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0 FACULDADE DE CIÊNCIAS DA SAÚDE CURSO DE PSICOLOGIA GIANA LOPES DE OLIVEIRA RODRIGUES RESENHA CRÍTICA Trabalho de Psicologia apresentado à faculdade IMED, como requisito para a disciplina de Fundamentos Psicanalíticos. Professora: Drª. Júlia Schneider Protas. Porto Alegre Outubro de 2020 1 Resenha crítica: Filme “Incendies” - (Incêndios) Giana Lopes de Oliveira Rodrigues1 Faculdade Meridional - IMED O filme “Incendies” – Incêndios – 2010, narra a história do casal de irmãos gêmeos Jeanne (Mélissa Désormeaux-Poulin) e Simon (Marwan Maxim), que acabaram de perder a mãe e vão ao escritório do notário Jean Lebel (Rémy Girard) para saber do testamento deixado por ela, uma vez que Nawal trabalhava como secretária dele. No documento, Nawal pede que seja enterrada sem caixão, nua e de costas, sem que haja qualquer lápide em seu túmulo. Ela deixa também dois envelopes, um a ser entregue ao pai dos gêmeos e outro para o irmão deles. Apenas após a entrega de ambos é que Jeanne e Simon receberiam um envelope endereçado a eles, quando, então, seria possível colocar uma lápide no túmulo da mãe. Só que Jeanne e Simon nada sabem sobre a existência de um irmão e acreditavam que seu pai estava morto. É o início de uma jornada em busca do passado da mãe, que os leva até a Palestina. Simon se mostra desconfortável e irritado com o conteúdo do testamento da sua mãe, enquanto Jeanne entende que deve realizar o desejo da mãe falecida e embarca em uma viagem do Canadá em direção ao Oriente Médio, para procurar o pai e o irmão, levando-a ao passado desconhecido de Nawal. A trama se desenrola alternando a todo momento entre tempos e contextos históricos diferentes, hora contando sobre a vida de Nawal, desde sua juventude, hora retornando ao contexto atual. Nas raras cenas que mostram Jeanne com sua mãe, esta se mostra praticamente ausente de afeto para com sua filha, beirando a catatonia. O que explica denota uma relação distante entre a mãe e os gêmeos. Nestes momentos é possível perceber a transmissão psíquica de elementos traumáticos, não elaborados, em que predominaram a pulsão de morte e a ação do negativo: 1 Advogada. Bacharel em Direito pela UniRitter/RS. Estudante de graduação em Psicologia pela IMED Porto Alegre. 2 (...) o negativo está presente na obra de Freud em manifestações como a alucinação negativa, transferência negativa, reação terapêutica negativa, negação, a recusa ou desmentida (Verleugnun). Em Além do princípio do prazer (1920), ele propõe que a pulsão de vida tem a função de ligação e que a pulsão de morte busca o desligamento, a nao-ligaçao. A transmissão psíquica de elementos traumáticos, não elaborados, em que predominaram a pulsão de morte e a ação do negativo, ocorre por um desbordamento narcisista maligno da mente dos pais sobre a mente do bebê. Não se trata do narcisismo de vida, necessário à constituição psíquica do bebê, mas de um narcisismo de morte. Para Aulagnier: (...) a ação desse narcisismo de morte se dá através de um radical desinvestimento afetivo e representacional. O desinvestimento ameaça qualquer encontro, qualquer objeto, qualquer experiência que, para ter uma existência psíquica, implique a possibilidade de uma atividade de ligação. Qualquer trabalho de desinvestimento bem-sucedido não deixa traço algum que possa indicar que algo existiu, que algo ocorreu. Esse algo é substituído pelo vazio. Nenhuma saudade, nenhum traço de um objeto perdido. Nada de representações recalcadas (apud Trachtenberg, 2005, p. 61) Benghozi, que disserta sobre a problemática do trauma a partir de catástrofes comunitárias, afirma que o risco constante quando há um traumatismo psíquico não metabolizado é a repetição da cena da violência, mesmo depois de várias gerações. A vítima se torna carrasco. (Hartmann & Schestatsky, 2011) Logo no começo, o filme mostra, não como uma descoberta feita por Jeanne, Nawal tentando fugir de casa, grávida, com seu namorado, quando é impedida por seus irmãos que acabam matando o pai de seu filho e levando ela de volta para casa. Sendo este, portanto, o primeiro de vários eventos traumáticos na vida de Nawal que o filme mostra. Nos meses seguintes, Nawal dá à luz um menino e é obrigada a