Prévia do material em texto
1 Em seu livro Os cinco paradoxos da modernidade, Antoine Compagnon adverte para o erro, freqüentemente cometi- do, de tomarmos como sinônimas as noções de vanguar- da e modernidade.1 Se a vanguarda faz a apologia da rup- tura e do começo absoluto, elegendo o novo como crité- rio de julgamento artístico, os primeiros modernos, como Baudelaire, Courbet e Manet, não acreditavam no dogma do progresso ou na possibilidade de um desenvolvimen- to linear e progressivo da arte. Tampouco faziam da hos- tilidade enfrentada por um artista o sinal de sua glória futura. Romperam com o passado para afirmar o presen- te, sem estabelecer qualquer expectativa em relação ao futuro. Não se consideravam “à frente de seu tempo” e queriam ter seu talento reconhecido por seus contempo- râneos e pelas instituições oficiais. MODERNOS OU VANGUARDISTAS: A CONS- TRUÇÃO DO MODERNO NA ARTE BRA- SILEIRA DA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX Maria de Fátima Morethy Couto * * Maria de Fátima Morethy Couto é doutora em História da Arte pela Universidade de Paris I – Panthéon/Sorbonne, com tese sobre o pintor Antonio Bandeira (Antonio Bandeira, ses séjours parisiens et la critique d’art au Brésil). Foi bolsista de pós-doutorado da FAPESP de 1999 a 2002, com pesquisa sobre a crítica de vanguarda no Brasil e nos Estados Unidos durante os anos 1940-1950. Parte deste trabalho resultou em livro publicado pela editora da Unicamp em 2004: Por uma vanguarda nacional. A crítica brasileira em busca de uma identidade artística (1940-1960). É professora de História da Arte do Departamento de Artes Plásticas da Unicamp, líder do grupo de pesquisa Vanguarda e Modernidade nas artes no Brasil e no exterior e autora de diversos artigos sobre arte brasileira e internacional no século XX; 1 COMPAGNON, Antoine, Os cinco paradoxos da modernidade, Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. 2 Entretanto, a história da arte do século XX foi marcada pelo ideário vanguardista, sendo narrada como a busca do grau zero, do valor de choque e da inovação constante. A tradição da ruptura, nos dizeres de Octavio Paz, associou o novo à idéia de autenticidade, entendendo a citação e a referência ao passado como pastiches origi- nados pela falta de imaginação. A noção de qualidade es- tética, antes ligada ao domínio técnico, ao talento e a ques- tões de estilo transmissíveis por gerações, tornou-se indissociável da idéia de originalidade, ao menos até os anos 1950. No contexto europeu, os diversos movimen- tos que se sucederam na primeira metade do século XX consideravam suas propostas um avanço significativo no campo da experimentação de linguagem e de técnica, na implementação de estéticas baseadas na consciência do progresso de uma identidade cultural moderna. Todavia, no caso dos países periféricos, que constro- em sua história em um diálogo inevitável e muitas vezes tenso com as metrópoles, a assimilação dos ideais vanguardistas não se deu de forma imediata nem tampouco linear. As noções de originalidade e de autenticidade fo- ram, em muitos momentos, incorporadas à necessidade de construção de uma arte com características “especifi- camente” nacionais e que pudesse, em seguida, represen- tar dignamente o país no exterior. Este é o caso brasileiro, cuja entrada na modernidade cultural tem como marco simbólico a Semana de Arte Moderna, realizada entre os dias 13 e 17 de fevereiro de 1922 por um pequeno grupo de intelectuais e de artistas que pretendia libertar a arte e a literatura brasileiras das tradições acadêmicas, incorporando algumas das experiências da vanguarda européia. Organi- zada sob os auspicios da elite paulista, a programação da Semana compreendia uma exposição permanente no sa- 3 guão do Teatro Municipal com cerca de 100 obras e ses- sões literário-musicais noturnas. A grande heterogeneidade dos trabalhos apresenta- dos nas seções de pintura, escultura, gravura e arquitetura, revela que, naquele momento, o importante parecia ser tão somente “fazer algo diferente daquilo que a Academia ensinava, ou desejar fazê-lo, mesmo que a informação fosse