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1 FACULDADE JESUÍTA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA - FAJE Avaliação mensal do curso de “Introdução à Filosofia” Abril de 2021 Data limite da entrega: dia 5 de maio de 2021 E-mail para envio: a.tavaresop@gmail.com A avaliação constitui-se de uma análise, em cinco passos, de um dos dois textos propostos. Estes cinco passos baseiam-se naqueles propostos por Juvenal Savian Filho em seu livro “Argumentação: a ferramenta do filosofar” (Martins Fontes, 2010). Abaixo, cada um dos cinco passos da análise para esta avaliação: 1. Identifique o tema central do texto, e descreva-o em poucas palavras; 2. Apresente os termos-chave do texto (entre três e cinco), bem como o sentido de algum termo que lhe seja novo; 3. Apresente os argumentos ou raciocínios (pressupostos, premissas, conclusões) presentes no texto escolhido; 4. No próprio texto, destaque, com cores, diferentes, os movimentos do texto; 5. Em um breve parágrafo, descreva o contexto do autor. Neste trabalho, serão analisados os seguintes elementos: a) fidelidade ao pensamento expresso no escrito escolhido para análise (4 pontos); 2) clareza e concatenação dos textos produzidos (4 pontos); 3) pesquisa realizada para produzir o quinto passo (3 pontos). Os dois textos propostos são: 1) O primeiro capítulo do Monológio, de Anselmo da Cantuária; 2) Trecho da primeira das Cinco Meditações sobre a Beleza, de François Cheng. 2 Do Monológio, de Anselmo da Cantuária (século XII) Capítulo I: Que há algo sumamente bom, grande e superior a tudo o que existe Se houvesse alguém que, pelo fato de nunca ter ouvido falar nisso ou por não acreditar, ignorasse existir uma natureza superior a tudo o que existe – a única suficiente por si mesma, em sua felicidade – e que concede, por sua bondade, à criatura ser aquilo que é, permitindo-lhe, inclusive, ser boa sob algum aspecto; se esse alguém ignorasse isso e muitas outras coisas, nas quais nós cremos com certeza acerca de Deus e das criaturas, penso que tal pessoa, embora de inteligência medíocre, possa chegar a convencer-se, ao menos em grande parte, dessas coisas, usando apenas a razão. E poderá fazê-lo de várias maneiras. Eu lhe indicarei apenas uma, que acho ser a mais fácil. Como todos aspiram a fruir das coisas que julgam boas, nada mais provável que essa pessoa venha, um dia, a dirigir sua mente para a busca do ser pelo qual são boas as coisas que ela deseja só porque assim as julga e, desta maneira, guiada pela razão e ajudada pelo ser que busca, consiga chegar, através do raciocínio, às coisas que irracionalmente ignoram1. E se, nesta obra, disser algo que não está demonstrado por uma autoridade maior2, quero que se entenda de maneira que, apesar de ter sido deduzido como consequência necessária por causa das razões que me pareciam certas, nem por isso deve-se considerar absolutamente necessário, mas somente que assim a coisa me parece, no momento. É fácil que alguém pense em seu íntimo: “Como há um número imenso de bens, cuja múltipla diversidade experimenta-se pelos sentidos corpóreos e discerne-se pela razão, será que devo acreditar que existe um ser único pelo qual, somente, são boas todas as coisas que são boas ou, ao contrário, umas delas são boas por um motivo e, outras, por outro motivo?”3 Para qualquer um que queira prestar atenção, é certo e evidente que todas as coisas, entre as quais haja uma relação, de mais ou menos ou de igualdade, são assim em virtude de “algo” que não é diferente, mas o mesmo, em todas elas, não interessando se 1 Traduzi, quanto possível, ao pé da letra, esta passagem pouco clara de Anselmo, com a qual, possivelmente, ele quis dizer que, racionalmente, podem ser conhecidas as coisas que antes eram ignoraras contra toda razão: um pouco de reflexão as teria descoberto com facilidade (nota do tradutor). 2 As Sagradas Escrituras (nota do tradutor). 3 Explícita distinção entre experiência sensível e conhecimento racional (nota do tradutor). 