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(baseado na obra A cidadania no Brasil, de José Murilo de Carvalho) a) Primeiros passos: a colônia No período de 1500 a 1822, os portugueses construíram um enorme país dotado de unidade territorial, lingüística, cultural e religiosa. Mas deixaram também uma população analfabeta, uma sociedade escravocrata, uma economia monocultora e latifundiária, um Estado absolutista. À época da independência, não havia cidadãos brasileiros, nem pátria brasileira. Um exemplo do perfil da administração colonial, que dificultava o desenvolvimento de uma consciência de direitos: o descaso com a educação. Em 1872, apenas 16% da população era alfabetizada. No caso da educação superior, diferentemente da Espanha, Portugal nunca permitiu a criação de universidades na colônia. Ao final do período colonial, havia pelo menos 23 universidades na América espanhola, 3 delas no México, que formaram 150 mil pessoas. Os brasileiros iam estudar em Coimbra, por onde, de 1772 a 1872 passaram somente 1.242 alunos... Chegou-se, portanto, ao fim do período colonial com a grande maioria da população excluída dos direitos civis e políticos e sem a existência de um sentido de nacionalidade. No máximo, havia alguns centros urbanos dotados de uma população politicamente mais aguerrida e algum sentimento de identidade regional. b) A independência, a República e a conquista de alguns direitos políticos (1822-1930) Com a independência, em 1822, não houve mudança radical no panorama descrito. Por um lado, a herança colonial era por demais negativa; por outro, o processo de independência envolveu conflitos muito limitados. Não ocorreu por aqui, como em outros países latino-americanos, qualquer guerra de libertação. A principal característica política da independência brasileira foi a negociação entre a elite nacional, a coroa portuguesa e a Inglaterra. Esta independência negociada, intermediada pelos ingleses, resultou no pagamento a Portugal de uma indenização de 2 milhões de libras esterlinas... O papel do povo, nessas circunstâncias, não foi decisivo. Nas capitais provinciais mais distantes, a notícia da independência só chegou uns 3 meses depois; no interior do país, demorou ainda mais. A tranqüilidade da transição facilitou a continuidade social. Implantou-se um governo ao estilo das monarquias constitucionais européias. Mas não se tocou na escravidão, apesar da pressão inglesa para aboli-la. A independência, portanto, apesar de constituir um avanço nos direitos políticos, trouxe grandes limitações aos direitos civis, em especial por manter a escravidão. A Constituição de 1824 regulou os direitos políticos e era avançada para a época. Podiam (e deviam) votar todos os homens de 25 anos ou mais que tivessem renda mínima de 100 mil réis. As mulheres e os escravos não votavam. Até 1881 votavam cerca de 50% da população adulta masculina. Mas qual era o real conteúdo desse direito político formalmente garantido? Na realidade, os brasileiros tornados cidadãos pela Constituição eram as mesmas pessoas que tinham vivido os 3 séculos de colonização nas condições que já foram descritas. Mais de 85% eram analfabetos, incapazes de ler um jornal, um decreto do governo, um alvará da justiça. Mais de 90% viviam nas áreas rurais, sob o controle ou influência dos grandes proprietários. Nas cidades, muitos votantes eram funcionários públicos controlados pelo governo. Neste quadro, nas eleições o que estava em jogo não era o exercício de um direito do cidadão, mas o domínio político local e nacional. Diga-se ainda que, para muitos brasileiros, a idéia de pátria não tinha materialidade, mesmo após a independência: existiam, no máximo, identidades regionais. A sangrenta guerra contra o Paraguai (1864-1870) cumpriu o papel de fornecer uma certa identidade nacional (como, aliás, ocorre com a maioria das guerras...), ao instituir um inimigo estrangeiro. Em 1881 lei aprovada pelos deputados limitou drasticamente o voto, ao excluir os analfabetos, 85% da população. O número de eleitores caiu de 1 milhão (1872) para chocantes 100 mil (1886). Este retrocesso foi mantido pela República, a partir de 1889 ( a Constituição republicana é de 1891). Do ponto de vista da representação política, portanto, a Primeira República (1889-1931) não significou grande mudança. No caso dos direitos civis, a herança colonial pesou mais. O novo país herdou a escravidão, a grande propriedade rural (fechada à lei) e um Estado comprometido com o poder privado. Nas cidades, a partir dos últimos anos do