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História Medieval Ocidental Danielle O. Mércuri AULA 7 Cristandade e espiritualidade I DISCUTINDO OS CONCEITOS Embora o conceito de cristandade (comunidade cristã) seja empregado nas obras de teologia muitas vezes como sinônimo de cristianismo, devemos nos atentar ao fato de esses termos terem significados distintos. Se o termo cristianismo diz respeito a um sistema religioso, a cristandade medieval, por outro lado, refere-se a um sistema de poder e legitimação da Igreja e do Estado em uma certa sociedade e cultura. Como ressalta o medievalista brasileiro Francisco José Silva Gomes: “Na história do cristianismo, o sistema iniciou-se por ocasião da Pax Ecclesiae em 313 e deu início à primeira modalidade de Cristandade dita ‘constantiniana’” (2002, p. 221). Ou seja, a Cristandade medieval ocidental, segundo esse historiador, deu continuidade à Cristandade antiga de um império que, a partir de Constantino, se converteu ao cristianismo. Nesse sentido, como o historiador Paul Veyne chama à atenção no livro Como o nosso mundo se tornou cristão, Constantino teve um papel significativo, uma vez que, embora não tenha proibido as práticas pagãs, demonstrou publicamente o seu agradecimento ao Deus cristão pelas conquistas alcançadas, associando-as à sua conversão e tornando-se, assim, exemplo para os seus súditos. Ao se tornar a religião oficial do Império Romano, em 380, com o decreto do imperador Teodósio, o cristianismo passou a desempenhar, nas palavras de Francisco José Silva Gomes, um novo papel. De acordo com Gomes, o cristianismo passou a desempenhar a função de sacralizar o poder das autoridades, sobretudo daquela representada pela figura do imperador. De religião perseguida, a Igreja Católica alcançou o lugar de representante de uma fé triunfante. Por isso, beneficiou-se das estruturas imperiais ao estabelecer sua rede de dioceses (regiões administradas por um eclesiástico) nas cidades romanas. E, mesmo após o desmantelamento do Império Ocidental, conseguiu manter sua rede de dioceses onde ficavam essas antigas cidades. Contudo, foi no século IX, com o papa João VIII (eleito em 872 e atuante até a sua morte, em 882), que a noção de cristandade passou a ser utilizada para designar o conjunto de territórios cristãos do ocidente europeu. Nessa altura, como grande parte dos reinos germânicos havia se convertido ao cristianismo, esta se tornara a religião do ocidente. Para a construção dessa identidade coletiva ocidental, segundo Hilário Franco Júnior, certa oposição aos muçulmanos e bizantinos, respectivamente nos séculos VIII e IX, parece ter sido fundamental. ALGUMAS RESSALVAS Heterogeneidade Apesar de o termo cristandade sugerir unidade no sentido identitário e religioso e leve a crer que os membros que comungam dessa religião seguem os mesmos códigos, não houve homogeneidade na cristandade. Ademais, cristandade e Europa não são termos correspondentes, já que a expressão Europa aparece, no sentido de continente, apenas no século XV. É importante frisar, igualmente, que a apropriação do cristianismo no Ocidente foi um processo longo e mais lento em alguns territórios. Por exemplo, esse processo foi mais lento em algumas porções, como no caso do Norte e Leste europeus, onde o cristianismo só alcançou maior número de adeptos a partir do ano mil. Sem contar que se deu de maneira sincrética, isto é, a partir da mescla de referências religiosas locais e, até mesmo, em meio a divergências sobre o entendimento do cristianismo, tal como ocorreu com a doutrina ariana assimilada pelos vândalos, ostrogodos e visigodos. Espiritualidade Outro elemento importante que chamou à atenção do medievalista André Vauchez e merece ser destacado é que a Idade Média não conheceu o termo espiritualidade. Embora essa palavra apareça em alguns textos do século XII, ela não apresenta um conteúdo propriamente religioso, dado que designa apenas o que é espiritual e, portanto, independente da matéria. A espiritualidade, como uma expressão moderna elaborada no século XIX, diz respeito à vida interior e implica no conhecimento necessário para alcançar a ascese, ou seja, o contato com Deus. De acordo com Vauchez: “a espiritualidade não é mais considerada um sistema que codifica as regras da vida interior, mas uma relação entre certos aspectos do mistério cristão, particularmente valorizados em uma época dada, e práticas (ritos, preces, devoções) privilegiadas em comparação a outras práticas possíveis no interior da vida cristã” (1995, p. 8). Ao pensarmos em Idade Média, segundo Vauchez, é importante que consideremos a espiritualidade dos clérigos e religiosos elaborada em textos escritos, mas também a dos populares expressa nos gestos, cantos e imagens., http://bit.ly/2CmKGre