entrega-lo a um orfanato para aplacar a vergonha da família, que considerada tanto a relação de Nawal com o namorado assassinado quanto o nascimento do menino uma desonra. No momento em que seu filho nasce, a avó de Nawal tatua no calcanhar da criança três pontos pretos, dando a oportunidade de Nawal um dia reencontrar seu filho. Ainda abalada, seguindo os conselhos da avó, Nawal sai da aldeia e vai morar na casa de parentes, onde começa a estudar e passa a trabalhar na gráfica da família. Porém, conflitos na palestina a obrigam a fugir e Nawal percebe que seu filho, que agora vive em um orfanato de meninos, pode estar em perigo e parte em busca dele. Todavia sua busca é inócua e ela vivencia atrocidades de uma guerra religiosa. Quando Jeanne chega a aldeia em que sua mãe nasceu, descobre que ela era considerada uma vergonha para a família e, logo depois, que sua mãe havia sido presa pela morte do líder religioso responsável pelos massacres e atrocidades da 3 guerra. Jeanne descobre, através de um homem que havia sido zelador da prisão por 14 anos, que sua mãe, conhecida na prisão como “a mulher que canta”, ficara presa por 15 anos e que sofrera diversas torturas e inúmeros estupros realizados por um torturador considerado o mais perverso na época, chamado Abou Tarek, que engravidou Nawal. Neste momento, Jeanne se depara com revelações difíceis de lidar e pede a Simon que vá ao seu encontro para ajudá-la nesta jornada. A princípio, Simon aceita ir ao seu encontro, porém, com o intuito de buscar sua irmã e não de acompanha-la na investigação. Ele pede ajuda ao notário Jean, que decide acompanhar os irmãos na busca pelo irmão e pai desconhecidos, como uma espécie de acolhimento dos gêmeos. Contudo, Simon acaba se juntando a irmã na busca. Com base no que foi descoberto até então, ainda sem pistas de seu pai que aparentemente morreu durante a guerra, Jeanne e Simon acreditam que esta criança concebida na prisão e fruto de estupro, salva por uma parteira, é o irmão que eles procuram. Sendo assim, eles seguem a busca para encontrar o irmão chamado Nihad de Maio, nome descoberto com a ajuda dos contatos que o notário tinha, chegando a um homem que o conhecia e com o qual Simon marca um encontro. É neste momento que toda a jornada dos irmãos Jeanne e Simon encontra o seu propósito, onde a verdade sobre a história da mãe vem à tona. O homem revela a Simon que Nihad de Maio passara a vida inteira em busca da mãe e queria ser um herói de guerra famoso para que a mãe pudesse encontra-lo e ter orgulho dele. Mas como isso não aconteceu, ele acabou se tornando um assassino de guerra, atirador e, por fim, como nunca conseguiu sentir acolhimento pela ausência da mãe, foi recrutado e treinado para ser um assassino e torturador. Um dos principais conceitos Freudianos refere-se à equação etiológica (Freud, 1895), que propõe que o sujeito é constituído com base em três grandes fatores constituintes, fatores inatos, constitucionais, inclusive vida uterina, experiências infantis precoces e fatores ambientais da atualidade de cada sujeito. Nihad cresceu em meio à guerra, perdas constantes e total falta de referenciais, presenciando horrores que uma criança não tem condições de compreender e muito menos simbolizar. Logo, tornar-se assassino e torturador acabou dando sentido à sua existência, ele conseguiu ser alguém, mesmo que mau, uma vez que era órfão e não significava nada para ninguém. 4 É possível perceber neste contexto que, mesmosendo fruto de uma relação de amor, de uma gravidez em que a mãe o nutria de amor, as vivências que Nihad teve ao longo da vida foram muito traumáticas, sem a possibilidade identificar-se com qualquer pessoa ou sentimento acolhedor, sendo determinantes para sua constituição psíquica, a exemplo da dinâmica da equação etiológica. Uma das mais importantes contribuições da equação etiológica proposta por Freud é o fato de que, além de interações entre o indivíduo e o seu meio externo durante a fase adulta, deve-se também levar em consideração a interação que ocorre durante o desenvolvimento infantil entre aspectos externos e a constituição do indivíduo herdada geneticamente. (Freud, 1895). Na época, Nihad trocou de nome e passou a chamar-se About Tarek, enviado para