século XIX, emerge um novo personagem, a classe operária. Apesar da sistemática e implacável repressão, o movimento operário, na Primeira República, sob o ponto de vista da cidadania, significou um avanço inegável, sobretudo com relação aos direitos civis. O grande marco foi a primeira greve geral realizada no Brasil, em 1917. Entretanto, os poucos direitos civis conquistados não puderam ser postos a serviço dos direitos políticos. Predominou – com a derrota do projeto emancipatório e antiestatal dos anarquistas – o modelo de estreita cooperação dos sindicatos com o Estado: a busca de melhorias por meio de aliança com o poder público que, mais que cidadania, pode ser chamada de estadania. Com direitos civis e políticos tão precários, seria difícil falar de direitos sociais; a assistência social era totalmente particular: irmandades religiosas (oriundas da época colonial) e sociedades de auxílio mútuo. Inexistia, até 1930, legislação trabalhista. Até o direito à educação primária – previsto na Constituição de 1824 – foi excluído da Constituição republicana de 1891. A questão social era “caso de polícia”... É fato de que, de 1822 a 1930, não havia no país povo politicamente organizado, opinião pública ativa, eleitorado amplo e esclarecido. Todavia, por vias tortas, o povo se mexia... Algumas manifestações na fronteira da legalidade: campanha abolicionista, tenentismo. Além disso, ocorreram manifestações populares menos ortodoxas: Revolta dos Cabanos (Pernambuco, Alagoas, 1832), Balaiada (Maranhão, 1838), Cabanagem ( Pará, 1835) Revolta dos escravos malês (Salvador, 1835)Revolta do quebra- quilos (Rio de Janeiro, 1871), Canudos (Bahia, 1893 ), Contestado (Paraná e Santa Catarina, 1912), Revolta da Vacina (Rio de Janeiro, 1904), além da já mencionada greve geral de 1917 (que atingiu principalmente Rio e São Paulo, mas ocorreu, em menor escala em outras cidades, inclusive Belo Horizonte e Juiz de Fora). Em todas essas revoltas populares que se deram a partir do início do Segundo Reinado verifica-se que, apesar de não participar da política oficial, de não votar, ou de não ter consciência clara do sentido do voto, a população tinha alguma noção sobre direitos e deveres do Estado. O Estado era aceito por esses cidadãos, desde que não violasse um pacto implícito de não desrespeitar seus valores, sobretudo religiosos. Tais pessoas não podiam ser consideradas politicamente apáticas, não obstante encetarem movimentos reativos e não propositivos. Pode-se concluir, então, que até 1930 não havia povo organizado politicamente nem sentimento nacional consolidado. A participação na política nacional, inclusive nos grandes acontecimentos, era limitada a pequenos grupos. A grande maioria do povo tinha com o governo uma relação de distância, de suspeita, quando não de aberto antagonismo. Quando o povo agia politicamente, em geral o fazia como reação ao que considerava arbítrio das autoridades. Era uma cidadania em negativo, se se pode dizer assim. O povo não tinha lugar no sistema político, seja no império, seja na República. c) 1930-1964 – pé no acelerador 1930 foi um divisor de águas. A partir daí a história começou a andar mais rápido, em especial no que se refere aos direitos sociais. A CLT de 1943 foi um marco, mas os direitos trabalhistas e previdenciários, no seguimento, continuaram ampliando-se. A evolução dos direitospolíticos foi mais complexa, alternando altos e baixos, golpe e ditadura em 1937, experiência democrática em 1945 (a primeira!), ditadura novamente, em 1964... Os direitos civis estiveram presentes nos textos legais, mas sua existência prática continuou precária para a maioria, em especial, obviamente, nos períodos ditatoriais. Houve progresso na formação da identidade nacional, em particular por causa do estímulo governista ao nacionalismo (campanha do petróleo). A “Revolução” de 3 de outubro de 1930 sepultou a República Velha do governo das oligarquias regionais, queda motivada externamente pela Guerra e pelo crack de 1929. Internamente, a crítica ao federalismo oligárquico sofria ataques de militares, intelectuais, proletariado urbano, classe média, além de próprios setores oligárquicos, derrotados na fraudulenta eleição de 1930. Neste período o país viveu fase de grande agitação política, com o aprofundamento da organização de vários setores sociais: operários, classe média, militares, oligarquias, industriais. Proliferaram os partidos e os movimentos políticos de massa nacionais. Setores militares tendiam para a esquerda (Prestes, é claro), causando uma