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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA SAÚDE PAULA DOS SANTOS PEREIRA MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA: percepções sobre a perpetuação da violência em suas vidas Goiânia 2017 i PAULA DOS SANTOS PEREIRA MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA: percepções sobre a perpetuação da violência em suas vidas Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciências da Saúde da Universidade Federal de Goiás para obtenção do Título Mestre em Ciências da Saúde. Orientador: Prof. Dr. Marcelo Medeiros Linha de Pesquisa: Aspectos Nutricionais, Educacionais e Socioculturais da Saúde Humana Goiânia 2017 Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor, através do Programa de Geração Automática do Sistema de Bibliotecas da UFG. PEREIRA, Paula dos Santos Mulheres em situação de violência: percepções sobre a perpetuação da violência em suas vidas [manuscrito] / Paula dos Santos Pereira. – 2017. 95 f. : figs., quadros. Orientador: Prof. Dr. Marcelo Medeiros. Dissertação (Mestrado)–Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Medicina, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde, Goiânia, 2017. Bibliografia. Anexos. Apêndice. Inclui siglas, abreviaturas, lista de figuras e quadros. 1. Violência contra a mulher. 2. Violência doméstica. 3. Relações entre gerações. 4. Rede/serviços de saúde. I. Medeiros, Marcelo, orient. II. Título. CDU 614 ii iii Dedico este trabalho a todas as mulheres que, em seu cotidiano, infelizmente, convivem ou conviverão com a violência, ainda tendo de lutar por respeito e dignidade. Agradecimentos iv AGRADECIMENTOS Durante todo o processo deste trabalho, muitos foram aqueles que, de forma direta ou indireta, fizeram parte da caminhada. São muitos aqueles que em pensamentos e palavras fizeram parte de tudo isto e sou extremamente grata por cada demonstração de carinho e atenção. Primeiramente, agradeço a Deus por me dar saúde e sabedoria para seguir com minhas escolhas e permitir que consiga trabalhar por aquilo em que acredito. Agradeço também Aos meus pais, Regina e José, meus grandes motivadores na vida, que sempre me ensinaram a buscar e a lutar pelos meus sonhos, me mostrando a importância de sempre aprender mais. Obrigada pelo carinho, amor e respeito que sempre me deram. À minha irmã, Natália, minha companheira de sempre, que apesar da distância se faz presente em minha vida, principalmente nos momentos de maior dificuldade e de alegria. Ao meu esposo, Túlio, pelo incentivo, pela paciência e parceria em caminhar ao meu lado em mais um trabalho, sendo compreensivo e companheiro nos momentos de cansaço e exaustão. Ao meu filho, José Marcos, que mesmo tão pequeno já fez parte deste importante momento de minha vida, sendo um motivador para que eu seja um exemplo para ele. Ao meu orientador, Marcelo Medeiros, por me dar a oportunidade de realizar este trabalho e por me ensinar muito, sendo meu orientador e guia, sempre me dando exemplo de excelente profissional e professor, querido e sábio em suas palavras. À Secretaria de Saúde de Aparecida de Goiânia, por me permitir usar seu espaço e informações a respeito de um tema tão importante e significativo. Em especial, à equipe do Programa de Prevenção às Violências Agradecimentos v e Promoção de Saúde, Danilo, Lígia, Keffen e Jaqueline, profissionais competentes que me acompanharam neste processo de aprendizagem. Aos meus amigos e colegas do Núcleo de Estudos Qualitativos em Saúde e Enfermagem (NEQUASE), os quais, por muitas vezes, me orientaram e guiaram na execução de atividades, proporcionaram momentos de alegria, ensinamento, discussões e amizade. Às minhas amigas da graduação, que até hoje se fazem presentes em minha vida e têm me ajudado em muitos momentos de dúvida e de aprendizagem. Em especial, à Paolla, minha amiga e conhecedora do tema violência, que me ensinou e ajudou na construção desta pesquisa. À banca examinadora, tanto os da etapa da Qualificação quanto no momento da defesa final, Profas. Dras. Nilce Maria da Silva Campos Costa, Márcia Maria de Souza, Mary Lopes Reis e Ana Lúcia Queiroz Bezerra. À revisora Suzana Oellers, que com seu trabalho e competência me auxiliou na finalização desta dissertação e ainda foi um apoio para os momentos finais deste processo. Agradeço a todas as mulheres que, por meio de seu sofrimento e luta, me permitiram aprender e compreender mais e melhor sobre este fenômeno. Enfim, quero agradecer por mais esta etapa em minha vida profissional e pessoal. Um momento de muito aprendizado, que deixa sua marca em minha trajetória. Sumário vi SUMÁRIO FIGURAS E QUADROS ............................................................................ viii LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS ...................................................... ix RESUMO ..................................................................................................... x ABSTRACT ................................................................................................. xi APRESENTAÇÃO ...................................................................................... 12 1. DELIMITANDO O OBJETO DE PESQUISA .......................................... 15 1.1 Aproximação ao tema ..................................................................... 15 1.2 Objetivos do estudo ....................................................................... 22 2. CONTEXTUALIZANDO A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER ............. 23 2.1 A violência contra a mulher ........................................................... 23 2.2 Gênero ............................................................................................ 28 2.3 A aprendizagem social e a intergeracionalidade do comportamento violento ................................................................................................. 30 2.4 O apoio e o atendimento à mulher em situação de violência .... 34 2.5 Pressupostos do estudo ............................................................... 39 3. METODOLOGIA ..................................................................................... 41 3.1 Referencial teórico-metodológico ................................................. 41 3.2 Campo de estudo ............................................................................ 41 3.3 Trabalho de campo ........................................................................ 43 3.3.1 Análise dos dados ................................................................... 45 3.3.2 Preceitos éticos ....................................................................... 47 4. RESULTADOS E DISCUSSÃO .............................................................. 48 4.1 Caracterização das participantes .................................................. 49 4.2 O contexto familiar na infância ...................................................... 51 4.3 A intergeracionalidade do comportamento violento ................... 55 4.3.1 Violência por parceiros íntimos – a perduração da violência contra a mulher ............................................................................................ 56 4.3.2. Os filhos diante da violência – a manutenção da intergeracionalidade ......................................................................... 60 4.4 As expectativas futuras .................................................................. 64 Sumário vii 4.5 O contexto da rede de atenção à violência contra a mulher ...... 66 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................71 REFERÊNCIAS .......................................................................................... 76 ANEXOS ..................................................................................................... 87 ANEXO 1. Parecer do Comitê de Ética ................................................... 87 ANEXO 2. Autorização da Secretaria Municipal de Saúde .................... 91 APÊNDICES ............................................................................................... 92 APÊNDICE 1. Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ................ 92 APÊNDICE 2. Roteiro de Entrevista Semiestruturado ........................... 94 Figuras e quadros viii FIGURAS E QUADROS Figura 1. Número de notificações de casos de violência contra mulheres de 20 a 59 anos em Aparecida de Goiânia de 2013 a 2016.. ................................................................... 20 Quadro 1. Tipos de violência segundo a Lei Maria da Penha. ......... 26 Quadro 2. Características sociodemográficas das participantes. ..... 50 Figura 2. Esquema representativo da intergeracionalidade da violência na vida das participantes. .................................. 61 Lista de siglas e abreviaturas ix LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS BO: Boletim de Ocorrência CAIS: Centro de Atenção Integral à Saúde DEAM: Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher ECA: Estatuto da Criança e do Adolescente IPEA: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada LILACS: Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde OMS: Organização Mundial da Saúde ONU: Organização das Nações Unidas SciELO: Scientific Eletronic Library Online SIM: Sistema de Informação de Mortalidade SUS: Sistema Único de Saúde SINAN: Sistema de Informação de Agravos de Notificação TCLE: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido UBS: Unidade Básica de Sáude UPA: Unidade de Pronto Atendimento VPI: Violência entre Parceiros Íntimos Resumo x RESUMO PEREIRA, Paula dos Santos. Mulheres em situação de violência: percepções sobre a perpetuação da violência em suas vidas. 