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Helena Schiessl Cardoso O ENSINO DA CRIMINOLOGIA NOS MESTRADOS EM DIREITO DAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS Tese submetida ao Programa de Pós- graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de Doutora em Direito. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Vera Regina Pereira de Andrade. Florianópolis 2017 Helena Schiessl Cardoso O ENSINO DA CRIMINOLOGIA NOS MESTRADOS EM DIREITO DAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS Esta tese foi julgada adequada para obtenção do Título de “Doutora em Direito” e aprovada em sua forma final pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD-UFSC). Florianópolis, 16 de novembro de 2017. ________________________ Prof. Dr. Arno Dal Ri Jr Coordenador do Curso Banca Examinadora: ________________________ Prof.ª Dr.ª Vera Regina Pereira de Andrade Orientadora - UFSC ________________________ Prof. Dr. Juarez Cirino dos Santos Membro – ICPC ________________________ Prof. Dr. Alexandre Morais da Rosa Membro - UFSC ________________________ Prof. Dr. André Ribeiro Giamberardino Membro – UFPR ________________________ Prof. Dr. Marcelo Mayora Alves Membro – UFJF ________________________ Prof. Dr. Jackson da Silva Leal Membro - UNESC Dedico este trabalho a todos os meus amores! Chico, Tina, Elisa, Emily, Beto, Dudu e Lara. Pelas “circunstâncias peculiares” da trajetória desta tese, contudo, gostaria de registrar singelamente as seguintes palavras “especiais” ... Ao meu pequeno grande Dudu, que acompanhou quase todas as aulas do doutorado na barriga da mamãe, leu muitos textos comigo enquanto ainda estava mamando, escreveu algumas linhas deste trabalho no meu colo e é minha fonte constante de motivação. Te amo muito, muito, muito! À minha pequena grande mãe, que deixou tudo de lado para nos acompanhar à Florianópolis e para cuidar do Dudu sempre quando eu não podia em razão dos meus compromissos acadêmicos. Nossa amizade e meu afeto por ti transcendem essa vida! E, enfim, como tu dirias, “um cantinho desse diploma” é teu e do Dudu! AGRADECIMENTOS À minha família, que é meu porto seguro, meu apoio incondicional, sem vocês eu não seria nada! À minha orientadora e amiga, Professora Dra. Vera Regina Pereira de Andrade, que entrou na minha vida por “conspirações cósmicas” e marca meu trabalho acadêmico desde aquela primeira banca de defesa de dissertação de mestrado no PPGD/UFPR na memorável Santos Andrade. Não tenho palavras para agradecer a imensa confiança em mim depositada e por todo apoio recebido para realizar esta pesquisa! A todos os integrantes do grupo de pesquisa coletivo Brasilidade Criminológica, que compartilham a mesma indignação com o controle penal em nossa região. Em especial ao querido Jackson da Silva Leal, que se tornou um interlocutor constante sobre as aflições que surgiram no curso da realização do doutorado. Aos professores do PPGD/UFSC, em especial à Dra. Thaís Luzia Colaço e ao Dr. Antônio Carlos Wolkmer, que deixaram suas marcas não apenas na minha formação, mas também neste trabalho. Aos professores que gentilmente participaram das bancas de defesa de projeto de tese e de defesa prévia de tese, bem como aos que participarão da banca de defesa final de tese: Dr. Alexandre Morais da Rosa, Dr. André Ribeiro Giamberardino, Dr. Giovani de Paula, Dr. Jackson da Silva Leal, Dr. Juarez Cirino dos Santos, Dra. Katie Silene Cáceres Argüello, Dra. Luana de Carvalho Silva Gusso, Dr. Marcel Soares de Souza e Dr. Marcelo Mayora Alves, vocês tornaram e tornarão estes momentos de arguição absolutamente mágicos! A todos os Amiguinhos do Doutorado, especialmente à Macell Cunha Leitão, Danielle Maria Espezim dos Santos, Adailton Pires Costa, Gabriela de Moraes Kyrillos e Ana Clara Corrêa Henning, que deixaram a aventura do doutorado muito mais leve. Aos meus amigos do grupo Sedição Penal e do grupo Paradoxos dos Direitos Humanos no Brasil, Leandro Gornicki Nunes, Leonardo Marcondes Machado, Luana de Carvalho Silva Gusso e Waldemar Moreno Junior, com os quais eu tive a honra de discutir minhas angústias com o sistema penal durante a trajetória do doutorado em minha terra natal. Aos meus colegas de docência em Joinville-SC, bem como aos meus alunos e orientandos, com os quais sempre aprendo. Em especial aos meus alunos/afilhados da minha primeira turma na FGG/ACE que por meio de suas ilustrações do “Direito Penal” e do “Criminoso” no primeiro dia de aula de Direito Penal I em 2011 reforçaram minha convicção sobre a importância de pesquisar a Criminologia no ensino jurídico. Às minhas queridas amigas Fernanda Seger e Bruna Greggio, que são exemplos de mulheres fortes e com as quais eu divido as indescritíveis emoções da maternidade. Aos amigos Elisabeth Grubba Richter e Johni Richter, que abriram as portas de seu apartamento em Florianópolis para que eu pudesse cursar os créditos do curso de doutorado com maior conforto e tranquilidade. Aos pesquisadores participantes do IV Encontro do Grupo Brasileiro de Criminologia Crítica, que colaboraram com esta tese com as suas perguntas e considerações sobre a minha pesquisa, particularmente aos professores Dr. Sérgio Salomão Shecaira, Dra. Ela Wiecko Volkmer de Castilho e Dr. André Ribeiro Giamberardino. A todas as pessoas que de forma direta ou indireta ajudaram através de suas contribuições para a execução deste trabalho, em especial ao professor Dr. Túlio Lima Vianna (PPGD/UFMG) e às funcionárias Helena Cristina Pimentel do Vale (Biblioteca da UFAL), Lionete Alcântara de Moraes (Secretaria do PPGD/UnB), Dalva Veramundo Bizerra de Souza (Secretaria de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da USP), Alessandro Fraga (Secretaria do PPGD/UERJ), Valter Nailton da Silva (Secretaria do PPGD/UNESP), Maria Aparecida Oliveira e Fabiano Dauwe (Secretaria do PPGD/UFSC) pela atenção dispensada. Por fim, ao meu anjo da guarda, que sempre me acompanha e me ilumina. [...] a não ser na universidade, onde encontrar a capacidade de repensar o mundo com sabedoria e liberdade, de questioná-lo com a necessária amplidão e generosidade, antevendo conceitualmente o futuro humano? (Darcy Ribeiro, 1982) RESUMO A presente tese encontra-se vinculada à linha de pesquisa Sociedade, Controle Social e Sistema de Justiça do PPGD/UFSC, bem como ao projeto de pesquisa Brasilidade Criminológica, coordenado pela professora Dra. Vera Regina Pereira de Andrade. Neste sentido, busca colaborar com a compreensão do contexto histórico e concreto da Criminologia Crítica brasileira e auxiliar no mapeamento das comunidades criminológicas estabelecidas. Em linhas gerais, o objeto de investigação é a Criminologia nos programas de pós-graduação em Direito (mestrado acadêmico), nas universidades públicas brasileiras (federais e estaduais), no período compreendido entre 2005 e 2014, a fim de possibilitar uma aproximação do saber criminológico (e particularmente do saber criminológico crítico) no espaço acadêmico. Para tanto, a pesquisa busca inicialmente situar teoricamente os principais paradigmas criminológicos da modernidade e suas recepções na América Latina e no Brasil, assim como o próprio projeto coletivo de pesquisa no qual se insere. Ademais, o trabalho problematiza o controle social penal genocida na região e situa a importância da Criminologia no ensino jurídico, bem como contextualizaa dimensão ideológica da universidade e a construção da pós-graduação brasileira. Em termos empíricos, a pesquisa se volta ao mapeamento dos conteúdos criminológicos (e sobretudo críticos) nos currículos dos cursos de mestrado (acadêmico) em Direito das instituições públicas de ensino superior, à luz de um “mosaico científico” construído a partir dos dados oficiais dos currículos e das biografias dos docentes de Criminologia. Por fim, a tese sustenta o estatuto ausente-residual, volátil e fragmentário da Criminologia no ensino jurídico nos espaços acadêmicos analisados, afirma a predominância das teorias criminológicas centrais e do silêncio latino-americano e brasileiro no interior da disciplina, bem como indica a presença significativa da perspectiva crítica e/ou politicamente comprometida dos docentes de Criminologia na universidade pública. Palavras-chave: Ensino Jurídico. Mestrado em Direito. Universidade Pública. Criminologia. Criminólogos. Criminologia Crítica. ABSTRACT The present thesis is linked to the research line Society, Social Control and Justice System of the PPGD / UFSC, as well as to the research project Brasilidade Criminológica, coordinated by professor Dr. Regina Pereira de Andrade. In this sense, the objective is to collaborate with the understanding of the historical and concrete context of Critical Criminology in Brazil and to contribute by mapping established criminological communities. In general terms, the object of research is Criminology in the postgraduate programs in Law (academic masters), in the public universities in Brazil (federal and state), in the period between 2005 and 2014, in order to allow an approximation to the actual state of criminogical knowledge (and especially of critical criminogical knowledge) at university. To do so, the research initially seeks to situate theoretically the main criminological paradigms of modernity and its receptions in Latin America and Brazil, as well as the collective research project in which it is inserted. In addition, the work problematizes the genocidal social control in the region and places the importance of Criminology in legal education, as well as contextualizes the ideological