polarização ideológica inédita até então. A constituinte de 1934 aprovou, pela primeira vez, um capítulo constitucional sobre a ordem econômica e social. Mas nuvens carregadas – na esfera internacional – ameaçavam o novo liberalismo político. Os governos “fortes” da Itália, Alemanha e União Soviética” começavam a se impor como modelos. A polarização política se exprimia em dois pólos, a ALN (esquerda) e a AIB (direita). A primeira, a partir de uma avaliação conjuntural equivocada, deflagra a derrotada revolta de novembro de 1935, fornecendo bom pretexto para a ditadura que se avizinhava. Com o apoio dos militares, Vargas institui o Estado Novo em 1937, praticamente não houve resistência popular e inicia o esforço de organizar patrões e operários por meio de uma versão local do corporativismo italiano. Empregados e patrões eram obrigados a filiar-se a sindicatos controlados pelo governo, sob a ótica da rejeição do conflito social e propondo a cooperação inter-classes mediada pelo Estado. Como já dito, os direitos políticos experimentaram avanços e recuos, mas os direitos sociais viveram curva apenas ascendente. 1930 a 1945 foi o grande momento da legislação social, ainda que implantada em ambiente de nula participação política e de precária vigência dos direitos civis. Não foi conquista democrática e comprometeu o desenvolvimento de uma cidadania ativa. O significado da legislação social (e sindical) foi ambíguo. Invertendo a ordem estabelecida pelos teóricos (Marshall) para o surgimento dos direitos, o governo introduziu os direitos sociais antes da consolidação dos direitos políticos. A inclusão social não ocorreu em decorrência da luta social, até porque as greves eram proibidas por leis expressas editadas em 1939 e 1943. Vargas era o emblemático pai dos pobres...Os direitos foram vistos como favor, caracterizando nitidamente uma cidadania passiva e receptora. O ditador foi deposto pelos seus ministros militares, em 1945. Eleito senador em 1946, voltou ao poder pelo voto, em 1950. A Constituição de 1946 preservou os direitos sociais anteriores e garantiu os tradicionais direitos civis e políticos. Essa situação perdurou até 1964. Vargas é eleito em 1950 e prossegue com sua política populista e nacionalista. Os temas que polarizaram a luta política no período foram; guerra fria, petróleo, política sindical e trabalhista, essa última capitaneada por Jango. O acirramento da luta política provocou o suicídio de Vargas, em agosto de 1954. Nascia um mítico herói popular. Kubitschek foi eleito com o apoio dos varguistas, presentes na chapa com o vice Jango. Prosseguia o embate entre liberais-conservadores e nacionalistas-populistas, com divisões profundas inclusive nas forças armadas. 1960 é a vez de Jânio, que toma posse em janeiro de 1961 e renuncia em agosto. Após uma crise militar (premonitória de 1964), o vice Jango toma posse, mas com poderes reduzidos. O plebiscito para a restauração do presidencialismo agudizou sobremaneira a polarização política. O grande debate girava em torno das reformas de base, termo geral para indicar reformas das estruturas agrária, fiscal, bancária e educacional. Havia ainda demandas de reformas estritamente políticas, como o voto para os analfabetos e para os soldados e cabos, além da legalização do Partido Comunista. O presidente achava-se imprensado entre os conspiradores de direita, que o queriam derrubar, e os setores radicais da esquerda, que o empurravam na direção de medidas cada vez mais ousadas. No auge da crise, revelou-se com nitidez a fragilidade da organização sindical. Os confiantes dirigentes sindicais convocaram uma greve geral para o dia 31 de março em oposição ao golpe. Seu apelo não foi ouvido. As grandes massas em nome das quais falavam os líderes não apareceram para defender o governo. As que apareceram foram as da classe média, no dia 2 de abril, para celebrar a queda do presidente. Apesar do grande barulho feito, via-se agora que o movimento popular era um castelo de cartas. Por que, afinal, a democracia foi a pique em 1964, se havia condições tão favoráveis a sua consolidação? A resposta pode estar na falta de convicção democrática das elites, tanto de esquerda como de direita. Os dois lados se envolveram em uma corrida pelo controle do governo que deixava de lado a prática da democracia representativa. Entretanto, bastaria a falta de convicção democrática para explicar o comportamento das lideranças? Creio que não. Na verdade, não havia organizações civis fortes e representativas que pudessem refrear o curso da