2017. 95 f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Saúde)–Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2017. A violência na vida da mulher pode se iniciar desde a sua infância, perpetuando-se em sua vida adulta. Isso denota que tais experiências tendem a ser transmitidas intergeracionalmente, comprometendo todo o cenário familiar. Esta pesquisa teve como objetivos compreender a intergeracionalidade do comportamento violento na vida de mulheres vítimas de violência e identificar suas percepções sobre a atuação do profissional de saúde no contexto de seu atendimento. Foi realizada uma pesquisa social estratégica de abordagem qualitativa, tendo como campo de estudo o Serviço de Psicologia do Programa de Prevenção às Violências e Promoção da Saúde, da Vigilância Epidemiológica da Secretaria Municipal de Saúde de Aparecida de Goiânia, GO. Participaram da pesquisa dez mulheres adultas que estiveram ou estão em situação de violência. Os dados foram coletados por meio de entrevista semiestruturada gravada e, após a transcrição, analisados por meio de análise de conteúdo modalidade temática. A partir disso, emergiram quatro categorias: “o contexto familiar da infância”, “a intergeracionalidade do comportamento violento”, “as expectativas futuras” e “o contexto da rede de atenção à violência contra a mulher”. Os resultados mostraram que a violência está presente na vida dessas mulheres desde a sua infância, que elas identificam a influência deste fenômeno em suas relações afetivas e na vida de seus filhos, comprometendo também suas vidas futuras, e que os serviços de saúde não foram percebidos como locais de apoio às vítimas, mostrando a necessidade de mudanças nas condutas diante destes casos. Conclui-se que a violência contra a mulher gera consequências a curto, médio e longo prazos e que se trata de comportamento que pode ser transmitido para as demais gerações por meio do processo de aprendizagem. Já a atuação dos profissionais da saúde foi percebida como deficitária, não sendo uma referência de apoio às vítimas. Com base nos resultados desta pesquisa, sugerem-se intervenções nas famílias das vítimas, maior divulgação de informações e capacitações sobre o tema para os profissionais da rede e inserção da temática violência em grades curriculares. Palavras-chave: Violência contra a mulher. Violência doméstica. Relações entre gerações. Rede/serviços de saúde. Abstract xi ABSTRACT PEREIRA, Paula dos Santos. Women in situation of violence: perceptions about perpetuation of violence in their lives. 2017. 95 f. Dissertation (Master’s in Health Sciences)–Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2017. Violence in women’s lives can start in their childhood and perpetuate in adulthood. This indicates that such experiences tend to be transmitted intergenerationally, compromising family structure. This research aimed to understand intergenerational violent behavior in the lives of female victims of violence and to identify their perceptions about the performance of healthcare professionals in the context of their care. A qualitative strategic social research was carried out in the Psychology Service of the Program for Prevention of Violence and Health Promotion, of the Epidemiological Surveillance Control of the Municipal Health Department of Aparecida de Goiânia, GO. Data were collected using a recorded semi-structured interview with ten adult women who are or were in situation of violence and analyzed after transcription using content analysis based on themes. As a result of this process, four categories emerged: “family context of childhood”, “intergenerational violent behavior”, “future expectations”, and “the context of the net of attention to violence against women”. The results showed that violence has been present in these women’s lives since their childhood, that they identify the influence of this phenomenon on their affective relationships and on their children’s lives, which compromises their future lives, and that healthcare services were not perceived as places to support victims, showing the need for changes in the conduction of these cases. It was possible to conclude that violence against women has short-, medium-, and long-term consequences and that this behavior may be transmitted to future generations through a learning process. The performance of healthcare professionals was perceived as deficient, and therefore it is not a reference of support for the victims. Based on the results of this study, we suggest interventions in the victims’ families, broader diffusion of information and qualification on the theme to healthcare professionals and inclusion of the theme violence in college syllabi. Keywords: Violence against women. Domestic violence. Relationships across generations. Healthcare system. Apresentação 12 APRESENTAÇÃO Como psicóloga de um ambulatório de atendimento a vítimas de violência há três anos, observo no cotidiano do consultório a relação entre violência e saúde. Nesse serviço, realizo atendimento a vítimas de violência de diferentes idades, sendo as mulheres a principal população em acompanhamento. Diante desta experiência, foi possível observar que a maior parte das mulheres vítimas de agressões apresenta quadros de depressão, baixa auto-estima, desmotivação e ideações suicidas, todos associados à realidade vivida, o que compromete toda a sua vida, incluindo seus planos e expectativas futuras. Entretanto, apesar de tal condição, algumas delas mantêm suas relações afetivas diante da crença de que não podem ser desfeitas, visto que em suas histórias de vida a violência já estava presente no relacionamento de seus responsáveis, o que as leva a crerque tal condição faz parte das relações íntimas. Ademais, a maior parte delas não desenvolveu formas de enfrentar e lidar com a violência, gerando em suas vidas comportamentos que as colocam como “eternas” vítimas dessas relações. Estar inserida em um ambulatório de atendimento às vítimas de violência me levou a conhecer e a reconhecer a dimensão deste tema em relação à saúde pública, vivenciando em meu cotidiano laboral a importância da prevenção e do apoio às vítimas, percebendo as consequências deste fenômeno e as possibilidades de atuação neste campo. Os atendimentos às mulheres, especificamente, também trouxeram outras percepções, além dos aspectos psíquicos presentes nestes indivíduos, como tristeza, baixa auto- estima, desesperança, desmotivação, ansiedade e outros. Assim, comecei a observar com mais afinco a história de vida delas e seus comportamentos atuais diante de seus filhos, além de constatar, com mais precisão, qual é o papel da saúde na vida dessas mulheres agredidas. Com o tempo de vivência com essas mulheres por meio dos atendimentos, ouvindo suas queixas e histórias, percebi que a maior parte Apresentação 13 delas já vivenciava a violência desde a infância, seja vendo suas mães sendo violentadas, seja sendo vítimas diretas de violência por parte de seus pais. A minha conduta clínica nos atendimentos se baseia na teoria da análise do comportamento, abordagem psicológica que visa compreender o indivíduo a partir de sua interação com o ambiente, sendo este tudo aquilo que interage com o sujeito, incluindo as coisas materiais, a sociedade e a sua individualidade. Seguir essa abordagem em meus atendimentos me levou a ter um olhar diferenciado sobre essas mulheres e a violência, e surgiram questionamentos sobre a influência do ambiente na persistência dos eventos violentos na vida delas. Outro fator percebido nesses acompanhamentos foi a função dos serviços de saúde na vida das vítimas. Por trabalhar na área da saúde, reconheço a importância deste setor em relação à violência. Conheço as portarias que nos guiam a atuar de forma integral e igualitária diante de qualquer fato que comprometa a saúde, sendo nosso dever apoiar, acolher e tratar vítimas de violência. Com base nessa experiência profissional, iniciei meus estudos e minha busca por compreender melhor o fenômeno da violência e de que maneira o ambiente pode influenciar a persistência deste fenômeno na vida de algumas pessoas. Também percebi a necessidade de compreender como os serviços de saúde eram vistos pelas vítimas. A partir dessa necessidade, iniciei este trabalho com o intuito de focar em aspectos da história e seguindo até o momento atual, analisando as expectativas de mulheres vítimas de violência e o papel dos serviços de saúde para elas, como forma de observar de que maneira se dá a atuação de profissionais diante da violência. Conhecer as percepções do caráter histórico da violência na vida de uma mulher pode permitir o desenvolvimento de ações focadas na prevenção e atenção à vítima. A partir disso, torna-se possível elaborar programas para ampliar as ações voltadas para as vítimas de violência, levando a uma conduta mais humana e acolhedora por parte dos profissionais da saúde. Desse modo, esta dissertação está estruturada em cinco partes. Na primeira, são descritos a delimitação do tema, as questões e os objetivos do Apresentação 14 estudo. Na segunda, é apresentado o referencial teórico que embasa e fundamenta a construção desta pesquisa. A terceira consiste na descrição da metodologia, expondo-se o referencial teórico metodológico, o campo de estudo e o trabalho de campo. Na quarta, são mostrados os resultados e os dados trabalhados são discutidos. Na quinta, são feitas as considerações finais deste estudo. Delimitando o objeto de pesquisa 15 1. DELIMITANDO O OBJETO DE PESQUISA 1.1 