3 aquilo que se encontra nas coisas esteja em proporção igual ou desigual4. Com efeito, todas as coisas que são ditas justas entre si ou, mais ou menos justas, em relação a outras, não podem ser entendidas dessa forma a não ser em relação à justiça, que não é algo diferente nas diferentes coisas. Sendo, portanto, certo que todas as coisas, quando comparadas entre si, apresentam-se boas no mesmo grau ou em grau diferente, é necessário que elas sejam boas por um “algo” que é o mesmo em todas, embora às vezes pareçam sê-lo por um motivo e, outras, por outro. Um cavalo, por exemplo, parece ser bom por dois motivos: por ser forte e por ser veloz. Mas, embora o cavalo seja bom pela força e pela velocidade, não parece, com isso, que a força e a velocidade possam ser o mesmo. Ainda: se o cavalo é bom enquanto é forte e veloz, então por que um ladrão, forte e veloz, é mau? Evidentemente deve-se dizer que o ladrão é mau porque danoso e o cavalo bom, porque útil5. Na verdade, nada sói julgar-se bom senão por alguma utilidade, como acontece com a saúde e aquilo que lhe diz respeito; ou por sua honestidade, como é o caso da beleza e daquilo que a fomenta. Mas, como esta demonstração não pode ser destruída por nenhum meio, é necessário deduzir, também, que tudo o que é útil e honesto, se realmente é bom, é bom por aquilo pelo qual é bom tudo o que é bom. Quem poderia pensar, entretanto, que não seja um grande bem aquilo pelo qual todas as coisas são boas? De fato, ele é bom por si mesmo, pois todos os outros bens derivam dele. Por isso, conclui-se que os restantes bens não procedem de si mesmos e, sim, de outro e que ele é o único bem por si mesmo. Mas, o bem que deriva de outro não é igual ao que é bom por si, nem maior do que ele. Único bem supremo só será, portanto, aquele que é soberanamente bom por si, porque somente aquilo que supera aos outros de tal maneira a não ter nem igual nem superior é supremo. Ora, o que é soberanamente bom também é soberanamente grande. Existe, então, alguma coisa que é soberanamente grande, vale dizer, sumamente superior a todas as outras que existem. SANTO ANSELMO. Monológio in SANTO ANSELMO; ABELARDO. Monológio, Proslógio, A Verdade, O Gramático; Lógica para Principiantes, A História das Minhas Calamidades. Trad.: Angelo Ricci; Ruy Afonso da Costa Nunes. São Paulo: Abril Cultural (col. “Os Pensadores”), 1979, p. 7-9. 4 O predicado que expressa o grau diferente de uma qualidade das coisas implica um quid em que elas se encontram: assim, as coisas que são boas por motivos diferentes devem convergir na bondade (nota do tradutor). 5 A força e a bondade são qualidades boas quer no cavalo, quer no ladrão. Ruim é o ladrão que faz delas uso impróprio. 4 Das Cinco Meditações sobre a Beleza, de François Cheng (séc. XX-XXI) Primeira Meditação Nestes tempos de misérias onipresentes, de violências cegas, de catástrofes naturais ou ecológicas, falar de beleza poderá parecer incoerente, inconveniente, até mesmo provocador. Quase um escândalo. Mas justamente por isso, vê-se que, do lado oposto ao mal, a beleza se situa bem na outra ponta de uma realidade que devemos encarar. Estou convencido de que temos por tarefa urgente, e permanente, encarar estes dois mistérios que constituem as extremidades do universo vivo: de um lado, o mal; do outro, a beleza. O mal, sabemos o que é, sobretudo aquele que o homem inflige ao homem. Por causa de sua inteligência e de sua liberdade, quando o homem cai no ódio e na crueldade, ele pode cavar, por assim dizer, abismos sem fundo, o que nenhum animal, mesmo o mais feroz, não chega a fazer. Temos aqui um mistério que atormenta nossa consciência, nela causando uma ferida aparentemente incurável. A beleza nós também sabemos o que ela é. Mesmo que nela pouco pensemos, não deixamos, contudo, de ser tomados de estupor: o universo não é obrigado a ser beloe, todavia, ele o é. À luz desta constatação, a beleza do mundo, apesar das calamidades, aparece-nos, igualmente, como um enigma. Que significa a existência da beleza para a nossa própria existência? Perante o mal, o que significa a frase de Dostoiévski: “A beleza salvará o mundo”6? O mal, a beleza, eis dois desafios que devemos encarar. Não nos escapa o fato de que o mal e a beleza não se situam somente em antípodas: por vezes, eles estão imbricados. Afinal, o mal pode disfarçar-se de beleza, tornando-se instrumento de engano, de dominação e de morte. Mas, uma beleza que não estivesse fundada sobre o bem, seria ainda “bela”? A verdadeira beleza não seria também um bem? Intuitivamente, sabemos que distinguir a verdadeira beleza da falsa faz parte de nossa tarefa. O que está em jogo é nada menos que a verdade do destino humano, um destino que implica os dados fundamentais de nossa liberdade. Pode ser que valha a pena que eu me demore na razão mais íntima que me leva a tratar da questão da beleza e também a não negligenciar aquela do mal. Ainda muito cedo, quando eu ainda era criança, no espaço de três ou quatro anos, fui literalmente “abalado” por estes dois fenômenos extremos. Primeiro, a beleza. 6 DOSTOIÉVSKI, Fiodor. O Idiota. Volume II. Trad.: Maria Franco. Lisboa: Estúdios Cor, 1969, p. 11-114. 