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dades, marcas e formas - como subsídios para o estudo de outras espécies desse tipo de discurso e para a análise de fatos desses dis- cursos em suas diferentes práticas. Nesse sentido é que colocamos como próxima etapa desse nosso trabalho a análise do discurso missionário entre os índios. ) BIBLIOGRAFIA ALTHUSSER, L. - Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado, Biblioteca de Ciências Sociais, Ed. Presença, Portugal, e Liv. Martins Fontes, Brasil, 1974. ANDRADE, O. - Manifesto Antropofágico, São Paulo, 1926. GOODY, J. - Literacy in Traditional Societies, J. Goody Ed., University Press, Cambridge, 1968. GRAMSCI, A. - Il Materialismo Storico e la Filosofia di B. Croce, Ed. Einaudi, Turim, 1966a. , -----. Gli Intellectuali e l'Organizazione dei/a Cultura, Ed. Einaudi, T urim, 1966b. HUSTON, N. - Dire et Interdire, Payot, Paris, 1980. MACHADO, C. - "Fala de Dois Tucanos aos Participantes do Simpósio'', em Das Reduções Latino-Americanas às Lutas Indígenas Atuais, E . 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Ins- creve-se nesse caso aquilo a que se chama ruído da comunicação (ou seja, a comunicação mal sucedida): Há ainda a ruptura categó- rica entre interlocutores ocasionada pela destruição do contato: é o silêncio radical. Essas observações levam-nos pois a afirmar que, como as pala- vras, ·também o silêncio não é transparent~. O segundo ponto é o de que a fala é silenciadora, em vários níveis. Considerando que a função mais ·própria do autoritarismo não é impedir que as pessoas digam o que querem . mas sobretudo obrigá- las a dizer o que não querem (Barthes, 1976), podemos afirmar que às relações de poder interessa menos calar o interlocutor do que abri- * Conferência apresentada em Curitiba, no II Encontro de Semiótica ( 1985). 263 gá-lo a dizer o que se quer ouvir. A isso chamamos a injunção ao dizer 1 . É preciso observar que ao dizermos isso não estamos em con- tradição com o que dissemos antes, pois silenciar não é o mesmo que calar o interlocutor. A fala pode ser silenciadora quanto ao que se diz. Em certas . con- dições, se fala para não se dizer certas coisas, para não se permitir que se digam coisas que causam transformações limites, ou melhor, como diria Caetano, para não se dizer (ou deixar dizer) as outras palavras. Nesse sentido, a fala é silenciadora enquanto domínio do mesmo. Esse processo de silenciamento produzido pela fala pode ter vários sentidos, com efeitos variados e finalidades bastante diversas. Nesse estudo, procuraremos observar apenas alguns desses efei- tos, com suas finalidades. Vale lembrar que dada a heterogeneidade da linguagem e a multiplicidade de seus mecanismos de funcionamento e de seus usos distintos, este trabalho representa apenas uma explora- . ção parcial de um fato discursivo. Quando afirmo . que a fala é silenciadora em vanos níveis, refi- ro-me ao fato de que este não-dizer pode ter a natureza do implícito tratado, por exemplo, pela psicanálise (operando com o conceito de inconsciente), pela retórica (nas teorias da argumentação) ou pela análise de discurso (refletindo a noção de ideologia) . São várias as estratégias usadas para não dizer. Nesse trabalho interessam-me aquelas em que para silenciar se diz algo diferente, ou se diz o contrário. Levando-se em conta que ·a linguagem é basicamente dialógica, podemos dizer que ao silenciar sobre algo, o locutor prende o inter- locutor no quadro discursivo limitado por esse .silêncio. Esse com- promisso instituído pelo enunciador poderá, ou não, ser cumprido pelo interlocutor. 1 . O ditádo "Quem cala consente", nessa perspectiva, é menos um ditado favorável ao conflito (como poderia parecer) do que um convite ao assen- timento, já que quem expõe suas razões (ainda que contrárias) pode. ser convencido. 