Aproximação ao tema Violência é um vocábulo de origem latina que vem da palavra vis, a qual significa força, se referindo ao uso de superioridade física sobre o outro (MINAYO; SOUZA, 2003). O fenômeno se refere à luta pelo poder e à busca por domínio. A violência reflete realidades diferentes, variando de acordo com épocas, culturas e circunstâncias, se aprimorando a cada tempo e tornando- se cada vez mais complexa e articulada (MINAYO; SOUZA, 2003). A violência é um fenômeno social e historicamente determinado que atinge e acompanha a humanidade desde os seus primórdios, sendo uma manifestação social de grupos e indivíduos (DAHLBERG; KRUG, 2006; MINAYO, 2005). É uma herança comum a todas as classes sociais, culturas e sociedades, um fenômeno estrutural e intrínseco à civilização, que pertence à organização social e manifesta-se de diferentes maneiras (GOMES et al., 2007; VISENTIN et al., 2015). Dado que sofre influências de épocas, locais e realidades, a violência pode ser vista de distintas formas, dependendo da cultura local, o que pressupõe reflexão complexa, polissêmica e controversa (MINAYO; SOUZA, 2003; PACHECO, 2012). Diante de suas importantes consequências nas dimensões física e psicológica, individual e coletiva, a violência também se tornou um problema na área da saúde. Assim sendo, surgiu a necessidade da criação de políticas e práticas para intervenções específicas e eficazes nesse setor (DAHLBERG; KRUG, 2006; GOMES et al., 2015; MINAYO, 2005; STÖCKL et al., 2013; VISENTIN et al., 2015; WHO, 2013). Chauí (1985) afirmou que violência é como uma violação ou transgressão de normas, regras e leis, mas sob dois ângulos: de um lado, é uma conversão de diferenças e relações assimétricas que visa dominar, explorar e oprimir; de outro lado, é uma ação que não considera o ser humano Delimitando o objeto de pesquisa 16 como sujeito, mas como uma coisa ou objeto. Portanto, a violência se configura como uma violação do direito e da liberdade de ser sujeito constituinte de sua própria história. A violência de um modo geral pode ser entendida como: O uso intencional da força física ou do poder, real ou ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento e privação de liberdade (KRUG et al., 2002, p. 5). Minayo e Souza (1997) também designaram violência como qualquer ação intencional, perpetrada por indivíduo, grupo, instituição, classes ou nações, dirigida a outrem, que cause prejuízos, danos físicos, sociais, psicológicos e/ou espirituais, trazendo amplitude em relação aos efeitos destes atos. Para fins do presente estudo, considera-se a designação de Chauí (1985) mais pertinente e apropriada para o desenvolvimento das discussões, tendo como base os objetivos desta pesquisa. Um dos focos deste estudo é a história da violência vivenciada por mulheres, buscando-se aspectos sociais que apontam a violência como uma violação de direitos e de liberdade, em que um sujeito é objeto passivo, explorado e oprimido, caracterizando uma relação assimétrica entre o homem e a mulher. Também se leva em consideração o papel da mulher no contexto da violência–homem–mulher como forma de perceber de que maneira ela se vê inserida nesta tríade, questão relevante para a investigação da construção social das relações. Desde a década de 1980, observa-se que as mortes por violência e acidentes, designados como causas externas de mortalidade, passaram a ser a segunda causa de morte no Brasil, mostrando que essas duas causas estão entre os mais graves problemas de saúde pública a ser enfrentado (BRASIL, 2001). Essas causas externas atingem principalmente indivíduos entre 5 a 39 anos, gerando impacto maior entre a população economicamente ativa e, consequentemente, no desenvolvimento econômico e social do país (BRASIL, 2001). Além disso, o conceito ampliadode saúde, que abrange todas as questões relativas a estilos de vida e condicionantes sociais, inclui a violência Delimitando o objeto de pesquisa 17 como um problema que interfere na qualidade de vida, o que a tornou um problema de saúde pública a ser enfrentado e compreendido (BRASIL, 2001). As consequências da violência são claramente percebidas e seu custo para o mundo se traduz em bilhões de dólares com despesas, sejam estas decorrentes dos custos econômicos gerados no âmbito da saúde ou do judiciário e penal, além dos custos sociais (DAHLBERG; KRUG, 2006; SILVA; OLIVEIRA, 2015). No Brasil, os gastos gerados pela violência são somados aos custos ocasionados pelos acidentes, visto que ambos são categorizados de forma unificada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) como causas externas. Porém, esses cálculos são complexos e têm como base os custos das internações hospitalares. Em 1997, apurou-se um dispêndio total de R$ 232.376.612,16 com essas causas externas, o que representou 8% do total de gastos com internações no país (BRASIL, 2001). Já em 2005, tais custos atingiram mais de 8,5% dos gastos gerais do SUS (MELIONE; MELLO- JORGE, 2008). Para se ter uma dimensão desses gastos, em 2005, no estado de São Paulo, os custos das internações hospitalares por causas externas atingiram R$ 155.091.524,39 (SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE DE SÃO PAULO, 2006). Em decorrência da complexidade de tais cálculos, torna- se difícil obtê-los em alguns estados e municípios. Por esse motivo, não foi possível caracterizar o estado de Goiás e o município de Aparecida de Goiânia, envolvido neste trabalho. A violência contra a mulher também é um grave e complexo problema de saúde pública, visto que vidas são perdidas ou indivíduos tornam-se incapacitados física e psicologicamente (GOMES et al., 2015; STÖCKL et al., 2013; WHO, 2013). Atualmente, esse fenômeno, que impacta a vida social e econômica das vítimas e de outros envolvidos, atinge todo o país, não sendo algo específico de alguns estados e/ou municípios (VIEIRA et al., 2015). Apesar do impacto e da dimensão da violência, os indicadores referentes a este fenômeno variam de acordo com a instituição e a forma de pesquisa realizada para a coleta das informações. Há dificuldade para a obtenção desses dados principalmente pelo fato de a violência nem sempre ser notificada ou denunciada, não havendo bancos de dados atualizados ou Delimitando o objeto de pesquisa 18 padronizados constantemente. Por isso, no presente estudo, são expostos os dados considerados mais atuais e fidedignos. Em um levantamento com base no Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), de 1980 a 2013, o número de homicídios de mulheres no Brasil passou de 1.353 para 4.762, com aumento de 111,1% (WAISELFISZ, 2015). No cenário mundial, dados coletados entre 2010 e 2013 apontaram El Salvador como o país com o maior índice de assassinatos de mulheres (feminicídios), com 8,9 homicídios por 100 mil mulheres, enquanto o Brasil está na quinta posição, com 4,8 homicídios por 100 mil mulheres (GOMES et al., 2015; VISENTIN et al., 2015; WAISELFISZ, 2015). Comparado a outros países, o número de feminicídios no Brasil é 48 vezes maior do que no Reino Unido, 24 vezes maior do que na Irlanda ou Dinamarca e 16 vezes maior do que no Japão ou Escócia. Apenas El Salvador, Colômbia, Guatemala e Federação Russa possuem taxas superiores às do Brasil, o que evidencia os altos índices de assassinatos de mulheres que há em nosso país (WAISELFISZ, 2015). Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 2014, 13 mulheres foram assassinadas por dia no Brasil, e a taxa de homicídios de mulheres apresentou crescimento de 11,6% entre 2004 e 2014 (IPEA, 2016). Outros dados impactantes são os da Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, que apontam que de um total de 52.957 denunciantes de violência, 77% afirmaram ser vítimas semanais de agressões; em 80% dos casos, o agressor tinha vínculo afetivo com a vítima (marido, namorado, ex-companheiro); 80% das vítimas possuem filhos; e 64% dos filhos presenciaram ou também sofreram violência (IPEA, 2016). Utilizando como base de dados o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), observou-se que as notificações compulsórias e obrigatórias de violência, realizadas no Brasil entre janeiro de 2000 e novembro de 2010, revelaram que 43,5 mil mulheres foram assassinadas. Desses feminicídios, 68,8% ocorreram dentro de casa, e o parceiro íntimo foi o responsável por 65% das mortes de mulheres com idades entre 20 e 49 Delimitando o objeto de pesquisa 19 anos. Além disso, a cada dia, 38.020 mulheres são agredidas no Brasil e, destas, 71% moram com o agressor (GOMES et al., 2015). É importante ressaltar que as taxas de feminicídio refletem o extremo da violência, mas que outras formas de agressão, que são socialmente veladas, repetitivas e têm repercussão significativa no âmbito da saúde física e mental, atingem um número ainda maior de mulheres cotidianamente (BARROS et al., 2016). Isso se dá pelo fato de que a violência contra a mulher é caracterizada por sua invisibilidade, visto que ocorre, em sua maior parte, no âmbito privado e é perpetrada por familiares ou conhecidos. Por isso, muitas agressões não geram atendimentos, o que leva à falta de informações sobre estes eventos, tendo como resultado a subenumeração da realidade e contribuindo para reforçar a invisibilidade da violência contra a mulher. Apenas os casos mais impactantes, com repercussões na mídia e nas redes sociais, trazem à tona a realidade sobre a magnitude dessa violência (GARCIA et al., 2016). Nota-se que o sofrimento gerado por esse fenômeno é a principal e a pior de suas consequências. Dessa maneira, as ações necessárias perante a ocorrência da violência envolvem diversos setores, como