dimension of university and the construction of the Brazilian postgraduate programs. In empirical terms, the research focuses on mapping criminological (and especially critical) content in the (academic) master courses in Law of public higher education institutions, by creating a “scientific mosaic” constructed from the official curriculas and from the criminology teachers’ biographies. Finally, the thesis sustains an absent-residual, volatile and fragmentary status of Criminology in legal education based on the analyzed academic spaces, affirms the predominance of central criminological theories and of a latin american and brazilian silence within the discipline, as well as indicates the significant presence of a critical perspective and/or politically committed perspective of Criminology teachers in the public university. Keywords: Law Studies. Master in Law. Public University. Criminology. Criminologists. Critical Criminology. RESUMEN La presente tesis se encuentra vinculada a la línea de investigación Sociedad, Control Social y Sistema de Justicia del PPGD / UFSC, así como al proyecto de investigación Brasilidad Criminológica, coordinado por la profesora Dra. Vera Regina Pereira de Andrade. En este sentido, busca colaborar con la comprensión del contexto histórico y concreto de la Criminología Crítica brasileña y auxiliar en el mapeo de las comunidades criminológicas establecidas. En líneas generales, el objeto de investigación es la Criminología en los programas de postgrado en Derecho (maestría académica), en las universidades públicas brasileñas (federales y estatales), en el período comprendido entre 2005 y 2014, a fin de posibilitar una aproximación del saber criminológico (y particularmente del saber criminológico crítico) en el espacio académico. Para ello, la investigación busca inicialmente situar teóricamente los principales paradigmas criminológicos de la modernidad y sus recepciones en América Latina y Brasil, así como el propio proyecto colectivo de investigación en el que se inserta. Además, el trabajo problematiza el control social penal genocida en la región y sitúa la importancia de la Criminología en la enseñanza jurídica, así como contextualiza la dimensión ideológica de la universidad y la construcción del postgrado brasileño. En términos empíricos, la investigación se vuelve al mapeo de los contenidos criminológicos (y sobre todo críticos) en los currículos de los cursos de maestría (académico) en Derecho de las instituciones públicas de enseñanza superior, a la luz de un “mosaico científico” construido a partir de los datos oficiales de los currículos y de las biografías de los docentes de Criminología. Por último, la tesis sostiene el estatuto ausente-residual, volátil y fragmentario de la Criminología en la enseñanza jurídica en los espacios académicos analizados, afirma la predominancia de las teorías criminológicas centrales y del silencio latinoamericano y brasileño en el interior de la disciplina, así como indica la presencia significativa de la perspectiva crítica y / o políticamente comprometida de los docentes de Criminología en la universidad pública. Palabras clave: Enseñanza Jurídica. Maestría en Derecho. Universidad Pública. Criminología. Criminólogos. Criminología Crítica. LISTA DE FIGURAS Figura 1- Distribuição dos Programas de Pós-Graduação e Cursos na Área do Direito em 2016 ...............................................................................................134 Figura 2 - Distribuição dos Programas de Mestrado em Direito das Universidades Federais por Região (2015) ......................................................145 Figura 3 - Distribuição dos Programas de Mestrado em Direito das Universidades Estaduais por Região (2015) ....................................................145 Figura 4 - Crescimento dos Programas de Mestrado em Direito das Universidades Federais (1972-2015) ...............................................................146 Figura 5 - Crescimento dos Programas de Mestrado em Direito das Universidades Estaduais (1971-2015) .............................................................147 Figura 6 - Crescimento dos Programas de Mestrado em Direito das Universidades Federais por Região (1972-2015) .............................................148 Figura 7 - Crescimento dos Programas de Mestrado em Direito das Universidades Estaduais por Região (1971-2015) ...........................................149 LISTA DE QUADROS Quadro 1- Mestrados Acadêmicos em Direito que compõem a amostra da pesquisa ...........................................................................................................137 Quadro 2 - Componentes curriculares obrigatórios do curso de Graduação em Direito ..............................................................................................................216 Quadro 3 - A Criminologia como disciplina obrigatória na graduação em Direito nas universidades federais das capitais ............................................................218 Quadro 4 - A Criminologia ausente na graduação em Direito nas universidades federais das capitais .........................................................................................218 Quadro 5 - A Criminologia comodisciplina optativa na graduação em Direito nas universidades federais das capitais e na USP ............................................219 Quadro 6 - A disciplina Criminologia nos cursos de mestrado em Direito das universidades públicas (2005 à 2014) ..............................................................221 Quadro 7 - As ementas da disciplina Criminologia nos cursos de mestrado em Direito das universidades públicas (2005 à 2014) ...........................................223 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico FUFSE – Fundação Universidade Federal de Sergipe FURG – Universidade Federal do Rio Grande PPGD – Programa de Pós-Graduação em Direito PUC/MG – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais PUC/RS – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul UEA – Universidade do Estado do Amazonas UEL – Universidade Estadual de Londrina UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro UFAL – Universidade Federal de Alagoas UFBA – Universidade Federal da Bahia UFC – Universidade Federal do Ceará UFES – Universidade Federal do Espírito Santo UFF – Universidade Federal Fluminense UFG – Universidade Federal de Goiás UFJF – Universidade Federal de Juiz de Fora UFMA – Universidade Federal do Maranhão UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais UFMT – Universidade Federal de Mato Grosso UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul UFPA – Universidade Federal do Pará UFPE – Universidade Federal de Pernambuco UFPB/JP – Universidade Federal da Paraíba/João Pessoa UFPR – Universidade Federal do Paraná UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina UFSM – Universidade Federal de Santa Maria UFU – Universidade Federal de Uberlândia UnB – Universidade de Brasília UNESP/FR – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho/Franca UNIRIO – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro UNISINOS/RS – Universidade do Valo do Rio dos Sinos USP – Universidade de São Paulo UPS/RP – Universidade de São Paulo/Ribeirão Preto SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................... 29 1. FORMULAÇÃO DO PROBLEMA DE PESQUISA.................... 29 2 OBJETIVOS GERAL E ESPECÍFICOS........................................ 36 3 ORGANIZAÇÃO DOS CAPÍTULOS ........................................... 37 PARTE I - BASE TEÓRICA: A CRIMINOLOGIA E O ENSINO JURÍDICO 1 OS GRANDES “PARADIGMAS CRIMINOLÓGICOS” DA MODERNIDADE E SUAS “RECEPÇÕES CRIATIVAS” NA AMÉRICA LATINA E NO BRASIL ................................................ 41 1.1 O NASCIMENTO DA CRIMINOLOGIA POSITIVISTA COMO CIÊNCIA ........................................................................................... 43 1.2. DA CRIMINOLOGIA POSITIVISTA À CRIMINOLOGIA LIBERAL .......................................................................................... 50 1.3. A CONSTITUIÇÃO DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA E O “CRITICISMO”................................................................................. 58 1.4. A RECEPÇÃO DAS CRIMINOLOGIAS NA AMÉRICA LATINA E NO BRASIL: DO “POSITIVISMO” AO “CRITICISMO” ........................................................................................................... 65 2 O CONTROLE SOCIAL PENAL, A CRIMINOLOGIA E O ENSINO JURÍDICO ........................................................................... 79 2.1 O CONTROLE SOCIAL PENAL GENOCIDA NO BRASIL ... 79 2.2 A UNIVERSIDADE ENQUANTO INSTITUIÇÃO IDEOLÓGICA E A IMPORTÂNCIA DA CRIMINOLOGIA NO ENSINO JURÍDICO ......................................................................... 91 2.3 A CONSTRUÇÃO DA PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU NO BRASIL E SUA DISCIPLINA LEGAL ................................... 