MUDANÇAS ECONÔMICAS, SOCIAIS E RELIGIOSAS Como nosso alvo é compreender a relação entre os homens medievais e Deus, analisaremos algumas mudanças significativas na cristandade entre os séculos XI e XIII. Tal período foi, de acordo com a análise de Georges Duby, marcado pelo crescimento demográfico e pela difusão de novas técnicas que impulsionaram a agricultura e o artesanato. Embora o mundo continuasse rural, os espaços urbanos renasceram e, junto deles, surgiram novos grupos sociais, tais como: burgueses, mercadores, armadores, notários, etc. Cidades como Veneza e Gênova despontaram como locais onde os negociantes realizavam comércio com o Mediterrâneo e, até mesmo, com o Oriente. Nos espaços rurais, camponeses comercializavam grãos, ovos, aves, cerâmica, peças têxteis, e buscavam, nas cidades, peixes, cerveja e cera. Para o historiador Vauchez, essa expansão econômica vivida pelo Ocidente, no século XII, também apresentou consequências negativas, uma vez que aprofundou ainda mais a distância que separava ricos e pobres. Se na sociedade rural tradicional todos se conheciam e eram solidários aos grupos que pertenciam, o uso do dinheiro e o crescimento da vida urbana dissolveu esses laços, conduzindo os mais pobres ao anonimato e à indigência. Essas mudanças permitiram também maior mobilidade das pessoas. Senhores partiram para as Cruzadas, camponeses ganharam porções de terras, clérigos procuraram escolas e mestres, abades e bispos foram convocados para concílios em Roma. Tais deslocamentos ajudaram a afirmar a ideia de cristandade, fortalecendo essa identidade através do contato com outros povos e culturas. Não podemos nos esquecer de que a facilidade em relação à mobilidade também estava relacionada aos movimentos religiosos de contenção à violência: a Paz de Deus e a Trégua de Deus. Como salienta Hilário Franco Júnior, a Igreja promoveu, no século X, o movimento Paz de Deus. Os cavaleiros foram obrigados a jurar que respeitariam os espaços das igrejas, os membros do clero e as pessoas mais humildes. Agindo dessa forma, a Igreja se colocava como protetora dos mais fracos. Conquanto esse movimento tenha sido mais efetivo na região da Aquitânia, foram criados diversos interditos nos sínodos e concílios. Por exemplo, o concílio de Charroux havia proibido a invasão e pilhagem das igrejas, o roubo do gado dos camponeses e a agressão aos clérigos que estivessem desarmados. Foram proibidos igualmente: a destruição dos moinhos e vinhas, bem como o ataque às pessoas que estivessem indo à igreja ou vindo dela. De acordo com Hilário Franco Júnior, sem conseguir pacificar a sociedade cristã ocidental e na tentativa de estabelecer novos mecanismos de controle sobre a elite laica, a Igreja criou, no século XI, a Trégua de Deus. Nas palavras do historiador: “Esta proibia o uso de armas alguns dias por semana, a quinta- feira associada ao Perdão, a sexta-feira à Paixão, o sábado à Aleluia, o domingo à Ressurreição. Também não se podia lutar em certos momentos do calendário litúrgico, caso do Advento, Quaresma, Páscoa e Pentecostes. Como a ideia básica da Paz e da Trégua de Deus era a preservaçãoda ordem religiosa, social e política desejada por Deus, entende-se que a partir de fins do século XI ela tenha derivado para a ideia de Guerra Santa, que procurava impor aquela ordem dentro (Cruzada contra hereges) e fora (Cruzada contra muçulmanos) da Cristandade. Assim, estaria garantida a ordem terrena, cujo ideal é refletir o melhor possível a ordem celeste. Por ter aproximado os dois mundos, o clero considerava- se autorizado a exercer seu domínio sobre este, enquanto se aguarda a chegada do outro” (2001, p. 100). A despeito desses movimentos em prol da paz, as tensões entre o poder laico e o eclesiástico continuaram. Com a finalidade de delimitar melhor as esferas de atuação de laicos e clérigos, foram empreendidas reformas religiosas no século XI. Conduzidas pelo papa Gregório VII, entre 1073 e 1085, mas não restritas à atuação deste clérigo, elas receberam o nome de “Reforma gregoriana”. Tinha-se em vista a reestruturação da sociedade cristã sob a condução da instituição eclesial. Gregório VII escreveu o programa de sua reforma em um documento conhecido como Dictatus Papae (1075), no qual deixou nítida sua consideração a respeito da supremacia do poder espiritual, representado pelo pontificado, em relação ao poder temporal, personificado pelos reis, príncipes e imperadores. Conforme alguns trechos desse documento traduzidos por José Manuel Nieto Soria, Gregório assegurava que “a Igreja romana foi fundada unicamente por Deus. Que só o romano pontífice pode, em justiça, ser chamado de universal” (1996, p. 66). Segundo Baschet, os eixos principais dessa reforma foram: 1) Restaurar a hierarquia eclesiástica, liberando-a do controle dos laicos e impedindo que estes interviessem nos negócios da Igreja. 