os de saúde, assistência social, poder judiciário, bem como organizações não governamentais (BRASIL, 2004a; SILVA; OLIVEIRA, 2015). Mesmo com a violência velada, alguns casos são percebidos e notificados pelos profissionais da saúde, sendo inseridos no SINAN. No estado de Goiás, no período entre 1º de janeiro de 2014 e 26 de novembro de 2015, foram registrados no SINAN 3.488 casos de violência contra mulheres na idade adulta. Em 42% dos casos, o agressor era companheiro/parceiro e, entre estes, em 66,32% das ocorrências, o cônjuge foi o principal violentador (GOIÁS, 2015). No município de Aparecida de Goiânia, local onde a presente pesquisa foi realizada, de acordo com o SINAN (dados não publicados), em 2015 foram notificados 281 casos de violência contra mulheres entre 20 a 59 anos, tendo sido 46,97% deste total perpetrados por parceiros íntimos. Foram recebidas 164 notificações de violência contra a mulher até o dia 12 de janeiro de 2017, 37,80% dos casos cometidos por seus perceiros íntimos. De acordo com os Delimitando o objeto de pesquisa 20 dados obtidos pela Delegacia Especializada no no Atendimento à Mulher (DEAM) do município, em 2015 foram lavrados 933 boletins de ocorrência (BO’s) e em 2016, 970 (dados não publicados). Em 2015, o município de Aparecida de Goiânia ocupava a 29ª posição entre as 50 cidades mais violentas do mundo (SEGURIDAD, JUSTICIA Y PAZ, 2015). Na Figura 1, são mostrados os números de notificações de violência contra a mulher registrados nas unidades de saúde de Aparecida de Goiânia e no SINAN nos últimos 4 anos. Esclarece-se que a notificação de casos de violência teve início no município em 2013, com a implementação do Programa de Prevenção às Violências e Promoção da Saúde. O aumento significativo no número de notificações a partir de 2015 é decorrência da maior divulgação da ficha e da criação do ambulatório de atendimento psicológico às vítimas de violência.Figura 1. Número de notificações de casos de violência contra mulheres de 20 a 59 anos em Aparecida de Goiânia de 2013 a 2016. Fonte: Original da autora, com base em SINAN (dados não publicados). *Dados extraídos do SINAN em 8 de janeiro de 2017 (dados não publicados). Interessante destacar que a violência contra a mulher gera consequências que vão além dos impactos no sistema de saúde, podendo ter 60 78 169 86 15 17 123 13 6 1 9 25 13 30 23 2 0 2 0 0 20 40 60 80 100 120 140 160 180 2013 2014 2015 2016* Viol Física Viol. Psico/moral Tortura Viol Sexual Viol Finan/econom. Delimitando o objeto de pesquisa 21 repercussões mesmo vários anos após os atos violentos vividos. Isso aponta para a necessidade da existência de profissionais e serviços especializados e ações de prevenção nessa área. Vários estudos mostram que as consequências geradas pela violência contra a mulher no âmbito doméstico influenciam todo o contexto familiar, principalmente os filhos. A exposição da criança à violência pode desencadear desordens mentais, problemas de saúde, predisposição a comportamentos violentos, além de ser um fator de risco para a manutenção da violência em seus relacionamentos (AFIFI et al., 2016; CROMBACH; BAMBONYÉ, 2015; ISLAM et al., 2014; WEARICK-SILVA et al., 2014; WILLIAMS et al., 2014). A perpetuação dos comportamentos já vem sendo observada desde o século passado, tendo como um dos precursores o filósofo Mauss (1974), que alertou para o fato de que o indivíduo mantém hábitos por meio da imitação, porém adapta o comportamento ao contexto no qual está inserido, o mesmo ocorrendo com o comportamento violento. Estudos mostram que a transmissão intergeracional de fatores negativos, como agressividade e vitimização, pode ser interrompida se forem implementadas mudanças nos modelos parentais, com interrupção da violência vivenciada, e inseridos modelos de relações de afeto e melhor comunicação (SANTINI; WILLIAMS, 2016; WEBER et al., 2006; WILLIAMS et al., 2014). Foram levantadas algumas questões de investigação que sustentaram a produção desta pesquisa: 1. Como era a vida pregressa da mulher em situação de violência? 2. Como a mulher lida com a violência praticada por seu companheiro íntimo? 3. A mulher percebe que a violência vivida influencia seus filhos? 4. Quais as perspectivas futuras da mulher em situação de violência? 5. Como os serviços de saúde se inserem no contexto de atendimento às mulheres em situação de violência? A compreensão da história de vida da mulher em situação de violência perpetrada por seu parceiro possibilita observar a dimensão do Delimitando o objeto de pesquisa 22 comportamento violento e suas consequências a curto e médio prazos na vida da família, de modo a entender as influências que o modelo parental de origem pode ter na vida do indivíduo. Além disso, compreender como a saúde se insere no contexto da violência permitirá a criação de futuras intervenções para romper este comportamento e melhorar a qualidade de vida de mulheres vítimas de violência. 1.2 Objetivos do estudo Com o intuito de obter subsídios para uma discussão aprofundada sobre a violência e sua trajetória histórica na vida das mulheres e da influência deste fenômeno na vida dos seus filhos, foram estabelecidos para o presente estudo os seguintes objetivos: • Compreender a intergeracionalidade do comportamento violento na vida de mulheres em situação de violência. • Identificar e analisar as percepções de mulheres em situação de violência sobre a atuação do profissional de saúde no contexto de seu atendimento. Contextualizando a violência contra a mulher 23 2. CONTEXTUALIZANDO A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER A fim de contextualizar a temática da violência contra a mulher, fez-se necessária uma revisão da literatura científica para dar suporte às discussões e questões pertinentes ao problema e embasar teoricamente a proposta de pesquisa. Nesta revisão, foram priorizados textos recuperados nas bases de dados Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), PubMed, Medline, Scientific Electronic Library Online (SciELO), Plataforma Capes e Scopus. Foram utilizados apenas textos obtidos na íntegra, o que permitiu maior aprofundamento sobre o tema. Esta revisão está organizada em quatro tópicos: a violência contra a mulher, gênero, a aprendizagem social e a intergeracionalidade do comportamento violento e o apoio e o atendimento à mulher em situação de violência. 2.1 A violência contra a mulher Segundo o tratado internacional Convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, também conhecido como “Convenção de Belém do Pará”, a violência contra a mulher é entendida como “(...) qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada” (OEA, 1994). Embora a violência possa ocorrer contra qualquer indivíduo, atinge inúmeras mulheres de diferentes orientações sexuais, classes sociais, origens, regiões, estados civis, escolaridade e raças/etnias. Pode ocorrer desde a infância até a velhice e em diversos âmbitos, como doméstico ou profissional, nas dimensões religiosas, culturais e/ou comunitárias, entre outras esferas (BRASIL, 2016). A violência contra a mulher é uma violação de direitos que gera impactos em várias dimensões. Para garantir o efetivo enfrentamento desse Contextualizando a violência contra a mulher 24 tipo de violência, tão comum e enraizado em diversas sociedades, tendo em vista as suas consequências e a fim de criar mecanismos de prevenção e proteção, muitas políticas públicas de nível internacional e nacional foram desenvolvidas (BRASIL, 2016; PACHECO, 2015). No âmbito internacional, o Brasil é signatário de dois documentos importantes: a Convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher (OEA, 1994), considerada um marco na luta pelos direitos das mulheres, e precursora do desenvolvimento e da construção da Lei nº 11.340 (BRASIL, 2006), conhecida como “Lei Maria da Penha”, e a Declaração e plataforma de ação de Beijing (UN, 1995), elaborada durante a IV Conferência Mundial sobre a Mulher (BANDEIRA; ALMEIDA, 2015; BRASIL, 2016; PACHECO, 2015). No contexto nacional, desde 2011 vigoram o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (BRASIL, 2011b) e a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (BRASIL, 2011c), que ampliaram e fortaleceram as políticas públicas preexistentes em novos eixos de atuação, tais como: garantia da aplicabilidade da Lei Maria da Penha; ampliação e fortalecimento da rede de serviços para mulheres em situação de violência; garantia da segurança cidadã e acesso à justiça; garantia dos direitos sexuais e reprodutivos; enfrentamento da exploração sexual e do tráfico de mulheres; garantia da autonomia das mulheres em situação de violência e ampliação de seus direitos (BRASIL, 2011b; BRASIL, 2016). Diante do impacto e das consequências da violência, os estudos sobre este tema têm se intensificado nas últimas décadas, e para seu melhor entendimento tornou-se necessária a sua tipificação (BRASIL, 2014b; KRUG et al., 2002; WHO, 1996). No presente estudo, tomaram-se como referências as tipificações propostas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Ministério de Saúde, pois abrangem termos reconhecidos mundialmente, utilizados como variáveis em diversos estudos e que fazem parte do contexto da saúde pública, foco da presente pesquisa. Nessa perspectiva, a violência é dividida em três categorias associadas às características de quem comete o ato: violência coletiva, que abrange os atos de grupos de crime organizado ou terroristas, ou seja, ações de um macrossistemasocial, político e Contextualizando a violência contra a mulher 25 econômico; violência autoinfligida, que inclui os atos suicidas