104 PARTE II - BASE EMPÍRICA: A CRIMINOLOGIA NOS MESTRADOS ACADÊMICOS EM DIREITO DAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS BRASILEIRAS 3. CONTEXTUALIZANDO A PESQUISA EMPÍRICA ........... ....129 3.1 A DELIMITAÇÃO DA AMOSTRA DE PESQUISA ...............129 3.2 AS OPÇÕES METODOLÓGICAS E O PERCURSO DA COLETA DE DADOS .....................................................................150 4 O SABER CRIMINOLÓGICO DISPERSO NA ESTRUTURA CURRICULAR ..................................................................................157 4.1 REGIÃO NORTE.......................................................................158 4.1.1 UFPA ...................................................................................158 4.1.2 UEA .....................................................................................160 4.2 REGIÃO NORDESTE ...............................................................160 4.2.1 UFAL ..................................................................................160 4.2.2 UFBA ..................................................................................162 4.2.3 UFC .....................................................................................163 4.2.4 UFMA .................................................................................164 4.2.5 UFPB/JP .............................................................................165 4.2.6 UFPE ...................................................................................166 4.2.7 UFRN ..................................................................................167 4.2.8 FUFSE .................................................................................168 4.3 REGIÃO CENTRO-OESTE ......................................................170 4.3.1 UFG .....................................................................................171 4.3.2 UFMT ..................................................................................171 4.3.3 UFMS ..................................................................................172 4.4 DISTRITO FEDERAL ...............................................................173 4.5 REGIÃO SUDESTE ..................................................................174 4.5.1 UFES .................................................................................. 175 4.5.2 UFMG ................................................................................ 175 4.5.3 UFU .................................................................................... 176 4.5.4 UFJF ................................................................................... 177 4.5.5 UERJ .................................................................................. 178 4.5.6 UFRJ .................................................................................. 183 4.5.7 UNIRIO .............................................................................. 184 4.5.8 UFF ..................................................................................... 185 4.5.9 USP ..................................................................................... 187 4.5.10 USP/RP ............................................................................. 191 4.5.11 UNESP ............................................................................. 191 4.6 REGIÃO SUL............................................................................ 196 4.6.1 UENP .................................................................................. 196 4.6.2 UEL .................................................................................... 198 4.6.3 UFPR .................................................................................. 199 4.6.4 UFSC ..................................................................................200 4.6.5 UFRGS ............................................................................... 202 4.6.6 FURG ................................................................................. 203 4.6.7 UFSM ................................................................................. 204 4.7 UMA SÍNTESE PRELIMINAR ................................................ 204 5 O SABER CRIMINOLÓGICO INSTITUCIONALIZADO ENQUANTO DISCIPLINA ACADÊMICA ..................... .............. 211 5.1 A DISCIPLINA CRIMINOLOGIA NO ENSINO JURÍDICO EM NÍVEL DE GRADUAÇÃO ............................................................ 215 5.2 A DISCIPLINA CRIMINOLOGIA NO ENSINO JURÍDICO EM NÍVEL DE PÓS-GRADUAÇÃO .................................................... 221 5.2.1 A disciplina “Criminologia, Política Criminal e Direitos Fundamentais” na UFAL e a professora Dra. Elaine Cristina Pimentel Costa ............................................................................ 227 5.2.2 A disciplina “Criminologia” na UFPE e o professor Dr. Ricardo de Brito Albuquerque Pontes Freitas .........................236 5.2.3 As disciplinas “Paradigmas em Criminologia”, “Globalização e Controle Penal – Criminologia Latino- Americana” e “Tópicos Especiais – Criminologia e Racismo”na UnB e os professores Dra. Ela Wiecko Volkmer de Castilho, Dra. Cristina Maria Zackseski e Dr. Evandro Charles Piza Duarte ..........................................................................................239 5.2.4 As disciplinas “Criminologia I” e “Criminolog ia” na UFMG e os professores Dr. Carlos Augusto Canêdo Gonçalves da Silva e Dr. Túlio Lima Vianna ..............................................248 5.2.5 A disciplina “Criminologia” na UERJ e os professores Dr. Artur de Brito Gueiros Souza e Dra. Vera Malaguti de Souza Weglinski Batista ........................................................................262 5.2.6 A disciplina “Perspectivas Sociológicas e Clínica da Criminologia na Legislação Penal” na USP e os professores Dr. Sérgio Salomão Shecaira e Dr. Alvino Augusto de Sá .............279 5.2.7 A disciplina “Olhares criminológicos acerca do desvio, da punição e da cidadania” na UNESP e a professora Dra. Ana Gabriela Mendes Braga ..............................................................297 5.2.8 A disciplina “Criminologia: Estado, Sociedade e Controle Social” na UFPR e a professora Dra. Katie Silene Cáceres Argüello .......................................................................................304 5.2.9 A disciplina “Criminologia e Políticas Criminais” na UFSC e a professora Dra. Vera Regina Pereira de Andrade ..309 5.3 UMA SÍNTESE FINAL .............................................................323 6 CONCLUSÃO .................................................................................335 REFERÊNCIAS ................................................................................. 345 APÊNDICE A – “Vestígios” de conteúdo criminológico nos cursos de Mestrado em Direito das universidades públicas (2005 à 2014) conforme o banco de dados da CAPES ............................................377 APÊNDICE B – Bibliografias completas da disciplina “Criminologia” nos cursos de Mestrado em Direito das universidades públicas (2005 à 2014) conforme o banco de dados da CAPES ................................................................................................441 APÊNDICE C – Currículos resumidos dos professores da disciplina “Criminologia” nos cursos de Mestrado em Direito das universidades públicas (2005 à 2014) ............................................... 457 ANEXO A – Planos de Ensino de Criminologia dos cursos de Mestrado em Direito ......................................................................... 467 29 INTRODUÇÃO Para isso existem as escolas: não para ensinar as respostas, mas para ensinar as perguntas. As respostas nos permitem andar sobre a terra firme. Mas somente as perguntas nos permitem entrar pelo mar desconhecido. (Rubem Alves, 2012, p. 78) 1. FORMULAÇÃO DO PROBLEMA DE PESQUISA Preliminarmente, para uma melhor compreensão do presente trabalho, faz-se necessário indicar que essa tese busca colaborar com o projeto coletivo de pesquisa intitulado Bases para uma criminologia do controle penal no Brasil: em busca da brasilidade criminológica, iniciado em 2010 na Universidade Federal de Santa Catarina. Trata-se de um projeto coordenado pela professora Dra. Vera Regina Pereira de Andrade, inserido no marco de sua atuação orgânica1 ao nível do ensino, da pesquisa e da extensão, que estabelece um rede de criminólogos críticos e une as pesquisas individuais de seus orientandos2 em torno do 1 Pontuamos, neste sentido, que a professora Dra. Vera Regina Pereira de Andrade costuma estruturar suas atividades de ensino, pesquisa e extensão em torno de um princípio reitor. Por conseguinte, tanto suas disciplinas na graduação e pós-graduação quanto seus projetos de pesquisa e de extensão se dedicam nos últimos anos à busca de uma Criminologia latino-americana e brasileira. Para uma melhor compreensão da organicidade de sua atuação, remetemos o leitor para a análise do ensino da Criminologia na UFSC no Capítulo 5 (item 5.2.9). 