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Carolina Lucchesi | Medicina UNIT Síndrome de Guillan-Barré A síndrome de Guillan-Barré (SBG), também é conhecida como “polirradiculoneuropatia inflamatória aguda”, é um epônimo consagrado utilizado para descrever um grupo de doenças do SNP, adquiridas e monofásicas, eventualmente recidivantes. Em situações infrequentes pode haver o envolvimento concomitante do sistema nervoso central. Habitualmente, a progressão máxima (nadir) se dá ao longo de quatro semanas, inflamação − objetivada por aumento dos níveis de proteína no liquor − secundária a autoimunidade e uma combinação variável de envolvimento de raízes, plexos e axônios sensitivos, motores e autonômicos. A SGB é o tipo mais frequente de paralisia flácida aguda. Manifesta-se com progressão rápida da fraqueza, déficits sensitivos e disautonomia. Breve História O trabalho de Guillain, Barré e Strohl, de 1916, é considerado marco descritivo da doença. Além da descrição clínica pormenorizada, os autores referiram aumento de proteína no liquor sem aumento da celularidade, estabelecendo o conceito moderno da doença. Vale destacar que a punção liquórica só foi introduzida em 1880, por Quincke. Epidemiologia Estudos de metanálise mostram incidências de 0,4 a 2,5 casos/100.000/ano (Finlândia vs. Curaçao), com aumentos de 20% a cada década de idade e discreto predomínio em homens. No Brasil, estima-se uma incidência de 0,4 ou mais casos/100.000/ano. A incidência aumenta constantemente com o avanço da idade. O distúrbio é ligeiramente mais frequente em homens do que em mulheres. A Polirradiculoneuropatia inflamatória desmielinizante aguda (AIDP) é a forma mais comum da doença na America do Norte e na Europa, representando até 90% dos pacientes, enquanto a neuropatia axonal motora aguda (AMAN) representa menos de 10% **Essa variação de incidência da AIDP e AMAN pode refletir diferenças no repertório imunogênico e pressões infecciosas em diferentes regiões. Manifestações Clínicas Quadro Clínico inicial: Fraqueza Parestesias Dor/lombalgia Dormência. A forma clássica da SGB é caracterizada por progressão rápida de paresia flácida, ascendente, bilateral e grosseiramente simétrica, de distal para proximal, nos membros inferiores inicialmente, atingindo o nadir, em geral, ao longo de duas semanas, mas podendo progredir até quatro semanas. Em grande parte dos casos, a doença é precedida por uma infecção ou vacinação Nas formas mais graves, o paciente desenvolve quadriplegia, com envolvimento da musculatura facial e ocasionalmente da musculatura extraocular. **Envolvimento esfincteriano também pode ocorrer, havendo retenção urinária em até 20% dos pacientes Formas agressivas também cursam com importante envolvimento autonômico cardiovascular, com episódios de taquicardia supraventricular súbita ou bradicardia associada à manipulação de tubos de intubação endotraqueal ou cateteres vesicais. Fatores Precedentes Desde os anos 1940, foi observado que cerca de dois terços dos casos de SGB eram precedidos por infecções ou outros fatores, ficando bem caracterizado o fato de que a SGB é pós-infecciosa, passando, ao longo dos anos subsequentes, a ser considerada de origem autoimune. São referidos como fatores precedentes da SBG: infecções de vias aéreas superiores, gastroenteropatias ou enteropatias agudas, vacinas e outras. Apesar da variedade de fatores precedentes referidos na literatura, apenas a infecção por cinco de tais fatores foram comprovados por meio de estudos caso- controle. São eles: Campilobacter jejuni (25%-40%), Cytomegalovirus (15%), Mycoplasma pneumoniae (5%), vírus de Epstein-Barr ou Human herpesvirus 4 (10%), Ortoherpevirus A − vírus da hepatite E ou HVE − (5%). Carolina Lucchesi | Medicina UNIT Achados no exame neurológico O exame do estado mental em geral é normal A diparesia ou diplegia facial é o achado mais comum no exame dos nervos cranianos, que também pode evidenciar papiledema (se proteinorraquia marcante) e envolvimento dos movimentos oculares. O exame da motricidade evidencia, em geral, hipo ou arreflexia dos reflexos de estiramento, associada a hipotonia e variável comprometimento motor, comumente distal e proximal, que varia de paraparesia a quadriplegia. O achado de reflexos de estiramento normais ou vivos pode ocorrer nas formas axonais e associadas à elevação do gangliosídeo GM1. Observa-se também diminuição distal da vibração e sensibilidade dolorosa, sem evidência de nível sensitivo. Variantes e subtipos Além da apresentação mais frequente e conhecida, existem apresentações clínicas diversas, algumas referenciadas como variantes regionais, cujas principais apresentações topográficas estão listadas na Tabela 81.2. Um pequeno número de pacientes desenvolve e permanece com paraparesia (variante paraparética), enquanto outros desenvolvem progressão inversa com envolvimento predominante dos membros superiores, cervical e disfagia (variante faríngeo-cervicobraquial). Apresentações clínico-neurológicas com