radicalização. Sintomaticamente, os direitos sociais quase não evoluíram durante o período democrático, que foi de 1946 a 1964. d) A ditadura militar (1964-1985) Como em 1937, o rápido aumento da participação política levou em 1964 a uma reação defensiva e à imposição de mais um regime ditatorial em que os direitos civis e políticos foram restringidos pela violência. Os dois períodos se assemelham ainda pela ênfase dada aos direitos sociais, agora estendidos aos trabalhadores rurais, e pela forte atuação do Estado na promoção do desenvolvimento econômico. Pelo lado político, a diferença entre eles foi a manutenção do funcionamento do Congresso e da realização das eleições no regime implantado em 1964. A ditadura militar restringiu as eleições para presidente e governador, além de mudar as regras todas as vezes em que se apresentava a possibilidade de derrota eleitoral do partido governista. Mas, apesar das restrições, as eleições legislativas prosseguiram. Mais estranho do que haver eleições foi o fato de ter o eleitorado crescido sistematicamente durante os governos militares. A tendência iniciada em 1945 não foi interrompida, foi acelerada. Em 1960, nas eleições presidenciais, votaram 12,5 milhões de eleitores, nas eleições senatoriais de 1970 votaram 22,4 milhões, nas de 1982, 48,7 milhões, nas de 1986, 65,6 milhões. Em 1960, a parcela da população que votava era de 18%; em 1986 era de 47%, um crescimento impressionante de 161%. Isto significa que 53 milhões de brasileiros, mais do que a população total do país em 1950, foram formalmente incorporados ao sistema político durante os governos militares. Esse é um dado cujas implicações não podem ser subestimadas. A pergunta a se fazer é óbvia: o que significa para esses milhões de cidadãos adquirir o direito político de votar ao mesmo tempo em que vários outros direitos políticos e civis lhes eram negados? Que sentido teria esse direito assim conseguido? A complexidade do período militar não pára por aí. Vimos que após a fase de bonança de Kubitschek a taxa de crescimento econômico caiu fortemente. O ano de 1963 foi o ponto mais baixo, com aumento do Produto Interno Bruto de apenas1,5%.Em termos per capita, era decréscimo. Após o golpe, a taxa de crescimento manteve-se baixa até 1967. Mas a partir de 1968, exatamente o ano em que a repressão se tornou mais violenta, ela subiu rapidamente e ultrapassou a do período de Kubitschek, mantendo-se em torno de 10% até 1976, com um máximo de 13,6% em 1973, em pleno governo Médici. Foi a época em que se falou no “milagre” econômico brasileiro. A partir de 1977, o crescimento começou a cair chegando ao ponto mais baixo em 1983, com -3,2%, subindo depois para 5% em 1984, o último ano completo de governo militar. O sentido do “milagre” econômico foi posteriormente desmistificado por análises de especialistas que mostraram seus pontos negativos. Houve, sem dúvida, um crescimento rápido, mas ele beneficiou de maneira muito desigual os vários setores da população. Houve outras mudanças. Ao mesmo tempo em que cerceavam os direitos políticos e civis, os governos militares investiam na expansão dos direitos sociais. O que Vargas e Goulart não tinham conseguido fazer, em relação à unificação e universalização da previdência, os militares e tecnocratas fizeram após 1964. O primeiro ministro do Trabalho dos governos militares era um técnico da previdência que colocou interventores nos institutos e preparou um plano de reforma com a ajuda de outros técnicos, muitos deles nomeados interventores. A avaliação dos governos militares, sob o ponto de vista da cidadania, tem, assim, que levar em conta a manutenção do direito do voto combinada com o esvaziamento de seu sentido e a expansão dos direitos sociais em momento de restrição de direitos civis e políticos. Houve retrocessos claros, houve avanços também a partir de 1974, e houve situações ambíguas. Comecemos pela relação entre direitos sociais e políticos. Nesse ponto os governos militares repetiram a tática do Estado Novo: ampliaram os direitos sociais, ao mesmo tempo em que restringiam os direitos políticos. O período democrático entre 1945 e 1964 se caracteriza pelo oposto: ampliação dos direitos políticos e paralisação, ou avanço lento, dos direitos sociais. Pode-se dizer que o autoritarismo brasileiro pós-30 sempre procurou compensar a falta de liberdade política com o paternalismo social. Na década de 30, sobretudo durante o Estado Novo, a tática teve grande êxito, como atestam a popularidade do varguismo e sua longa vida política