2Destacamos, nesse sentido, os seguintes trabalhos: (a) as Dissertações de Marco Aurélio Souza da Silva (O controle social punitivo antidrogas sob a perspectiva da criminologia crítica: a construção do traficante nas decisões judiciais em Santa Catarina); Eduardo Granzotto Mello (A formação do subsistema penal federal no período dos governos Lula e Dilma (2003- 2014)); Mariana Dutra de Oliveira Garcia (A criminologia no ensino jurídico no Brasil); Fernanda Martins (A criminologia, o penalismo e a política criminal na Revista de Direito Penal e Criminologia (1971 1983): a (des)legitimação do controle penal); Vanessa Maciel Lema (Das funções declaradas às funções reais - Como se constitui o trabalho realizado pelas mulheres presas no presídio feminino de Florianópolis); Luciano Góes (A “tradução” do positivismo criminológico no Brasil: um diálogo entre Cesare Lombroso e Nina Rodrigues da perspectiva centro-periférica); Juliana Lobo Camargo (A Justiça Restaurativa entre a teoria e a vivência: uma análise 30 mesmo propósito investigativo. Assim, o projeto coletivo de pesquisa – carinhosamente apelidado de Brasilidade Criminológica – tem como propósito [...] investigar quais são as bases (epistemológicas e funcionais) para o desenvolvimento de uma Criminologia crítica do controle penal na sociedade brasileira, tendo por referentes o desenvolvimento teórico da Criminologia na modernidade (central e periférica), especialmente na América Latina e no Brasil, e o contexto histórico da globalização neoliberal. A pretensão é a de mapear o objeto e a função que a Criminologia deve assumir na sociedade brasileira enquanto saber comprometido com a compreensão e limitação da violência punitiva (individual, institucional e estrutural) e a busca de modelos não violentos de controle social. Finalmente, ao identificar os atores da produção criminológica crítica no Brasil, Instituições e sujeitos, nominados e anônimos, no centro e nas margens criminológica crítica, abolicionista e minimalista de seus limites e potencialidades perante a crise do sistema penal); Joel Eliseu Galli (A aliança punitiva da modernidade: controle e extermínio na estrutura operativa do sistema penal); Camila Damasceno de Andrade (Do trabalho ao cárcere: criminalização e encarceramento feminino em Santa Catarina (1950-1979)); Nayara Aline Schmitt Azevedo (uma hermenêutica criminológica crítica e abolicionistapara o sistema socioeducativo: uma lição de método e uma lição teórica humanista); e (b) as Teses de Camila Cardoso de Mello Prando (O saber dos juristas e o controle penal: o debate doutrinário na Revista de Direito Penal (1933-1940) e a construção da legitimidade pela defesa social); Marcelo Mayora Alves (Os penalistas na ditadura civil-militar. As ciências criminais e as justificativas da ordem); Jackson da Silva Leal (Criminologia da Libertação: a construção da criminologia critica latino-americana como teoria crítica do controle social e a contribuição desde o Brasil - pesquisa na Revista Capítulo criminológico (1973-1989) e Doctrina Penal (1977-1989)), bem como nosso próprio projeto de Tese, incialmente, intitulado Criminologia crítica e formação jurídica: um diagnóstico de época sobre possíveis obstáculos e potencialidades para a concretização do projeto de superação do controle penal à luz das escolas catarinenses de direito. Destacamos que a lista de todas as orientações da professora Dra. Vera Regina Pereira de Andrade se encontra no Anexo A, enquanto complementação do Plano de Ensino da disciplina Criminologia na UFSC. 31 acadêmicas, destina-se à construção de uma rede criminológica crítica no Brasil, enquanto espaço público contra-discursivo de contenção da violência (ANDRADE, 2016b). A partir da leitura dos objetivos transcritos, gostaríamos de enfatizar que as pesquisas vinculadas ao projeto coletivo acima referido não são “neutras”. Pelo contrário, estão inseridas no “marco teórico” da “Criminologia Crítica”3 e, ademais, comprometidas politicamente com a contenção e superação das mais diversas formas de violência presentes na sociedade brasileira. Lembremos que diante dos “dramáticos episódios cotidianos”, cujo símbolo principal é a “morte”, Eugenio Raúl Zaffaroni sustenta que, em especial desde a perspectiva latino- americana, “para nós, a ‘criminologia’ não é um saber privado de valorações, mas está repleto de valoração política” (1988, p. 4, traduzimos). Assim, cada pesquisador vinculado ao projeto da Brasilidade Criminológica escolheu o problema a ser estudado em seu trabalho individual a partir das temáticas contempladas nesse projeto coletivo e a partir de seus próprios valores, suas vivências e suas inquietações pessoais. Dito isto, diante da impossibilidade da “neutralidade” ou “objetividade” nas pesquisas da área das ciências humanas e sociais, optamos inclusive em redigir a presente tese na “primeira pessoa”, bem como entendemos necessário explicitar os passos que nos levaram à escolha do tema de pesquisa a fim de tornar transparente a nossa carga valorativa, buscar a própria conscientização sobre possíveis interferências pessoais e tentar controlar, na medida do possível, a nossa subjetividade no trabalho.4 3 Para uma melhor compreensão da “Criminologia Crítica”, remetemos o leitor ao Capítulo 1. 4 Num pequeno livro intitulado A arte de pesquisar (2000), a antropóloga Mirian Goldenberg enfrenta o problema da objetividade, representatividade e do controle de bias na pesquisa qualitativa. Afirma que nas ciências sociais a neutralidade e a objetividade são impossíveis, seja nas pesquisas quantitativas, seja nas pesquisas qualitativas. Retoma autores como Max Weber, Pierre Bourdieu e Howard Becker para sustentar a necessidade de indicar explicitamente todos os passos da pesquisa para evitar o bias do pesquisador. Em suas palavras, é necessário “buscar o que Pierre Bourdieu chama de objetivação: o esforço controlado de conter a subjetividade. Trata-se de um esforço porque não é possível realizá-lo plenamente, mas é essencial conservar- 32 Compartilhamos que por ocasião do processo seletivo ao ingresso no curso de doutorado do PPGD/UFSC em 2013, a professora Dra. Vera Regina Pereira de Andrade solicitou aos candidatos e às candidatas a proposição de projetos de pesquisa vinculados ao projeto “guarda- chuva” da Brasilidade Criminológica que versassem sobre a Criminologia no Brasil, sobre o ensino da Criminologia no Brasil ou sobre a produção criminológica brasileira. Por conseguinte, optamos em nossa primeira versão de “projeto de tese”, por ocasião daquela seleção, pela temática do Ensino da Criminologia nas escolas de Direito. Mas, por quê? Permitam-nos uma pequena regressão. Desde o nosso primeiro contato com o saber criminológico, curiosamente, através das primeiras aulas de Direito Penal, no segundo ano do curso de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), ministradas na época pelo professor Dr. Juarez Cirino dos Santos, ficamos profundamente intrigadas. Lá estava o professor de Direito Penal apresentando um saber dogmático, contudo, com profundas críticas ao sistema de justiça criminal, sustentadas por categorias advindas do saber criminológico crítico. Tivemos o privilégio de estudar já na graduação com um dos expoentes da Criminologia Crítica brasileira. Estávamos diante de um professor que cumpria com o seu papel institucional de ensinar a “dogmática penal”, mas que ia além: obrigava-nos a questionar as funções do Direito Penal e das penas criminais. De fato, em sua disciplina, abandonávamos a “terra firme” e entrávamos no “mar desconhecido”, como diria Rubem Alves (2012, p. 78). Diante das críticas consistentes ao sistema de justiça criminal e da falência do sistema penal como um todo, sempre nos perguntávamos: como este sistema se mantém até hoje, se ele está tão deslegitimado pela crítica? Em nossa graduação e em nosso mestrado em Direito na UFPR, buscamos enfrentar essa “questão de fundo” através de uma monografia e uma dissertação tendo por objeto a temática do Discurso Criminológico dos Meios de Comunicação5. Entendíamos – e se esta meta, para não fazer do objeto construído um objeto inventado” (GOLDENBERG, 2000, p. 45). 5 Indicamos, nesse sentido, a leitura de nossa dissertação de mestrado “Discurso Criminológico da Mídia na Sociedade Capitalista: necessidade de desconstrução e reconstrução da imagem do criminoso e da criminalidade no espaço público” (CARDOSO, 2011) e também de nosso trabalho de conclusão de curso “Discurso Criminológico da Mídia na Sociedade Capitalista: reflexões a partir da tríplice dimensão da notícia” (CARDOSO, 2008). 33 continuamos defendendo – que é de fundamental importância estudar o retrato do crime e da criminalidade apresentado pelo serviço noticioso e a implícita e/ou explícita “política penal” advogada pelos meios de comunicação por representarem discursos legitimadores da política penal oficial e do atual modelo de controle social penal genocida no Brasil. Acrescenta-se que, à época do nosso mestrado, iniciamos nossa trajetória profissional na advocacia criminal e na docência no ensino jurídico. A imersão na vida forense e na sala de aula do curso de Direito como docente intensificou as inquietações que já sentíamos nos primeiros anos de nossa graduação e reafirmou a necessidade de tensionar os discursos legitimadores do modelo de controle social penal brasileiro. Como se explica a dificuldade de concretizar minimamente as garantias constitucionais no âmbito penal e processual penal? Como é possível que grande parte dos agentes jurídicos ainda consegue acreditar piamente na “ilusão de segurança jurídica” (ANDRADE, 2003a), nas “funções declaradas da pena” (CIRINO DOS SANTOS, 2010) ou nas “mitologias penais e processuais penais” (CASARA, 2015)? Como grande parte deles continua a sustentar, consciente ou inconscientemente, um sistema penal absolutamente deslegitimado através de sua própria atuação cotidiana? Diante de tais provocações é imprescindível recordar que a universidade possui uma dimensão ideológica e, por conseguinte, é de fundamental importância problematizar a própria formaçãojurídica desses agentes que através de seus discursos e práticas acabam (re)legitimando o sistema penal, o que nos levou a optar pelo tema de pesquisa da Criminologia no ensino jurídico. Pois bem, sentíamos a necessidade de retornar à academia na qualidade de estudante e, após um angustiante e disputado processo seletivo, fomos agraciadas com a imensa honra e responsabilidade de ser a “última” doutoranda no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC) de outro ícone da Criminologia Crítica brasileira: nossa querida professora Dra. Vera Regina Pereira