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Frames (Diones Camargo)

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Prévia do material em texto

F.R.A.M.E.S. 
 
de Diones Camargo 
 
(versão: abril 2016) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Copyright by Diones Camargo (2014) | dionescamargo@yahoo.com.br | Todos os direitos reservados |+55(51)9238 8164 
 
mailto:dionescamargo@yahoo.com.br
2 
 
F.RA.M.E.S foi lançada em Belo Horizonte (MG), em 27 de abril de 2014, durante a abertura 
do 3º Janela de Dramaturgia, no espaço CentoeQuatro. Criada a convite dos organizadores da 
mostra, a peça teve como conceito as antigas mesas de edição de cinema, onde a ordem das 
cenas podem ser alteradas ou mesmo excluídas conforme o interesse dos atores e diretores, 
podendo também, durante as temporadas, serem reorganizadas na sequencia original sugerida 
no texto. Até o momento a peça permanece inédita nos palcos. 
 
 
Todos os direitos reservados. Todos os direitos de comunicação ao público (direitos de 
representação, de recitação em público, de distribuição e de radiodifusão, entre outros) 
somente podem ser obtidos junto ao autor, sendo necessária sua aprovação prévia por 
escrito. O texto da peça está à disposição de produtores e editores exclusivamente para 
fins de leitura e avaliação, conforme as regras do respectivo órgão regulamentador dos 
direitos autorais no Brasil. No caso de utilização do texto para quaisquer outros fins, é 
necessária a aprovação prévia por escrito por parte do autor. Isso se aplica em especial a 
sua reprodução, difusão, processamento eletrônico, transmissão a terceiros e gravação. O 
texto da peça teatral é considerado como inédito, no sentido da Lei do Direito Autoral, até 
a data da pré-estreia da peça ou da sua publicação em território nacional. Não é permitido, 
antes desta data, divulgar a obra integral ou parcialmente ou divulgar publicamente seu 
conteúdo bem como ocupar-se da peça publicamente. A sua utilização sem a autorização do 
responsável pela obra representa uma violação do direito autoral e pode acarretar 
consequências em termos de responsabilidade civil ou penal. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
3 
 
ABERTURA: 
 
 
A Garçonete está limpando um balcão de bar. Sobre ele há um telefone. 
 
 
GARÇONETE: Mais uma noite. Outra chance de repetir tudo de um jeito diferente. Este 
será o espaço para que todos se mostrem como realmente são. Mas, afinal, o que nós 
somos? Eu sou um ator, vocês o público, dirão alguns. Mas será mesmo? Quem está 
representando, afinal? Eu aqui, dizendo estas palavras que não são minhas, ou vocês aí, 
sentados lado a lado, com a mão pousada no braço do companheiro, mas com a cabeça 
aprisionada em outro lugar – um lugar mais quente e mais vivo talvez...? Eu suspeito que 
uma pequena pista para esse enigma esteja nesta história que vou lhes contar: 
 
certa manhã, na escola, quando eu tinha uns cinco, seis anos, a professora perguntou se 
alguém ali sabia o que era teatro. Eu nunca havia entrado num teatro antes, nem sequer 
assistido a qualquer peça, mas mesmo assim eu me atrevi a responder: “teatro é um cinema 
de verdade!”, eu disse. As outras crianças caíram na gargalhada, mas a professora, 
complacente que era, disse que eu estava certa. “Teatro é um cinema de verdade”, ela 
repetiu. Que bobagem! Muita coisa se passou desde aquela manhã, mas hoje eu sei que 
teatro e cinema são coisas bem diferentes. 
 
Hoje eu entendo que teatro não pode ser “de verdade”, porque aqui tal qualidade não 
existe. Aqui há apenas a representação, como numa casa de espelhos onde alguém espalha 
seus rostos e os vê se transformarem em formas distintas. 
Portanto nesta noite eu serei tantos quantos vocês forem. Eu serei todos vocês e vocês 
serão cada um dos que estão aqui em cima, como num infindável salão de espelhos, uma 
celebração de tudo que é ilusório – o amor, o ódio, e todas essas mesquinharias que nos 
ensinam desde sempre e que estraga a vida de qualquer um. Assim, o que acontecer aqui 
dentro hoje não passará de um estilhaço, um fragmento da alucinação coletiva a que somos 
obrigados a enfrentar dia após dia; pedacinhos do grande filme que – ao contrário do que 
acreditam alguns – não será exibido nos últimos momentos da nossa vida, mas que 
permanecerão caídos na sala de montagem até que alguém venha e varra tudo pra debaixo 
do tapete do esquecimento. Esse é o nosso destino, afinal – o meu e o de cada um que está 
aqui hoje. Quer vocês queiram, quer não. Portanto, sejam bem-vindos. (Pega um copo e o 
atira contra a parede, espatifando-o). 
 
 
 
CENA 1 
 
 
No set, entre uma cena e outra de um filme, um homem e uma mulher se encontram. 
 
 
ATOR 1: O que foi aquilo ontem? 
 
ATRIZ: Como assim?! 
 
4 
 
ATOR 1: Por que você saiu com tanta pressa? 
 
ATRIZ: Olha, eu não quero falar sobre isso agora, tá bom? Não é o momento. Depois a 
gente conversa... 
 
ATOR 1: Só me diz o que aconteceu. Eu fiz alguma coisa? Eu disse algo que te magoou, 
foi isso? 
 
ATRIZ: Não, você não disse nada. Na verdade, eu é que devia ter dito, mas não tive 
coragem. 
 
ATOR 1: Dito o quê? 
 
ATRIZ: O que é que se fala quando se está numa situação como a nossa? 
 
ATOR 1: Não sei. Você é quem tem que me dizer. 
 
ATRIZ: Esquece. 
 
ATOR 1: Não, espera! Você pode ser mais específica, por favor? 
 
ATRIZ: Ah, claro, posso sim... Sendo bem específica: a gente tem que parar com isso! 
Sendo mais específica ainda: a gente já parou. 
 
ATOR 1: Desde quando? 
 
ATRIZ: Desde ontem, quando eu saí do seu apartamento. 
 
ATOR 1: E por quê? 
 
ATRIZ: Porque não dá mais pra continuar assim. 
 
ATOR 1: Ele percebeu alguma coisa?! 
 
ATRIZ: Sim. Quer dizer, não. Não sei! A única coisa que sei é que não é só isso... 
 
ATOR 1: Então o que é? 
 
ATRIZ: É simplesmente porque a gente não pode passar o resto da vida assim. Uma hora 
esse filme vai acabar e a gente vai voltar pra vida real. E nós dois sabemos que não 
queremos complicações na vida real, não sabemos? 
 
ATOR 1: Então é isso que a gente vem tento esse tempo todo? Uma mera “complicação”? 
 
ATRIZ: Não, mas está se tornando... E eu já tô cansada de complicações à minha volta. Eu 
só quero uma vida tranquila, só isso. Aliás, eu já tenho essa vida tranquila e não quero pôr 
tudo a perder. 
 
ATOR 1: Então você prefere a tranquilidade de uma mentira a isso que você e eu estamos 
5 
 
vivendo? 
 
ATRIZ: Não. Eu só prefiro que você... 
 
 
De repente, um senhor se aproxima e pergunta alguma coisa a um deles, que responde, 
pacientemente. Não conseguimos ouvir o que eles estão dizendo. O velho então sai e o 
Ator 1 e a Atriz voltam a conversar. Um terceiro sujeito entra em cena e fica observando 
de longe. 
 
 
ATOR 1: Continuando: você prefere que eu... 
 
ATRIZ: Que você não fique me colocando contra a parede por uma coisa que eu já decidi? 
Sim, eu prefiro. 
 
ATOR 1: Então é isso? 
 
ATRIZ: É isso. 
 
ATOR: Você decide e pronto. Cada um volta pra sua vida e fica tudo bem? 
 
ATRIZ: É. 
 
ATOR 1: E você acha certo? 
 
ATRIZ: E não era pra ser assim desde o começo? 
 
ATOR 1: Como é que a gente pode saber dessas coisas no início? 
 
ATRIZ: A gente sabia. 
 
ATOR 1: Talvez você soubesse, mas eu não! 
 
ATRIZ: Não vem com esse papo. Você não pode achar que... que... que... Putaquepariu! 
Merda! (ri) Não consigo lembrar o resto. 
 
ATOR 1: Tá ótimo! Mantém esse tom de indecisão, de que as coisas não estão muito 
certas pra ela e tal... Assim, se você esquecer alguma coisa na hora, fica mais fácil 
consertar durante a montagem. (pro mesmo senhor que havia feito uma pergunta) Tudo 
pronto com a luz? 
 
 
O velho faz um gesto qualquer. 
 
 
ATOR 1: (para a atriz) Bom, depois a gente ensaia mais, ok? Agora vai descansar um 
pouco. 
 
6 
 
ATRIZ: Obrigada. 
 
 
Ela sai. Ele avista o homem que os observava durante a cena. O homem se aproxima. 
 
 
ATOR 1: Oi. Não tinha te visto aí. 
 
ATOR 2: Normal. 
 
ATOR 1: Chegou faz tempo? 
 
ATOR 2: Sim. 
 
ATOR 1: Que foi? Que cara é essa?ATOR 2: Nada. 
 
ATOR 1: Ei! O que foi? Me fala. 
 
ATOR 2: Como assim, o que foi?! Você está toda hora indo pra aquele canto conversar 
com aquela... (silencia) 
 
ATOR 1: Você não tá falando sério, tá?! Você só pode estar brincando, ela é só uma... 
 
ATOR 2: Eu sei bem quem ela é! Eu só não sei o que ela representa pra você. 
 
ATOR 1: Como assim?! Isso é ridículo! Você percebe a coisa ridícula que você acabou de 
dizer? 
 
ATOR 2: Então por que vocês não conversam na frente de todos, como todo mundo faz 
por aqui? 
 
ATOR 1: Porque ela precisa se concentrar... Porra! Será que toda vez que a gente for 
trabalhar juntos vai ser essa tortura? Sinceramente, eu não gosto de trabalhar num clima 
como esse! 
 
ATOR 2: Então me demite, pronto! Faz isso! Quero ver quem vai topar fazer esse teu... 
Como foi mesmo que aquele cara que ia investir uma grana, mas desistiu no meio do 
caminho, chamou? Ah, sim! Esse filme B de cinema boca do lixo! Quero ver quem, além 
de mim, vai topar trabalhar nessa merda sem ganhar um centavo! 
 