a mesma prisão onde Narwal encontrava-se sendo, portanto, o torturador e estuprador de Nawal, sem saber que se tratava de sua própria mãe, ou seja, pai de Jeanne e Simon. Narwal, que desesperada havia golpeado seu ventre para provocar o aborto sem sucesso, não havia dado à luz a um bebê na prisão, mas a um casal e gêmeos, com os quais, após cumprir sua pena, ela emigra para o Canadá. O tempo em que os irmãos investigavam o passado da mãe e aos poucos foram tendo revelações, permitiu que as verdades antes encobertas pudessem ser assimiladas aos poucos, juntos, mesmo diante do maior e mais doloroso segredo da mãe revelado, os gêmeos, por meio da elaboração, puderam transformar a transmissão transgeracional, em que o material psíquico da herança genealógica é inconsciente e não simbolizado, em intergeracional, permitindo a eles a ressignificação da transmissão psíquica entre as gerações, onde, até então, eram apenas silêncios, segredos e lutos não elaborados, percebidos por Simon e Jeanne como atitudes estranhas e incompreensíveis, caracterizadas pela falta de afeto, distanciamento e frieza da mãe. Na verdade este foi o meio que Narwal encontrou para se proteger de sua dor e sofrimento, escondendo através do silencio segredos sobre o horror que passou. Todavia, conforme Freud observa em seu texto A Negativa (1974[1925]), traduzido por "a denegação", os conteúdos sempre são transmitidos as próximas gerações, de uma forma ou de outra: ...como mecanismo que permite a ideia ou imagem recalcada ter acesso à consciência, porém com a condição de que seja denegada, como forma de 5 suspensão do recalcamento, ou seja, uma aceitação intelectual, mas não afetiva, portanto o recalque continua e assim é transmitido para as gerações ulteriores... Freud concebe a presença da transmissão, nas marcas do ID, no modelo estrutural da segunda tópica e também nas fantasias originárias. Na 2ª Tópica, em seu novo Modelo Estrutural (Dinâmico), dividido em 3 instâncias, Freud (1974[1925]) reconhece a presença da transmissão: Freud (2006d, p. 132) diz que o id é hereditário, o ego é derivado do id e que o superego é o herdeiro do complexo de Édipo e do superego dos pais. O diferencial psicanalítico assenta-se na questão edípico-relacional, sob o prisma da família de origem do sujeito, interconectada inconscientemente às gerações anteriores e posteriores. Na família vigoram determinados mitos, segredos, maldições, lacunas de representação, defusão de pulsões, processos identificatórios eivados de sofrimento e traumas graves, entre outros. Eiguer (1997, p. 1856) propõe que a patologia do transgeracional liga-se à força da tragédia em indivíduos tomados por lutos muito difíceis, e os filhos vivem como seus os acidentes traumáticos que atingiram seus pais ou avós. O pai atribuiria ao filho um traço ou uma situação que ele não pode elaborar em si mesmo. Esse modelo de identificação, tão estruturante quanto desorganizador do eu, põe-se em ação nos processos alienantes da transgeracionalidade. (Almeida, 2008) Talvez por esta razão, Nawal percebeu que sua história, mesmo mantida em segredo, tenha tido repercussões em seus filhos, e ela tenha decidido, ainda que após sua morte, dar a oportunidade a seus filhos de percorrerem este caminho pela história da família, que em vida ela não poderia compartilhar por serem verdades tão dolorosamente insuportáveis. É possível observar, em determinado trecho da carta que Nawal deixou para Jeanne, sua esperança de interromper o ciclo da repetição: Trecho da carta deixada para Jeanne: ... As mulheres da nossa família estão todas presas numa teia de raiva. Tive raiva da minha mãe Assim como você tem raiva de mim E assim como minha mãe teve raiva da mãe dela. É preciso quebrar esse fio. Neste trecho, especificamente, revela-se outro princípio de Freud, o da Compulsão à Repetição: 6 Há pessoas em cujas vidas se repetem indefinidamente as mesmas reações não-corrigidas, em prejuízo delas próprias, assim como há outras pessoas que parecem perseguidas por um destino implacável, embora uma investigação mais atenta nos mostre que tais pessoas, sem se aperceberem, causam a si mesmas esse destino. Em tais casos, atribuímos um caráter ‘demoníaco’ à compulsão à repetição. (Freud, 