de Andrade. E então, estimuladas pela sua “convocatória” na obra Pelas mãos da Criminologia (ANDRADE, 2012b), pretendemos com a nossa tese doutoral – inserida na linha de pesquisa Sociedade, Controle Social e Sistema de Justiça do PPGD/UFSC e vinculada ao projeto coletivo Brasilidade Criminológica – colaborar com a compreensão do contexto da “Criminologia brasileira” e auxiliar no mapeamento das comunidades criminológicas estabelecidas em nossas universidades no campo do Direito. Enfim, 34 como diria Eugenio Raúl Zaffaroni num texto dedicado ao “ensino universitário da Criminologia em América Latina”, trata-se de uma investigação “sumamente necessária” e que requer, no caso brasileiro, uma “investigação particular” diante da “quantidade de entidades federativas, universidades e centros de ensino superior” que dificultam traçar um “panorama geral da situação” (ZAFFARONI, 1990, p. 59-60, traduzimos). De fato, com exceção de poucos textos ou trechos de textos,6 há um assombroso silêncio na literatura sobre a Criminologia no ensino jurídico que dificultou inclusive uma revisão bibliográfica sobre a temática em nossa pesquisa. Pontuamos que, no que diz respeito à realidade brasileira, encontramos apenas três trabalhos dedicados especificamente à “Criminologia no Ensino do Direito”, a saber, um texto de autoria de nossa orientadora sobre a importância da Criminologia no ensino jurídico (ANDRADE, 2008 e 2012b), outro texto que é fruto de uma pesquisa por ela orientada e que se debruça empiricamente sobre a realidade do ensino jurídico nas universidades federais das capitais no Brasil (GARCIA, 2014) e, por fim, um último texto que problematiza o ensino e o aprendizado das ciências criminais no século XXI (CARVALHO, 2007 e 2015). Nesse sentido, nossa escavação bibliográfica indicou uma imensa lacuna no corpo de conhecimento a ser parcialmente enfrentada pela nossa tese. Em termos teóricos, partiremos, portanto, essencialmente das hipóteses lançadas por Vera Regina Pereira de Andrade (2008 e 2012b) sobre a existência de um “estatuto ausente-periférico” da Criminologia no ensino jurídico que se desdobra numa “dupla hipótese”, a saber, ao contrário das disciplinas dogmáticas, a “Criminologia ocupa pouco espaço no Ensino Jurídico e as Criminologias críticas pouco espaço na Criminologia” (ANDRADE, 2012b, p.342). Também compartilharemos sua preocupação com a necessidade de não apenas “contar a história da Criminologia europeia ou norte-americana”, mas de “mergulhar na Criminologia latino-americana e brasileira em busca de nossa identidade, em busca da latinidade e da brasilidade criminológicas” (ANDRADE, 2012b, p. 346). Salo de Carvalho (2015), por sua vez, trabalha tanto com a hipótese da “fragmentação da Criminologia” no ensino acadêmico – em razão da existência de uma pluralidade de saberes criminológicos de matrizes epistemológicas distintas que coabitam simultaneamente no ensino acadêmico – quanto com a hipótese da própria “fragmentação do ensino das Ciências Criminais” – 6 A serem comentados no Capítulo 2 e no Capítulo 5. 35 diante da autonomização da Dogmática, da Criminologia e da Política Criminal que dificulta uma compreensão mais holística dos saberes criminais. Ademais, o autor denuncia uma suposta tendência de limitar o ensino da Criminologia à história da gradual superação de teorias criminológicas que, em suas palavras, gera uma “debilidade das instituições de ensino em formar e desenvolver pensamento criminológico com capacidade de crítica” (CARVALHO, 2015, p. 44). Considerando que, em termos empíricos, no interior de nossa “rede de criminólogos críticos” a dissertação de Mariana Dutra de Oliveira Garcia defendida em 2014 buscou clarear este campo desconhecido da Criminologia no ensino jurídico no Brasil ao nível da graduação, optamos por modificar o nosso primeiro “projeto de pesquisa” apresentado por ocasião do processo seletivo do doutorado e voltar os nossos estudos para a temática em nível da pós-graduação, em especial porque, por um lado, não encontramos em nossa revisão bibliográfica nenhum trabalho sobre a Criminologia na pós-graduação em Direito no Brasil e, por outro lado, porque o que motivou implicitamente a nossa escolha do tema de pesquisa foi a vontade de compreender melhor o espaço formativo dos professores de Direito (presentes ou futuros) que poderão (eventualmente) impactar nas subjetividades dos futuros agentes do sistema de justiça criminal e, nesse sentido, abrir um espaço para a discussão e construção de caminhos em direção à superação do atual modelo de controle social penal. Assim, a nossa tese versa sobre a Criminologia no Brasil à luz dos programas de pós-graduação em Direito. E, diante do universo de mais de uma centena de programas nas instituições de ensino superior de natureza pública e privada, nos estreitos limites deste trabalho, delimitamos, em diálogo com nossa orientadora, a nossa pesquisa ao saber criminológico produzido nos cursos de mestrado (acadêmico) em Direito, no período compreendido entre 2005 e 2014, nas universidades públicas brasileiras.7 Desde o início, uma série de perguntas nos intrigava. Os cursos de mestrado em Direito contemplam o saber criminológico? Qual é o espaço institucional desse saber? A Criminologia está presente enquanto disciplina acadêmica? Em que medida? Em caso positivo, é possível verificar qual é sua relação com os demais saberes jurídico-penais? É 7 Para uma melhor compreensão da construção de nossa amostra de pesquisa, bem como de seu recorte temporal, remetos o leitor ao terceiro capítulo da tese (item 3.1). 36 possível verificar no conteúdo dessa disciplina uma feição legitimadora ou crítica em relação ao controle social penal brasileiro? É possível verificar a problematização de um saber criminológico próprio nos programas de pós-graduação em Direito, ou seja, há uma Criminologia brasileira? Quem são os docentes da Criminologia nesses espaços acadêmicos? Qual é sua perspectiva criminológica? Qual é sua atuação acadêmica ao nível do ensino, da pesquisa e da extensão? Partindo dessas indagações, nossa tese investigará o estatuto e o conteúdo da Criminologia no ensino jurídico nas universidades públicas brasileiras, razão pela qual formulamos os seguintes objetivos a serem alcançados pela nossa pesquisa. 2 OBJETIVOS GERAL E ESPECÍFICOS Os objetivos da pesquisa de tese estão divididos em geral e específicos. Assim, em termos gerais, o propósito é de buscar compreender a Criminologia nos mestrados (acadêmicos) em Direito nas universidades públicas brasileiras. Em termos específicos, o propósito é de: a) Delinear o nascimento da Criminologia como “ciência” e seu posterior desenvolvimento no marco dos paradigmas da “etiologia” e do “labeling approach”, bem como esboçar a discussão acerca da construção de uma Criminologia latino- americana e brasileira, a fim de indicar as categorias conceituais à luz das quais analisaremos os dados empíricos da nossa pesquisa, bem como situar o próprio projeto de pesquisa da Brasilidade Criminológica (Capítulo 1). b) Indicar a dimensão ideológica da universidade e a importância da Criminologia no ensino jurídico faceà realidade do controle social penal genocida brasileiro, bem como resgatar sinteticamente a construção e a regulamentação legal da pós-graduação no Brasil a fim de preparar teoricamente o terreno de nossa pesquisa empírica (Capítulo 2). c) Descrever e justificar a construção da amostra de pesquisa e esclarecer os caminhos metodológicos percorridos na realização da mesma (Capítulo 3). d) Buscar “vestígios” do saber criminológico nos currículos dos cursos de mestrado em Direito nas universidades públicas brasileiras e mapear as instituições de ensino, nas quais a 37 Criminologia é institucionalizada como “disciplina acadêmica” (Capítulo 4). e) Compreender o perfil da disciplina Criminologia nestes cursos através do estudo dos seus documentos institucionais, sobretudo, em relação à presença ou ausência de conteúdos criminológico críticos e/ou latino-americanos e/ou brasileiros, bem como cruzar as informações obtidas na análise dos documentos institucionais com a trajetória acadêmica dos seus docentes (Capítulo 5). f) Sistematizar os elementos empíricos obtidos através da pesquisa a fim de mapear os núcleos criminológicos na comunidade acadêmica brasileira e contribuir para uma melhor autocompreensão da(s) Criminologia(s) (críticas) no Brasil. 3 ORGANIZAÇÃO DOS CAPÍTULOS Inicialmente, far-se-á necessário apresentar os grandes paradigmas criminológicos da modernidade e as suas recepções em solo brasileiro. Neste sentido, no primeiro capítulo veremos que, como ciência, a Criminologia nasce no século XIX e, desde então, é possível delinear seu desenvolvimento no marco de dois paradigmas criminológicos centrais: o “paradigma etiológico” e o “paradigma do labeling approach”. Faremos então um breve resgate histórico para possibilitar uma melhor compreensão do contexto do nascimento e dos primeiros passos da Criminologia no interior do paradigma etiológico. Comentaremos também a revolução paradigmática a partir do advento do “labeling approach” que, por sua vez, possibilitou o surgimento da Criminologia Crítica. Em todos os momentos, tentaremos fazer referência à relação da Criminologia com a Dogmática, no interior do grande campo das ciências penais, tendo em vista que a histórica disputa pelo local autorizado de fala sobre a “questão criminal” parece justificar a presença e/ou ausência do saber criminológico no ensino jurídico. Apresentados os grandes paradigmas criminológicos da modernidade, problematizaremos sinteticamente a “recepção” (SOZZO, 2001) das Criminologias na região latino-americana e, em especial, no Brasil, sobretudo, no que diz respeito à construção de uma Criminologia genuinamente brasileira – a fim de permitir a compreensão do significado da Brasilidade Criminológica (ANDRADE, 2012b, 2016a e 2016b) que é o norte do projeto de pesquisa coletivo no qual a nossa pesquisa doutoral se insere. 