264 Passemos à análise de alguns modos de existência desse fato em diferentes funcionamentos discursivos. Resta-nos dizer que essa análise procura tornar explícitos alguns mecanismos constitutivos daquilo a que temos denominado uma retó- rica do oprimido ( Orlandi, 1984), mecanismos estes observados, no presente estudo, da perspectiva do opressor. A FALA DESSA GENTE SÉRIA A crítica ao uso da palavra "competência" já foi feita de sobejo e por gente que conhece do riscado. Mesmo o discurso popular já desmistificou o peso desse conceito que vem agora, em seu cotidiano, acompanhado de certa ironia. :R assim que o povo lida com essas palavras, que servem para impres- sionar (e pressionar), quando elas se desgastam. Não desconheço que o uso dessa noção teve, na sua origem, uma função crítica. O problema é que não acredito que as palavras falam por si; elas falam pelos homens que as empregam. Como as condições de vida do homem estão encravadas nas relações de poder - nunca se está suficientemente longe de seu exercício - é por aí que passa o uso das palavras e os seus muitos sentidos. E não passa impune- mente. Assim, não é por acaso que a noção de competência esteve (é) tão ao gosto dos tecnocratas. o que pretendo dizer com isso é que não é suficiente fazer a crítica apenas na origem de um uso. Na linguagem, a crítica é um exercício cotidiano. Mas não é essa noção que tomaremos como objeto de nossa reflexão. Queremos discutir uma outra, aparentada a esta e, como esta, especializada em processos de exclusão e de atribuição de pres- tígios e poderes. Com a vantagem, e o agravante, de que esta outra palavra tem um uso menos marcado e mais generalizado do que a palavra competência. É a palavra SÉRIO. o modo como se usa esta palavra mostra~.nos qual é sua função, do ponto de vista ideológico. Ê muito freqüente o fato de que as pessoas se digam sérias. Essa é uma categoria que passou a ser enunciada de forma insistente no mundo acadêmico e, uma vez que se supõe que todo trabalho deve ser sério, nos perguntamos qual o sentido dessa insistência em se enun- ciar a seriedade. As regras de funcionamento desse dizer poden;i indicar uma res- posta. Observemos algumas dessas regras: 1 . Ê preciso que o enun- ciador não se refira diretamente à própria seriedade, ou seja, não se diz "eu sou sério"; 2. é tolerável dizer-se da seriedade do próprio trabalho "Meu trabalho é sério"; 3 . mas o melhor mesmo é falar da seriedade (ou não) do trabalho do outro "O trabalho de fulano é sério" e 4. mais eficaz é falar diretamente da seriedade do outro: "Fulano é (não é) sério". Se fala, portanto, do outro. O resultado desse funcionamento discursivo é múltiplo Jª que, no mesmo ato, o enunciador elimina um adversário (dito não sério), ou partilha com um eleito (dito sério) a sua cota de prestígio e, em qualquer dos casos, cobre-se a si mesmo do manto da seriedade. Ou seja, ao falar da seriedade do outro, o enunciador está pressupondo sua própria seriedade (dessa forma, inquestionável) . Esse é um dos vários modos de se exercer a vontade pessoal. Como o discurso da competência, o discurso da seriedade é uma fala de chefe, dita do lugar da autoridade, seja ela real ou presumida como tal. Esse uso corresponde a umaforma de arregimentação de poder que funciona da seguinte maneira: aqueles a quem o enunciador de- nomina sérios, a) passam a ter de justificar (acatar e reproduzir) a categorização e a agir de acordo com os princípios da seriedade que lhe é imputada (dever de obediência); b) reconhecem o enunciador como aquele que os nomeou e, portanto, se assujeitam a ele. Este mecanismo legitima a autoridade do enunciador, uma vez que reproduz as características da categoria que el~ nomeia e, no mesmo movimento, exclui os . discordantes. 266 Vejamos qual é o conteúdo desta categoria "seriedade". 1 . A reprodução dos modelos legitimados. 2 . A reprodução do conhecimento institucionalizado que vem dos centros legitimados. E como há centros de prestígio incontestável, quanto mais perto desses centros, mais sério 2 • 3 . A articulação com outras categorias como a do "difícil", isto é, quanto mais difícil, mais sério e, pela ideologia burguesa, mais desejável. 