parca e a dificuldade grande”.2 Nos dizeres de Paulo Men- des de Almeida, imperava ainda “um modernismo de fa- chada”: a Semana de Arte Moderna era o que pudesse haver de mais heterogêneo (…). Nela (…) somente num ponto houve uma quase unidade ideológica: o da necessidade de mudar. De mudar, sem que se precisasse bem o que, nem para onde".3 Contudo, se o significado da modernidade ainda era incerto e se as realizações possuíam pouca den- sidade, forçoso é reconhecer que a forte rejeição do pas- sado imediato, representado pelo Parnasianismo na poe- sia ou pelo Academismo na pintura, indicava o desejo cres- cente de acabar com nosso provincianismo artístico, de acertar o passo com a metrópole e de imprimir novos rumos à cultura brasileira. A partir de 1924, o grupo modernista trabalha com novas diretrizes estéticas, vinculadas à valorização de te- mas nacionais. Os manifestos Pau-Brasil e Antropófago im- põem-se como programas de emancipação cultural, cal- 2 AMARAL, Aracy, Artes plásticas na Semana de 22, São Paulo: Ed. 34, 1998, p. 160. 3 ALMEIDA, Paulo Mendes, De Anita ao Museu, São Paulo: Perspectiva, 1976. Sobre a seção de arquitetura, afirma Carlos Lemos que “participava quem estivesse propondo qualquer coisa diferente do que se fazia na cidade, incorrendo no erro de se confundir exótico com moderno”. Apud CAMARGOS, Márcia, Semana de 22. Entre vaias e aplausos, São Paulo: Boitempo, 2002, p. 85. Sobre as manifestações musicais da Semana, escreve José Miguel Wisnick que elas “não compartilham de nenhuma solução radical, nem se pensamos no modelo formal das vanguardas européias, nem se pensamos na compacta preocupação do nacionalismo que marca a música brasileira depois de 1922”. Apud CONTIER, Arnaldo Daraya, “O nacional na música erudita brasileira: Mário de Andrade e a questão da identidade cultural”, Fênix, Revista de História e Estudos Culturais, vol. 1, ano 1, nº 1, out/nov/dez 2004 <www.revistafenix.pro.br>. 4 cados na afirmação de nossos traços culturais, no resgate de nosso verdadeiro passado, na reabilitação da sabedoria popular e na libertação das forças escondidas da nação. Torna-se então essencial redescobrir o Brasil e criar uma arte livre de interferências externas. Dentro desse espírito de convocação, escreve Mário de Andrade a Sérgio Milliet em 1924, quando este encontrava-se em Paris, falando sobre o problema que os artistas e escritores brasileiros teriam doravante de enfrentar: "Problema atual. Problema de ser alguma coisa. E só se pode ser, sendo nacional. Nós temos o problema atual, nacional, moralizante, humano de brasileirar o Brasil. Problema atual, modernismo, repara bem porque hoje só valem artes nacionais... E nós só seremos universais o dia em que o coeficiente brasileiro nosso concorrer para a riqueza universal".4 No final da década de 1920, as aspirações nacionalis- tas prevaleceram sobre as tendências cosmopolitas inici- ais e a vanguarda brasileira passou a considerar a modernidade como o momento de debater, analisar e in- terpretar temas de interesse nacional. Procurando situar- se de outra maneira em relação à herança européia, os modernistas rejeitaram a cultura importada, lançando-se em uma pesquisa consciente e sistemática da brasilidade. Em busca de uma nova linguagem, tanto escrita quanto visual, que fornecesse subsídios à construção dessa iden- tidade tão almejada, artistas, músicos e escritores volta- ram-se para o Brasil profundo, após a fase inicial de exaltação da vida urbana. As lendas indígenas, os temas folclóricos, as festas e tradições populares transformaram- 4 Apud MORAES, Eduardo Jardim de, A Brasilidade modernista. Sua dimensão filosófica, Rio de Janeiro: Graal, 1978, p. 52. Da mesma forma, escreve Mário para Carlos Drummond de Andrade: “Nós só seremos civilizados em relação às civilizações o dia em que criarmos o ideal, a orientação brasileira. Então passaremos da fase do mimetismo pra fase da criação. E então seremos universais, porque nacionais”.Apud CONTIER, Arnaldo Daraya, op. cit. 5 se em fontes privilegiadas de inspiração do artista culto. Enquanto os pintores modernos tentavam explorar