passeio”, “A legião estrangeira”, “Os obedientes”, “Os desastres de Sofia”, “Menino a bico de pena”, “A quinta história” – sem falar em “O ovo e a galinha”, narrativa que transgride as fronteiras entre os gêneros.
Período histórico
Publicado em 1971, Felicidade Clandestina trata da vida carioca nos anos 1950-1960, durante os quais a cidade do Rio de Janeiro oscila entre um processo de urbanização acelerada e a persistência de certos hábitos provincianos.
ANÁLISE
A menina do conto que dá título ao livro Felicidade Clandestina se regozija com o prazer que sente em usufruir da leitura, tratando-o como “aquela coisa clandestina que era a felicidade”. Assim, a felicidade se associa ao estranhamento, como um sentimento com o qual não se está acostumado. Nos contos de Clarice, de uma forma geral, as personagens experimentam a felicidade, mas jamais fazem isso de maneira banal. Por isso, a felicidade existe, mas clandestinamente, fora das fronteiras da normalidade. 
Alguns dos traços mais característicos do estilo da autora estão presentes nos contos de Felicidade Clandestina: a profusão de imagens estranhas, as reflexões metalinguísticas e o teor autobiográfico de muitas narrativas.
 Assim como ocorre com a protagonista do conto, a felicidade vem de uma iluminação a respeito do mundo, um conhecimento que se adquire de forma inusitada. É o que se costuma chamar de epifania, uma revelação mística comumente associada à obra de Clarice Lispector. 
No conto “Miopia progressiva”, por exemplo, o narrador relata: “Uma vez ou outra, na sua extraordinária calma de óculos, acontecia dentro dele algo brilhante e um pouco convulsivo como uma inspiração”. Trata-se da perfeita tradução do processo epifânico, conforme ele costuma se manifestar nos contos da autora. Quase sempre, tais momentos acionam um processo de autoconhecimento, que transforma a vida das personagens em alguma medida.
Esses acontecimentos podem não ter nada de extraordinário. No estranhíssimo “O ovo e a galinha”, o processo de reflexão é iniciado a partir de algo absolutamente banal na vida de uma mãe que começa a preparar uma refeição matinal: “De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo”. A partir da constatação dessa banalidade é que começa a se revelar o ser humano. 
O que as narrativas ensinam é que, para ter acesso a esse conhecimento, é preciso enxergar para além do ovo e do óbvio. No final de “Miopia progressiva”, lê-se: “cada vez que a confusão aumentava e ele enxergava pouco, tirava os óculos sob o pretexto de limpá-los e, sem óculos, fitava o interlocutor com uma fixidez reverberada de cego”. 
E se é preciso ir além do explícito, é necessário também criar uma linguagem do implícito. Por isso, a reflexão metalinguística sobre os limites da expressão verbal é, por si só, quase um implícito das histórias de Clarice. O conto “Os obedientes” começa assim: “Trata-se de uma situação simples: um fato a contar e esquecer. Mas se alguém comete a imprudência de parar um instante a mais do que deveria, um pé afunda dentro e fica-se comprometido. Desde esse instante em que também nós nos arriscamos, já não se trata mais de um fato a contar, começam a faltar as palavras que não o trairiam”. Isto é: existe o fato em si; mas o que nele deve ser resgatado, o que dele é de fato importante e permanente – este é o mistério que a palavra usada para narrá-lo tenta superar. Ou, pelo menos, explicitar.
Lançado inicialmente em 1971, "Felicidade Clandestina" reúne diversos textos de Clarice Lispector que foram escritos em diversas fases da vida da autora. Os textos reunidos nessa obra podem mais facilmente serem classificados como “contos”, mas como Clarice não se prendia a convenções de gêneros, todo o conjunto reunido em Felicidade Clandestina migra de gênero em gênero, ora aproximando-se do conto, ora aproximando-seda crônica, ou por vezes sendo quase um ensaio. De fato, muitos dos textos reunidos neste livro foram publicados como crônicas no Jornal do Brasil, para onde Clarice escrevia semanalmente de 1967 a 1972.
Ao todo, Felicidade Clandestina reúne 25 textos que tratam de temas diversos, tais como a infância, a adolescência, a família, o amor e questões da alma. Assim como a crônica que dá título ao livro, muitos dos textos apresentam algo de autobiográfico, trazendo recordações da infância da autora em Recife, alguma personagem que marcou seu passado, etc. Através da recordação de fatos do seu passado, Clarice Lispector busca nos contos fazer uma investigação psicológica de autoanálise.
Uma das técnicas mais empregadas nesses contos é a da narrativa em fluxo de consciência, que é uma tentativa de representação dos processos mentais das personagens. Esse tipo de narrativa não possui uma estrutura sequencial, uma vez que o pensamento não se expressa de uma forma ordenada. Dessa forma, seria como se o autor não tivesse controle sobre a personagem e a deixasse entregue a seus próprios pensamentos e divagações.