 
Silêncio. 
 
 
ATOR 1: É... Você sabe mesmo ser cruel quando quer. 
 
 
7 
 
O Ator 1 se vira para sair de cena. 
 
 
ATOR 2: Espera! Espera! Desculpa, eu não quis dizer isso... Me desculpa, por favor. 
(passa a mão no rosto dele) Eu exagerei, eu sei. Perdi a cabeça, só isso. Não vai mais se 
repetir. Me desculpa... (o outro não responde) Você sabe que eu te amo, não sabe? Você é a 
pessoa mais importante que eu tenho nessa vida. (se aproxima para beijar o outro) 
 
ATOR 1: Tá bom, tá bom, tá bom! Não tem beijo nessa parte. É só a mão no rosto e daí ele 
sai, ok? 
 
ATOR 2: (noutro tom) Ei, você ouviu o que disse?! 
 
ATOR 1: Ouvi sim... Bom, então quando o André chegar você ensaia o resto com ele, tá 
bom? Tenho que ir lá falar com o pessoal da técnica. 
 
ATOR 2: Vai ser sempre isso? 
 
ATOR 1: Isso o quê? 
 
ATOR 2: Você vai sempre fugir assim? 
 
ATOR 1: Do que você está falando?! 
 
ATOR 2: Vai passar a vida toda fingindo que não está acontecendo nada entre a gente? 
 
ATOR 1: Olha, eu acho que você está... misturando as coisas. 
 
ATOR 2: Não, não estou. 
 
ATOR 1: Eu achei que a gente já tivesse se acertado a esse respeito: você é o ator, eu o 
diretor – nossa relação se resume a isso; o resto é coisa da sua imaginação. 
 
ATOR 2: Por que você não me dá uma chance, hein? 
 
ATOR 1: Não vamos voltar a esse assunto, ok? Você sabe o quanto eu amo o meu 
namorado e sabe que ele está sempre por aqui vendo as filmagens, então é melhor parar 
com esse tipo de coisa porque pode acabar gerando confusão pro meu lado. E o pior: sem 
motivo algum. 
 
ATOR 2: Eu só queria que você... 
 
ATOR 1: Olha. Esquece isso. Quando chegar a cena de vocês eu converso com os dois um 
pouco antes e a gente filma e pronto. Acabou. Até lá a gente faz o possível pra manter uma 
relação estritamente profissional, como todos aqui. 
 
ATOR 2: Mas eu não quero que você me veja apenas como mais um da equipe, não depois 
de... 
 
8 
 
DIRETOR: Corta! 
 
ATOR 1: Muito bom. Valeu. 
 
 
Eles relaxam. 
 
 
ATOR 2: (noutro tom) Nossa, ainda bem que você me parou naquela hora, senão a gente ia 
acabar se beijando mesmo. 
 
ATOR 1: É mesmo?! 
 
ATOR 2: Do jeito que ia a coisa, parecia que sim, né? 
 
 
Silêncio. 
 
 
ATOR 1: O que você vai fazer hoje depois daqui? 
 
ATOR 2: Ah, não sei ainda... Talvez eu vá ao teatro. 
 
ATOR 1: Sozinho? 
 
ATOR 2: Não. Com a minha namorada. 
 
ATOR 1: Ah... Ana? Esse é o nome dela, não é? 
 
ATOR 2: Lana. 
 
ATOR 1: Ah, sim. Lana. 
 
ATOR 2: E você? Vai sair com aquele garoto que veio assistir às filmagens dia desses? 
 
ATOR 1: Não. Nós não estamos mais juntos. 
 
ATOR 2: Ah... Pena. 
 
ATOR 1: Acontece... Bom, então se a gente não se vir mais hoje, divirtam-se. 
 
ATOR 2: Pode deixar. Até logo. 
 
ATOR 1: E olha: você me deu uma ideia, hein?! Acho que na próxima a gente podia testar 
o tal beijo. Pode deixar mais verossímil a relação entre os dois e tal. O que você acha? 
 
ATOR 2: Não sei. Acho que o diretor não vai gostar... Pode parecer forçado demais. 
 
ATOR 1: Faz mais de cem anos que o cinema está repleto de beijos e ninguém nunca 
9 
 
reclamou! 
 
ATOR 2: É... Pode ser. 
 
ATOR 1: Eu falo com ele, pode deixar. 
 
ATOR 2: Bom, tenho que ir senão vou me atrasar. Até amanhã. 
 
ATOR 1: Até... Boa peça. 
 
ATOR 2: (saindo; para de repente) Sabe...? Pra falar a verdade, eu nem gosto tanto de... 
Você sabe. 
 
 
O Ator 2 sai. Mudança de luz ou equivalente. 
 
 
 
CENA 2 
 
 
PALESTRANTE: Que bom que vocês vieram. Eu achei que ninguém viria, mas pelo 
visto o assunto sobre o qual vamos tratar aqui interessa a muita gente, não? (Pausa) Bom, 
antes de começarmos eu vou falar um pouco de mim e assim já falamos um pouco de 
vocês também. Meu nome é... Pra falar a verdade, isso não interessa! O que interessa é que 
sou escritora e antes que vocês me perguntem, não, eu ainda não tenho nenhum livro 
publicado! Já tentei... Sim, tentei escrever algumas histórias, mas nunca consigo terminar. 
Sabem como é: bloqueios – tanto os criativos quanto os de qualquer outra espécie – são 
uma constante na minha vida. Mas eu continuo tentando... No momento escrevo para uma 
famosa revista feminina, a qual prefiro não citar o nome já que ela não liberou sequer um 
centavo para patrocinar esse evento. De qualquer forma, tenho uma coluna sobre 
relacionamentos lá. Mas nem adianta tentar, ninguém me conhece mesmo, porque eu só 
escrevo sob pseudônimo. Sabem como é: cláusula contratual, Ghost Writer, 
Buuuuuuuuuuuu... Só o que posso dizer é que é uma dessas revistas que dão dicas sobre o 
que uma mulher dita “contemporânea” deve fazer pra ficar sempre bonita, ser bem-
sucedida, conquistar um bom partido, cuidar da casa, da educação dos filhos, conseguir 
descontos nas liquidações, planejar as festas de fim de ano, manter a pele e o cabelo 
sempre hidratados e ainda por cima satisfazer o marido na cama (suspira). Enfim, essa 
infinidade de distrações com as quais todas nós desperdiçamos cada segundo das nossas 
miseráveis vidas. Esse monte de ensinamentos que não servem pra nada, porque se 
servissem não estariam todos os meses lá, de novo, estampados nas capas das outras 
revistas; as páginas cheias de Guccis, modelos lindas de dar inveja até na Charlize Theron, 
e muitas, mas muitas mobílias decorativas lindas criadas pelos designers que pensam que 
um lar, antes de ser confortável, tem é que parecer com a casa da Barbie: tudo de plástico e 
multicolorido, sabem? Pois é... Todas essas coisas sem nenhuma utilidade fora desse 
contexto ilusório do tipo de mulheres que os anunciantes dizem que a gente deveria ser. 
 
Mas eu sou outra coisa. Acima de tudo, eu sou uma mulher amaldiçoada. Sim. Desde que 
ele me deixou eu fui amaldiçoada com um tipo de compreensão profunda de todas as 
10 
 
coisas. Alguém aqui já sentiu isso? É como quando a gente lê algum trecho de livro ou 
ouve uma música, e tudo, absolutamente tudo – da coisa mais idiota a mais complexa –, 
tudo vira essa experiência torturante de sentir tudo ao mesmo tempo... Ao mesmo tempo 
em que não se pode sentir nada além dessa dor que vem lá do fundo. É assim que eu tenho 
vivido nesses últimos meses, desde que ele me disse “acabou”. 
 
 
 
CENA 3 
 
 
ASSISTENTE: Senhor! Senhor?! 
 
NÃO ATOR: Pois não? 
 
ASSISTENTE: Preciso falar com o senhor! 
 
NÃO ATOR: Desculpe, mas eu tenho que embarcar. 
 
ASSISTENTE: Prometo que serei breve. 
 
NÃO ATOR: Então seja. 
 
ASSISTENTE: Cristo... Há tempos que eu não corria tanto! 
 
NÃO ATOR: É isso então?! Passar bem. 
 
ASSISTENTE: Espere! Me deixe tomar um ar, por favor... 
 
NÃO ATOR: Claro, fique à vontade. Até uma próxima. 
 
ASSISTENTE: Não! 
 
NÃO ATOR: O senhor pode soltar o meu braço, por favor?! 
 
ASSISTENTE: Oh, sim! Desculpe. 
 
NÃO ATOR: Obrigado. 
 
ASSISTENTE: O que eu tenho pra... lhe dizer... é urgente... 
 
NÃO ATOR: Meu amigo, eu não faço ideia dequem seja o senhor, mas se tem uma coisa 
que eu aprendi nesses últimos meses é que nada é mais urgente do que voltar pra casa. 
 
ASSISTENTE: O senhor não está entendendo... Eu vim correndo... desde o teatro... até 
aqui... para... 
 
NÃO ATOR: Quem é você?! 
 
11 
 
ASSISTENTE: A gente não se conhece. 
 
NÃO ATOR: Sorte a sua. 
 
ASSISTENTE: Não consegui táxi, por isso eu tive que... 
 
NÃO ATOR: Eu sei, eu sei. Essa cidade é mesmo caótica. Até logo. 
 
ASSISTENTE: O senhor precisa me ouvir. 
 
NÃO ATOR: Infelizmente teremos que deixar essa agradável conversa pra uma outra 
hora. Ou quem sabe uma outra vida. 
 
ASSISTENTE: É sobre uma série de TV... 
 
NÃO ATOR: (com desagrado) Ah! 
 
ASSISTENTE: ...que iremos fazer. 
 
NÃO ATOR: Iremos?! 
 
ASSISTENTE: Sim. O diretor... Sou o assistente dele... O diretor pediu que eu viesse e... 
 
NÃO ATOR: Diga a ele que agradeço o convite, mas que eu não escrevo pra TV. Adeus. 
 
ASSISTENTE: Mas ele não quer que o senhor escreva. 
 