2) Reforçar a separação entre laicos e clérigos. A figura do imperador foi visada por essa reforma, pois, conforme os modelos imperais bizantino e carolíngio, os imperadores poderiam intervir nas questões eclesiásticas, indicando até mesmo os papas. A reforma buscou, assim, se opor justamente a essa ampliação do poder temporal através do reforço ao poder eclesiástico. A propósito do reforço ao poder eclesiástico, o medievalista espanhol José Manuel Nieto Soria destaca: “Do ponto de vista da função da direção do Pontificado sobre a Igreja, um ponto essencial do programa gregoriano foi a centralização do governo eclesiástico, quer dizer, o reconhecimento de que a ação do Pontificado se estendia ao último rincão da Cristandade, não havendo igreja ou monastério alheio a essa função de direção dos papas” (1996, p. 20). A oposição entre Henrique IV (governante do Sacro Império Romano Germânico - complexo territorial constituído pelos reinos da Boêmia, Alemanha, Borgonha, Itália e outros territórios; herdeiro do título atribuído a Carlos Magno em 800) e o que fora estabelecido por Gregório VII no Dictatus Papae gerou vários conflitos, conhecidos como Querela das Investiduras. Papas e imperadores disputavam pela supremacia moral e política na cristandade. Para tentar sanar os conflitos entre o pontificado e o poder político, foi estabelecida, em 1122, a Concordata de Worms, entre o papa Calisto II e o imperador Henrique V. Por meio desse acordo, afirmou-se a distinção entre a investidura espiritual e temporal para os bispos alemães. Isto é, foi reconhecido ao imperador o direito de investir bispos com autoridade secular em seus territórios, mas não com autoridade sagrada. Entre os séculos XI e XII, através dessas mudanças, a Igreja buscou reforçar a sacralização do clero, no sentido de interditar os laicos de toda intervenção nos domínios reservados à igreja. Desse modo, foram reforçadas as distinções do clero através do celibato e a busca pela pureza moral. Esse movimento, conforme destaca Baschet, ocorreu por meio de uma intensa separação e oposição entre: o espiritual e o material, entre o celibato e o casamento, entre os clérigos e os laicos. REFLEXÕES FINAIS Assim podemos fazer algumas considerações sobre essa primeira parte da aula. De acordo com o historiador Francisco José da Silva Gomes: “A Cristandade medieval ocidental é, em certa medida, a continuadora da Cristandade antiga, a do “Império Cristão” dos séculos IV e V. No contexto medieval, acentuou-se muito mais a situação de unanimidade e conformismo, obtida por um consenso social homogeneizador e normatizador, consenso este favorecido pela constituição progressiva de uma vasta rede paroquial e clerical. As instituições todas tendiam, pois, a apresentar um caráter sacral e oficialmente cristão” (2002, p. 221). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BASCHET, Jérôme. A civilização Feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. DUBY, G. As três ordens ou o imaginário do feudalismo. Lisboa: Estampa, 1982. FRANCO JÚNIOR, H. A Idade Média: Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1986. GOMES, Francisco José da Silva. A Cristandade Medieval entre o mito e a utopia. Topoi. Rio de Janeiro, 2002, p. 221-231. ___________________________. Cristandade e cristianismo antigo. Phoînix, Rio de Janeiro, 6, p. 178-196, 2000. VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média ocidental: (séculos VIII a XIII). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995. QUER SABER MAIS? Nesta parte, você poderá estudar um pouco mais sobre as referências usadas em nossa aula. • A cristandade medieval • http://www.scielo.br/pdf/topoi/v3n5/2237-101X-topoi-3-05-00221.pdf • Reforma gregoriana https://brasilescola.uol.com.br/historiag/reforma- gregoriana.htm • A Paz de Deus https://www.revistas.ufg.br/historia/article/view/23577 http://www.scielo.br/pdf/topoi/v3n5/2237-101X-topoi-3-05-00221.pdf https://brasilescola.uol.com.br/historiag/reforma-gregoriana.htm https://www.revistas.ufg.br/historia/article/view/23577 CONHECENDO ALGUNS TERMOS Concílio É uma reunião entre autoridades eclesiásticas, presidida pelo papa, para deliberar e discutir a propósito de questões de fé, doutrina, costumes e questões pastorais. SUGESTÃO DE VÍDEOS • A Igreja na Idade Média. Entrevista com a Profa. Dra. Marcella Lopes Guimarães (UFPR). Café Teológico - 2017. https://www.youtube.com/watch?v=m-wWwPPxeWs • A Igreja na Idade Média. Documentário. https://www.youtube.com/watch?v=k0czLtU7qCk&t=234s https://www.youtube.com/watch?v=m-wWwPPxeWs https://www.youtube.com/watch?v=k0czLtU7qCk&t=234s
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