a "cor local" da paisagem brasileira e as peculiaridades dos costumes nacionais, os escritores, com o intuito de libertar o português do Brasil das convenções lusitanas, incorporavam a linguagem familiar e quotidiana do cidadão comum. Nos anos 1930, assiste-se à criação do "romance social", deliberadamente engajado, no qual seus autores procuravam colocar em evidência as contradições entre as condições de vida no sul e no norte do país. Na música, conforme ressalta Arnaldo Contier, buscava-se “elaborar o retrato sonoro do Brasil”, resgatar a “alma popular internalizada”, por meio de estudos específicos do folclore, visando opor-se assim à música estrangeira, ou à música exótica ou regional.5 Nessa mesma época, sociólogos e antropólogos de- monstraram interesse especial pelos elementos constitutivos da sociedade brasileira, inaugurando uma nova escola de pensamento sobre a formação do país. A “realidade brasileira”, transforma-se assim, segundo An- tonio Candido, em um dos “conceitos-chaves” do mo- mento.6 Retrato do Brasil, de Paulo Prado, mecenas da Se- mana de Arte Moderna, é lançado em 1928, ano da publica- ção do Manifesto Antropófago e do romance Macunaíma de Mário de Andrade. Cinco anos mais tarde, Gilberto Freyre publicará Casa grande e senzala, primeiro estudo aprofundado sobre a organização da família patriarcal brasileira. Por outro lado, a chegada ao poder de Getúlio Vargas, com a Revolução de 1930, e a implantação, em 1937, do Estado Novo, ajudaram a consolidar o projeto nacionalis- 5 CONTIER, Arnaldo Daraya, op. cit. 6 CANDIDO, Antonio, “A Revolução de 1930 e a cultura”, A Educação pela noite e outros ensaios, São Paulo: Ática, 1987, pp. 180-198. 6 ta já em curso. Preocupado em estabelecer a imagem de uma sociedade unificada e homogênea, Vargas utilizou a arte e a cultura como agentes de coesão social. Em um período no qual inexistia um mercado autônomo volta- do para a arte moderna, o governo Vargas atuou ativa- mente como mecenas, empregando diversos artistas e in- telectuais partidários dos preceitos modernistas e favore- cendo a emergência da nova arquitetura brasileira. Na era Vargas, analisa Antonio Candido ocorre a “consolidação e difusão da poética modernista, (...) a normaliza- ção e generalização dos fermentos renovadores, (...) a incorpora- ção do modernismo aos hábitos artísticos e literários. (...) incon- formismo e anticonvencionalismo tornaram-se um direito, não uma transgressão”.7 Dá-se então a passagem definitiva do projeto estético ao projeto ideológico, com o país tornando-se mais consciente das contradições de sua própria sociedade. No entanto, alerta o mesmo autor, “a preocupação absorvente com os ‘problemas’ (da mente, da alma, da sociedade) levou muitas vezes a certo desdém pela elaboração formal. Posto em absoluto primeiro plano, o ‘problema’ podia relegar para segundo a sua organização estética, vista como podendo atrapalhar eventualmente o impacto humano da obra".8 Nas artes plásticas, o critério de definição de boa arte deixa de ser relacionado ao engajamento estético- vanguardista do artista e sim “ao grau de nacionalismo ou, como preferem outros, de brasilidade presente na obra literária. (...) A qualidade da obra de arte não reside mais no seu caráter de renovação formal. Ela deve antes refletir 7 Idem. 8 Ibidem. 7 o país em que foi criada”.9 Alguns dos fundadores da modernidade no país, como Anita Malfatti e Tarsila do Amaral, desenvolviam agora pesquisas em nada relacio- nadas com as do chamado “período heróico” do movi- mento modernista. Da mesma forma, a nova geração de artistas plásticos que começou a impor-se no cenário na- cional não se reconhecia como continuadora de quaisquer ideais da primeira fase modernista. Valorizando o domí- nio artesanal do ofício de pintor, davam precedência às questões de repertório e de técnica sobre as experimenta- ções formais. Seus trabalhos eram louvados por diferen- tes críticos pelo fato de integrarem-se “nas mais legítimas tradições da pintura, ou ainda pelo desejo de “recolocar no seu exato lugar técnico-estético” os problemas da pin- tura. Paulo Mendes de