NÃO ATOR: Ah, não? E por quê?! Ele não me acha bom o suficiente?! 
 
ASSISTENTE: Ele quer que o senhor atue. 
 
NÃO ATOR: Impressionante a vida, não? Quando a gente acha que está ruim, vem 
alguém e prova que pode ficar ainda pior! Meu voo já vai sair. Até nunca mais! 
 
ASSISTENTE: Senhor, pense bem. É pra TV. Tem muito dinheiro envolvido nisso! 
 
NÃO ATOR: Sim, e muita fama e reconhecimento também, e mais todo aquele lixo ao 
qual a gente já está acostumado... Sabe, acabo de me abandonar um trabalho que começou 
exatamente assim, mas que no fim se mostrou um completo desastre. Não quero repetir o 
mesmo erro. 
 
ASSISTENTE: Mas você não vai... 
 
NÃO ATOR: Desculpe, mas eu tenho uma vida real pra cuidar e ela está acontecendo 
nesse exato momento e bem longe daqui. 
 
ASSISTENTE: Está? 
 
 
12 
 
Intrigado, o Não Ator finalmente para e observa o Assistente. Mudança de luz, etc. 
 
 
 
CENA 4 
 
 
“13 de Setembro. 2h27. Primeira noite.” 
 
PACIENTE: Estou deitado na minha cama, dormindo profundamente. No meio da 
madrugada sinto algo subindo pelos meus joelhos; é áspero. De repente, solta uma gosma 
gelada e escorre para a minha cama e eu, ainda dormindo, passo a mão num gesto 
inconsciente de afastamento. A coisa se agarra em meu pulso e o aperta de um jeito que eu 
não sei explicar. Sinto uma picada profunda, como se fosse de um escorpião ou de um 
inseto enorme. Apavorado, levanto num salto, mas a luz não acende. Olho em volta, mas 
não há nada ali. Tudo está mergulhado numa escuridão esverdeada. Sinto dor e uma parte 
do meu corpo começa a dar sinais de paralisia. A coisa – seja lá o que ela for – deve ter 
corrido pra baixo da minha cama, eu penso, mas como eu não tenho lanterna nem velas em 
casa não há como saber; por isso eu desisto de procurar. Com medo de voltar pra cama, 
vou até a janela do quarto e é aí que eu vejo: o céu se abrindo e elas descendo, todas juntas, 
como se fossem cavaleiros no dia do Apocalipse. O som estrondoso sacudindo as vidraças 
da janela e meu coração pulsando rápido, bombeando mais e mais sangue pelo meu corpo e 
paralisando ainda mais os meus órgãos e membros já imobilizados. Ouço então um sibilo 
atrás de mim e quando olho pra trás, vejo ele parado, a mão dentro do casaco, a outra 
segurando um copo... Eu sempre acordo nessa parte. 
 
 
Mudança de luz. 
 
 
MÉDICO: Desde quando você tem sonhado com isso? 
 
PACIENTE: Er... Há uns oito ou nove meses, mais ou menos. 
 
MÉDICO: Alguma sensação física incomum durante a vigília? 
 
PACIENTE: Algumas palpitações, às vezes, como se tivesse engolido água demais. Ah, e 
tem os ataques de pânico, óbvio! Esses são frequentes. 
 
MÉDICO: Muito bem. Você deve tentar dormir um pouco. Às vezes, quando nossa cabeça 
não para de trabalhar, não conseguimos deixar o corpo fazer o mesmo. É preciso saber 
quando ceder. E você ainda não sabe. Boa noite. 
 
 
O paciente volta a deitar-se. O médico rabisca algo no prontuário que traz consigo. 
 
 
CANCELADO – ABORTADO – ADIADO 
 
13 
 
“14 de Setembro. 2h55. Uma nova tentativa. Vai começar... Começou.” 
 
 
Mudança de luz, etc. 
 
 
ESCRITOR: “Estou aqui, tentando. Uma pausa e todos os mecanismos de rejeição são 
ativados. Escrevo por escrever, sem nenhuma necessidade senão a de movimentar parte do 
meu corpo inerte. Talvez eu fique por aqui, nesse espaço confortável, a vida inteira. Talvez 
eu saia. Não há decisão mais imbecil do a que estou tomando...” 
 
 
 
CENA 5 
 
 
A garçonete está debruçada sobre o balcão, ao telefone. 
 
 
GARÇONETE: ...E daí eu ouço uma música que eu gosto muito e que não escuto faz 
tempo e começo a chorar – a chorar como faz tempo que não choro – e isso não tem um 
motivo real, apesar de eu esquecer que tem, sim... Mas pra mim não tem, porque na 
verdade não quero que os outros pensem que tem, entende? Daí eu choro e ninguém sabe 
que eu estou chorando naquele momento – ou que eu choro quase todo o santo dia nos 
últimos 10 ou 12 meses desde que você disse “acabou”. Mas a música continua lá, bonita 
como sempre foi – como uma confissão de alguém que não tem medo de se expor. Eu não 
sei por que eu estou dizendo essas coisas (eu te amo), mas deve ser por causa da música 
(eu te amo); da lembrança que essa música me traz, sei lá... (eu te amei) E então eu fecho 
as portas de casa pra poder chorar sem me preocupar com nada (você está aí?), me ajoelho 
no chão da sala e ao invés de vinho eu agora sinto um gosto amargo entre os lábios (você 
se foi), mas tudo isso com a perspectiva quase feliz de que quando a música acabar eu vou 
levantar (coloque sua dor aqui), lavar meu rosto e melhorar esse meu aspecto, que parece 
ser o de alguém que ninguém mais conhece. E então choro mais um pouco por causa disso, 
mas as lágrimas se misturam à água gelada e daí parecem tão pequenas... Gotas num 
oceano... Então eu seco meu rosto e sorrio: a música acabou, sabe? (não há nada pra 
colocar no seu lugar) Aquele maldito arranjo me deixa comovida sempre, e depois 
simplesmente se vira e vai embora, como sempre fazem comigo. Mas eu vou continuar me 
lembrando das coisas do mesmo jeito, do mesmo jeito que essa música vai e volta na 
minha cabeça, todos os dias dessa merda de existência que nunca acaba (mas você não 
sabe disso, e nem deveria). 
 
 
 
CENA 6 
 
 
ELE: Então? O que achou? 
 
ELA: Triste. 
14 
 
 
ELE: E? 
 
ELA: (pensa por um instante) 183. 
 
ELE: Impossível! 
 
ELA: 78 Vírgulas, 6 Pontos de Interrogação, 81 Pontos Finais, 4 travessões, 6 Colchetes, 4 
Aspas e 4 Dois Pontos. 183. Isso sem contar os hifens, que eu não tenho certeza se são 
pontuação ou não. 
 
ELE: Como você sabe diferenciar uma vírgula de um ponto, ou qualquer um deles de um 
ponto e vírgula? 
 
ELA: Eu sei, simplesmente. 
 
ELE: Mas como você faz pra saber? 
 
ELA: Sei lá. Não tem gente que aprende música de ouvido? Pois então: eu ouço as coisas 
desse jeito. 
 
ELE: Acho que você está inventando isso tudo só pra me impressionar. 
 
ELA: Lê aí. Conta e vê se eu não estou certa. E quer saber mais? Não tem um ponto de 
exclamação no texto todo. 
 
ELE: Sério?! Mas pontos de exclamação são tão comuns. 
 
ELA: Talvez. Quando há surpresa ou urgência naquilo que se está dizendo... 
 
ELE: Ou quando há certeza. 
 
ELA: O narrador dessa história não parece ter certeza alguma. 
 
ELE: Eu te amo. 
 
ELA: Isso também não tem. 
 
ELE: Como? 
 
ELA: Não tem a palavra amor. Nem o verbo amar. Tem desamar, mas é diferente. 
 
ELE: Esquece o texto. Eu só mostrei porque pensei em você quando li. Vem comigo. 
Quero te mostrar uma coisa. 
 
ELA: Não. Está tarde. Eu vou pra casa. 
 
ELE: Mas eu te amo! Isso não é o suficiente?! 
 
15 
 
ELA: Você nem me conhece direito. 
 
ELE: Mesmo assim, eu tenho certeza que eu te amo. 
 
ELA: Eu não. 
 
ELE: Isso não importa. Não agora. 
 
 
Ela simplesmente se vira e sai. Ele permanece imóvel. Mudança de luz, etc. 
 
 
 
CENA 7 
 
 
PALESTRANTE: Já se passarammeses e até hoje eu não consigo esquecer essa palavra... 
Por isso resolvi publicar esse anúncio: pra falarmos sobre esse assunto que tanto nos 
mobiliza: o amor e suas contradições. Que palavra generosa esta, não? “Contradições”. 
Generosa se pensarmos que nesta frase ela acompanha aquela outra tão detestável... 
 
Mas como eu disse, já se passaram meses e essa palavra ficou aqui dentro, ecoando... 
Acabou... Acabou... Acabou... Buuuuuuuuu... como se fosse um fantasma que ronda a casa 
da Barbie noite após noite, drink após drink. E eu nunca contei pra ninguém o que 
realmente aconteceu naquela época. Aguentei tudo com a máxima discrição e dignidade 
que eu consegui forjar. Aquele sorriso armado, sabem? Você se sente como se fosse o 
Coringa; aquele sorriso informando às pessoas que tá tudo ótimo, sabem como é? (sorri 
pra plateia) Bem, claro que teve uma vez que eu escrevi um texto pra revista no qual eu 
tocava no assunto, mas tudo bem disfarçado, nas entrelinhas mesmo – como se já não 
bastasse ter sido escrito sob pseudônimo! (solta uma gargalhada) Mas daí a editora-chefe 
leu, analisou e no fim recusou. Mandou que eu escrevesse sobre cadeiras. Disse que as 
leitoras iam achar aquele texto muito pessimista, agressivo até. Bom, preciso confessar que 
era mesmo. Mas e daí?! Se eu sinto ódio por ele, o que mais posso fazer? Continuar 
fingindo?! Pra quem? Pra vocês? Pra mim? Não. Quero mais é que ele, a revista, as leitoras 
da revista, a Barbie e o Ken, que todo mundo simplesmente SE FODA! 
 
 
 
CENA 8 
 
 
ATRIZ: A gente nunca sabe, não é mesmo? 
 
GARÇONETE: Sabe o quê? 
 