4. A soma de atributos que sustentam a autoridade do enun- ciador. Por exemplá, o atributo de "exigente" 3 • O que é mais característico do conteúdo dessa categoria é que ela desloca para o sujeito do trabalho intelectual o que deveria estar voltado para o produto dele, isto é, o conhecimento. Assim, há um · deslize ideológico pelo qual se faz um julgamento do sujeito e não 'uma crítica do trabalho. Resulta desse funcionamento a existência de um mediador que . deveria se apresentar como crítico mas que se apresenta como juiz e que acaba, finalmente, · por passar de juiz a censor. Dessa forma, essa é uma voz silenciadora que impede a dis- · cussão e a discordância porque divide compacta e homogeneamente o universo de validade desse discurso: de um lado, o juiz (o centro) e, de outro, o consenso suposto. Constitui ainda o funcionamento do discurso da seriedade o fato de que, ao se erigir em figura de juiz; o enunciador desloca o foco da observação colocando-se, ele próprio, fora de discussão. Esse é um dos silêncios produzidos. O outro silêncio - que incide não sobre o enunciador mas sobre seu alvo _:_ afeta, sobretudo, o princípio da autoria, isto é, desliga o autor de seu produto (meca- nismo de expropriação) . 2 . Na Lingüística, por exemplo, um centro atual são os Estados Unidos, de preferência a Califórnia e, com toda a certeza, algum departamento que é mais sério que outros. 3. Talvez valesse a pena comentar o que se tem considerado o "pacto corrupto". Embora se possa estar. de acordo com a crítica que reflete sobre o "pacto corrupto" no sistema educacional (não se ensina nada e não se exige nada) creio que se deva cuidar para não se deixar enganar quanto à natureza desse pacto. Não é um acordo feito a partir da falta do saber, é antes pro- duzido pelo excesso de poder e a formação de grupos fechados, que se limi- tam em seus confrontos. Sem esquecer que , também há "pactos corruptos" com a "seriedade". 267 Uma vez que se coloca como guardião do espaço intelectual, o enunciador oficial se apreseu+:t como seu porta-voz. Indo mais além, a mediação acaba por se exercer não apenas entre os diferentes sujei- tos desse espaço mas entre o autor e seu próprio trabalho, qualifi- cando ou desqualificando sua autoria sob o pretexto da seriedade. Aí também se exerce, pois, a voz silenciadora. Enfim, quando desqualifica a legitimidade, pelo discurso da se- seriedade, o mediador: 1 . Exerce uma forma de apropriação do trabalho do outro na medida em que, enquanto , sujeito legítimo (juiz) ele se pronuncia de um lugar sério (o que deve ser) e ocupa esse lugar. 2. Impede que se reconheça que daquele lugar (do sujeito dito não-sério) se possa formular um saber que tenha validade. Mais do que isso, de forma categórica, silencia, de antemão, a própria possi- bilidade de discutir essa produção . categorizada como não-séria. Dessa forma, o discurso da seriedade realiza tanto o objetivo do silenciamento como o da injunção ao dizer: de um lado, silencia e, de outro, obriga a reprodução do discurso instituído (o do mesmo). Fazendo um paralelo com o que diz Foucault (1971), a respeito da verdade, eu diria que o que se disc~te não é se o discurso é (ou não é) sério, mas se considera, antes, se ele está (ou não) no sério. Esta categorização é, assim, ponto de partida e de chegada, pois se não está no sério, o trabalho nem é discutido por estar desqualificado, e se está no sério é indiscutível porque legítimo. Referir à palavra de muitos gumes significa, aqui, mostrar que no interior da vida acadêmica, ainda que os intelectuais se queiram críticos, a própria forma de exercer essa função acaba por reproduzir a mesma arbitrariedade que, em _outras condições, seriam o objeto mesmo de sua crítica. Até aqui procedemos a uma análise que incidiu sobretudo sobre o modo de funcionamento desse discurso referindo-nos sobretudo às circunstâncias de sua enunciação: a função do locutor, a mediação, o deslize da função crítica para a censura etc. Cabe-nos, agora, dizer alguma coisa a respeito das condições só- ' cio-históricas em que se produz o discurso da seriedade. 