comprometimento restrito a nervos cranianos, tais como diparesia ou diplegia facial, com ou sem envolvimento sensitivo distal dos membros superiores, ou seletivo dos movimentos oculares, são também consideradas como formas regionais ou localizadas da SGB. Mais prevalente na Ásia. Síndrome de Miller-Fischer. É caracterizada pela presença de oftalmoplegia (fraqueza uni ou bilateral assimétrica do abducente, por exemplo), arreflexia e ataxia. Ptose pode ocorrer, mas o comprometimento pupilar é raro. Pode haver paralisia facial ou associação com encefalite do tronco encefálico (neuraxite), caracterizando a chamada encefalite de Bickerstaff. Além do comprometimento da consciência (em geral, transitório), nesses pacientes, o quadro de encefalite pode levar ao aparecimento de sinais piramidais no exame neurológico. A recuperação da ataxia pode demorar 1 a 3 meses, havendo recuperação da maioria dos pacientes após seis meses. Patogenia e Fisiopatologia Síndrome de Guillain-Barré desmielinizante ou polineuropatia inflamatória desmielinizante aguda A denominação polirradiculoneuropatia desmielinizante inflamatória aguda (AIDP) resultou do Carolina Lucchesi | Medicina UNIT delineamento da associação entre a paralisia ascendente e os achados de desmielinização na eletroneuromiografia. Nos estudos, tanto no homem quanto nos referidos animais, há preferência de comprometimento das raízes nervosas. Nesses sítios e ao longo dos nervos periféricos, particularmente das fibras motoras, são encontrados infiltrados de linfócitos e macrófagos. Neles são encontrados restos de mielina em seus pericarions. AIDP é Artigo Guillain-Barré Syndrome. caracterizada por desmielinização e infiltrado de células T perivasculares e endoneurais multifocais com envolvimento irregular das raízes espinhais, troncos nervosos e segmentos nervosos distais Em algumas séries, a proporção de casos mostrou alterações imunopatológicas sugestivas de lesão do nervo desmielinizante por anticorpo e complemento Macrófagos são particularmente proeminentes em locais de extensa degradação da mielina. A remoção da mielina mediada por macrófagos (lesão dependente de contato) é marca registrada da patologia AIDP. Síndrome de Guillain-Barré axonal ou neuropatia axonal motora aguda (NAMA ou AMAN) Entendido como secundário ao fenômeno de desmielinização A SGB primariamente axonal, com comprometimento exclusivamente motor, passou a ser referida como NAMA ou AMAN, do inglês). A SGB primariamente axonal pode ocorrer após infecção por Campilobacter jejuni, em decorrência da qual se formam anticorpos contra antígenos da membrana da referida bactéria Sendo esse gangliosídeo o principal componente do axolema, o axônio passa a seralvo dos referidos anticorpos (mimetismo molecular) e outros com estrutura semelhante. A patologia da Artigo Guillain-Barré Syndrome. AMAN . Esses estudos indicaram uma escassez de inflamação de células T e evidências de deposição de anticorpos e complemento. As primeiras alterações patológicas centraram-se nos nódulos motores de Ranvier e incluíram o alongamento nodal com distorção da mielina paranodal Neuropatia axonal aguda sensitivo-motora Do mesmo modo que a NAMA (ou AMAN, em inglês), a infecção por C. jejuni pode estar associada ao desenvolvimento posterior de manifestações sensitivo-motoras axonais, em geral, com curso mais agressivo que a NAMA (degeneração axonal mais agressiva). Denomina-se essa forma de apresentação de neuropatia sensitivo-motora aguda (NASMA em português, ou AMSAM, em inglês). Diagnóstico O diagnóstico da SGB é realizado mediante suspeita clínica, associada a confirmação neurofisiológica e por exame do liquor. Eletroneuromiografia (ENMG) A ENMG, ferramenta que representa a extensão do exame neurológico, é essencial para o diagnóstico e a caracterização do tipo de SGB (se desmielinizante ou axonal). Preconiza-se o exame de pelo menos quatro nervos motores com ondas F, 3 sensitivos e reflexos H. Achados indicativos de desmielinização incluem prolongamento das latências das ondas F e dos reflexos H, bloqueios de condução (parciais ou completos), dispersão temporal, prolongamento das latências distais e diminuição das velocidades de condução. A resposta sensitiva do nervo sural, em geral, é normal. O comprometimento predominante das amplitudes dos nervos motores com preservação da condução nervosa, chegando até a inexcitabilidade nervosa consiste em alterações eletrofisiológicas encontradas na SGB axonal Exames Gerais Hemograma (para avaliar infecções e associação a outras doenças sistêmicas) Dosagem de eletrólitos (hiponatremia secundária à dor e síndrome da liberação inapropriada de hormônio antidiurético) Glicemia Dosagem de ureia Creatinina Aspartato aminotransferase (AST) e aminotransferase (ALT) Fosfatase alcalina (exames da função hepática podem estar alterados em um terço dos pacientes) Carolina Lucchesi | Medicina UNIT Velocidade de hemossedimentação e dosagem de proteína C reativa. Em regiões epidêmicas ou endêmicas, sorologias