ATRIZ: Quando vai deixar de ser gato pra se tornar rato! É um limiar muito tênue às 
vezes… 
 
GARÇONETE: É. Às vezes é... 
16 
 
 
 
Silêncio. 
 
 
GARÇONETE: Bom, eu tenho que fechar... Tenho um teste pra um filme daqui uma hora. 
 
 
A Atriz bebe o que resta em seu copo e o deixa sobre a mesa. 
 
 
ATRIZ: (saindo) Boa sorte. 
 
 
A garçonete limpa o balcão com um esfregão. Após, olha o telefone. Recolhe o copo e 
quando está prestes a jogá-lo na parede a luz se apaga. 
 
 
 
CENA 9 
 
 
A: Ei!!! Por onde você entrou? 
 
B: Vai com calma, ok?! Acabei de me arrebentar todo no chão. 
 
A: Isso eu sei. Por isso te pergunto. 
 
B: Então é assim que você reage quando vê alguém cair na sua frente? 
 
A: Não. Mas como você caiu enquanto eu estava de costas, eu... 
 
B: Ahhh... Então é assim que você reage ao ver... Ah, esquece! Você não acha que o mais 
importante é perguntar se essa pessoa está bem antes de perguntar como ela chegou ali? 
 
A: Não. 
 
B: E por que não?! 
 
A: Porque você não caiu no chão. 
 
B: Ah, não? E onde eu caí? 
 
A: Aqui. 
 
B: E onde é “aqui”? 
 
A: Ora, “Aqui” é aqui. 
 
17 
 
B: Tudo bem, mas isso é aqui é o chão do AQUI, não é? 
 
A: Não... Mas pode ser, já que faz tanta questão. 
 
B: Não faço questão de nada, quero apenas saber onde estou. 
 
A: Antes você precisa me dizer quem é você e como entrou aqui. 
 
B: Bom, isso eu não saberia responder. Só o que eu sei é que estava num lugar escuro, com 
um monte de gente em volta, todos correndo de um lado pro outro, carregando coisas e 
puxando umas cordas, todo mundo muito preocupado... Foi quando alguém – não me 
pergunte quem! – simplesmente me pegou pelos ombros e disse “é a sua vez de entrar”, e 
me empurrou. 
 
A: E então você veio parar aqui? 
 
B: Então sim. (Pausa) O que foi? 
 
A: Eu não acredito em você. 
 
B: Como não acredita?! Foi assim que aconteceu! 
 
A: Sei não... Tenho lá as minhas dúvidas. 
 
B: Ah é? E como VOCÊ veio parar aqui? 
 
A: Não me lembro. 
 
B: Como não se lembra? Você tem que lembrar! 
 
A: Quem disse?! 
 
B: Ah... A memória. A memória exige isso! 
 
A: Não lhe devo satisfação, nem à memória de ninguém, então me deixe em paz. 
 
B: (Pausa) O que você está fazendo?! 
 
A: Ora, que pergunta idiota... 
 
B: Por que idiota?! 
 
A: Porque aqui a gente só faz uma coisa. E é isso o que eu estou fazendo. Aliás, você 
também está. 
 
B: Mas eu não estou fazendo nada! 
 
A: Então não lhe disseram?! 
 
18 
 
B: Disseram o quê? 
 
A: Antes de jogarem você de lá onde você estava não lhe disseram o que a gente faz aqui?! 
 
B: Não. 
 
A: Tem certeza? 
 
B: Não... Quer dizer, sim, tenho certeza! Antes de me jogarem pra cá só ouvi isso: “é a sua 
vez de entrar! MERDA!” 
 
A: E não mandaram nada com você? 
 
B: Nada. 
 
 
Os dois ficam subitamente paralisados, a espera de algo, uma mudança de luz ou um 
equivalente, etc. 
 
 
 
CENA 10 
 
 
PALESTRANTE: O primeiro homem por quem eu me apaixonei era vocalista de uma 
banda. Ele era muito parecido com o Elliott Smith – aquele músico norte-americano, 
sabem?! Sim, ele era idêntico, tanto no visual quanto nas tendências suicidas! Quando nos 
conhecemos ele ainda não era famoso – O Elliott Smith, é claro! –, mas a gente se dava 
muito bem... Naquela época eu estava andando direto com uma colega da faculdade, a 
“Jane-não-me-lembro-o-quê”, e pelo o que eu sei ele escreveu uma música pra ela, porque 
eles vinham tendo uma história havia alguns meses. Um dia, quando a “Jane-não-consigo-
me-lembrar-o-nome” tava viajando, a gente se encontrou na saída do cinema; ficamos 
fumando um, conversando, até que ele disse... 
 
 
Ela pega uma Barbie e um Ken e imita suas vozes ou então mudança de luz e alguma outra 
proposição. 
 
 
KEN: “A gente nunca sabe, não é mesmo?” 
 
BARBIE: “O quê?” 
 
KEN: “Quando vai deixar de ser gato pra se tornar rato! É um limiar muito tênue às 
vezes…” 
 
BARBIE: “É. Às vezes é.” 
 
KEN: “E basta um empurrãozinho das pessoas erradas pra gente voar penhasco abaixo – 
19 
 
e elas sempre empurram! Um empurrãozinho e a gente deixa de ser aquele 
sujeito esperto pra se tornar apenas um serzinho assustado, e se vê obrigado a viver assim 
por um bom tempo ainda, até que finalmente espatifamos o crânio lá embaixo e tudo acaba 
– o que, pensando bem, não é de todo mau, porque de qualquer maneira viver com medo é 
a pior coisa que pode existir.” 
 
 
PALESTRANTE: No outro dia ele chegou com uma música que falava exatamente isso. 
Não posso dizer que ele escreveu a música pra mim ou por minha causa, porque – exceto 
pelo título – não há nada nela que se relacione comigo ou com a minha vida. Pelo menos 
eu acho... Mas agora é tarde demais pra perguntar. 
 
 
Mudança de luz. 
 
 
 
CENA 11 
 
 
A e B continuam paralisados. De repente, A tem um sobressalto. 
 
 
A: Procure nos seus bolsos! 
 
B: Eu já disse que não mandaram nada. 
 
A: Vamos, procure nos seus bolsos! Procure direito, você não seria mandado pra cá pra 
fazer exatamente o que eu estou fazendo. Eles devem ter mandado você pra fazer outra 
coisa. Procure ao menos alguma pista. 
 
B: Pista? Pista de quê?! 
 
A: De patinação, é claro! 
 
B: Mas eu nem sei pati... 
 
A: Ora, pista “DE quê?” Pista “PRA quê?”! “PRA quê?”! Pelo seu bem, cale a sua boca, 
sim? Eu estou tentando fazer algo que você mesmo não consegue. 
 
B: É mesmo? E o quê é? 
 
A: Pensar. 
 
B: Mas isso eu também sei fazer! 
 
A: Ah, é? Então por que não faz? 
 
B: Ora, porque eu... eu... Mas eu estou fazendo! 
20 
 
 
A: Está? 
 
B: Sim. Agora, neste exato momento! 
 
A: É mesmo? 
 
B: É! 
 
A: Bom... Então não está se esforçando, porque eu mesmo só estou vendo você ser um 
completo imbecil. 
 
B: Você é sempre grosseiro com as pessoas que aparecem por aqui? 
 
A: Não. É só com você. 
 
B: Sério? 
 
A: Seríssimo! Mas no fundo não é nada pessoal, são os meus genes. (percebendo a reação 
do outro) Ei, era só uma brincadeira! Não fica assim... Eu tava só... brincando. 
 
B: Brincando, é? 
 
A: Sim, eu estava brincando. Brincadeira, brinquedo, brincar, lálálá, sabe o que significa? 
Não, você não tem cara de saber de muita coisa não. 
 
B: Viu só?! 
 
A: Desculpa, mas é que há meses não aparece ninguém aqui. Preciso me divertir o quanto 
puder! 
 
B: Meses?! 
 
A: Sim. Pra falar averdade, acho que você é o primeiro que passa por este lugar desde que 
eu cheguei aqui. 
 
B: Acha? 
 
A: Não tenho certeza. 
 
B: Como assim?! 
 
A: O que eu posso fazer? As coisas se parecem muito quando a gente tá sozinho aqui 
dentro... 
 
B: Há quanto tempo você está aqui? 
 
A: Não lembro. 
 
21 
 
B: E por que não? 
 
A: Ora, por quê?! Porque nem sei mais quanto tempo se passou. Os dias são longos e 
tediosos quando não tem ninguém por aqui. De qualquer forma, hoje sei que não muda 
tanto... As coisas estão assim também agora, mesmo com você aí. 
 
B: Não sei se estou entendendo... 
 
A: Você está ouvindo?! 
 
B: O quê? 
 
A: Lá fora. 
 
B: Não. O que tem? 
 
A: Você não consegue ouvir... os sons... lá adiante? 
 
B: Não. 
 
A: Preste atenção. E agora? 
 
B: Agora o quê? 
 
A: O que você me diz?! 
 
B: Sobre o quê?! 
 
A: Os sons. O que te parecem? 
 
B: Me parecem bons. Mas somente quando eu os ouço. 
 
A: Então você não está ouvindo? Parece... (cochicha no ouvido do outro)... Como se 
estivessem... (cochicha novamente) Sim? Não? Talvez? 
 
B: Não sei. 
 
A: Chega... Você não está se esforçando. 
 
B: Mas eu não ouço nada! 
 
A: Isso eu sei. Não foi isso o que eu perguntei, eu perguntei outra coisa. Vamos voltar. 
 
B: Não, espera! Agora eu ouço! 
 
 
Mudança de luz, etc. 
 
 
22 
 
 
CENA 12 
 
 
PALESTRANTE: Anos depois eu fiquei sabendo que ele e a “Jane-pouco-me-importa-o-
seu-maldito-nome” casaram e tiveram um filho. E que estava tudo indo bem pros dois, 
estavam odiosamente felizes, tinham dinheiro, eram bem-sucedidos e moravam numa casa 
rosa com portãozinho branco e um jardinzinho artificial com flores de plástico que Deus 
fazia questão de regar toda manhã. Até que um dia ele se matou. 
 
Som do copo finalmente se espatifando na parede. 
 