268 Como sabemos, essas condições são constitutivas do discurso. Assim, o sentido que atribuímos ao discurso da seriedade, tal como o fizemos, tem de ser necessariamente referido a essas condições. O momento histórico do discurso da seriedade a que nos refe- rimos é o dos últimos dez anos aproximadamente ( 197 4-19 84) . Mo- mento que se caracteriza por relaçõe~ extre~amente autoritári~s. Além disso, a situação em que observei o funcionamento desse dis- curso é o ambiente acadêmico. Não desconhecemos a crise produzida, por unia determinada política educacional, em nosso sistema de ensino. "Crise" esta caracterizada por concepções de saber e · de ensino bas- tante arbitrárias, pouco refletidas e sequer discutidas em sua realidade. °É, assim, nessas condições e na tensão dos conflitos gerados por esse sistema que procuramos entender o discurso da seriedade. Enfim, gostaria de mencionar um fato que considero extre~a mente relevante. para que se compreendam as condições e o sentido que se pode atribuir a esse discurso que acabamo~ de analisar. Tr.a- ta-se da questão da socialização do saber. Ou se1a, enquanto a cir- culação do saber não seja tal que o produto do trabalho intelectual possa adquirir a objetividade do produto 4 as relações intelectuais se darão no espaço dos confrontos pessoais e de autoridade e não no dos resultados do trabalho e de discussões e discordâncias produtivas. E é isto finalmente que constitui uma característica central do Discurso da Seriedade. O DISCURSO DA NOVA REPÚBLICA: CONCILIAR PARA GOVERNAR Tomando como referência o discurso intitulado Nova República 5 , feito por rancredo Neves, no dia 15 de novembro de 198~·.e?1 Vitó- ria na União Parlamentar Interestadual (UPI), faremos inicialmente al~umas considerações a respeito da denominaç~o "Nova ;1le~ública" e, depois, faremos algumas observações a respeito do propno texto 4 . A. Giannotti em uma conferência sobre . Leitura e Universidade (IEL, UNICAMP, '1984) fez uma bela exposição sobre essa questão e a do ensino público. 5. Infelizmente, não conseguimos o texto integral do di~curso, que tem 15 páginas. Trabalhamos com a reprodução, em jornais, · de segmentos dele; Isto, evidentemente, produz já um efeito no trabalho. 269 que inaugura esse discurso que chamaremos a Discurso da Nova Re- pública, ou o Discurso de Vitória. Discurso esse que deu origem ao uso, diríamos, indiscriminado, da palavra "Novo" adjetivando não só atos políticos mas administrativos e mesmo acontecimentos da vida cotidiana. Tudo é "Novo", desde então. Refletindo sobre o processo pelo qual se instala o nome Nova República, pudemos constatar que, historicamente, temos quatro for- mas básicas de denominar os períodos históricos que vão de 1889 até 1984. 1. Logo após a Proclamação da República (1889) temos a Jovem República, denominaçãoque se aplica aos inícios do novo regime político para distingui-lo da fase anterior, ou seja, o Império. Visto, porém, da atualidade, o período da República que vai de sua pro- clamação até os anos 30 é chamado República Velha: Alguns autores distinguem, na República Velha, dois períodos: até 1894 (República da Espada) e depois de 1894 (República das Oligarquias). Em se- guida temos a Era de Vargas (1930/1945) com o Estado Novo (1937/1945). Após a Era de Vargas, temos o período denominado República ou República Contemporânea (1946/1984). · 2 . Outra forma de nomear esses. períodos é a que distingue apenas três: A República Velha (1889/1930), o Estado Novo (1930/1945) e a República Nova (1946/1984 ). 3 . Uma terceira forma é a que usa numerais para distinguir períodos: l.ª República (1889/1930), 2.ª República (1945/1964) e 3.ª República (1964/1984). Essa é uma forma muito comum em livros didáticos do 1.. 0 e 2. 0 graus. 