Assim, dentro desse processo de associação de ideias e pensamentos desconexos, em um dado momento a personagem passa por um momento de epifania, que é uma súbita revelação ou compreensão de algo. Ao passar por esse momento de epifania, a personagem descobre a essência de algo que muda sua visão de mundo ou sua própria vida. Através desses momentos de epifania, personagens que poderiam ser considerados sem relevância alguma aos olhos da sociedade ganham profundidade psicológica e existencial.
Contos representativos
“Felicidade clandestina”
Nesta crônica a narradora em primeira pessoa conta sua primeira experiência com um livro. Porém, este livro é de uma menina má que o oferece emprestado para a narradora, mas sempre inventa uma desculpa para não entregar o livro a ela. Até que a mãe da menina má descobre isso e entrega o livro para a narradora, que passa a saborear o livro como se fosse um amante. Esta crônica tem um cunho autobiográfico, como comprovou a própria irmã da escritora dizendo que se lembra da “menina má”.
O ponto central desse texto é o conceito de “felicidade”. Nele, a escritora parece se questionar “afinal, o que é felicidade?”. A menina presente na crônica parece conhecer bem o dito popular “felicidade é bom, mas dura pouco”, uma vez que ela se utiliza de todas as formas para prolongar seu sentimento de felicidade. Uma vez que ela ganhou permissão para ficar com o livro pelo tempo que desejasse, ela o deixa no quarto e finge esquecer que o possui, só para se redescobrir possuidora dele. Dessa forma, sua felicidade aparece como um sentimento “clandestino”, já que nem ela mesma pode se conscientizar de sua própria felicidade para que esse sentimento não acabe. Concluísse, portanto, que a felicidade deve ser descoberta a todos os momentos e nas coisas mais simples.
“Amizade sincera”
Este conto é a história de dois homens que se tornam amigos inseparáveis, mas em dado momento começa a faltar assunto entre eles. Os dois vão morar junto, mas não conseguem mais voltar a ser amigos como antes e, por fim, eles tomam rumos diferentes na vida e sabem que não irão mais se ver.
Este conto tematiza os paradoxos das relações humanas e o individualismo das pessoas. Se por um lado queremos manter uma amizade a todo custo, a ponto de quase “ceder a alma” ao amigo, quem de fato gostaria de “ceder a alma”? – pergunta-se o narrador. Assim como aparece em outros contos de Clarice, a relação entre as pessoas parece estar fundamentada em uma “relação de troca”. No conto, os dois amigos já não encontram mais o que “trocar” entre si e disso nasce uma grande melancolia e desilusão, corroendo a amizade entre os dois. Por fim, o que sobra de sincero aos dois é saber que eles não mais se falarão porque escolheram isso.
“O ovo e a galinha”
Este é um dos contos mais emblemáticos de Clarice Lispector. A partir da visão de um ovo que está sobre a mesa da cozinha, o narrador inicia uma série de pensamentos a cerca das mais diversas coisas. Esses pensamentos aparecem de forma aleatória e em fluxo de consciência, onde uma ideia, sentimento, sensação etc, desencadeia outro e assim sucessivamente. Dessa forma, ele vai desconstruindo o objeto que está sendo visto e o ovo passa, então, a ser uma representação de qualquer coisa, física ou abstrata (liberdade, amor, vida, etc.). Assim, através dessa “desconstrução”, o ovo deixa de ser simplesmente um ovo e torna-se a chave para a compreensão do amor, da vida e da própria existência humana.
“Os desastres de Sofia”
Neste conto a narradora relembra seus tempos de escola. Por volta dos nove anos de idade, ela nutre uma espécie de amor pelo professor, um homem feio e aparentemente frustrado. A menina-narradora entra em um jogo sádico com o professor, de forma que ela faz tudo para que ele a odeie. Até que em certo momento da narrativa ele pede para que a sala escreva uma história a partir de dados que ele fornece. Ansiosa para ser a primeira a terminar, a menina-narradora escreve a sua história rapidamente e sai da sala triunfante. Porém, após o professor ler o texto que ela escreveu, ele se mostra impressionado e até sorri. A menina-narradora percebe que o olhar do professor não tem mais o ódio de antes, e ela se desespera com sua nova realidade. A partir disso ocorre um momento de epifania em que ela se depara com a verdade do mundo e sua vida muda.
O título do conto é provavelmente uma alusão a um livro infantil escrito no século XIX pela francesa Condessa de Ségur e que também se chama “Os desastres de Sofia”. Porém, no conto de Clarice, o nome “Sofia” não aparece nenhuma vez além do título. Este nome, “Sofia”, é de origem grega e significa “sabedoria”. Assim como em muitos outros contos da escritora, o núcleo temático de “Os desastres de Sofia” parece ser o da autodescoberta. Isso parece ser sugerido também pela ausência do nome Sofia no conto, pois a personagem estaria em busca de sua própria identidade, o que acontece só ao final do livro com o momento de epifania.