 
Às vezes eu ainda ouço ele dizendo a frase “A gente nunca sabe, não é mesmo?” enquanto 
passa a mão no meu cabelo e põe o dedo nos meus lábios... E sempre penso “o que diabos 
ele estava querendo me dizer, afinal?” 
 
Falando em morte, no caminho até aqui eu passei por uma banca de jornal. Eu acho banca 
de jornal tão... ultrapassadas... sei lá! É que é estranho pensar que numa era totalmente 
digital como a nossa ainda existe gente que se presta a levar um calhamaço dentro bolsa, 
sabe? Logo numa época em que tudo é tão leve – não faz sentido! Sim, eu sei. Eu ganho a 
vida com esse tipo de entulho, mas não é uma escolha minha, ok? Se eu pudesse estava 
escrevendo e-books ao invés de receitas de um relacionamento falso e duradouro. 
(refletindo) Falso e duradouro... Quanta redundância pra uma pretensa escritora! Mas 
voltando ao assunto... Eu estava passando por essa banca e vi uma coisa que me chamou a 
atenção: era algo que estava escrito na capa de uma das revistas. Sério, eu tive que voltar 
pra ter certeza de que era aquilo mesmo que eu tinha acabado de ler. Era algo assim: 
 
“Daqui a 50 anos ninguém mais morrerá!”. 
 
Parecia um mandamento daqueles das tábuas do Moisés, só que transposto pra nossa 
realidade – o que na minha opinião tem muito mais utilidade! Embaixo, no headline – que 
nada mais é do aquela anotaçãozinha que vem junto da manchete, sabem? – dizia que a 
medicina está desenvolvendo medicamentos que no futuro vão impedir que as pessoas 
morram. E não é só isso! Eles prometem preservar intacta a aparência da pessoa!!! Mas o 
que mais me horrorizou na tal manchete era a informação final. Não sei como é pra vocês, 
mas a mim parece que se tem alguma coisa maior que comanda a nossa existência – seja 
Deus, Buda, a bolsa de valores ou os editais do ministério da cultura – seja o que for, essa 
“coisa” EXIGE que a última informação seja sempre mais terrível do que tudo o que veio 
até então. Tipo, “sinto muito, estou caindo fora”; “nós o perdemos”; “É maligno”, e por aí 
vai. Pois lá, na última frase da tal manchete, quase no finalzinho, estava escrito: 
 
“...E você ainda poderá escolher a sua aparência definitiva e consertar para sempre 
aquilo que não gosta em si.” 
 
Espera!!! Como é que é???!!! Me deu uma raiva tão grande em ler aquilo... porque é 
tããããããoooo injusto! Sim, porque daqui a 50 anos eu vou ser uma velha! Isso mesmo, VE-
LHA! E ainda que eu tenha a sorte de viver o suficiente a tempo conseguir entrar nessa tal 
“festa da vida eterna”, eu provavelmente já vou ter lá os meus bons 80 anos. E eu sei – pois 
23 
 
sou realista – que mesmo com toda a tecnologia do mundo eu já não vou conseguir 
melhorar nada na minha aparência que me faça parecer mais jovem. Digo, jovem mesmo, 
não como a Suzana Vieira, sabe? Não. Isso significa que eu estarei condenada a passar o 
resto dos meus dias com uma cara de ameixa, enquanto todo mundo – eu disse TO-DO 
MUN-DO – vai estar lá, com aquela cara de quem acabou de chegar à puberdade! Vocês 
acham isso justo? Não! Claro que não! É nesses momentos que eu sinto uma raiva infinita 
contra a ciência e toda essa máquina que faz das mulheres escravas do colágeno, dos 
ácidos graxos e da Queratina! 
 
 
 
CENA 13 
 
 
O Não Ator está deitado no balcão do bar. A Analista está numa cadeira ao seu lado. 
 
 
NÃO ATOR: Eu me sinto infeliz. 
 
ANALISTA: Com o quê? 
 
NÃO ATOR: Não consigo me concentrar. 
 
ANALISTA: E você precisa? 
 
NÃO ATOR: É claro! É o meu trabalho! Manter a clareza das ideias a qualquer custo é 
parte dele. 
 
ANALISTA: E você não consegue escrever em meio ao caos? 
 
NÃO ATOR: Não sei... Nunca tentei. 
 
ANALISTA: Talvez você só precise relaxar um pouco. 
 
NÃO ATOR: Sei... Me soltar e deixar a poeira baixar e blábláblá. 
 
ANALISTA: Exatamente. Deixar a poeira baixar. 
 
NÃO ATOR: Sabe quem você parece? Você parece a minha mãe falando. Não sei por que 
eu pago pra você me dizer isso. Minha mãe me falaria exatamente as mesmas coisas e o 
máximo que eu gastaria por mês seria um almoço interminável com direito a discussão 
sobre política, comparação com os meus irmãos – aqueles esnobes! –, correria e gritaria de 
crianças à minha volta. 
 
ANALISTA: Bom, já que você tocou no assunto... 
 
NÃO ATOR: Sim, eu sei. Mas eu não tenho dinheiro agora. E parte disso é porque tenho 
vindo aqui toda semana, três vezes por semana, nos últimos 34 meses... E isso tudo porque 
você disse que era o melhor pra mim, ainda que eu não veja nenhum resultado concreto! 
24 
 
 
ANALISTA: Entendo. Mesmo assim, a gente precisa chegar a um acordo. 
 
NÃO ATOR: Não há acordos, há cifras. E eu não quero pensar nisso agora, tá bem? Afinal 
de contas, você é minha analista ou o quê?! 
 
ANALISTA: Sim, exatamente. Sou sua analista, não sua mãe. 
 
 
Mudança de luz ou equivalente, etc. 
 
 
 
CENA 14 
 
 
PALESTRANTE: Hoje eu sou convidada pra consultorias, palestras, congressos e 
programas de TV, e apesar de ainda ser uma desconhecida... Bem, isso pro grande público, 
obviamente! Porque pras pessoas do meio, eu até que sou bem conhecida. As pessoas do 
meio... (refletindo) Meio do que mesmo? Anyway... Pras pessoas do meio eu sou BEEEEM 
conhecida. Tão conhecida que eles até perdem tempo falando da minha vida! Porque, 
sabem como é, né? Inveja. Essa gente não consegue se controlar. É como uma segunda 
natureza pra elas. Só pra vocês terem ideia, eu já fui a protagonista de um sem número de 
romances baratos que elas inventam por aí. E já inventaram tanta coisa... Inventaram que 
eu tive um caso com um dos diretores de um filme em que trabalhei, coisa que NUNCA 
aconteceu, porque eu sou muito, mas MUITO profissional. Depois de um tempo 
inventaram que eu estava grávida dele. 
 
Gente, eu NUNCA estive grávida na vida! Mas daí, como eu nunca aparecia com aquela 
aparência de grávida – meio rechonchuda e com um barrigão, sabem? – inventaram que eu 
tinha perdido o tal bebê. Sim! Disseram isso! Disseram que eu tinha perdido o bebê depois 
de uma discussão com ele – não, não com o bebê... com o diretor! Um absurdo, porque 
todos sabem que eu NUNCA perco nada! Nunca! Mas eles insistiame até que – pra 
história deles colar – espalharam que eu tinha abortado numa clínica clandestina e depois 
tentado me matar. Imaginem eu, abortando e depois tentando me matar! Quanta 
disposição! Mas tudo bem, eu sou forte... Sou tão forte quanto um urso babilônico. 
 
Aliás, eu não sei se vocês sabem, mas na Babilônia eles tinham uns ursos que eles – os 
babilônios, é claro – chamavam de “ursos babilônicos”, porque além de serem ursos, eram 
da Babilônia! E pros babilônios a Babilônia era considerada a maior potência do planeta – 
mais ou menos como os EUA se consideram hoje... Só que isso tudo séculos atrás, lá na 
época do Nabucodonosor e dos jardins suspensos, aquelas coisas que aparecem na Bíblia, 
sabe? Não sabem? Tudo bem, esqueçam. Mas então, como os babilônios consideravam a 
Babilônia a maior potência do mundo, eles apelidaram os ursos que eles tinham – na 
verdade os ursos que moravam nas montanhas babilônicas – de “ursos babilônicos”. Pois é. 
E vocês sabem como eu sei disso? Porque uma vez eu trabalhei como consultora num 
filme que infelizmente não chegou a estrear e que se chamava “Babilônia de Papel”. A 
protagonista era uma arqueóloga que vai até a Babilônia – que hoje é ali pelas bandas do 
Iraque, no oriente médio ou oriente mínimo, não sei – e descobre a verdade sobre o mundo 
25 
 
misterioso e os costumes do povo babilônio, e por causa disso é perseguida pela CIA. Um 
filme que a crítica especializada considerou como uma mistura de Tomb Rider com Intriga 
Internacional... ou teria sido com Monty Phyton? Enfim... Por isso fiquei sabendo de tantas 
coisas sobre a Babilônia. 
 
 
 
CENA 15 
 
 
NÃO ATOR: Que merda, hein?! Por que eu aceitei fazer isso?! 
 
ASSISTENTE: Calma, quando chegarmos você conversa com ele. Se não gostar da 
proposta, eu te trago de volta ao aeroporto e pronto: você estará livre pra fazer o que 
quiser! 
 
NÃO ATOR: Escuta, eu não sou ator. Eu aceitei fazer aquele papel apenas porque era a 
minha peça e a coisa toda ia ser um desastre se eu não tomasse as rédeas da situação, só 
isso! 
 
ASSISTENTE: Entendo. 
 
NÃO ATOR: Na verdade eu nem considero que eu tenha atuado, de fato. Eu estava só 
fazendo o melhor possível pro barco não afundar comigo dentro. Aliás, um barco que eu 
mesmo construí e que o diretor fez o favor de encher de furos por todos os lados! 
 
ASSISTENTE: Sei... 
 
NÃO ATOR: E eu tenho um livro pra terminar, uma vida pra dar continuidade, uma 
esposa, um... 
 
ASSISTENTE: Tem, é? 
 
NÃO ATOR: Como assim “tem, é”?! É a segunda vez que você fala isso. Quem você 
pensa que é pra duvidar de mim?! 
 
ASSISTENTE: Calma. É só você ficar calmo até chegarmos e tudo vai ficar bem. 
 
 
Mudança de luz ou equivalente. 
 