38 No segundo capítulo descreveremos primeiramente a realidade do controle social penal seletivo e genocida no Brasil a partir de uma perspectiva criminológico crítica e especialmente com respaldo nos dados do último “Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, INFOPEN – JUNHO DE 2014” para, na sequência, apontar a dimensão ideológica da universidade e a própria Criminologia no ensino jurídico no sentido da legitimação ou deslegitimação do sistema penal em nossa região. Por fim, faremos ainda um breve resgate da construção histórica da pós-graduação brasileira e dos seus marcos legais para contextualizar teoricamente a nossa pesquisa e, por conseguinte, permitir a compreensão tanto da maior flexibilidade curricular dos cursos de mestrado em Direito quanto das atuais problematizações sobre a universidade enquanto espaço de produção do conhecimento no marco da “lógica produtivista” atualmente dominante no espaço acadêmico. O terceiro capítulo inaugurará a parte empírica do trabalho. Iniciaremos pela apresentação e justificação do recorte da nossa amostra de pesquisa que, em razão de nossa preocupação com uma maior abrangência em termos de território nacional, acabou se limitando aos cursos de mestrado acadêmico em Direito das universidades públicas, no marco temporal compreendido entre 2005 e 2014. Ademais, compartilharemos as opções metodológicas e os passos que percorremos na coleta dos dados para a realização da nossa pesquisa qualitativa. Aqui pontuaremos que, além do recurso à pesquisa bibliográfica, lançamos mão de uma vasta pesquisa documental, sustentada essencialmente com base no banco de dados da CAPES – que reúne informações fornecidas pelos próprios programas de pós-graduação para efeitos de sua avaliação –, e nos planos de ensino das disciplinas de Criminologia – fornecidos pelas instituições, pelos docentes ou disponíveis nos endereços eletrônicos dos programas de pós-graduação. A fim de permitir uma melhor aproximação da realidade da Criminologia nos referidos cursos, particularmente diante de eventuais discrepâncias entre os documentos institucionais acessados e a realidade da sala de aula da disciplina, esclarecemos que incluímos em nossa pesquisa o “método biográfico” e, nesse sentido, construímos a análise da Criminologia nos mestrados em Direito em formato de “mosaico científico” (BECKER, 1993) contemplando inclusive a trajetória acadêmica dos seus docentes em nível do ensino, da pesquisa e da extensão à luz de seus “Currículos Lattes”. Enfrentadas tais questões introdutórias indispensáveis, no quarto capítulo tomaremos em foco o ensino criminológico dos cursos de 39 mestrado (acadêmico) em Direito nas universidades públicas brasileiras a partir de seus currículos oficiais. Esboçaremos inicialmente os “vestígios criminológicos” encontrados em todas as estruturas curriculares a partir da leitura dos nomes, das ementas e das bibliografias das disciplinas, considerando que o saber criminológico às vezes está imerso em disciplinas não rotuladas estritamente como “Criminologia”. Esta primeira abordagem permitirá fazer o primeiro mapeamento das instituições que possuem a disciplina em sua grade curricular, comprovando o “estatuto ausente-periférico” (ANDRADE, 2008 e 2012b) da Criminologia no ensino jurídico em nível de pós- graduação, bem como nos levará a formular a “hipótese” de que o “criticismo” possa eventualmente ter se disseminado na comunidade jurídica brasileira nas universidades públicas em razão da presença recorrente de conteúdos e/ou bibliografias associadas à criminologia crítica nas estruturas curriculares analisadas.8 Advertiremos, contudo, que seriam necessárias investigações futuras mais detalhadas para averiguar se os vestígios criminológicos críticos escavados são expressão da uma crítica conjuntural e reformista do sistema penal ou de uma crítica estrutural e de superação do mesmo. Na continuação verticalizaremos a análise da Criminologia no ensino jurídico no quinto capítulo, sumariando preliminarmente o atual quadro ao nível da graduação com base nos resultados da pesquisa de Mariana Dutra de Oliveira Garcia (2014) desenvolvida no PPGD/UFSC no marco do projeto coletivo da Brasilidade Criminológica. Na sequência, sistematizaremos e analisaremos os dados oficiais (ementas e bibliografias) das disciplinas intituladas de Criminologia nos cursos de mestrado em Direito à luz do banco de dados da CAPES e de alguns planos de ensino disponibilizados. Confrontaremos tais informações institucionais com a atuação acadêmica dos seus respectivos docentes (em nível de ensino, pesquisa e extensão), registrada em seus “Currículos Lattes”, sobretudo diante da ciência da existência corriqueira de “currículos ocultos” (RODRIGUES, 2005) no ensino jurídico e da constatação de informações desatualizadas em alguns dos documentos institucionais acessados. Diante do “mosaico científico” esboçado, formularemos em termos conclusivos a tese do estatuto ausente-periférico, volátil e fragmentado da Criminologia enquanto disciplinaacadêmica no ensino jurídico em nível de pós-graduação nas universidades públicas. Ademais 8 A síntese dos “vestígios criminológicos” a serem expostos nesse capítulo encontra-se nos dados tabulados no Apêndice A. 40 sustentaremos, em termos de conteúdo, a tese da predominância das teorias criminológicas centrais e da ausência ou residualidade dos conteúdos latino-americanos e brasileiros nos referidos espaços acadêmicos que, com raras exceções, não fizeram o giro descolonial em busca de um conhecimento próprio, a exemplo da proposta das Epistemologias do Sul (SANTOS, 2010), reforçando, portanto, a atualidade da “convocatória” (ANDRADE, 2012b e 2016) da construção coletiva de uma Criminologia brasileira.9 Outrossim, defenderemos, apesar do estatuto ausente e residual da Criminologia no ensino jurídico em nível de pós-graduação, a tese da predominância de uma postura politicamente engajada de muitos dos seus docentes que se posicionam criticamente diante do sistema penal brasileiro, contrapondo-se, neste ponto, à realidade da disciplina nas universidades públicas em nível de graduação, conforme hipótese levantada por Vera Regina Pereira de Andrade (2008 e 2012b) e demonstrada por Mariana Dutra de Oliveira Garcia (2014). Está, portanto, lançado o “convite” para que o leitor embarque na nossa aventura de tentativa de colaboração com o projeto criminológico crítico da Brasilidade Criminológica, literalmente, “pelas mãos da Criminologia” da professora Dra. Vera Regina Pereira Andrade. Abandonemos então a “terra firme” e, como diria Rubem Alves, exploremos o “mar desconhecido”! 9 Pontuamos que as bibliografias completas das disciplinas de “Criminologia” nos cursos de mestrado em Direito das universidades pesquisadas, bem como os currículos resumidos dos seus professores, encontram-se respectivamente no Apêndice B e Apêndice C. 41 PARTE I – BASE TEÓRICA: A CRIMINOLOGIA E O ENSINO JURÍDICO 1 OS GRANDES “PARADIGMAS CRIMINOLÓGICOS” DA MODERNIDADE E SUAS “RECEPÇÕES CRIATIVAS” NA AMÉRICA LATINA E NO BRASIL 10 Parece-me evidente que hoje a Criminologia crítica na América Latina não tem menos para ensinar a europeia e norte-americana daquilo que estas podem ensinar à primeira. A transferência de experiências e ferramentas conceituais, em relação com problemas específicos da área originária para outra área, somente é possível se não se perder de vista a especificidade histórica e política das diversas áreas, o mesmo que a relação das ideias com a realidade e os problemas regionais nas quais elas surgem. Com esta advertência, é certamente desejável o enriquecimento recíproco, o intercâmbio cultural entre a criminologia latino-americana e a europeia.11 (Alessandro Baratta, 1990, p. 148-149) A fim de dimensionar a relevância do saber criminológico no ensino jurídico e permitir a problematização do conteúdo criminológico veiculado nos programas de pós-graduação em Direito no Brasil, impõe- se, antes de mais nada, aclarar algumas questões conceituais sobre a própria “Criminologia”, sua relação com a “Dogmática penal” e sua gênese histórica em terras brasileiras. Afinal, o que se entende por “Criminologia”? É possível falar de “uma” Criminologia ou existem “várias”? Como ela ou elas se relacionam com o Direito Penal? O que se entende por “Criminologia crítica”? Há, de fato, alguma Criminologia especificamente “latino- americana”, como sugerido por Alessandro Baratta? Há uma 10 Compartilhamos que o primeiro esboço deste capítulo foi fruto de um “paper” por nós desenvolvido para a disciplina “Criminologia e Políticas Criminais” da professora Dra. Vera Regina Pereira de Andrade no PPGD/UFSC e, nesse sentido, reflete uma das problematizações centrais naquela disciplina no terceiro trimestre de 2014 no marco da Brasilidade Criminológica. 11 Conforme tradução de Vera Regina Pereira de Andrade (2012b, p. 63). 