e de automutilação; e violência interpessoal, que engloba atos que ocorrem dentro de um microssistema, de um indivíduo sobre outro (BRASIL, 2014b; KRUG et al., 2002). A Violência entre Parceiros Íntimos (VPI) insere-se como um tipo de violência interpessoal, compreendido como todo e qualquer comportamento de violência cometido tanto na unidade doméstica como em qualquer relação íntima de afeto, independentemente de coabitação. Abrange os atos de violência física, psicológica/moral, sexual e financeira (BARROS et al., 2016; BRASIL, 2006; BRASIL, 2014b; KRUG et al., 2002). A violência perpetrada por parceiros íntimos atinge cerca de 36% das mulheres, sendo a forma mais prevalente de violência contra a mulher (BARROS et al., 2016; GOMES et al., 2015; SILVA; OLIVEIRA, 2015; WATTS; ZIMMERMAN, 2002). Em relação aos tipos de violência cometidos contra mulheres, consideram-se como referências as tipificações constantes na Lei nº 11.340 (BRASIL, 2006), haja vista sua importância no contexto das políticas públicas (Quadro 1). As descrições dos tipos de violência contra mulheres são também baseadas nos manuais do Ministério da Saúde (BRASIL, 2014b), como forma de trazer conceitos mais amplos e abrangentes. Por meio dessas informações, fica clara a dimensão da violência contra as mulheres cometida por seus parceiros, sendo a esfera doméstica um dos principais espaços de maus-tratos às mulheres, o que reduz a visibilidade do fenômeno (GOMES et al., 2005; PAIXÃO et al., 2015). Essa violência se traduz em atos de opressão, dominação e crueldade, que geram consequências físicas e psicológicas, muitas vezes irreversíveis. No Brasil, trava-se uma constante luta por mudanças sociais associadas ao gênero por meio de campanhas feministas e políticas do Ministério da Saúde. A Lei nº 11.340 (BRASIL, 2006) veio fortalecer esse embate e, atualmente, é reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) como uma das três melhores leis no mundo para o enfrentamento da violência contra as mulheres (BRASIL, 2012). Com a Lei Maria da Penha, foram criados mecanismos para coibir, prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher. Também dispôs sobre a criação de Juizados de Violência Contextualizando a violência contra a mulher 26 Doméstica e Familiar contra a mulher e estabeleceu medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência (BRASIL, 2006; BRASIL, 2012). Quadro 1. Tipos de violência segundo a Lei Maria da Penha. Tipo de violência Descrição Violência física Atos violentos, nos quais se fez uso da força física de forma intencional, não-acidental, com o objetivo de ferir, lesar, provocar dor e sofrimento ou destruir, deixando, ou não, marcas evidentes no seu corpo. Ações que provocam a ruptura da integridade do corpo da mulher. Violência psicológica Toda forma de rejeição, depreciação, discriminação, desrespeito, cobrança exagerada, punições humilhantes e utilização da pessoa para atender às necessidades psíquicas de outrem. É qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima ou destinada a caluniar, difamar ou injuriar a honra ou a reputação da pessoa, lhe causando prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação. Violência sexual Ação na qual uma pessoa, em posição de poder e fazendo uso de força física, coerção, intimidação ou influência psicológica, obriga outra pessoa a ter, presenciar, ou participar de alguma maneira de interações sexuais ou a utilizar, de qualquer modo a sua sexualidade, com fins de lucro, vingança ou outra intenção. Incluem-se situações de estupro, abuso incestuoso, assédio sexual, sexo forçado no casamento, jogos sexuais e práticas eróticas não consentidas e impostas. São também os atos que, mediante coerção, chantagem, suborno ou aliciamento impeçam o uso de qualquer método contraceptivo ou forcem a matrimônio, à gravidez, ao aborto, à prostituição; ou que limitem ou anulem a autonomia e o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos. Violência patrimonial Ato de violência que implica dano, perda, subtração, destruição ou retenção de objetos, documentos pessoais, instrumentos de trabalho, bens e valores da pessoa. Consiste na exploração imprópria ou ilegal, ou no uso não consentido de seus recursos financeiros e patrimoniais. Violência moral Qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. Fonte: Adaptado de Brasil (2006) e Brasil (2014b). No entanto, as agressões perpetradas por parceiros íntimos, isto é, entre indivíduos em uma relação de afeto, ainda é uma realidade em nossa sociedade. Pesquisas apontam que o uso de violência física e psicológica por parte dos homens é muito comum e que muitas mulheres já vivenciaram tais situações pelos menos uma vez na vida (ACOSTA; BARKER, 2003; BARROS et al., 2016; DEEKE et al., 2009; WHO, 2013). A VPI causa impacto na saúde da mulher, de tal modo que as vítimas deste tipo de violência apresentam risco aumentado para transtornos mentais Contextualizando a violência contra a mulher 27 comuns, como transtorno depressivo, transtorno de estresse pós-traumático, dificuldade de socialização, uso abusivo de álcool e outras drogas, ideações suicidas, assim como para doenças sexualmente transmissíveis e baixa qualidade de vida, entre outras comorbidades (BARROS et al., 2016; LONGMORE et al., 2014; PACHECO, 2015; WHO, 2013). A violência contra a mulher tem sido foco de estudos no Brasil desde a década de 1980, devido a mudanças no quadro político e social do país e do surgimento de delegacias especializadas para o atendimento de mulheres (SANTOS; IZUMINO, 2005). Nesse cenário, toma-se como referência teórica a filósofa Chauí (1985), que situou a violência contra a mulher como resultado do ideal de dominação masculina, que é reproduzida em nossa sociedade tanto por homens quanto por mulheres. Para a autora, a violência reforça as desigualdades hierárquicas a fim de que o agressor possa dominar, explorar e oprimir, enquanto a vítima se torna passiva e dependente (CHAUÍ, 1985; SANTOS; IZUMINO, 2005). De acordo com esse pressuposto teórico, a mulher possui uma condição inferior ao homem, e isto é transmitido tanto no discurso masculino quanto no feminino, pois faz parte de um contexto social e cultural arraigado em nossa sociedade, na qual o sujeito feminino é desprovido de fala e liberdade (CHAUÍ, 1985; SANTOS; IZUMINO, 2005). Entretanto, torna-se importante salientar que a mulher é também praticante dessa violência, uma vez que seus discursos machistas afetam outras mulheres. Assim sendo, percebe-se o papel de “cúmplice” que ela desempenha nesse contexto, contribuindo para a perpetuação desse discurso, muitas vezes porque relata, concorda e ensina que o homem é superior e detentor do poder, o que pode levar à aceitação da violência praticada por ele (CHAUÍ, 1985; SANTOS; IZUMINO, 2005). Em nossa sociedade, marcada pela construção histórica e cultural do sistema patriarcal, ensina-se à maior parte das mulheres a mantê-lo. A despeito de todas as conquistas do feminismo, o discurso machista ainda está enraizado na formação do sujeito feminino, o que leva à manutenção desta visão e enfatiza a força que o modelo parental possui sobre a formação dos indivíduos, levando-os a perpetuar discursos e ações por várias gerações (SANTOS; IZUMINO, 2005). Contextualizando a violência contra a mulher 28 2.2 Gênero O termo gênero tem sido amplamente utilizado em vários meios de comunicação, incluindo o meio científico. O seu conceito surgiu na década de 1970 nos Estados Unidos com o objetivo de distinguir os termos sexo e gênero (FLEURY-TEIXEIRA; MENEGHEL, 2015). Inicialmente, o termo gênero também era usado para designar as diferenças biológicasdos corpos físicos masculinos e femininos; entretanto, na atualidade, tal termo possui outra concepção, baseada em papéis sociais. Gênero é um conceito das ciências sociais através do qual se visa analisar e compreender a desigualdade entre as atribuições de homens e de mulheres, ou seja, é uma construção psicossocial do masculino e do feminino (GOMES, 2009; GOMES et al., 2007; SAFFIOTI, 2015; SÃO PAULO, 2004). A tendência de analisar a violência contra a mulher a partir da perspectiva de gênero se iniciou na década de 1990, e o termo gênero tem sido usado para traduzir as formas de interação humana (MINAYO; SOUZA, 2003). Nessa perspectiva, a violência nas relações é analisada a partir de diferenças culturais e não pelas especificidades biológicas do feminino e do masculino (MINAYO; SOUZA, 2003). Os papéis de gênero, isto é, o que faz parte do que é ser masculino e feminino em nossa sociedade, nos são passados de acordo com nossa cultura desde que nascemos, sendo padrões estereotipados que estruturam as relações (MINAYO; SOUZA, 2003). Desde cedo, somos ensinados a diferenciar o masculino do feminino e tais ensinamentos são calcados como base formadora de nossa cultura, de maneira que não percebemos sua produção e reprodução social. Nós aprendemos e reproduzimos esses ensinamentos em nossa vida cotidiana de forma mecânica, sem refletir acerca do seu real sentido ou compreendê-lo, visto que a concepção determinista do que pertence ao feminino e ao masculino faz parte de um universo comum da nossa cultura e das nossas relações sociais. Na compreensão da violência contra a mulher, a categoria gênero introduz uma nova terminologia para se discutir este fenômeno social. Assim, Contextualizando a violência contra a mulher 29 se insere como pano de fundo dessa violência um padrão hierárquico de relações sexuais, que está associado aos papéis desenvolvidos por homes e mulheres no sistema social, no qual a mulher sofre violência pelo fato de ser mulher (MINAYO; SOUZA, 2003; SANTOS; IZUMINO, 2005). De acordo com a perspectiva de gênero, os homens estão relacionados ao espaço público, sendo atribuídos a eles os papéis de provedor e de chefe de família, o que exige força, virilidade, coragem e agressividade. Eles possuem o poder de determinar condutas, tendo a autonomia de punir o que se lhes apresenta como desvio e, muitas vezes, a execução desta dominação exige a violência (SAFFIOTI, 2001). Já às mulheres cabe o papel de subordinação e se espera delas delicadeza, sensibilidade, passividade e obediência. Embora exista a possibilidade de que elas utilizem violência contra seu companheiro, as mulheres não têm esta função em sua categoria social (GOMES, 2009; GOMES et al., 2007; SAFFIOTI, 2001; SAFFIOTI, 2015). Para a socióloga Saffioti (1976), os estudos da violência contra a mulher são orientados por meio de uma perspectiva feminista e marxista do patriarcado, que associa a dominação masculina aos sistemas capitalista e racista (SAFFIOTI, 1976; SANTOS; IZUMINO, 2005). Para Minayo e Souza (2003, p. 206), “no patriarcado a opressão feminina se explica pela apropriação masculina do labor reprodutivo das mulheres”. Já na concepção de Saffioti (1987, p. 50): O patriarcado não se resume a um sistema de dominação, modelado pela ideologia machista. Mais do que isto, ele é também um sistema de exploração. Enquanto a dominação pode, para efeitos de análise, ser situada essencialmente nos campos político e ideológico, a exploração diz respeito diretamente ao terreno econômico. Saffioti (1987) afirmou que este sistema é sustentado pela ideologia machista, de acordo com a qual, o homem domina a mulher e esta deve se submeter ao “poder do macho”. Nessa relação de poder, o homem se vê no direito de agredir a mulher e esta aceita tal condição, pois foi educada para isto. Dessa forma, a mulher é sujeito de uma relação de desigualdade de poder, porquanto “os homens estão, permanentemente, autorizados a realizar Contextualizando a violência contra a mulher 30 seu projeto de dominação-exploração das mulheres, mesmo que, para isto, precisem utilizar-se de sua força física” (SAFFIOTI, 2001, p. 116). As famílias modernas mantêm a reprodução desse modelo de desigualdade criando expectativas entre os papéis do homem e da mulher. Esse modelo ainda é um dos pilares da violência contra a mulher, haja vista a posição de dominação simbólica masculina que persiste nesse contexto patriarcal (BANDEIRA, 2014). Dessa forma, a expressão “violência de gênero” define uma categoria que potencializa a complexidade das relações sociais, consolidando-se como uma categoria analítica (ALMEIDA, 2007; BANDEIRA, 2014). Ela remete a lugares sociais sexuados, em que as mulheres estão arraigadas em desigualdades que envolvem uma ordem simbólica (BANDEIRA, 2014). No entanto, esse fenômeno se manteve invisível por tempos, por causa da forte influência do modelo patriarcal na sociedade, que enfatizava a tradição e as representações dos papéis relacionados à mulher (BANDEIRA, 2014). Por meio dos movimentos feministas, algumas mudanças vêm ocorrendo no cenário de atenção às mulheres. Assim é que as reivindicações por mudanças de valores legais, sociais e jurídicos influenciam diretamente a estrutura patriarcal vigente, trazendo avanços na implantação de políticas públicas de combate à violência (BANDEIRA, 2014; ESPINAR-RUIZ; LÓPEZ- MONSALVE, 2015). Contudo, necessita-se de tempo para que a consolidação e a efetivação dessas mudanças ocorram, visto que requerem mudanças nas estruturas social e cultural, o que demanda uma nova visão da sociedade que ainda está em construção. 2.3 A aprendizagem social e a intergeracionalidade do comportamento violento Para a maioria dos indivíduos, a família é o primeiro ambiente de interação, porquanto é nela que se dão as primeiras relações com o mundo físico, social e do indivíduo consigo mesmo. Nesse ambiente, cada membro tem uma posição e um papel socialmente definidos (GOMES et al., 2007). Contextualizando a violência contra a mulher 31 O microssistema familiar geralmente consiste em um espaço de afetividade, harmonia e proteção de seus membros; porém, nem sempre isto ocorre e a família pode ser um ambiente de manifestação de ações violentas, tornando-se um cenário para a aprendizagem e a reprodução de comportamentos violentos. Desse modo, caracteriza-se como perpetuador da violência intergeracional, interferindo na construção da identidade de seus membros (GOMES et al., 2007; ISLAM et al., 2014). Destaca-se que as consequências da VPI, como depressão, ansiedade, delinquência, ideação suicida, dependência química, dificuldades em relacionamentos interpessoais e agressividade, também atingem todo o sistema familiar, incluindo os filhos da vítima. Assim, seus descendentes podem se tornar indivíduos agressivos ou passivos diante da violência, o que pode levar ao comprometimento de sua vida adulta (HOWELL et al., 2016; KLEVENS, 2001; ROSA; HAACK; FALCKE, 2015). A perspectiva da transmissão intergeracional da violência baseia-se no pressuposto da teoria da aprendizagem social (BANDURA, 2001), a qual postula que comportamentos e crenças são transmitidos entre as gerações por meio da aprendizagem, que ocorre de forma ativa, como resultado direto das experiências, bem como das observações dos outros. Portanto, o sujeito repete aqueles comportamentos que são reforçados pelo ambiente ao seu redor ou imita atitudes que julga serem reconhecidas e reforçadas (BANDURA, 2001; SANTINI, 2011). Observa-se que o aprendizado é extremamente importante para o desenvolvimento humano, e muitas práticas, como os modos de comer, cozinhar, cuidar dos filhos, entre outros, sobrevivem ao longo de sucessivas gerações, sendo selecionadas à medida que passam de um indivíduo para o outro (SANTINI, 2011; SKINNER,1981). Dessa forma, é notório que os pais ou cuidadores são os principais transmissores de modelos comportamentais para os filhos, uma vez que estão presentes na principal fase do desenvolvimento humano, a infância. Nesse momento fundamental para o aprendizado, são aprendidos os comportamentos básicos que acompanham o indivíduo por toda a sua vida. Os pais ou cuidadores são modelos de comportamentos, o que leva a criança Contextualizando a violência contra a mulher 32 a perceber tais ações como aceitáveis e contribui para a sua manutenção (ROSA; HAACK; FALCKE, 2015). O processo descrito é comum a todas as ações aprendidas durante o desenvolvimento humano, também abrangendo o aprendizado de valores e crenças, o que inclui a perpetuação da visão machista, ainda muito comum em nossos modelos social e cultural. Como os filhos tendem a reproduzir os modelos herdados de seus pais em suas relações futuras, sujeitos que foram vítimas e/ou testemunhas de comportamentos violentos apresentam maior probabilidade de desenvolver estas mesmas atitudes no futuro ou de ser vítimas de violência (GOMES et al., 2007; LUNDBERG et al., 2000; WEBER et al., 2006; WIDOM, 1989). Estudos também apontam para alterações biológicas associadas à exposição do indivíduo a maus tratos na infância, como a alteração da expressão de genes relacionados à sensibilidade ao estresse no eixo hipotálamo-pituitário-adrenal, que pode ocorrer também em crianças que experenciam VPI durante a gestação. Isso pode explicar a maior suscetibilidade desses sujeitos ao desenvolvimento de desordens mentais e de comportamentos agressivos (CROMBACH; BAMBONYÉ, 2015; RAMO- FERNANDEZ et al., 2015; ROMENS et al., 2014). Ademais, crianças que presenciam violência conjugal podem apresentar maior propensão a desenvolver depressão, ansiedade, medo, baixa auto-estima, isolamento, passividade, problemas comportamentais, transtornos de conduta e atrasos no aprendizado. Esses transtornos podem levar à perpetuação da condição de vítima e/ou da transmissão da violência entre gerações (CROMBACH; BAMBONYÉ, 2015; KLEVENS, 2001; SILVA; FALBO NETO; CABRAL FILHO, 2009; WILLIAMS, 2001). Os indivíduos que vivenciam a violência conjugal tendem a internalizar a desigualdade de gênero, o que leva à reprodução deste comportamento, visto que este valor é aprendido no microssistema familiar, o que os condiciona a repeti-lo (PAIXÃO et al., 2015). Por conseguinte, pode-se afirmar que ambientes violentos são palco de aprendizado de comportamentos inadequados. Os sujeitos que ali convivem carecem de outros modelos de relações, o que impossibilita a construção de repertórios saudáveis para o Contextualizando a violência contra a mulher 33 enfrentamento de situações futuras, levando à manutenção de sua posição como vítima ou agressor. Estudos mostraram que grande parte das mulheres que foram vítimas de algum tipo de violência na infância são mais suscetíveis à inserção em relações conjugais de violência (PAIXÃO et al., 2015; SILVA; FALBO NETO; CABRAL FILHO, 2009; VIZCARRA et al., 2001). No entanto, esse fato não pode ser generalizado, pois há mulheres violentadas na vida adulta que nunca passaram por esta experiência na infância, assim como também há crianças vítimas de violência que não mantêm o padrão de agressividade quando adultos, o que depende da história de vida de cada sujeito. Dessa forma, não se pode tornar essa premissa uma regra, mas deve-se empregá-la como um fator de risco ao avaliar uma situação de violência. Evidências empíricas mostram que a dinâmica experienciada com os cuidadores em uma geração pode ser recriada na próxima, o que pode levar à perpetuação do comportamento violento em um processo denominado transmissão intergeracional da violência (KRETCHMAR; JACOBVITZ, 2002; SILVA; FALBO NETO; CABRAL FILHO, 2009; WEBER et al., 