 
 
CENA 16 
 
 
PALESTRANTE: O segundo foi um pooooouquinho mais complicado. Nós nos 
conhecemos num curso de verão na Inglaterra. Eu trabalhava num bar e ele era cliente – 
um alcoólatra em potencial, óbvio. Mas mesmo assim eu me apaixonei por aquela cara de 
26 
 
hamster depressivo e então passamos a nos ver todos os dias, até o dia em que ele chegou e 
disse: “I'm Sorry, sweetheart, but I have to go”. So I cried a river for him, of course, mas 
aceitei que as coisas eram assim mesmo. Mas o mais estranho é que eu continuei 
enxergando ele por todos os cantos da cidade, onde quer que eu fosse. Eu ia numa festa e 
pronto: lá estava ele! Lógico, só até o desconhecido se virar e eu ter que dizer pela 
milésima vez: “Sorry, my mistake!”, assim, em inglês, como se eu fosse uma estrangeira 
idiota que se perdeu dos amigos numa noitada. Fiquei expert nessa frase – no fim do curso 
eu a falava sem sotaque algum e com mais naturalidade do que qualquer outra: “sorry, my 
mistake; sorry, my mistake; sorry, my mist...” Mas o que eu ia falar mesmo? Babilônia, 
montanhas, ursos... Ah, sim! Gente invejosa! 
 
Cristo! Como tem gente invejosa na Babilônia! Digo, no meio artístico... Daí esse diretor – 
o que estava fazendo o tal filme – quando ficou sabendo dessas fofocas todas chegou até 
mim e disse que estava tudo acabado, que o filme não ia ser lançado. Daí eu chorei, é 
claro; chorei um Tâmisa pelo filme... Sei lá por quê, mas chorei. Talvez porque, pra uma 
pessoa sensível como eu, uma notícia dessas é como um terremoto no Japão: o chão se 
parte e você só consegue sentir a terra tremendo e tudo vindo abaixo. Mas assim que eu 
ouvi o “corta!”, eu enxuguei as lágrimas e abri um sorriso pra todos na equipe. 
 
 
Sorri um sorriso psicótico para todos que estão na plateia durante um longo tempo. 
 
 
PALESTRANTE: Bem, só o que eu posso dizer é que minha atuação nessa fase da vida 
me rendeu uma porção de elogios e um ou outro troféu que eu trago comigo até hoje, 
apesar do peso. Pena que vocês não estavam lá pra ver... 
 
 
 
CENA 17 
 
 
MESTRE DE CERIMÔNIAS: Cerimônia de um importante prêmio. Plateia lotada. Os 
apresentadores estão no palco comandando o show. Entra o Mestre de Cerimônias. Ele 
caminha com passos decididos em direção ao microfone central. Para de repente e vira-se 
para a coxia. Olha naquela direção durante algum tempo, como se estivesse ouvindo 
alguma coisa. Ainda parado, volta-se em direção ao microfone. Dá dois passos, quando 
então percebe alguma coisa no chão. Abaixa-se para observar e se surpreende. Recolhe 
algo com uma das mãos e guarda num dos bolsos internos do casaco. Levanta e anda mais 
dois passos. Enquanto caminha, vira-se novamente para a coxia...” 
 
APRESENTADORA: Tá, moço, vai logo com isso... 
 
MESTRE DE CERIMÔNIAS: “...Percebe alguém acenando lá dentro. Acena de volta, 
em movimentos circulares que lembram um alienígena tentando se comunicar com 
terráqueos.” 
 
APRESENTADOR: Ei, rapaz, não dá pra encurtar isso aí, não? 
 
27 
 
MESTRE DE CERIMÔNIAS: “De repente, um dos apresentadores o chama...” 
 
APRESENTADOR: Sim! Fui eu aqui! Perguntei se não dá pra cortar esse texto. 
 
MESTRE DE CERIMÔNIA: “...O Mestre de Cerimônias caminha até o proscênio, para 
em frente ao microfone e retira de dentro de sua camisa um calhamaço todo amassado. 
Começa a ler...” 
 
APRESENTADORA: Ei, garotão! Não é porque não estamos ao vivo pela TV que a gente 
tem que ficar aqui a noite toda te ouvindo. 
 
MESTRE DE CERIMÔNIAS: “Mais uma noite. Outra chance pra repetir tudo de um 
jeito diferente. Este será o espaço para que todos se mostrem como realmente são.” 
 
APRESENTADOR: Pula umas partes pelo menos! 
 
MESTRE DE CERIMÔNIAS: “...Mas, afinal, o que nós somos? Eu sou um ator, vocês o 
público, dirão alguns. Mas será mesmo? Quem está representando, afinal?” 
 
APRESENTADOR: Termina logo, peloamordedeus! 
 
MESTRE DE CERIMÔNIAS: “...Eu aqui, dizendo essas palavras que não são minhas, 
ou vocês aí, sentados lado a lado, com a mão pousada no braço do companheiro, mas com 
a cabeça aprisionada em outro lugar...?” 
 
APRESENTADORA: Corta essa merda! 
 
MESTRE DE CERIMÔNIAS: (ficando gradativamente nervoso) “Er... Humm... Eu 
suspeito que uma pequena pista para esse enigma esteja nessa história que eu vou lhes 
contar: 
 
APRESENTADOR: Já chega! Eu vou chamar os seguranças! 
 
MESTRE DE CERIMÔNIAS: “Passei as últimas três semanas na frente do computador 
escrevendo isso. Por isso, resolvi vir pessoalmente ler pra vocês... (o Mestre de Cerimônias 
puxa o calhamaço debaixo da camisa) ...Começa assim:...” 
 
APRESENTADORA: Vai embora, rapaz, antes que seja tarde demais! 
 
MESTRE DE CERIMÔNIAS: “Cerimônia de um importante prêmio. Plateia lotada. Os 
apresentadores estão no palco, comandando o show. Entra o Mestre de Cerimônias... 
 
APRESENTADOR: Segurança! 
 
MESTRE DE CERIMÔNIAS: (acelerando a leitura) “...Os apresentadores começam a 
gritar, ordenando que ele pare. A plateia começa a ficar apreensiva... Er... Ele puxa o objeto 
que havia recolhido do chão...” 
 
APRESENTADOR: Tirem esse sujeito daqui! 
28 
 
 
MESTRE DE CERIMÔNIAS: “...puxa o objeto que havia recolhido do chão e... 
Ahhhhhhhhhhhh! 
 
 
Blecaute. O grito ecoano escuro. Barulho de algo caindo no chão. Mudança de luz, etc. 
 
 
 
CENA 18 
 
 
ESPOSA: Você não devia tomar tanto café. Isso atrapalha o sono. 
 
NÃO ATOR: É só uma fase. 
 
ESPOSA: Como tudo na sua vida, aliás. 
 
NÃO ATOR: O que você quis dizer com isso? 
 
ESPOSA: Nada. Apenas que tudo na sua vida é “só por uma fase”, não é mesmo? 
 
NÃO ATOR: Você está parecendo irônica. 
 
ESPOSA: Estou?! 
 
NÃO ATOR: Está... 
 
ESPOSA: Por que será, né?! 
 
NÃO ATOR: Espera! Aonde você vai?! 
 
ESPOSA: Buscar o meu filho na escola. 
 
NÃO ATOR: “Seu” filho? Por acaso você o comprou na última liquidação? 
 
ESPOSA: Olha quem falando... Sabe como ele te chama? “Aquele senhor que está sempre 
por aí”. 
 
NÃO ATOR: Ah, é?! E você sabe como as mulheres do bairro te chamam? Eu ouvi dia 
desses, enquanto esperava você na fila do supermercado. Espera! Não quer saber? Foi o 
que eu pensei. 
 
ESPOSA: Sabe? Você é não é apenas um pai desprezível. Você é um ser humano 
desprezível. 
 
NÃO ATOR: Desculpa... É que eu tenho andado com a cabeça noutro lugar. Deve ser a 
falta de sono. Quer que eu vá com você? 
 
29 
 
ESPOSA: Não. Fica aí, “esfriando a cabeça”. Você está precisando. 
 
 
Mudança de luz. 
 
 
 
CENA 19 
 
 
PALESTRANTE: Mas isso, meus amigos, é porque estamos falando de uma cultura onde 
só os medíocres se sobressaem. Ela, por exemplo! Ela sente inveja de mim. Siiiimmmm!!! 
Porque depois que ela perdeu o papel da protagonista, ela começou a espalhar por aí que 
eu, IMAGINEM!, ganhei o emprego só porque eu, IMAGINEM, tinha um caso com o 
diretor do filme, IMAGINEM! Um velho alcoólatra e brocha, IMAGINEM... Aquela vaca, 
IMAGINEM, disse pra quem quisesse ouvir que eu, IMAGINEM, estava apaixonada pelo 
diretor do filme, IMAGINEM!, que por acaso foi quem também escreveu o roteiro, 
IMAGINEM!; um escritor fracassado, IMAGINEM, e que por acaso também não passa de 
um velho alcoólatra e brocha, IMAGINEM!, que nem sequer me deu o devido valor, 
IMAGINEM, digo, o devido valor ao meu trabalho, IMAGINEM. Agora imaginem! 
 
 
 
CENA 20 
 
 
NÃO ATOR: Eu preciso viajar um pouco. Talvez se eu ficar sozinho com você eu possa... 
 
AMANTE: Você tem mulher e filho. Não pode sair por aí e se isolar quando bem entender 
e depois voltar como se nada tivesse acontecido. 
 
NÃO ATOR: Mas é pro meu próprio bem! 
 
AMANTE: Mesmo assim. 
 
NÃO ATOR: Eu preciso disso pra escrever! 
 
AMANTE: Olha... Você pode vir aqui, passar algumas horas – ou até mesmo a noite toda, 
como você costuma fazer –, mas não, você não pode fugir da sua família por um longo 
tempo. 
 
NÃO ATOR: E por que não?! 
 
AMANTE: Porque isso é egoísmo! 
 
NÃO ATOR: Mas eu vivo disso, não posso deixar que um bloqueio me tire do jogo só 
porque eu tenho que pensar nos outros antes de pensar no meu próprio trabalho! 
 
AMANTE: Quer saber?! Você é um egoísta. 
30 
 
 
NÃO ATOR: E você parece qualquer coisa, menos a minha amante! 
 