Almeida, por exemplo, ao escrever sobre os artistas do Grupo Santa Helena, afirma que, na- quele momento, “já não se aceitavam todos os atos de rebeldia, tão-somente porque eram atos de rebeldia. Aci- ma de tudo o que se procurava era ‘a qualidade intrínseca dos elementos plásticos’ e, nessa busca, achavam-se to- dos imbuídos dum espírito de artesão de um nobre ofí- cio”.10 A crítica de arte modernista, formada basicamente por homens de letras, também ajudou a fundamentar o desejo de construção de uma arte autêntica, expressão do “verdadeiro” caráter brasileiro, incentivando a elaboração de uma iconografia especificamente nacional. Embora não tenha sido o principal organizador da Semana de Arte Mo- derna, Mário de Andrade tornou-se um dos personagem- chave na virada nacionalista do modernismo brasileiro ao tomar para si a tarefa de defender a independência abso- 9 MORAES, Eduardo Jardim de, op. cit., p. 108. 10 ALMEIDA, Paulo Mendes de, op. cit., pp. 124-125. 8 luta da arte produzida no país e de definir quais seriam as formas de expressão artística mais adequadas a nossa rea- lidade. Contrário à busca de uma linguagem universal ca- racterística das vanguardas, Mário de Andrade acreditava que o verdadeiro artista - fosse ele pintor, escritor ou músico - deveria ser o representante de uma cultura local. Nesse sentido, rejeitava com vigor a pura expressão do gênio criador, o experimentalismo gratuito e o formalismo acentuado das correntes abstratas. Em suas análises, evi- denciava a necessidade de comunicação da obra de arte e preconizava a utilização, pelo artista culto, de temas fol- clóricos e populares como forma de suprimir o abismo existente entre arte erudita e popular, entre as elites domi- nantes e o povo. Avesso aos excessos vanguardistas, Mário de Andrade, no entanto, tampouco se deixou seduzir pelos apelos do academismo ou do partidarismo. Se a ênfase desmesurada no caráter subjetivo do fazer artístico enco- bria, a seu ver, o destino socializador da arte, a submissão da arte a regras pré-estabelecidas ou a propósitos ideoló- gicos resultava fatalmente em seu empobrecimento. Preo- cupado em elaborar uma definição de arte moderna que conciliasse critérios de natureza social e estética, clamava por uma arte ao alcance do público, “uma arte que impli- casse ao mesmo tempo uma liberação em relação à escra- vidão acadêmica, e uma disciplina que desarmasse os es- píritos mais conservadores” e que impedisse que a arte “desaparecesse sob a inflação do eu”.11 Um texto-chave para a compreensão de seu pensa- mento estético é “O artista e o artesão”, tema da aula inaugural de seus cursos de Filosofia e História da Arte na 11 AGUILAR, Nelson, “Mário de Andrade: percurso crítico de Anita a Vieira da Silva”, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, vol. 30, 1989, pp. 129-147. 9 Universidade do Distrito Federal, em 1938.12 Nele, Mário revela sua preocupação com a dimensão artesanal envol- vida na arte, acreditando que residia aí o elemento socializante do trabalho do artista. O completo domínio, pelo artista, de seus instrumentos de trabalho, proporcio- naria-lhe uma firmeza moral capaz de levá-lo a superar o individualismo exacerbado dos tempos modernos. Tal superação, a seu ver, só seria plenamente alcançada por meio da submissão do artista aos ideais da coletividade - o que implicava uma renúncia a pesquisas formais de inte- resse individual - e por meio de um respeito às determina- ções de ordem material da arte - no caso de um pintor à “realidade do quadro”. A arte, acreditava Mário de Andrade é uma expressão interessada da sociedade e deve ter uma função maior do que a simples criação do belo ou expres- são do subjetivo. Valorizando a dimensão ética do proces-so criador, pregava que qualquer “desvio individualista” deveria ser reprimido pois “é a obra, e não o artista, o critério de definição da arte”. Nessa ótica, o tema tem valor primordial e representa uma mensagem imprescin- dível. Como afirma Eduardo Jardim de Moraes em estu- do dedicado ao escritor, “a obra do teórico Mário de Andrade é um esforço para pôr em xeque a doutrina ro- mântica do gênio e sublinhar a função da arte na vida das coletividades”.13 O núcleo de sua teoria da arte, ainda se- gundo Moraes, reside na “afirmação da dimensão integradora e social da arte aliada a um conceito de técni- ca artística baseado no respeito às exigências materiais nela contidas”.14 12 ANDRADE, Mário de, “O artista e o artesão”, O Baile das quatro artes, São Paulo: Livraria Martins Editora, 1975, pp. 9-33. 