42 Criminologia “brasileira”, atenta para as suas próprias especificidades regionais, conforme hipótese central do projeto coletivo de pesquisa Brasilidade Criminológica de Vera Regina Pereira de Andrade? E, por fim, qual é sua relação com a(s) Criminologia(s) dos “países centrais” (por exemplo, a Europa)? Trata-se de simples “importações” ou “recepções criativas”, segundo terminologia de Maximo Sozzo (2001)? Diante dessas questões, buscaremos na sequência apresentar, ainda que rudimentarmente,12 as principais teorias criminológicas que marcam as duas “coordenadas” (ALBRECHT, 2010) ou os dois “paradigmas” (ANDRADE, 1995, 2003a e 2003b) dentro dos quais costumam desenvolver-se os acessos teóricos de explicação da criminalidade. Estaremos a falar, portanto, das “teorias etiológicas” que tomam a criminalidade como um dado objetivo causalmente explicável, por um lado, e das teorias do “labeling approach” que conceituam a criminalidade como resultado de processos de definição operados pelo sistema de justiça criminal, por outro. Optamos neste capítulo por uma apresentação “cronológica” de algumas das teorias criminológicas mais conhecidas no marco de ambas as “coordenadas” ou ambos os “paradigmas”. Descreveremos incialmente o surgimento da Criminologia positivista no século XIX no marco do “paradigma etiológico”. Tomando a obra de Alessandro Baratta (2002) como fio condutor, delinearemos na sequência os princípios cardeais da “ideologia da defesa social” associados ao pensamento criminológico positivista, bem como indicaremos sua desconstrução gradativa por diversos acessos teóricos que culminaram na década de sessenta do século XX no surgimento do paradigma do “labeling approach”, o qual, por sua vez, abriu o caminho para a construção da chamada “Criminologia Crítica”. Não obstante, como bem lembra Vera Regina Pereira de Andrade (1995 e 2003b), é imperioso chamar atenção para o fato que apesar da desconstrução epistemológica do paradigma etiológico pelo paradigma do labeling approach ambos convivem na contemporaneidade nos discursos cotidianos sobre a criminalidade. Isto porque apesar de deslegitimada pelos “saberes criminológicos críticos”, a política penal estruturada na “ideologia da defesa social” se mantém até hoje. E diante de sua permanência no senso comum das agências do controle social penal e, em especial, dos juristas, concordamos com Marcos César 12Para um acesso mais aprofundado, remetemos o leitor desde logo para a monumental obra Histórias dos pensamentos criminológicos de Gabriel Ignacio Anitua (2008). 43 Alvarez (2002), no sentido de que é fundamental estudar a Criminologia e a própria gênese da Criminologia positivista no Brasil a fim de compreender melhor o tempo presente. 1.1 O NASCIMENTO DA CRIMINOLOGIA POSITIVISTA COMO CIÊNCIA A Criminologia constitui-se como “ciência” no século XIX, sobretudo como fruto da Escola Positiva italiana (ANDRADE, 2003a, BARATTA, 2002; OLMO, 2004, entre outros). A compreensão das teses centrais desta primeira “ciência criminológica” e da sua relação com o Direito Penal, no entanto, requer um resgate histórico da construção do moderno saber penal, sobretudo, italiano e alemão. É possível verificar que, na Itália, de meados do século XVIII até meados do século XIX, o universo penal foi marcado pelo respectivo advento da Escola Clássica e da Escola Positiva, cada qual com postulados metodológicos e ideológicos próprios. A histórica luta entre ambas as Escolas – além de contribuir para o nascimento da Criminologia – gerou um movimento de reação que, na passagem do século XIX para o século XX, impulsionou o surgimento da Escola Técnico-Jurídica e uma discussão profunda sobre o lugar e a relação entre o saber criminológicoe o saber jurídico-penal (ANDRADE, 2003a). Iniciando pela Escola Clássica, sua origem se dá no marco histórico da Ilustração, sobretudo, na passagem do Estado absolutista e feudal para o Estado de Direito capitalista e liberal. O Estado e as leis se fundamentam agora no “contrato social”, que institui “o limite lógico de todo legítimo sacrifício da liberdade individual mediante a ação do Estado e, em particular, do exercício do poder punitivo pelo próprio Estado” (BARATTA, 2002, p. 33). Em sua primeira fase, o classicismo se caracteriza pela forte influência filosófica do Iluminismo e por uma consequente crítica do Direito e da Justiça Penal. Após sua consolidação, em sua segunda fase, a Escola Clássica tende a abandonar sua dimensão crítica e assume uma dimensão mais positiva. Neste sentido, [a] obra “Dos Delitos e das Penas” de Beccaria (1764) constitui o marco mais autorizado do início da Escola e a expressão mais fidedigna do seu primeiro período; da mesma forma que a obra ‘Programa do Curso de Direito Criminal’ de Pichau Highlight Pichau Highlight 44 Carrara (1859) constitui o marco mais autorizado da culminação daquele segundo período e do pleno desenvolvimento da própria Escola Clássica (ANDRADE, 2003a, p. 46). Salientamos que, apesar da existência de duas fases distintas, é possível vislumbrar certa unidade metodológica e ideológica na Escola Clássica. No que diz respeito à metodologia, a produção jusfilosófica do classicismo é condicionada pelo método racionalista, lógico-abstrato ou dedutivo de análise do seu objeto. Já do ponto de vista ideológico, desde o seu início até à sua maturidade, a Escola Clássica esteve comprometida com a limitação e necessária justificação do poder punitivo estatal, como garantia da liberdade individual contra toda e qualquer arbitrariedade do soberano. Por conseguinte, todo esforço do classicismo se concentrava em racionalizar o poder punitivo do Estado e em torná-lo mais humanitário (ANDRADE, 2003a). Assim, o movimento iluminista de reforma denunciou a arbitrariedade e crueldade da Justiça Penal do “Antigo Regime”; reivindicou a garantia da segurança jurídica do indivíduo através da criação de um regime estrito de legalidade no âmbito penal e processual, bem como do estabelecimento de um aparelho processual de estrutura acusatória; e, por fim, exigiu a superação do suplício e proclamou a necessidade de humanização e de instrumentalização utilitária das penas (BARATTA, 2002; CARVALHO, 2015). O classicismo lançou então os pressupostos filosóficos e ideológicos que, gradualmente incorporados nos movimentos de codificação na Europa, configuraram o Direito Penal liberal, marcado pelo princípio da legalidade e pelo discurso da utilidade e da função preventiva da pena. Tomando o crime como “conceito jurídico”, o classicismo “não se deteve na análise da pessoa do criminoso, porque nele não visualizou nenhuma anormalidade em relação aos demais homens. Ao contrário [...] criminoso será quem, na posse do livre- arbítrio, viola livre e conscientemente a norma penal” (ANDRADE, 2003a, p. 58). E tal violação implicava a responsabilização do autor do crime (detentor de uma responsabilidade moral) nos estritos limites do “fato-crime” por ele cometido. Por conseguinte, o classicismo não visualizava o Direito Penal e a pena como mecanismo primordialmente de intervenção e modificação do sujeito delinquente, mas os considerava “sobretudo como instrumento legal para defender a sociedade do crime, criando [...] uma contramotivação em face do crime” (BARATTA, 2002, p. 31). 45 Se por um lado o pensamento liberal contratualista teve êxito na racionalização do poder punitivo, por outro lado não foi capaz de diminuir a criminalidade violenta/ patrimonial relacionada aos processos de pauperização e exclusão social da nascente sociedade industrial. Neste contexto, segundo Salo de Carvalho, as respostas liberais ao controle do delito começaram a ser criticadas, buscando-se a partir daí respostas em “conceitos advindos da psiquiatria como o de degeneração individual (Morel) ou aqueles biológicos adaptados pela sociologia como os de desorganização social (Darwin e Spencer)” (CARVALHO, 2015, p. 316). Por conseguinte, “o solo para o florescimento de novo paradigma de ciências criminais tornara-se [...] fértil” (CARVALHO, 2015, p. 316) e notam-se, a partir da década de setenta do século XIX, diversas críticas ao classicismo, nascendo então a Escola Positiva.13 De acordo com a análise de Vera Regina Pereira de Andrade (2003a), é possível vislumbrar duas críticas centrais do “positivismo” ao “classicismo”: Em primeiro lugar, acusou-se a Escola Clássica de ter negligenciado os direitos da sociedade, em decorrência de sua “excessiva” preocupação com a garantia do indivíduo perante o poder punitivo do Estado e com os direitos humanos do criminoso. Nesse sentido, o positivismo propunha-se resgatar a dimensão da defesa da sociedade. Em segundo lugar, questionou também a metodologia abstrata do classicismo, centrada na razão (racionalismo) e sem nenhuma referência à realidade (empiria). Seria necessário, portanto, o positivismo “deslocar a orientação filosófica para uma orientação científica, empírico-positiva, a única apta a resgatar aquele segundo personagem ‘esquecido’ pela Escola Clássica: o homem delinquente” (ANDRADE, 2003a, p. 61). Neste sentido, a Escola Positiva é detentora de uma concepção positivista de ciência, defendendo a utilização de um método 13 Em termos de contextualização histórica do surgimento da Escola Positivista, remetemos à síntese de Vera Regina Pereira de Andrade: “Inserida no horizonte histórico de transformação nas funções do Estado que apontavam para o intervencionismo na ordem econômica e social, sob a égide de novas ideologias políticas de cunho social ou socialista; de crise do programa clássico no combate à criminalidade; de predomínio de uma concepção positivista de Ciência e declínio do jusnaturalismo ao lado do evolucionismo de Darwin e a obra de Spencer, a Escola Positiva partirá de pressupostos muito característicos que, distanciando-se daqueles que condicionaram a Escola Clássica, explicam, também, o fulcro das críticas a ela dirigidas” (ANDRADE, 2003a, p. 60-61). 