AMANTE: Tem razão. (Pausa) Se veste e cai fora. Vai! Não te aguento mais! 
 
NÃO ATOR: Você não pode estar falando sério... 
 
AMANTE: Eu nunca falei tão sério em toda a minha vida! 
 
NÃO ATOR: Eu é que deveria dizer isso pra você! É assim que as coisas funcionam! 
 
AMANTE: Sabe o que eu disse há pouco sobre você ser egoísta? Deixa eu corrigir: não, 
você não é egoísta. Você é um filho da puta nojento, machista, egocêntrico e egoísta. 
Satisfeito agora?! 
 
NÃO ATOR: Er... Onde foi mesmo que eu deixei a minha calça? 
 
 
Mudança de luz. 
 
 
 
CENA 21 
 
 
ÂNCORA COM CABELO ELSÈVE de L'ORÈAL PARIS: 
 
 
VOZ METÁLICA: "Interrompemos a programação para um anúncio oficial: um grupo de 
vândalos se infiltrou entre os funcionários desta emissora e estão destruindo tudo por aq... 
AAHHHHHHHHHHH!!!!" 
 
Sons de alarmes, estilhaços, explosões e destruição em massa, seguidos por um ruído de 
TV fora do ar. Imagem congelada do apresentador bonitão com cabelos grisalhos do 
noticiário da noite chorando a perda de toda a sua família. 
 
FIM 
 
 
Mudança de luz, etc. 
 
 
CENA 22 
 
ANALISTA: Quer dizer então que a apresentadora, no caso, tinha a aparência da sua mãe, 
é isso? 
 
NÃO ATOR: Aí é que tá! Ela tinha a cara da minha mãe, da minha esposa e até mesmo da 
minha amante. E acho que, se eu voltar lá e olhar de novo, pode até ser que ela tenha a sua 
31 
 
cara também. Não é estranho? 
 
ANALISTA: Não. Mais cedo ou mais tarde todos os homens acabam sofrendo disso. 
 
NÃO ATOR: Disso o quê? 
 
ANALISTA: Complexo de inferioridade. 
 
NÃO ATOR: Complexo de infe... Você está dizendo que eu estou sofrendo de uma espécie 
de “inveja do pênis” ao contrário, é isso?! 
 
ANALISTA: Não. Inabilidade mesmo. Com o pênis. O seu, é claro. 
 
 
Mudança de luz, etc. 
 
 
 
CENA 23 
 
 
Risos na plateia. O Mestre de cerimônias entra, retira uma pistola de dentro do casaco e 
se suicida na frente dos milhares de telespectadores do telejornal. Gargalhadas ferozes e 
comerciais. 
 
 
Mudança de luz ou equivalente, etc. 
 
 
 
CENA 24 
 
 
O Não Ator está debruçado sobre o balcão do bar. 
 
 
BARMAN: Vai pra casa, rapaz. Por mais que você tente, não irá conseguir. 
 
NÃO ATOR: Eu consigo sim! Eu sei que eu consigo! Eu tenho que conseguir! 
 
BARMAN: Até poderia, mas não bêbado desse jeito. 
 
NÃO ATOR: Eu não estou bêbado. Aliás, quem é você?! 
 
BARMAN: Ora. Eu sou você... Mas você sóbrio. (o outro solta uma gargalhada) Quer 
uma prova? 
 
NÃO ATOR: Vá em frente. Eu tô tão bêbado que nem vou conseguir escrever essa porra 
mesmo! 
32 
 
 
 
Empurra o calhamaço para longe. O Barman serve uma bebida e deposita sobre o balcão. 
 
 
BARMAN: Veja isso... Olhe bem dentro do copo. Está vendo? 
 
 
Mudança de luz ou equivalente. 
 
 
 
CENA 25 
 
 
ESCRITOR: Alguém entrou aqui e roubou os meus textos. 
 
LANA: Como é que é?! 
 
ESCRITOR: Isso mesmo! Algum filho da puta arrombou a porta e levou tudo o que eu 
tinha! 
 
LANA: Levou seu computador, é isso? 
 
ESCRITOR: Não. Levou os meus textos! 
 
LANA: Seus textos? 
 
ESCRITOR: Levou meu computador, claro. Levou a TV também. Levou tudo, tudo! 
 
LANA: E você não tem cópias? 
 
ESCRITOR: Eles queimaram. 
 
LANA: Eles?! Como assim “eles”?! 
 
ESCRITOR: Eu, eles, que diferença isso faz?! Nunca pensei que fosse precisar de umas 
folhas impressas empilhadas num canto do quarto. 
 
LANA: Tá, calma! Fica calmo, eu tô indo pra aí... (Pausa) Eu achei que você tivesse dito 
que haviam levado tudo! 
 
ESCRITOR: Levaram umas coisas, quebraram outras... Só o que sobrou foi isso que tá aí. 
 
LANA: O que será que eles estavam procurando pra deixarem todos os livros no chão? 
 
ESCRITOR: Não sei. 
 
LANA: O que é isso no seu pulso? 
33 
 
 
ESCRITOR: Sei lá, alguma alergia... Talvez algum bicho tenha me picado, não sei... Mas 
o que isso tem a ver com o que eu tô te contando?! 
 
LANA: Nada. Só achei que você pudesse ter se machucado durante o assalto. 
 
ESCRITOR: Não, eles me amarraram, mas eu não reagi. 
 
LANA: Então você...? 
 
ESCRITOR: Sim. Eles me forçaram, eu não tive escolha. 
 
LANA: E foi bom? 
 
ESCRITOR: Eu não tive escolha... Mas sim, foi bom. 
 
LANA: Hum... Poderia ter sido pior. 
 
ESCRITOR: Foi pior! 
 
LANA: Tá. Vem. Eu vou te ajudar a arrumar isso. 
 
ESCRITOR: Não! Deixa assim! 
 
LANA: Por quê? 
 
ESCRITOR: Pra eu lembrar. 
 
LANA: Pra que você vai viver com esse monte de tralha à sua volta? Não faz mais sentido, 
eles destruíram tudo! 
 
ESCRITOR: Ela destruiu tudo o que nós tínhamos; agora só o que tenho são os seus 
textos. 
 
AMANTE: Mas a culpa não foi dela! 
 
NÃO ATOR: Não foi? 
 
ESPOSA: Não. Eu os queimei. Eram textos que me desagradavam profundamente, não 
queria que ninguém os visse. 
 
ATRIZ: Mas eu vi. Naquela noite mesmo. Eu e entrei e revirei tudo atrás deles, mas só o 
que encontrei foi uma pedra enorme que quando caiu no chão abriu um buraco no 
assoalho. Então a água começou a entrar e... 
 
PALESTRANTE: Sabemcomo os ingleses do século 19 chamavam o rio Tâmisa? 
 
ATOR 2: Merda! As pessoas falando sem parar no teatro! 
 
34 
 
LANA: As pessoas comendo. 
 
ATOR 1: Sim. Comendo, falando, rindo... 
 
ATOR 2: Não faz diferença. Elas estavam lá – e você também. 
 
ATOR 1: E ela também. 
 
ATRIZ: E ela também. Comendo e rindo igual a uma porca... mas não falava. 
 
LANA: Falava, mas não ouvia. 
 
ESPOSA: Não estava nem aí pra mim. 
 
AMANTE: Eles não estão nem aí pra você – ou pros seus textos... 
 
ESCRITOR: Eles ainda não estão prontos pra isso. 
 
PALESTRANTE: Poderia chamar de “Tietê”, mas não teria o mesmo impacto. 
 
MÉDICO: Eles recordam as coisas conforme lhes vêm à cabeça. Eu só mostro que não há 
mais espaço para o delírio. 
 
BARMAN: Eles são feitos de carne e osso, como todos nós. 
 
PACIENTE: “...Nós somos os homens ocos, a cabeça cheia de palha.” 
 
ATRIZ: “Sou um ser atormentado...” Não. Eu não vou ler isso! Eu não sou! 
 
NÃO ATOR: Mas eu sou. 
 
ESPOSA: E eu aqui lendo o que você escreveu aos nossos amigos; procurando uma parte 
de identificação e encontrando no caminho mais e mais tortura. Você não presta mesmo! 
 
NÃO ATOR: Nunca disse que prestava. 
 
ATOR 1: Nunca. 
 
ESCRITOR: Nunca disse que ia escrever coisas bonitas. 
 
AMANTE: Nunca mesmo. Quero você longe daqui. Anda! Vai. 
 
ATOR 1: Você está confusa, é isso. 
 
ESPOSA: Não, não é isso. 
 
ESCRITOR: É isso! 
 
LANA: Não só. 
35 
 
 
ANALISTA: É sim. 
 
ESCRITOR: Não é! Você levou os meus textos! 
 
ATOR 2: O que é isso no seu rosto? 
 
LANA: Tinta, por quê? 
 
ESCRITOR: Tire isso. Você parece tímida demais. 
 
ESPOSA: Não vou. 
 
NÃO ATOR: Tire isso. 
 
AMANTE: Não. 
 
ESCRITOR: TIRE ISSO! 
 
PALESTRANTE: Não sou! 
 
ATOR 1: Mas parece. 
 
ATRIZ: Sou e não sou. 
 
LANA e ANALISTA: Você faz alguma ideia de onde devemos procurar? 
 
ESCRITOR: Não. 
 
ESPOSA: Você nunca faz ideia de nada mesmo. 
 
NÃO ATOR: Isto é uma reclamação? 
 
AMANTE: Uma constatação. 
 
ANALISTA: ...Eu diria. 
 
LANA: Você não diz, eu digo. Você só escreve. Escreve aí o que eu digo: “alguém entrou 
aqui e roubou os meus textos”. 
 
ESCRITOR: Como é que é?! 
 
LANA: Isso aí. “Algum filho da puta arrombou a porta e levou tudo o que eu tinha!” 
 
ESCRITOR: Não vou escrever isso. 
 
ASSISTENTE: Ora, por que não? 
 
ESCRITOR: Porque é uma mentira. 
36 
 
 
LANA: Não é. Eu aposto com você que não é. 
 
ESCRITOR: Me recuso a escrever isso! 
 
MESTRE DE CERIMÔNIAS: Isso deveria estar nas salas de aulas, no congresso, nas 
reuniões das igrejas, nos palanques, mas não aqui dentro. Não aqui! 
 