2006). A prática da violência contra a mulher aumenta em 96% caso a mãe de seu parceiro tenha sido agredida pelo companheiro (pai, padrasto) durante a sua infância. Mulheres cujas mães tenham sido agredidas têm 92% mais chance de sofrer violência (McCLOSKEY, 2013; PAIXÃO et al., 2015; VIEIRA; PERDONA; SANTOS, 2011; ZALESKI et al., 2010). Em estudo realizado por Paixão e colaboradores (2015), o discurso das mulheres entrevistadas mostrou que elas percebem que estão vivenciando com seus companheiros situações que suas mães experenciaram, o que alerta para o caráter intergeracional da violência conjugal. Tal fato mostra como a convivência em um ambiente violento condiciona os indivíduos a repetir as mesmas práticas. Como não foram aprendidos outros modelos de relações familiares, homens e mulheres tendem a reproduzir a história de violência que conheceram na infância ou na adolescência (GOMES et al., 2007; PAIXÃO et al., 2015). Por outro lado, em uma pesquisa realizada por Weber e colaboradores (2006), observou-se que a transmissão intergeracional de fatores negativos, como agressividade e vitimização, pode Contextualizando a violência contra a mulher 34 ser interrompida por mudanças geradas em uma relação de afeto e com melhor comunicação. Em outra pesquisa, realizada por Rosa, Haack e Falcke (2015), mulheres que presenciaram violência na infância referiram fatores de proteção que as levaram a não manter tal comportamento na vida adulta. Os principais fatores foram a presença de uma rede de apoio social e afetivo adequada, a valorização de conquistas atingidas por elas, o desejo de mudança e o apoio de profissionais da saúde. Interromper a violência é uma forma de amenizar as suas consequências. Uma das maneiras que pode ser adotada para essa interrupção é a orientação dos pais, ou intervenção parental. Por meio de métodos educacionais, os pais são estimulados a buscar outras formas de se relacionar, sem a utilização da violência (SANTINI; WILLIAMS, 2016; THORNBERRY; HENRY, 2013; WILLIAMS et al., 2014). Esse enfoque auxilia na melhora da comunicação, na estratégia de enfrentamento de problemas e nas habilidades sociais, possibilitando mudanças nas relações interpessoais da família como um todo. A construção de ações de prevenção mostra-se de grande importância para a interrupção da violência intergeracional. Isso pode se dar por intermédio da atuação direta com as mulheres que vivenciam a violência em grupos de promoção de saúde ou atendimento psicoterápico, ou por acompanhamento das famílias a fim de oferecer novos modelos de relações interpessoais mais saudáveis e adequados. Além disso, em um estudo de revisão sistemática realizado por Souza (2015) identificou-se que na área da saúde há poucos estudos sobre intergeracionalidade e VPI. Esses temas são mais comuns em estudos de caso desenvolvidos por psicólogos com base psicanalítica. 2.4 O apoio e o atendimento à mulher em situação de violência A violência afeta significativamente o processo saúde/doença das mulheres, o que leva o setor da saúde a ter a responsabilidade de identificar Contextualizando a violência contra a mulher 35 essas situações e oferecer intervenções adequadas. Para isso, os profissionais devem estar preparados para identificar possíveis vítimas, já que nem sempre as agressões deixam marcas visíveis (GOMES; ERDMANN, 2014). Nessa perspectiva, a Política Nacional de Redução de Morbimortalidade por Acidentes e Violências, instituída pela Portaria nº 737 (BRASIL, 2001), inseriu a violência nas políticas de saúde pública como um assunto importante e de relevância. Isso decorreu dos impactos gerados pela violência nos âmbitos social e da saúde, como o alto número de óbitos e casos de morbidade. Somou-se a isso o conceito ampliado de saúde para além da ausência de doenças, também incluindo a qualidade de vida e os impactos sociais (BRASIL, 2001). Diante disso, todo profissional de saúde deve estar atento a situações de violênciaobservadas em seus atendimentos e deve agir de forma a apoiar e orientar vítimas de violência, além de desenvolver ações de promoção e prevenção sobre este tema. Reforça-se a existência de portarias e leis que obrigam o profissional da saúde a denunciar casos de violência, como a Lei nº 8.069 (BRASIL, 1990), conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que em seu Capítulo II Art. 245 descreve: Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente: Pena - multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência. Há também: a Lei nº 10.778 (BRASIL, 2003), que estabeleceu a notificação compulsória, no território nacional, dos casos de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados; a Portaria nº 104 (BRASIL, 2011a), que inseriu a violência como agravo de notificação no âmbito da saúde; e, mais recentemente, a Portaria nº 1.271 (BRASIL, 2014a), que definiu a lista nacional de notificação compulsória de doenças, agravos e eventos de saúde nos serviços de saúde públicos e privados em todo o território nacional, e incluiu a violência autoprovocada e a sexual como de notificação obrigatória, compulsória e imediata. Contextualizando a violência contra a mulher 36 Nota-se, então, a importância da detecção e da intervenção do setor da saúde nos casos de violência. Além das leis explicitadas, a OMS também orienta que todos os profissionais da saúde sejam capazes de compreender os fatores associados à violência e agir adequadamente (RIGOL-CUADRA et al., 2015). No entanto, as obrigatoriedades legais não são suficientes para orientar os profissionais da saúde e atuar diretamente em sua conduta. Algumas dificuldades ainda persistem, principalmente em decorrência de formação insuficiente, atitudes inadequadas e crenças dos profissionais (RIGOL-CUADRA et al., 2015). Também se observa que, embora os profissionais possam ter conhecimento teórico sobre as políticas públicas relacionadas aos direitos da mulher, não o colocam em prática, havendo divergência entre conhecimento e execução (PACHECO, 2015). Esse fato pode estar associado às dificuldades que os profissionais têm em conhecer a rede de apoio para mulheres em situação de violência existente em sua região, à falta de reconhecimento da violência como um agravo de demanda da saúde, ou mesmo como um problema do sistema de saúde, e ao medo diante de sua própria vulnerabilidade, pois muitas vezes está próximo do agressor (PACHECO, 2015). Contudo, é importante reconhecer que as consequências emocionais da violência comprometem toda a vida laboral, pessoal, familiar e social do indivíduo, interferindo em suas perspectivas de vida. E dentro desse contexto aversivo, é imprescindível oferecer atendimento de qualidade à vítima, visto que a má conduta profissional pode agravar ainda mais o caso, gerando revitimização do sujeito. Os serviços de saúde constituem importante ambiente para a detecção de violência, sendo muitas vezes um dos primeiros locais em que a vítima busca apoio (SILVA et al., 2016). Entretanto, na prática, a conduta do profissional da saúde ainda é falha, estando arraigada a muitas crenças, mitos e representações, que dificultam ou impedem o reconhecimento e a abordagem da violência com as usuárias. Em adição a isso, muitas delas omitem a violência, por medo ou vergonha, e em outros casos, o próprio profissional não sabe conduzir o caso ou identificar sinais que possam orientá- Contextualizando a violência contra a mulher 37 lo para a adoção de uma conduta mais qualificada, pertinente e adequada (GOMES et al., 2015; SILVA et al., 2016; VISENTIN et al., 2015). Em estudo realizado por Pacheco (2012), ao entrevistar mulheres em situação de violência, as participantes revelaram que, em alguns momentos, percebiam que os profissionais as julgavam como culpadas pela agressão e relataram o desejo de que estes as escutassem com mais atenção. Na maioria das vezes, embora a unidade de saúde seja o local em que a mulher tem a possibilidade de contar sobre a violência que sofre no âmbito doméstico e receber orientações pertinentes e adequadas, isto raramente ocorre. De acordo com Krug e colaboradores (2002), na maioria dos países, médicos e enfermeiros não costumam questionar a mulher sobre possíveis abusos ou agressões e, em vários casos, a vítima é estigmatizada e humilhada. É imprescindível considerar que a conduta inadequada dos profissionais pode estar associada às suas próprias inseguranças e incertezas, decorrentes de sua falta de preparo para lidar com a violência. A temática violência não faz parte da maioria dos currículos dos cursos de graduação, e não são formados profissionais com noções básicas sobre este tema, o que dificulta o diagnóstico e a escolha da conduta a ser tomada nestes casos (ALMEIDA, 1998; GONÇALVES; FERREIRA, 2002; SILVA et al., 2016; VISENTIN et al., 2015). Uma outra consequência da falta de capacitação e de informações dos profissionais da saúde em relação à violência, é a sua notificação. A Portaria nº 104 (BRASIL, 2011a) previu a obrigatoriedade da notificação compulsória de doenças e agravos, e a violência contra a mulher está na lista destes agravos. A notificação é um instrumento fundamental para o conhecimento epidemiológico da violência, possibilitando a criação de serviços e políticas públicas associadas ao tema, além de permitir melhor visibilidade do problema na sociedade (GARBIN et al., 2015). Não obstante, ainda há muita subnotificação de casos de violência por profissionais da saúde. Apesar da ficha de notificação seguir o padrão das demais notificações da saúde pública, a violência ainda é vista por muitos como não pertinente ao contexto da saúde (GARBIN et al., 2015; GARCIA