5 Originários da Província de Jiangxi, onde se encontra o Monte Lu, meus pais nos levavam até lá no verão. O Monte Lu, que pertence a uma cadeia de montanhas, tem cerca de mil e quinhentos metros de altura, dominando de um lado o Rio Yangtzé e do outro, o Lago Poyang. Por sua situação excepcional, ele é considerado como um dos mais belos locais da China. Além disso, há cerca de quinze séculos, é povoado por eremitas, religiosos, poetas e pintores. Descoberto pelos ocidentais, notadamente por missionários protestantes, por volta do final do século XIX, tornou-se local de casas de campo. Estas estão agrupadas ao redor de uma colina central, pontilhada por chalés e charmosas cabanas. Apesar dos antigos vestígios e destas moradias modernas, o Monte Lu continua a exercer seu poder de fascínio, pois as montanhas do entorno conservam sua beleza original. Uma beleza que a tradição qualifica como misteriosa, a ponto de em chinês a expressão “beleza do Monte Lu” significar “um mistério insondável”. Não irei descrever esta beleza. Digamos que ela é devida à sua situação excepcional, há pouco evocada, que oferece sempre renovadas perspectivas e jogos de luz infinitos. Ela se deve, também, à presença de brumas e nuvens que cobrem e descobrem, a cada vez, o rosto da montanha, os fantásticos rochedos misturados a uma vegetação densa e variada, às cachoeiras e cascatas que fazem ouvir, ao longo dos dias e das estações, uma música ininterrupta. Nas noites de verão, nas quais efervescem os vagalumes, entre o rio e a Via Láctea, a montanha exala seus perfumes, vindos de todas as essências; inebriados, os animais selvagens despertos se dão à claridade lunar, as serpentes exibem suas sedas, as rãs expõe suas pérolas, os pássaros, entre dois gritos, lançam flechas de jais... (...) Como não ouvir a mensagem que ressoa em mim: a beleza existe! Ainda no seio deste mundo quase original, esta mensagem será logo confirmada pela beleza do corpo humano, mais precisamente aquela do corpo feminino. Neste sentido, aconteceu que eu passasse por jovens ocidentais em trajes de banho. Elas iam até a piscina formada pelas cascadas para ali se banharem. Os trajes da época eram bastante pudicos. Mas a visão dos ombros nus, das pernas nuas, sob luz do verão, que choque! E os risos de alegria destas moças que respondiam às cascatas! Parece que a Natureza encontrou aí uma linguagem específica, capaz de celebrar. Celebrar: é isto. É preciso que os humanos façam algo com esta beleza que a Natureza lhes oferece. (...). Estávamos em finais de 1936. Menos de um ano depois, eclodirá a guerra sino- japonesa. Os invasores japoneses pensavam que seria uma guerra curta. A resistência 6 chinesa os surpreendeu. Quando, ao fim de vários meses, eles tomaram a capital, ocorreu o terrível massacre de Nanquim. Eu acabara de completar oito anos. Em dois ou três meses, o exército japonês, desenfreado, levou à morte trezentas mil pessoas, sob formas variadas e cruéis: metralhando as multidões em fuga, realizando execuções massivas, por meio de decapitações com o sabre, precipitando grupos inteiros de inocentes em largas valas, onde eram enterrados vivos. Outras cenas de horror: soldados chineses feitos prisioneiros amarrados a postes, para o exercício, com baionetas, dos soldados japoneses. Estes atacavam-nos sucessivamente. Um por vez, cada soldado saia da fila, preparava seu golpe vociferando e plantava sua baioneta na carne viva... Tão horrível quanto foi a sorte reservada às mulheres. Estupros individuais, estupros coletivos, seguidos muitas vezes de mutilações e assassinatos. Uma das manias dos soldados estupradores: fotografar a mulher ou as mulheres violadas, que obrigavam a posar a seu lado, em pé e nuas. Algumas destas fotos foram publicadas nos relatórios chineses que denunciaram as atrocidades japonesas. Desde então, na consciência de uma criança de oito anos que eu era, à imagem da beleza ideal, aquela presente em A Fonte, de Ingres, vem unir-se, em supressão, aquela da mulher enlameada, ferida em seu mais íntimo. Estes dois fenômenos relevantes, extremos, tomam conta de minha sensibilidade, desde aquele momento. Ser-me-á fácil, mais tarde, dar-me conta de que o mal e a beleza constituem as duas extremidades do universo vivo, ou seja, do real. Agora sei que, doravante, precisarei ter em vista meus dois objetos: ao tratar somente de um, negligenciando o outro, minha verdade nunca será válida. Compreendo instintivamente que sem a beleza a vida provavelmente não valha a pena de ser vivida e, por outro lado, que uma certa forma de mal venha justamente do uso terrivelmente pervertido que se possa fazer da beleza. CHENG, François. Cinq méditations sur la beauté (nouvelle édition). Paris: Albin Michel, 2017, p. 8-13 (trecho traduzido por André Luís Tavares, op).