13 MORAES, Eduardo Jardim de, Limites do moderno. O pensamento estético de Mario de Andrade, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p. 88. 14 Idem, pp. 44-45. 10 Nos anos 1930, Mário elege Cândido Portinari como o artista moderno por excelência por conseguir conjugar sua visão humanista e seu interesse por questões sociais a uma intensa pesquisa plástica. Em ensaio datado de 1939, quando o artista já desfrutava de fama nacional devido ao prêmio recebido na Exposição Internacional de Arte Moderna organizada pelo Instituto Carnegie de Pittsburgh,15 o crí- tico louva sua “instintiva humanidade”, que "não lhe per- mite perder-se em virtuosismos” ou em “fantasias pesso- ais excitantes”, definindo-o como “o mais moderno dos antigos” , um “buscador inquieto e constante”, porém “dono de um saber técnico tradicional”. Ele é um “mode- lo de artista integralmente dedicado à sua arte”, um “vi- goroso exemplo moral”, para quem “não tem interesse a originalidade só pelo gosto de ser original”.16 Até o final de sua vida, Mário de Andrade continuou a considerar a arte como uma força viva da socidade e a defender a produção de uma arte brasileira autônoma e voltada para o coletivo. Em sua célebre conferência sobre o modernismo brasileiro pronunciada em 1942, ele de- plorou o ímpeto destrutivo do movimento que ajudara a fundar e falou sobre a importância da função social da arte, afirmando crer que: “[nós] modernistas da Semana de Arte Moderna não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição. O homem atravessa uma fase integralmente política da humanidade. Nunca jamais ele foi tão momentâneo como agora. Os abstencionismos e os valores eternos podem ficar para depois. E apesar da nossa atualidade, da nossa nacionalidade, uma coisa não ajudamos verdadeiramente, duma coisa não participamos: o amelhoramento 15 Portinari foi o primeiro artista modernista brasileiro a receber um prêmio no exterior. Em 1935, ele recebeu uma menção honrosa por sua tela Café na citada exposição. 16 ANDRADE, Mário de, “Cândido Portinari”, O Baile das quatro artes, São Paulo: Livraria Martins Editora, 1975, pp. 124-134. 11 político-social do homem. E esta é a essência mesma da nossa idade”.17 Mário de Andrade morre em fevereiro de 1945, me- ses antes do fim o governo totalitário de Getúlio Vargas. Suas idéias, porém, sobreviveram à sua morte, já que a arte brasileira, ao longo dos anos 1940, seguiu seu rumo buscando sua independência em face dos pólos hegemônicos europeus e desprezando as experiências das vanguardas do século XX sobre a autonomia dos elemen- tos pictóricos. É com base nessa efetiva rejeição de “inter- ferências externas” e nessa excessiva preocupação com o poder de comunicação da obra de arte predominante no meio cultural brasileiro que Nelson Aguilar, em artigo bas- tante esclaredor sobre as idéias de Mário de Andrade, intitulado “Mário de Andrade: percurso crítico de Anita a Vieira da Silva”, coloca em dúvida a “modernidade” do movimento modernista brasileiro.18 Se a grande questão da pintura ocidental na primeira metade do século XX, afirma Nelson Aguilar, foi a criação consciente de um es- paço pictural ativo, concebido a partir dos elementos for- mais - como cores, linhas e planos -, o modernismo brasi- leiro foi marcado pelo apego à dimensão descritiva, narra- tiva, da obra, assim como pela exaltação de temas ligados à “realidade nacional”. A consciência do problema do es- paço inaugurada na Europa no final do século XIX so- mente chega ao Brasil nos anos 1950. Na opinião de Nelson Aguilar, os escritos de Mário de Andrade forneceram a legitimação teórica necessária à facção figurativa amplamente dominante no Brasil até os anos 1950, graças a uma configuração política que teve 17 ANDRADE, Mário de Andrade, “O Movimento Modernista”, Aspectos da literatura brasileira, São Paulo: Livraria Martins Editora, 1974, pp. 252 e 255. 