et al., 2016). Contextualizando a violência contra a mulher 38 Em dois estudos realizados com profissionais da saúde sobre violência contra crianças observou-se que estes tinham medo de notificar ou encaminhar os casos de violência, porquanto sofrem ameaças dos agressores. Além do mais, há problemas relacionados com a atuação insatisfatória dos órgãos competentes, nos serviços de retaguarda e no cumprimento de medidas protetivas adequadas às vítimas (GONÇALVES, FERREIRA, 2002; ZANELATTO et al., 2012). Os mesmos estudos identificaram que o sigilo ético profissional também interfere nas ações dos servidores, já que o profissional se vê impedido de relatar algo que foi ouvido no atendimento, de acordo com a ética profissional, e não encontra respaldo nos órgãos gestores (GONÇALVES; FERREIRA, 2002; ZANELATTO et al., 2012). Outro fator que também interfere na atuação profissional é a cultura de privacidade da vida familiar. Na sociedade brasileira, tende-se à não intromissão na vida familiar alheia, pois isto é visto como ofensivo. Esse tipo de cultura pode levar ao agravamento das consequências da violência ou à banalização dos atos agressivos (GONÇALVES; FERREIRA, 2002). Dessa forma, o investimento em capacitações de serviços e de profissionais da saúde sobre o que é violência, como abordar este tema, o que fazer diante de uma suspeita ou confirmação, como acolher e apoiar a vítima, sem estigmatizá-la ou revitimizá-la, é uma das maneiras de melhorar as ações e auxiliar as mulheres que enfrentam a violência em seu cotidiano (VIEIRA et al., 2015). As ações de prevenção também devem ser consideradas. Entre elas, destaca-se a orientação de profissionais da saúde para identificar fatores de risco que podem levar à violência, com os objetivos de evitar consequências graves, amenizar o sofrimento e interromper a transmissãoda violência nas famílias e comunidades. Os demais serviços necessários para a consolidação e a efetivação da rede de apoio às mulheres vítimas de violência também são relevantes e interferem na atuação do setor da saúde. Afinal, apenas o sistema de saúde não é capaz de fornecer toda a assistência necessária a essa população. Essa Contextualizando a violência contra a mulher 39 assistência depende de uma rede intersetorial, com fluxos compatíveis e pertinentes à realidade vivida pelas vítimas (PACHECO, 2015). A intersetorialidade possibilita o atendimento integral às vítimas, proporcionando-lhes assistência em vários aspectos, como social, jurídico e da saúde. Dessa maneira, cabe aos profissionais conhecer a rede presente em seu contexto de trabalho e, a partir daí, buscar se comunicar com os demais setores. Uma opção para ampliar esse conhecimento é o mapeamento da rede existente em sua região, o que facilitaria a verificação das possiblidades de efetivar a comunicação entre as instituições (D’OLIVEIRA et al., 2009; PACHECO, 2015). Todavia, deve-se ter em mente que o trabalho em rede intersetorial guarda diversas questões e dificuldades a serem superadas, como as diferentes concepções e visões sobre um determinado problema. Assim é que a designação de um determinado tipo de violência pode ser diferente para o setor da saúde e o setor jurídico. Além disso, há o problema da rotatividade dos serviços em funcionamento causada por mudanças de gestão, situação muito recorrente nos serviços públicos do país (D’OLIVEIRA et al., 2009). 2.5 Pressupostos do estudo Diante do exposto, observam-se indícios de que a intergeracionalidade do comportamento violento está presente na vida de mulheres que vivenciam situação de violência intrafamiliar, isto é, as agressões sofridas na infância podem estar se reproduzindo em suas vidas na atualidade. A intergeracionalidade leva a violência a se tornar algo comum e aceitável para as vítimas, interferindo negativamente na qualidade de vida da família e no desenvolvimento de seus filhos. A mulher vítima de atos violentos pode não perceber a influência da violência na vida de seus filhos, não discriminando que eles poderão reproduzir tais comportamentos em sua vida adulta. Entretanto, a vivência de Contextualizando a violência contra a mulher 40 situações de violência intrafamiliar pela mulher ocorridas na presença de seus filhos contribuirá para o processo de perpetuação deste comportamento. Ademais, a intergeracionalidade requer que a atuação dos profissionais da saúde seja ampla, tendo toda a família como cenário de intervenção e atuação. Porém, isto implica envolvimento do profissional na vida íntima de uma família. Esse fato pode dificultar suas ações, exceto se houver uma política assistencial voltada para o rompimento desse ciclo de intergeracionalidade da violência intrafamiliar. Metodologia 41 3. METODOLOGIA 3.1 Referencial teórico-metodológico Esta é uma pesquisa social estratégica de abordagem qualitativa, uma vez que busca compreender de forma profunda e específica os fenômenos sociais, mais especificamente a intergeracionalidade da violência contra a mulher. A pesquisa social lida com o ser humano levando em consideração aspectos históricos e culturais, utilizando a realidade social e o dinamismo individual e coletivo como cenário (MINAYO et al., 2013). Por sua vez, a pesquisa social estratégica orienta-se para problemas sociais, não prevendo soluções práticas para o problema, mas lançando luz sobre aspectos da realidade (MINAYO, 2014). A abordagem qualitativa da pesquisa visa trabalhar com o universo dos significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes (MINAYO et al., 2013). Dessa forma, o pesquisador deve participar, compreender e interpretar os fatores sociais de sua pesquisa, sendo de grande importância considerar o sujeito do estudo um agente pertencente a um grupo social provido de crenças, valores e significados (MINAYO, 2014). Para atingir os objetivos propostos e considerando a complexidade inerente ao tema em discussão, a pesquisa estratégica foi escolhida por ser uma modalidade apropriada para o conhecimento e a investigação em saúde (MINAYO, 2014). 3.2 Campo de estudo O estudo foi realizado no município de Aparecida de Goiânia, GO, com pacientes acompanhadas no Ambulatório de Psicologia do Programa de Prevenção às Violências e Promoção da Saúde, da Vigilância Epidemiológica municipal. O município está localizado na região metropolitana de Goiânia, Metodologia 42 GO e tem população estimada de 521.910 habitantes (IBGE, 2015), sendo o segundo mais populoso do estado. O Programa de Prevenção às Violências e Promoção da Saúde foi criado apenas em 2012, embora tenha sido preconizado pela Portaria nº 936 (BRASIL, 2004b), que estabeleceu a criação dos Núcleos de Prevenção das Violências e Promoção da Saúde, em âmbito local, voltados para a atenção integral prevista na Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências a fim de monitorar tais dados e elaborar ações de apoio e suporte à vítima. Atualmente, esse programa é responsável por receber e inserir os dados das Fichas de Notificação de Violência Interpessoal/Autoprovocada emitidas pelas unidades de saúde, de assistência social e de educação do município no SINAN. Além disso, fornece assistência social às vítimas e suas famílias, é responsável pelo ambulatório de atendimento psicológico às vítimas de violência, capacita os profissionais da saúde, da educação e da assistência social sobre notificações de violência e fluxo de atendimento de vítimas e atua juntamente com outros setores da rede a fim de aprimorar e fortalecer o trabalho intersetorial. Os atendimentos da assistência social são direcionados a todas as notificações e encaminhamentos recebidos no programa. O profissional entra em contato telefônico com todas as vítimas para orientá-las sobre seus direitos e locais de apoio e também para oferecer atendimento psicológico ambulatorial. Caso a vítima aceite o acompanhamento psicológico, seu nome é inserido em uma lista de espera e é orientada sobre o funcionamento dos atendimentos. O ambulatório de atendimento às vítimas de violência oferece atendimento psicológico às vítimas e familiares que residem exclusivamente em Aparecida de Goiânia, sendo as vítimas de outros municípios encaminhadas aos locais pertinentes. Na atualidade, o serviço conta com três profissionais e estes atendem pessoas de qualquer idade (crianças, adolescentes, adultos e idosos) e sexo e vítimas de qualquer tipo de violência. Os atendimentos ocorrem em local próprio e durante o tempo necessário ao processo terapêutico. Metodologia 43 A porta de entrada para a participação no programa são as fichas de notificação de violência e os encaminhamentos de diversos serviços, como Tribunal de Justiça, Ministério Público, Conselhos Tutelares, abrigos, delegacias e outros. Todas as pessoas passam pela assistência social antes de sua inserção no ambulatório, de modo que sejam identificadas as suas necessidades, como serviços médicos, profilaxia de infecções sexualmente transmissíveis e AIDS, assessoria jurídica e outras demandas sociais e da saúde. 3.3 Trabalho de campo O primeiro passo do estudo foi a realização de um levantamento das mulheres em situação de violência que foram ou estavam sendo atendidas no ambulatório de atendimento às vítimas de violência e que estavam de acordo com os seguintes critérios de inclusão da pesquisa: ter idade entre 19 e 59 anos; estar em situação de violência (sexual, psicológica, física, moral ou patrimonial) ou já ter sofrido atos violentos na fase adulta; ter como agressor o parceiro íntimo, ou seja, pessoa com a qual mantém relação afetiva (cônjuge, namorado, companheiro);
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