Por fim, cabe ressaltar que a narradora traça o seu passado de uma forma autobiográfica, mas ela não o faz de uma forma “fiel”. Ao invés de simplesmente contar os fatos e acontecimentos de seu passado, ela o reinventa a partir das experiências do “eu” presente. Isso fica bem marcado em passagens em que a narradora confessa ter dúvidas sobre o que aconteceu ao certo em determinadas ocasiões e se mostra constantemente hesitante. Assim, através da reconstrução não sistemática de seu passado, a narradora constrói a imagem que faz de si mesmo no seu presente.
Comentário do professor
O Prof. Marcílio Gomes Júnior, da Oficina do Estudante, frisa que Felicidade Clandestina foi publicado no auge da carreira de Clarice Lispector, sendo o seu quarto livro de contos. Como escritora, pode-se dizer que Clarice já havia atingido sua maturidade e conseguia realizar com maestria o que seria o ponto chave de suas obras: o estudo e análise do ser humano. Através de um mergulho no universo interior das personagens, Clarice trazia à tona temas existencialistas e as contradições, dúvidas, inquietudes do ser humano. Nesse ponto, o prof. Marcílio comenta que ela se aproxima bastante de escritores como o russo Dostoievsky (autor de Crime e Castigo), e dos brasileiros Machado de Assis e Graciliano Ramos. Em seus contos, Clarice também explora muito o tema da família e seus confrontos, exibindo o cerne da família brasileira.
Quanto à questão existencialista, o prof. Marcílio chama atenção para o fato de que esse existencialismo sempre conduz o sujeito (as personagens) para um inevitável isolamento. Assim, em toda a obra de Clarice Lispector teremos personagens desconfiadas, inadaptadas ao meio em que vivem, com temores e inquietações. Através de um mergulho no interior do ser humano, essas personagens cheias de crises existenciais sempre irão passar por um momento de epifania, que seria um “momento de tomada de consciência” ou um “momentode iluminação”. Esta experiência epifânica irá ampliar o campo de percepção da personagem e ela será elevada a outro nível de consciência, passando a ver o mundo a sua volta de outra maneira. Assim, após ver a existência humana de um novo modo, a personagem ou voltará a ser o que era, mas agora com uma consciência elevada, ou então irá manter seu novo estado de consciência.
Por fim, o prof. Marcílio ressalta que como a preocupação de Clarice é com a personagem em si e sua viagem ao interior do ser humano, o cenário físico ao redor é muitas vezes deixado de lado. A não ser que o cenário interfira diretamente ou ativamente na história, não encontraremos nenhuma passagem descritiva nos contos de Clarice. Além disso, a escritora utiliza uma linguagem subjetivada, abusando de adjetivos, metáforas e comparações. Do ponto de vista formal, vale a pensa ressaltar que Clarice utiliza um chamado estilo circular, que consiste na repetição sistemática de palavras, expressões ou frases, para conseguir um efeito enfático.
Sobre Clarice Lispector
Clarice Lispector nasceu em 10 de dezembro de 1920 em Tchetchelnik, Ucrânia. Quando tinha cerca de dois meses de idade, seus pais migraram para o Brasil, terra que considerava como sua verdadeira pátria. Em 1924, a família mudou-se para o Recife, onde iniciou seus estudos. Por volta dos oito anos, Clarice perdeu sua mãe. Três anos depois, a família muda-se para o Rio de Janeiro.
Ingressa em 1939 na Faculdade de Direito, e publica no ano seguinte seu primeiro conto, Triunfo, em uma revista. Forma-se em 1943 e casa-se no mesmo ano com o diplomata Maury Gurgel Valente, com quem teve dois filhos. Durante seus anos de casada, mora em diversos países pela Europa e nos Estados Unidos.
Em 1944, publica seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, vindo a ganhar o Prêmio Graça Aranha, da Academia Brasileira de Letras, no ano seguinte. Separa-se de seu marido em 1959 e volta para o Rio de Janeiro com seus dois filhos. No ano seguinte, publica seu primeiro livro de contos, Laços de família.
Em 1967, um cigarro provoca um grande incêndio em sua casa e Clarice fica gravemente ferida, correndo risco inclusive de ter sua mão direita amputada. Porém, após se recuperar, continua com sua carreira literária publicando diversos livros.
Publica em 1977 seu último livro, A hora da estrela, vindo a ser internada pouco tempo depois com câncer. A escritora vem a falecer no dia 9 de dezembro do mesmo ano, véspera de seu aniversário de 57 anos.
Suas principais obras são: "Perto do coração selvagem" (1944), "Laços de família" (1960), "A maçã no escuro" (1961), "A legião estrangeira" (1964), "A paixão segundo G.H." (1964), "Felicidade clandestina" (1971), "Água viva" (1973) e "A hora da estrela" (1977).