1950) [...] todo ser humano, por efeito conjugado de suas disposições inatas e dos influxos que recebe em sua infância, adquire uma especificidade determinada para o exercício de sua vida amorosa, ou seja, para as condições de amor que estabelecerá e as pulsões que satisfará, assim como para as metas que irá fixar-se. Isso dá como resultado, digamos assim, um clichê (ou também vários) que se repete - é reimpresso - de maneira regular na trajetória de vida, na medida em que o consintam as circunstâncias exteriores e a natureza dos objetos acessíveis, ainda que não se mantenha de todo imutável diante das impressões recentes. (Freud 1912b, pp. 97-8, citado por Winograd). No final do filme, Jeanne e Simon cumprem a última etapa do processo, entregando a carta destinada ao seu pai, e também ao seu irmão, que são a mesma pessoa. Ao ler as cartas, Nihad/Abou se depara, pela primeira vez, com a verdade sobre a sua origem. A primeira carta, endereçada ao pai, estuprador e torturador Abou Tarek, revela que aqueles que acabaram de entregar-lhe as cartas eram seus filhos e transborda todo o ódio de Nawal por ele, por todas as torturas sofridas. A segunda, endereçada ao filho, Nihad de Maio, exala profundo amor e revela a busca infinita da mãe pelo filho, tão amado, fruto do maior amor de sua vida, ao que pede desculpas por tê-lo abandonado, mas que sempre o amou. Ela conta quando o reconheceu, pelas três marcas no calcanhar, na cena em que estava na piscina pública com Jeanne, e percebeu que seu filho era também seu torturador. Neste momento é possível entender o silêncio de Narwal, pois como seria possível amar e odiar tão profundamente e na mesma intensidade a mesma pessoa? Analisando tanto o contexto em que os gêmeos e o primogênito foram concebidos como os aspectos externos aos quais foram expostos ao longo da vida, incluindo a relação com a mãe, novamente percebe-se que a predisposição, ou seja, os fatores constitucionais e experiências infantis, incluindo durante a vida uterina (uma vez que os estados de humor da mãe podem afetar o feto, pois vêm acompanhados por alterações nas secreções neuro-hormonais. Essas secreções são lançadas na corrente sanguínea e chegam ao feto pelo cordão umbilical. Elas vão provocar nele o mesmo estado emocional e a mesma sensação vividos pela mãe (Wilheim, 2015), 7 somados aos ambientais de cada um deles, foi determinando de formas diferentes para cada um dos filhos. Contudo, neste processo, embora se deparem com o horror da própria história, desde a sua concepção, a herança recebida permite mudanças transformadoras rompendo o ciclo de repetições destrutivas, uma vez que, se apropriando das verdades, embora terríveis e indizíveis, quando nomeadas, sofridas e pensadas, tornam-se libertadoras, através da apropriação pelos gêmeosda própria história. 8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Almeida, M. E. S. A força do legado transgeracional numa família. Periódicos eletrônicos em Psicologia. v.10, n.2, p.215-230, dez 2008. Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516- 36872008000200017. Freud, S. A herança e a etiologia das neuroses. Rio de Janeiro: Imago, v.3. 1896. ______. Totem e Tabu. Rio de Janeiro: Imago, 1950. ______. Três ensaios da teoria da sexualidade. Rio de Janeiro: Imago, v.6. 1905. ______. Sobre a dinâmica da transferência. Rio de Janeiro: Imago, v.12. 1912. Hartmann, I. B. & Schestatsky, S. Transmissão do psiquismo entre as gerações. Revista Brasileira de Psicoterapia. v.13, n.2, 2011. Recuperado de: http://rbp.celg.org.br/detalhe_artigo.asp?id=60. Villeneuve, D. (Diretor). (2011). Incendies [Arquivo de vídeo]. Canadá, Recuperado de: https://www.youtube.com/watch?v=dTfwOCtSSaw. Wilheim, J. O que é psicologia pré-natal. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2015. Winograd, M. Disposição e acaso em Freud: uma introdução às noções de equação etiológica, séries complementares e intensidade pulsional no momento. Periódicos eletrônicos em Psicologia. v.9, n.2, dez 2007. Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517- 24302007000200004#:~:text=%C3%80s%20s%C3%A9ries%20como%20esta %2C%20Freud,a%20rigidez%20das%20fixa%C3%A7%C3%B5es%20libidinai s.
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