4 . Finalmente, temos uma forma mais simples que distingue apenas a República Velha (1889/1930) e a República Contemporâ- nea (1930/1984). Vale a pena observar que há autores que chamam a Era de Vargas de República Nova (1930/1945), e República Contemporâ- nea ao período que vai de 1946 a 1984. Entretanto, qualquer que seja a variação que distingue, em algum detalhe, o procedimento de atribuição desses nomes, somos levados a concluir por eles que, no Brasil, depois do Império só tivemos Re- públicas. Com altos e baixos, mas sempre Repúblicas; o que nos dá uma visão uniforme da vida política brasileira deste século. 270 As denominações variam mas são homogêneas. O conceito de "ditadura" não parece ser um conceito histórico que se aplique aos regimes de governo. Da mesma forma que, no discurso da história do Brasil, em geral, não se fala em "golpe" mas em revolução. E nesse contexto que vemos Tancredo nómear a Nova República. Nova República porque não é Velha, Nova República porque não é a República Nova, etc. Podemos imaginar as várias associações que se peidem fazer a partir da comparação com os vários períodos. Entretanto, o que é preciso dizer é que esse nome Nova Repú- blica evita, sobretudo, que se diga que o período imediatamente ante- rior (1964/1984) foi o de ~ma ditadura militar. Sugere mesmo que também foi uma República (a 3.ª, uma fase da Contemporânea etc.). Portanto, um dos aspectos fundamentais desse ato de :Q.omear é o silêncio que ele cria. Podemos, então, perguntar: o que este nome silencia? Duas coisas, fundamentais: 1. Silencia a crítica sobre a ditadura; darser, de alguma forma, conivente. 2 . Silencia a possibilidade de se discutirem outros modelos po- líticos. Pela adjetivação Nova República coloca o elemento determi- · nado (a República) como pressuposto. Daí propor .de toda forma o continuismo. Ou seja, pode-se discutir se deve ser Nova oú não, mas_ não coloca em discussão se deve ou não ser República, nem discute o que é realmente uma República. Tanto em relação ao item 1. como ao 2. resulta que a Nova República se propõe como uma passagem e não uma ruptura. O enunciador se coloca como representante e, ao dar nomes, interpreta a história. Cumpre assim sua função med_iac;lora: gerencia os conflitos, administra as passagens das formas de governo para ·que _ tanto as passagens quanto os conflitos não existam fora de uma certa ordem e de um certo controle. Como tática, esse discurso embarca o movimento político ei.n ·uma certa interpretação da história. E faz isso através do discurso da conciliação, apresentando-se como mediador. Cabe, então, per- guntar: mediador de quem e em nome de quem? 271 < Vejamos como a retórica do texto, junto ao ato de nomear, preenche essa interpretação histórica que Tancredo instituiu pela no- meação. Ao silenciar a crítica sobre a ditadura, ele se pronuncia contra o ajuste de contas que rotula de "revanchismo" e "represália": "Minha formação democrática ( . . . ) não foi e jamais será marcada por re"'. vanchismo e represálias". Administrada pelo discurso da conciliação, a passagem sem con- flitos é proposta (prometida) para os antigos governantes. Uma ga- rantia. Em nome do povo brasileiro, ele acaba por ser mediador dos antigos governantes. · Ao falar em moderação - "O Brasil sempre ofereceu a mode- ração como motor de seu progresso, inspirador de suas ações e do seu engrandecimento" - coloca-a como proposta daqueles que pode- riam pretender o revanchismo (o povo, o Brasil). Os militares, eu perguntaria, foram moderados? No entanto, no texto está dito que o Brasil sempre ofereceu moderação. Mais uma vez silencia sobre a ditadura. O viés do discurso está em que, silenciando sobre a ditadura, a conciliação se exerce em mão única: a questão da justiça histórica e política frente a ditadura, nesse discurso que silencia a respeito dela, é transformada em revanchismo. Através desse viés se fixa um sen- tido e se dá uma direção à história. Este sentido fixado está centrado, ao longo do texto, na palavra República. No texto, Tancredo fala muito raramente em democracia e quando o faz é em referência a D. Pedro II e a Figueiredo. Por que não insiste na tematização da democracia? Porque o silêncio sobre democracia e sobre ditadura é o mesmo, é coextensivo. Ao falar em