em busca de infecções, incluídas aí IgG, IgM para dengue, zika e viroses do oeste do Nilo, são recomendadas. No caso de regiões epidêmicas para zikavirose, a reação em cadeia da polimerase (PCR) específica para o zikavírus é fortemente recomendada Na dependência da anamnese, outros exames podem ser realizados para descartar condições tais como porfiria, infecção por HIV (principalmente quando há mais células no líquido cefalorraquidiano [LCR]). Na síndrome de Miller-Fischer, a dosagem dos níveis de anticorpos antiGQ1B auxilia na confirmação diagnóstica, assim como a de antiGM1 na NAMA. Exame do Líquido Cefalorraquidiano Da mesma forma que a eletroneuromiografia (ENMG), o exame do LCR, realizado na primeira semana pode ser normal. A repetição ao longo da segunda semana, particularmente ao seu final, habitualmente se associa a aumento dos níveis de proteína sem aumento do número de células. Aumentos de mais de 50 acima de 50 células/mm3 podem indicar multirradiculite infecciosa, ou infecção secundária deverá levantar suspeita de associação a infecção secundária (principalmente HIV) ou outra comorbidade (p. ex., neoplasia). RM Pode demonstrar captação de gadolínio nas raízes nervosas ou nervos cranianos em alguns pacientes. Diagnóstico diferencial A condição que comumente pode representar maior dificuldade para diferenciação diagnóstica é a mielite transversa (que também pode se associar a proteinorraquia e comprometimento esfincteriano), mas que pode ser diferenciada no exame neurológico (principalmente se o paciente apresenta comprometimento dos nervos faciais), além de não estar associada a alterações na ENMG, a não ser em situações específicas, como na neuromielite óptica. Algumas neuropatias podem simular o diagnóstico da SGB, incluindo deficiências nutricionais (simulando, principalmente, a síndrome de Miller-Fischer), intoxicação por metais pesados (arsênico, tálio, chumbo), organofosforados ou haxacarbono, quimioterapia (vincristina), porfiria, vasculites, neuromiopatia do paciente crítico, poliomielite, infecções (difteria, paralisia do carrapato, síndrome da imunodeficiência humana [AIDS], doença de Lyme). Tratamento O tratamento da SGB pode ser dividido em imunoterapia para atenuar e reverter a agressão autoimune e o tratamento de suporte e das complicações clínicas associadas. Para o tratamento da primeira, ampla evidência científica de estudos multicêntricos randomizados mostra a eficácia do tratamento com imunoglobulina ou plasmaférese Os tratamentos devem ser iniciados imediatamente após o estabelecimento do diagnóstico, antes de lesões irreversíveis (axonais) complicarem a evolução, quando se trata da forma desmielinizante, e antes de distúrbios axonais (nas formas axonais) evoluírem para lesões estruturais. Em geral, considera-se que o tratamento imunoterápico deve ser instituído em todos os pacientes que perderam a capacidade de deambular sem assistência, especialmente nas primeiras duas semanas após o início da fraqueza. A janela para resposta mais efetiva são os sete primeiros dias após a manifestação motora inicial. Imunoglobulina endovenosa na dose de 2 g/kg (dividida em cinco dias) ou quatro sessões de plasmaférese (em dias alternados) parecem apresentar eficácia semelhante, acelerando a recuperação dos déficits motores. O tratamento de suporte é também extremamente importante, sendo vital para a diminuição da mortalidade de pacientes com SGB. Em geral, os pacientes necessitam de monitorização cardiorrespiratória frequente. Aos primeiros sinais de Carolina Lucchesi | Medicina UNIT progressão da doença, com potencial comprometimento respiratório ou da musculatura bulbar, ou na vigência de disautonomias, o paciente deve ser transferido para observação em uma unidade de terapia intensiva (UTI), de preferência para obter cuidados de uma equipe com experiência no manejo da SGB ou de neurointensivistas. Profilaxia para trombose venosa profunda e de sangramentos digestivos por úlceras de stress, cuidados com o manejo vesical e de outras complicações gastrointestinais (p. ex., constipação), além de fisioterapia precoce, são essenciais. Dor persistente e importante pode afetar dois terços dos pacientes. Prognóstico A SGB ainda tem taxas de mortalidade entre 3% e 7% nos Estados Unidos e na Europa, sendo bem mais significativa em países em desenvolvimento. Na fase aguda, as causas principais de mortalidade são as complicações respiratórias e morte súbita por disautonomia. Apesar do bom prognóstico, cerca de 20% dos pacientes permanecem incapazes de deambular após seis meses. Tradicionalmente, considera-se que os principais fatores de risco associados a pior prognóstico na SGB são: idade acima de 40 anos (ou 60 anos segundo alguns estudos), diarreia ou infecção por Campilobacter jejuni, insuficiência ou dependência ventilatória, inexcitabilidade nervosa na ENMG e alta incapacitação no nadir da doença. Um pequeno número de pacientes pode apresentar recorrência da SGB no futuro ou, ainda, desenvolver PIDA.