46 experimental ou empírico-indutivo de análise de seu objeto. O foco aqui não está mais no crime como “ente jurídico”, mas no “autor do crime” – o “delinquente” –, visto como pessoa dotada de uma personalidade mais ou menos perigosa que representa um risco para a sociedade. A preocupação está agora na construção de uma ciência, capaz de buscar as “causas” da criminalidade, sobretudo, a fim de viabilizar a luta “científica” contra a mesma e prevenir crimes futuros, inaugurando aquilo que se convencionou chamar de “paradigma etiológico de Criminologia” (ALBRECHT, 2010; ANDRADE, 1995). Tomado, aqui, o crime como “fato natural” ou “fato social”, surgem as mais variadas pesquisas sobre a gênese da criminalidade. Entre os “primeiros acessos científico-empíricos” (ALBRECHT, 2010) podemos citar a pesquisa do médico legista italiano Cesare Lombroso (1835-1909), que tentou encontrar uma “explicação causal” da criminalidade através de pesquisas antropométricas, isto é, a medição de tamanho de corpo, peso, circunferência de crânio, altura da testa etc. em “prisioneiros”, “doentes mentais” e grupos da “população normal”. Comparando os dados coletados, Lombroso sustentou, em 1876, na sua obra L’Uomo Delinquente, a origem biológica da criminalidade na constituição diferenciada do “homem delinquente”. Haveria, segundo sua tese, uma pré-disposição biológica que conduziria o homem ao crime, assim como seria possível verificar especificidades em relação aos diferentes tipos de “delinquentes”. Neste sentido, por exemplo, Lombroso afirmou que os estupradores possuiriam, em geral, as seguintescaracterísticas: “lábios grossos, cabelos abundantes e negros, olhos brilhantes, voz rouca, alento vivaz, frequentemente semi- impotentes e semi-alienados, de genitália atrofiada ou hipertrofiada, crânio anômalo [...]” (LOMBROSO, 2007, p. 141). Os ladrões, por sua vez, seriam “apaixonados por cores berrantes: amarelo, azul, por berloques, correntes e até por brincos [...]” (LOMBROSO, 2007, p. 141- 142). E os assassinos teriam “ar calmo”, seriam “pouco voltados ao vinho, mas muito ao amor carnal” e se mostrariam “audazes entre eles, arrogantes, soberbos dos próprios delitos [...]” (LOMBROSO, 2007, p. 142). Observando sua obra como um todo, é possível afirmar que Lombroso [...] buscou primeiramente no atavismo uma explicação para a estrutura corporal e a criminalidade nata. Por regressão atávica, o criminoso nato se identifica com o selvagem. Posteriormente, diante das críticas suscitadas, Pichau Highlight Pichau Highlight 47 reviu sua tese, acrescentando como causas da criminalidade a epilepsia e, a seguir, a loucura moral. Atavismo epilepsia e loucura moral constituem o que Vonnacke denominou de “tríptico lombrosiano” (ANDRADE, 2003b, p. 36). Autores como Garófalo e Ferri ampliaram posteriormente o determinismo biológico lombrosiano, chamando atenção, respectivamente, para fatores psicológicos e sociológicos na análise da criminalidade (BARATTA, 2002). De toda sorte, tais perspectivas patologizantes da Antropologia e Sociologia Criminal positivista continuavam presas à ideia de que a “causa” da criminalidade estaria no “indivíduo” portador de alguma “anormalidade” e, neste sentido, representavam as bases fundacionais da Criminologia Positivista. Nas palavras de Vera Malaguti Batista, [no] positivismo, o delito é um ente natural [...]. O determinismo biológico se contrapõe à ideia liberal de responsabilidade moral. O importante é “estudar“ o autor do delito e classifica-lo, já que o delito aparece aqui como sintoma da sua personalidade patológica, causada pelos mesmos fatores que produzem a degenerescência. Se o liberalismo revolucionário tratava de limitar o poder punitivo absolutista, aqui a pena encontrará um caudal de razões para expandir-se; as estratégias correcionalistas se revestirão de características curativas, reeducativas, ressocializadoras, as famigeradas ideologias “re” (2012b, p. 45). As teses deterministas da criminalidade e sua negação da “normalidade” do criminoso conduziram, portanto, à negação da “responsabilidade moral” como fundamento da pena e legitimaram a punição com base na “responsabilidade social” ou “legal”. A pena era um remédio necessário de defesa da sociedade diante do criminoso perigoso. E, neste ponto, era de fundamental importância que a pena tinha eficácia preventiva. Ou seja, na Escola positiva “a pena não age de modo exclusivamente repressivo, segregando o delinquente e dissuadindo com sua ameaça os possíveis autores de delitos; mas, também e sobretudo, de modo curativo e reeducativo” (BARATTA, 2002, p. 40). 48 É evidente o deslocamento operado pelo positivismo do “fato- crime” para o “autor-criminoso”. E a gradual assimilação das teses centrais da Escola Positiva pelas legislações penais no século XX14 implicou, por sua vez, a assunção do princípio da individualização da pena em conformidade com a personalidade do criminoso e a reforma do clássico Direito Penal do fato liberal para um Direito Penal do autor intervencionista. A partir de então, “[...] convivem o discurso de garantia do indivíduo com o discurso da defesa social; o discurso do homem como objeto de intervenção positiva desse mesmo poder, em nome da sociedade” (ANDRADE, 2003a, p. 73). Além de impactar nas legislações penais de seu tempo, a luta entre a Escola Clássica e a Escola Positiva também teve implicações teóricas, pois conduziu a uma discussão sobre a divisão do trabalho na área criminal e gerou uma disputa pela hegemonia entre a Criminologia e o Direito Penal. Deste modo, [p]ercebe-se aí um deslocamento temático no interior do saber penal, uma vez que o objeto de discussão já não é crime, criminoso, pena etc., mas uma discussão epistemológica sobre o próprio lugar, estatuto e função das Ciências Penais. As antagônicas distinções das Escolas vão cedendo lugar a uma diferenciação de Ciências; a uma divisão do trabalho científico entre Dogmática Penal e Criminologia (ANDRADE, 2003a, p. 75). E, se desde o advento da Escola Clássica o universo penal era dominado pelos juristas e pelo Direito Penal, então o positivismo abria as portas para os antropólogos, sociólogos, psicólogos, médicos (etc.), 14 “Assim, enquanto o programa clássico (centrado na lógica da liberdade de vontade, da certeza e segurança jurídicas) é condicionado e expressa, discursivamente, as exigências de uma sociedade e de um Estado de Direito liberais, é somente quando esta matriz estatal assume o intervencionismo na ordem econômica e social e legitima-se, consequentemente, para intervir ativamente no campo penal, que se abre o espaço para um Direito e um controle intervencionista sobre a criminalidade e o criminoso, como o postulado pelo programa positivista. A emergência da Escola Positiva – e da Criminologia – responde, pois, a uma redefinição interna da estratégia do poder punitivo, somente admissível na ultrapassagem do Estado de Direito liberal para o Estado de Direito social ou intervencionista” (ANDRADE, 2003a, p. 71). 49 bem como defendia a necessária hegemonia da Criminologia, tendo em vista que era o único saber penal que merecia – à época – o atributo de “científico” em razão da utilização do método causal-explicativo. Neste sentido, o modelo defendido por Ferri [...] postula uma unificação disciplinar sob os princípios das Ciências causal-explicativas em que a autonomia metodológica da Ciência Jurídico- Penal se anula e se substitui pelo chamado método científico. Mais do que procurar uma alternativa não normativa para a Ciência do Direito Penal postula, em realidade, uma redução sociológica dela (ANDRADE, 2003a, p. 79). Diante deste movimento surgiu, contudo, uma forte reação em defesa de uma “Ciência Penal” estritamente jurídica. Era chegada a hora do nascimento da Escola Técnico-Jurídica que, inspirada no positivismo jurídico alemão, postulava, para o Direito Penal, a assunção do paradigma dogmático de Ciência Jurídica – já dominante no Direito Privado – e, por conseguinte, a delimitação do objeto da ciência ao Direito Penal Positivo vigente. Nesta perspectiva, enquanto [...] a Ciência Penal teria por objeto de estudo o crime e a pena como fatos jurídicos, a Antropologia teria por objeto o crime como fato individual e a pena como fato social; a Sociologia o teria a ambos como fato social, sendo estas duas Ciências ao lado da História e do Direito comparado as fontes do “conhecimento científico” do Direito [...] (ANDRADE, 2003a, p. 87). Neste modelo proposto pela corrente técnico-jurídica, a hegemonia era claramente da Dogmática Penal, ao passo que a Criminologia era, nas palavras de Salo de Carvalho, “castigada” com o “rótulo da auxiliaridade” (CARVALHO, 2015). Ou seja, diante da disputa do positivismo jurídico e do positivismo criminológico e da discussão em torno da relação entre Dogmática Penal e Criminologia, a proposta vencedora coroava a primeira como soberana em relação à segunda (ANDRADE, 2003a). Portanto, é possível observar em termos históricos que, após uma inicial liderança do positivismo criminológico, a Dogmática Penal saiu vencedora na disputa pela hegemonia no universo do saber penal. Por 50 conseguinte, no modelo oficial que se consolida no século XX “não haverá uma redução sociológica da Dogmática penal nem um abandono da Criminologia, mas uma ‘relativa’ autonomia metodológica de cada paradigma e uma relação de auxiliariedade da Criminologia
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