18 AGUILAR, Nelson, op. cit. 12 seu momento maior durante o governo Vargas. Ao co- mentar a conferência de Mário de Andrade, “O artista e o artesão”, citada anteriormente, Aguilar afirma que: “estamos muito distantes da teoria dos elementos picturais dos fundadores da modernidade européia e temos a impressão que lidamos com uma idealização da Idade Média heróica dos construtores de catedrais, onde predominava o anonimato incorruptível’. Considerando a arte contemporânea (moderna) em crise, crise essa decorrente da exacerbação do subjetivo, Mário de Andrade insiste, segundo Aguilar, no sacrifício do artista erudito em favor da obra e de uma comunica- ção mais funcional com a coletividade, transformando assim o artista em um “operário da arte”. “A solução pro- posta por Mário para abolir o fosso entre arte erudita e popular”, afirma o autor do artigo, “passa pela despersonalização do artista em favor do contato com o povo”. O que importa “é a matéria, o assunto do qua- dro”. É por essa razão, afirma o autor, que Mário de Andrade vê em Portinari o paradigma do pintor moderno pois nele o conteúdo prevalece sobre a forma e a tarefa de missionário sobrepuja a do pintor. Aguilar denuncia ainda em Mário de Andrade uma visão evolucionista do proces- so histórico, uma visão etapista da arte pois, segundo seu raciocínio, “é depois da fase nacionalista que se terá aces- so ao universal”. Também para Ronaldo Brito o movimento moder- nista brasileiro não foi capaz de inserir o país na modernidade. Em sua opinião, “a arte moderna, em seus conceitos fundamentais, só veio de fato a ser compreendida e praticada [no Brasil] a partir da vanguarda construtiva. Foi na década de 50 que o meio da arte brasileira começou a lidar com os conceitos da arte moderna e as implicações 13 deles advindas, seja crítica ou produtivamente. (…) Até [então], não havia uma arte moderna no Brasil: não se tinha compreendido ainda de todo as operações levadas a efeito pelo cubismo e a partir dele”.19 Em outro estudo, Brito remete ao exemplo de Tarsila para criticar nosso modernismo contido e tardio, marca- do por “ambigüidades e inadequações”: “Tarsila usava os esquemas cubistas para “pintar o Brasil”, projetá-lo num espaço ideal até certo ponto tradicional. Há aí, inegavel- mente, uma dose de ingenuidade”, afirma.20 Para o crítico carioca, o caráter literário da ideologia da brasilidade, seu apego ao verbo dentro da melhor tradição portuguesa, “impôs aos nossos artistas aquilo que a modernidade eu- ropéia desde Manet repudiava - o primado do tema, a su- jeição da pintura ao assunto”. Tendo como imperativo dar um rosto, uma feição ao Brasil da época, seria impos- sível aos modernistas “descer às camadas mais profundas da visualidade, investigar suas articulações mais abstratas”. E Brito conclui: “Apesar de todo escândalo e toda a crise, as vanguardas faziam sentido na Europa. Nós, ao contrário, não fazíamos sentido: a nossa razão de ser era a Europa. Por isto buscávamos um sentido com a nossa vanguarda - a afirmação da identidade nacional, a brasilidade. (…). Enquanto as vanguardas européias se empenhavam em dissolver identidades e derrubar os ícones da tradição, a vanguarda brasileira se esforçava para assumir as condições locais, caracterizá- las, enfim. Este era o nosso Ser moderno”.21 Já a historiadoraAnnateresa Fabris se propõe a “re- pensar o significado da arte moderna entre nós nas pri- 19 BRITO, Ronaldo, Neoconcretismo, vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro, São Paulo: Cosac & Naify Edições, 1999, p. 36. 20 BRITO, Ronaldo, “O trauma do moderno”, in Projeto Arte Brasileira. Modernismo, Rio de Janeiro: Funarte, 1986, pp. 14-22. 