República (Nova) partilha a visão homogeneizante de que após o Império sempre tivemos Repúblicas. E podemos verifi- car, pela análise do Discurso de Vitória, que a polarização explícita e básica só se dá entre a República e o Império. Nos outros casos, usam-se eufemismos para designar o .que não é a Nova República. Para se opor ao que deveria ser chamado dita- dura, e não o é, fala-se contra a "centralização" e em favor da "Fe- 272 deração"; fala-se em recuperar a "mística da cidadania" e s~ acres- centa que as "Forças Armadas e a República vivem indissoluvelmente vinculadas ( ... ) daí ser imperioso criarmos uma Nova Replíblica, forte e soberana, para que nossas Forças Armadas não sejam nunca desviadas de sua destinação constitucional''. Para não se falar em ditadura, fala-se em "Constituinte". Para se falar no período anterior à República, fala-se nas "malogradas ins- tituições atuais". Para se referir ao que vai mudar no dia 15 · de março, se diz: "a posse do presidente eleito vai marcar, no dia 15 de março, uma fase de ordem, de paz, de moderação, de participação e de progresso" 6 • Não seria a fase da democracia? E ela não se oporia à ditadura? Isso não se diz. Ao falar de Figueiredo, ele o faz através da figura de D. Pedro II (mais uma vez a menção ao Império) e não de um ditador: " ... dom Pedro II mereceu o culto histórico da posteridade precisamente por- que soube fazer de seu país uma democracia". Sem esquecer que a construção "soube fazer de seu país uma democracia'.' é uma alusão às palavras de Figueiredo: "eu hei de fazer desse país uma demo- cracia". Cabe aqui uma observação. Há uma história. de nossa história (talvez de outras também) que insiste em dar a si mesma uma certa direção: são sempre os nossos governantes que, "generosamen- te", nos concedem mudanças, liberdade (abolição), etc. Tancredo reproduz esse sentido da história, quando, comparando Figueiredo a D. Pedro, os iguala na mesma qualidade: um saberá, como o outro soube, "fazer de seu país uma democracia". Assim se cumpre a pro- messa: ganharemos a liberdade sem ruptura e sem conflitos (sangren- tos?). Com ordem e progresso. É ainda a menção ao Império e a passagem para a República que está presente no seguinte segmento de texto: "Como o fizeram em 1889, prego o direito de o povo eleger diretamente seus gover- nantes, em todos os níveis, estabelecendo que só existe um império, 6 . Observar a inserção, entre "ordem e progresso", de "paz, moderação, parti- cipação" que definem, assim, a diferença entre o que veio antes e a Nova República. 273 que é o império da lei, e só um soberano, o povo brasileiro". Deslo- ca-se o sentido de império (com letra minúscula)mas não se diz nada sobre a ditadura. As referências e os termos de comparação são sempre com o Império para não trazer ~ cena, além da democracia como já dissemos, termos como os das eleições diretas, mobilização popular etc. Em suma, o que a fala da Nova República faz é instituir um espaço de discursividade onde, de um lado, se silenciam discursos que falariam da ditadura ou de outras formas de governo e, 'ao mesmo tempo, se garante que alguns sentidos e só eles circulem, e aí circulem necessariamente. Também para o Discurso da Nova República temos a articulação da função silenciadora e da injunção ao dizer, como formas do exer- cício do poder da lingu~gem: a produção de seus muitos gumes. Uma expressão sintomática desse mesmo discurso é a de "entu- lho_ aut?