nacional. O corporativismo sindical e a visão do Poder Executivo como dispensador de benefícios sociais ficaram gravados na experiência de uma geração inteira de trabalhadores. A eficácia da tática foi menor no período militar. Uma das razões para o fato foi que a mobilização política anterior ao golpe foi muito maior do que a que precedeu 1930. Como conseqüência, o custo, para o governo, de suprimir os direitos foi também maior. O apoio aos governos militares foi passageiro. O “milagre” econômico deixara a classe média satisfeita, disposta a fechar os olhos à perda dos direitos políticos. Os trabalhadores rurais sentiam-se pela primeira vez objeto da atenção do governo. Os operários urbanos, os mais sacrificados, pelo menos não perderam seus direitos sociais e ganharam alguns novos. Enquanto durou o alto crescimento, eles tinham mais empregos, embora menores salários. Mas, uma vez desaparecido o “milagre”, quando a taxa de crescimento começou a decrescer, por volta de 1975, o crédito do regime esgotou-se rapidamente. A classe média inquietou-se e começou a engrossar os votos da oposição. Os operários urbanos retomaram sua luta por salários e maior autonomia. Os trabalhadores rurais foram os únicos a permanecer governistas. Assim, o efeito negativo da introdução de direitos sociais em momento de supressão de direitos políticos foi menor durante os governos militares do que no Estado Novo. Se o apoio ao governo Médici revelou baixa convicção democrática, o rápido abandono do regime mostrou maior independência política da população. e) A redemocratização A partir de 1985, os avanços nos direitos sociais e a retomada dos direitos políticos não resultaram, no entanto, em avanços dos direitos civis. Pelo contrário, foram eles os que mais sofreram durante os governos militares. O habeas corpus foi suspenso para crimes políticos, deixando os cidadãos indefesos nas mãos dos agentes de segurança. A privacidade do lar e o segredo da correspondência eram violados impunemente. Prisões eram feitas sem mandado judicial, os presos eram mantidos isolados e incomunicáveis, sem direito à defesa. Pior ainda: eram submetidos a torturas sistemáticas por métodos bárbaros que não raro levavam a morte da vítima. A liberdade de pensamento era cerceada pela censura prévia à mídia e às manifestações artísticas, e, nas universidades, pela aposentadoria e cassação de professores e pela proibição de atividades políticas estudantis. O final do período assistiu a uma deterioração social. A expansão do tráfico de drogas e o surgimento do crime organizado aumentaram a violência urbana e pioraram ainda mais a situação das populações faveladas. Muitas favelas, sobretudo em cidades como o Rio e Janeiro, passaram a ser controladas por traficantes, devido à ausência da segurança pública. Seus habitantes ficavam entre a cruz dos traficantes e a caldeirinha da polícia, e era muitas vezes difícil decidir qual a pior opção. Pesquisas de opinião pública da época indicavam a segurança pública como uma das demandas mais importantes dos habitantes das grandes cidades. A retomada da supremacia civil em 1985 se fez de maneira razoavelmente ordenada, e, até agora, sem retrocessos. A constituinte de 1988 redigiu e aprovou a constituição mais liberal e democrática que o país já teve, merecendo por isso o nome de Constituição Cidadã. Em 1989, houve a primeira eleição direta para Presidente da República desde 1960. Quatro outras eleições presidenciais se seguiram em clima de normalidade, precedidas de um inédito processo de impedimento do primeiro presidente eleito. Os direitos políticos adquiriram amplitude nunca mais atingida. No entanto, a estabilidade democrática não pode ainda ser considerada fora de perigo. A democracia política não resolveu os problemas econômicos mais sérios, como a desigualdade e o desemprego. Continuam os problemas da área social, sobretudo na educação, nos serviços de saúde e saneamento, e houve agravamento da situação dos direitos civis no que se refere à segurança individual. Finalmente, as rápidas transformações da economia internacional contribuíram para pôr em xeque a própria noção tradicional de direitos que nos guiou desde a independência. Os cidadãos brasileiros chegam ao final do milênio, 500 anos após a conquista dessas terras pelos portugueses e 178 anos após a fundação do país, envoltos num misto de esperança e incerteza. Texto elaborado por Luis Henrique Monteiro Nunes, Analista Tributário da Receita Federal do Brasil.
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