21 BRITO, Ronaldo, op. cit. 14 meiras décadas do século XX”. Em diversos artigos dedi- cados a esse assunto, ela chama a atenção para a impor- tância de se compreender a modernidade brasileira a par- tir de uma “acepção peculiar e local, pensada fora do âm- bito das propostas vanguardistas européias”. Ela entende que: “a arte brasileira não é moderna no sentido europeu, por não ter criado uma nova noção de espaço e por não ter abdicado do referente, mas [deve ser] considerada localmente moderna pela erosão que vai promovendo da disciplina acadêmica e pelo grau de deformação que vai incorporando ao seu léxico”.22 Ela parece responder, assim, a todos aqueles que, como Aguilar ou Brito, ressaltam o caráter retrógrado da arte moderna brasileira por esta ter ignorado ou despreza- do as experiências mais radicais das vanguardas européias. Fabris, todavia, concorda com muitas das argumen- tações reproduzidas acima ao afirmar, por exemplo, que “os modernistas brasileiros estavam elaborando uma vi- são crítica da arte moderna, não raro eivada de categorias acadêmicas, quando não de equívocos”, e que estavam em busca de “uma arte nacional auto-suficiente, diante da qual a pesquisa de novos meios de expressão não se afigurava tão necessária ou urgente”. No início da década de 1920, afirma ainda autora, “o termo moderno era uma espécie de talismã para o grupo [modernista], sem estar, no en- tanto, claramente determinado”. (…) O significado e o alcance da arte moderna não eram claros (…) e as catego- rias com as quais [os modernistas] operavam eram, não raro, antimodernas”.23 Nesse sentido, ela aponta a admi- 22 FABRIS, Annateresa, “Modernismo: nacionalismo e engajamento”. In Nelson Aguilar (org.), Bienal Brasil século XX, São Paulo: Fundação Bienal, 1994, p. 72-83. 23 FABRIS, Annateresa, “Estratégias modernistas”. In BASTAZIN, Vera (org.), A Semana de Arte Moderna: desdobramentos (1922-1992), São Paulo: Educ, 1992, pp. 49-56. 15 ração do grupo por Brecheret como sintomática do des- conhecimento das categorias que regem a arte e a crítica modernas. “Ao postularem a excepcionalidade da expressão de Brecheret para o ambiente brasileiro, Menotti Del Picchia e Oswald de Andrade (…) enfatizam qualidades tradicionais e até mesmo acadêmicas. Valorizam a técnica, conferem primazia ao tema, buscam pontos de referência e de legitimação na história da arte, enumeram categorias que remetem a uma visão literária, atenta sobretudo à intenção expressiva enquanto efeito”.24 A historiadora ressalta que para os modernistas bra- sileiros, contrários ao ensinamento acadêmico, “a presen- ça do princípio de estilização parecia suficiente para defi- nir a inovação e o afastamento dos princípios realistas e naturalistas”. A modernidade defendida por Mário de Andrade e seus colegas se dá, portanto, em um campo no qual a representação do visível não é substituída pela abs- tração do referente e onde a arte é concebida primordial- mente como comunicação e entendimento entre os ho- mens. “A realidade nacional, enquanto adesão à definição de uma tipologia brasileira na paisagem e nos persona- gens”, afirma ainda Annateresa Fabris, “é o elemento cen- tral da produção artística e do debate crítico modernista”. Diferentemente dos outros autores citados, Fabris, porém, entende que “se a arte produzida pelo modernismo [brasileiro] não é moderna no sentido das vanguardas européias, é necessário compreender e não somente apontar para tal diferença, pois nela reside um modo de recepção que pode ser a chave e acesso às peculiaridades do fenômeno brasileiro”.25 24 Idem. 25 FABRIS, Annateresa, “Figuras do moderno (possível)”. In SCHWARTZ, Jorge (org.), Da Antropofagia a Brasília: Brasil, 1920-1950, São Paulo: FAAP / Cosac & Naify, 2002, pp. 41-51. 16 A seu ver, “o que o momento inaugural do moder- nismo busca não é uma modernidade abstrata e universal mas uma modernidade com sotaque, que tenta adequar, ao próprio meio e às próprias possibilidades linguísticas, as diferentes propostas da arte moderna”. Essa discussão nos remete para a diferenciação proposta por Compagnon: se certamente não fomos vanguardistas no sentido euro- peu, cosmopolita, talvez tenhamos tentado ser modernos dentro do possível, em nossa busca por romper com o passado acadêmico, que ainda nos assombrava, e acabar com a hegemonia cultural da metrópole, que tanto nos seduzia.