+itário". :É- uma expressão que se insere no modo de signifi- caçao maugurado pela nomeação Nova República. Caberia, pois, perguntar o que silencia essa expressão. De um lado, esconde - por ser "entulho" - o fato de ser o · resultado histórico (e não o resto casual como ·sugere) de um regime político. De outro, ao dizer autoritário, silencia o fato de que esse resultado - autoritário - foi produzido pelo regime ditatorial. Não é só resto e não é apenas autoritário. Vale a pena destacar aqui, a necessidade de se remeter a defini- ção de autoritarismo ao seu contexto. Essa não é uma noção que se aplique de forma automática sendo preciso, então, ter em conta a redimensionalização de seu uso em rela- ção aos diferentes regimes políticos em que se produz. Em suma, o autoritarismo pode ser produzido em um regime totalitário e também em uma democracia. Isto está silenciado na expressão "entulh~ auto- ritário". Esse efeito discursivo silenciador - a respeito da ditadura, quando se centra a retórica na idéia de República - tem ainda uma outra característica importante, tal como veremos. O discurso da Nova República silencia o que veio antes - a di- tadura - mas, ao mesmo tempo, ele significa sobretudo por esse silen- 274 ciámento que está na sua origem e que é produzido pela catalização instituída pelo nome .República." Ou seja, esse discurso não reconhece mas opera com a noção de ditadura. Essa noção é ao mesmo tempo suposta e silenciada: é esse mecanismo que sustenta o efeito discur- sivo da retórica da conciliação produzida pelo discurso da Nova · Re- pública. Finalmente, e para não deixar de levar em conta as várias ins- tâncias das condições de produção do Discurso de Vitória, devemos lembrar que ele foi feito em meados de novembro de 1984 e que a tarefa de mediador que naquele momento Tancredo cumpriu foi a de evitar um golpe e tranqÚilizar os militares a respeito de sua impu- nidade. ALGUMAS OBSERVAÇÕES FINAIS O que nos mostra a reflexão sobre essas duas formas de funcio- namento do discurso é que à categoria de mediador não é transpa- rente. Ao contrário, o mediador tem uma função decisiva na consti- tuição das relações de poder. Ser mediador, no domínio do discurso, é fixar sentidos, é organizar as relações e disciplinar os conflitos. Além disso, essa reflexão também nos indica que o ato de nomear tem implicações ideológicas decisivas. A fala instaura os espaços de silêncio. Pudemos, então, observar alguns fatos relativos à delimitação do que é dito e do que é silenciado nos diferentes discursos. Constatamos que aquilo que é o não-dito se instala de modos diferentes nos diferentes funcionamentos discursivos. Esses modos puderam ser observados justamente devido à função si- lenciadora da fala, ou seja, pela forma como cada discurso, ao dizer, não diz exatamente o contrário mas de qualquer forma dirige o inter- locutor para um outro lado. Diríamos que o ·sentido está sempre no viés. Ou seja, para se compreender um discurso é importante se perguntar: o que ele não está querendo dizer ao dizer isto? Ou: o que ele não está falando, quando está falando disso? No primeiro caso que analisamos (o da gente séria), o enuncia- dor parece estar falando da seriedade, mas está se 'apropriando do princípio da autoria. Temos, então, aí, no domínio do poder intelec- tual, o desejo dá autoria. 275 No segundo caso, (o da República) o locutor parece estar fa- lando da República mas está silenciando sobre a ditadura. Nesse caso, no domínio · do poder político, temos o desejo do comando. À guisa de conclusão, provisória, gostaria de lembrar um chiste acerca da generosidade cristã e do paternalismo (ouvido em um filme americano de que não lembro o nome). Após ser objeto de intenso trabalho de conversão que resultou em vão, um não-cristão convicto disse à propósito de sua comunidade: "Aqui ninguém precisa amar o próximo. Podemos deixá-lo em paz". Eis a palavra de muitos gumes em pleno funcionamento que, em última instância, revela ainda o fato de que, ao pretendermos estar voltados para os outros, estamos ainda, e sempre, voltados para nós mesmos. Impulso narcísico que certamente é matéria para outras re- flexões, no domínio da psicanálise. BIBLIOGRAFIA HAROCHE, Claudine - Faire dire, vouloir dire, P.U.L., Paris, 1984. FOUCAULT, M. - L'Ordre du Discours, Gallimard, Paris, 1971. BARTHES, R. - Leçon, Gallimard, Paris, 1976. ORLANDI, E. - "O discurso dos representantes indígenas: uma retórica do oprimido", Cadernos de Lingiiística Aplicada, IEL, Campinas, 1986. 276 A Fala de Muitos Gumes (As Formas do Silêncio)
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