A: Ora, não leve tudo tão a sério. É só uma brincadeira. 
 
ELE: Escreve aí: “posso sentar ao seu lado?” 
 
ELA: Sim. 
 
ATOR 2: Você se importa se eu tocar em você? 
 
ATOR 1: Se importa se a gente transar? 
 
ESPOSA: Não. Me importa apenas se você é você. 
 
NÃO ATOR: Não sou. 
 
GARÇONETE: Alguém roubou os meus textos. 
 
LANA: Quem? 
 
NÃO ATOR: Como vou saber?! 
 
ESCRITOR: Ela entrou lá em casa um dia e quebrou tudo. 
 
ANALISTA: Como vou saber se foi realmente ela? 
 
NÃO ATOR: Tinha o seu rosto! E de minha mãe também. 
 
LANA: E se foram eles? 
 
ATOR 1: Por quê? Você transou com eles? 
 
ATOR 2: Transar, transar... Que palavra idiota: “transar”! Mas sim, eu aceito. 
 
ATOR 1: E como eles eram? 
 
ESCRITOR: Muitos. Tantos quanto esses livros espalhados no chão. 
 
ATOR 1: Você é uma hipócrita, isso o que você é. 
 
ANALISTA: Não, não sou. Apenas pareço. 
 
NÃO ATOR: Ah, me desculpe então. 
37 
 
 
PACIENTE: Estou confuso. 
 
MÉDICO: Eles também. 
 
ESCRITOR: Sem os meus textos eu fico... 
 
LANA: Não, você não fica. Mas pode ficar, se quiser. Gosta assim? 
 
ESCRITOR: Gosto... Gosto muito. Você é ótima. 
 
ATOR 1: Ótimo. 
 
NÃO ATOR: Ótimo! Quando começamos? 
 
A: Agora. 
 
B: Agora?! 
 
A: Vai! 
 
ESCRITOR: Ei, eu conheço esse texto! 
 
NÃO ATOR: É seu? 
 
BARMAN: Não sei, só sei que conheço. 
 
ASSISTENTE: Vamos lá falar com ela. 
 
ESCRITOR: Oi. Com licença... Você é... 
 
GARÇONETE: Eu mesma. 
 
ATRIZ: Estávamos esperando por você. 
 
DIRETOR: Eles vão bagunçar tudo pra que pareça um assalto, daí você senta e espera. 
 
BARMAN: Quer beber alguma coisa enquanto isso? 
 
NÃO ATOR: Não, obrigado. 
 
ATRIZ: Existe alguma coisa que você queira em especial? 
 
PACIENTE: Sim. 
 
ATOR 2: Diga. Estamos ao seu dispor. 
 
ESCRITOR: Que vocês se deitem como livros abertos espalhados pelo chão. 
 
38 
 
LANA: Isso não será possível. Mas eles abrirão suas camisas e deixarão você lambê-los 
até encontrar os seus textos, está bem? 
 
DIRETOR: Impossível. 
 
ASSISTENTE: Ora, por quê? 
 
ATOR 1: Porque eu não sou assim. 
 
ATOR 2: Assim como? 
 
NÃO ATOR: Como você. 
 
ESPOSA: Estamos em crise. 
 
ESCRITOR: É, acho que sim. 
 
NÃO ATOR: Devo pegar minhas coisas e ir embora, é isso? 
 
ESCRITOR: Acho que sim. Não, espera! Antes deita no chão... com a camisa aberta, 
assim. 
 
GARÇONETE: Pode deixar que eu arrumo. 
 
ESCRITOR: Não! 
 
LANA: Por que não? 
 
NÃO ATOR: Porque eu aceito. 
 
ANALISTA: Aceita? 
 
ESPOSA: Cretino! Você escreveu sobre isso?! 
 
ESCRITOR: Por quê? 
 
AMANTE: Porque não pode... Não pode! Simplesmente não pode! 
 
DIRETOR: Mas por quê? 
 
LANA: Ele foi mais rápido. 
 
ESCRITOR: Mais rápido? 
 
LANA: Abriu sua camisa, mesmo quando você não pediu isso. 
 
DIRETOR: Eu pedi apenas livros no chão. 
 
MÉDICO: São eles? 
39 
 
 
PACIENTE: Não, esses são outros. 
 
ESCRITOR: Mais intensos? 
 
LANA: O mesmo, mas outros. 
 
NÃO ATOR: Estranho... 
 
PACIENTE: Colapso de tempo. Ruínas descartáveis. Essas coisas que dão barato, sabe? 
 
BARMAN: Antes de você ir, eu... 
 
ATOR 1: Você...? 
 
ANALISTA: Nunca nem sempre às vezes. 
 
ESPOSA: Como eles descobriram?! 
 
LANA: Não se sabe. 
 
ESPOSA: Então apague. 
 
AMANTE: Hã? 
 
ESPOSA: Isso mesmo que você ouviu: apague. 
 
ESCRITOR: Eles apagaram? 
 
NÃO ATOR: O quê? 
 
GARÇONETE: Os meus textos. 
 
LANA: Você se lembra desse? 
 
ESCRITOR: Não. 
 
LANA: Lembra de algum? 
 
PACIENTE: Não, não... Lembro apenas das cores de suas camisas. Cores intensas, como 
as íris dilatadas – as minhas, mas neles... Entende o que quero dizer? 
 
ATRIZ: Não, fica confuso demais. Não gosto assim... 
 
ATOR 1: Daí fica simplificado demais, a vida não é tão fácil. 
 
DIRETOR: Não se trata de vida. Se trata de um arrombamento. 
 
ASSISTENTE: Sim, eu sei. 
40 
 
 
BARMAN: Uma simulação. 
 
GARÇONETE e ATOR 2: Nós sabemos. 
 
ATOR 1: Você se importa se eu foder você? 
 
ANALISTA: Claro que não, estava esperando chegarmos nessa página. 
 
NÃO ATOR: Como livros no chão. Folhas queimando. Ódio em movimento. 
 
PACIENTE: Chuva de cinzas sobre Tóquio. 
 
PALESTRANTE: O rio fétido e prateado cortando Londres como uma navalha ao luar. 
 
GARÇONETE: Sorry, my mistake. 
 
AMANTE: Eu, você e mais ninguém. 
 
ESCRITOR: Nós dois e os livros. 
 
ATOR 1: Onde você os encontrou? 
 
ATOR 2: Por aí. 
 
ATOR 1: Algum dos seus? 
 
NÃO ATOR: Nunca. 
 
ESPOSA: Apague! 
 
ESCRITOR: Não. 
 
ESPOSA: Vamos, queime isso. 
 
DIRETOR e LANA: Abra sua camisa. Assim... Agora apague. 
 
ATOR 1: Você quer me cansar, é? 
 
ATRIZ: Não, apenas confundir. 
 
ATOR 2: Pois então fique à vontade. 
 
PACIENTE: Insanidade gerenciada, é isso que você é. 
 
LANA: Escreva aí: 
 
MÉDICO: Sim? 
 
41 
 
ATOR 1: É quase impossível te achar em casa. Vamos, eu te ajudo a levantar. 
 
ATOR 2: Eu te ajudo a encontrar esses canalhas que fizeram isso com você. 
 
BARMAN: Você não vai conseguir. Desligue a TV, já está tarde. 
 
ESCRITOR: Eles levaram a TV também. Não que eu me importe... 
 
NÃO ATOR: Já é tarde? 
 
ESPOSA: Muito. 
 
ELE: Sabe o que eu senti? 
 
A: Nada. 
 
ANALISTA: Nada? 
 
ESCRITOR: Nada. 
 
ELE: Nem sequer um dos livros no chão? Algum texto? 
 
ATOR 1: Nem a palavra “amor”? 
 
ELA: Nada. 
 
BARMAN: Bloquearam meu cartão uma vez. Tive quecorrer até o banco pra sacar na fila 
do caixa, sempre com minha identidade e uma cara de idiotia infinita. 
 
ATOR 1: E eles acreditavam? 
 
ESCRITOR: Sim. Afinal, era o meu dinheiro. 
 
ATOR 1: Mas havia mais? 
 
ATOR 2: Sim. TV, textos, livros. Mas isso é passado agora. 
 
ANALISTA: Entendo. 
 
MÉDICO: E eles te entendiam? 
 
PACIENTE: Quase nunca. 
 
ASSISTENTE: Entendo... 
 
 
Mudança de luz ou equivalente, etc. 
 
 
42 
 
 
CENA 26 
 
 
BARMAN: Vem, eu te ajudo. (carregando o Não Ator nos ombros) Isso, assim... Pronto. 
Até uma próxima. (o Não Ator cambaleia em direção à saída) Ei! Antes de você ir, preciso 
contar uma coisa: dia desses eu entrei num site de uma livraria. Não tinha o que fazer e 
resolvi procurar um livro que eu queria. Mas daí logo na página inicial já saltaram uns 100 
outros livros que eu ainda tenho que ler e que me fazem ter pesadelos todo vez que me 
lembro deles. Todos assim, em fila, esperando por mim. No fim das contas eu nem 
conseguia mais lembrar pra que eu havia entrado lá! Você sabe o que quero dizer com isso, 
não sabe? Entende essa sensação, não entende? 
 
 
ESCRITOR: Entendo. 
 
ESPOSA: É, é isso. 
 
ASSISTENTE: É só esperar a poeira baixar e uma hora tudo volta a ser como era antes. 
 
MÉDICO: Você precisa descansar um pouco, só isso. 
 
AMANTE: Depois falamos sobre as sessões atrasadas, agora descanse. 
 
 
Mudança de luz. 
 
 
 
CENA 27 
 
 
A atriz está debruçada sobre o balcão, falando ao telefone. 
 
 
GARÇONETE: Enfim... O que eu estava dizendo é que eu não queria dizer nada quando 
eu disse aquilo. Eu só queria dizer alguma coisa, só isso. Eu precisava usar as palavras 
assim como eu uso as minhas pernas e as minhas mãos. 
 
 
O Barman entra e, ao ver a Garçonete, a observa à distância. Ao perceber sua presença, 
ela põe o fone no gancho. 
 
 
BARMAN: O que você ainda está fazendo aqui?! 
 
ATRIZ: Er... Eu... Eu só queria... 
 
BARMAN: Esse telefone não funciona. Faz parte do cenário. É só uma ilusão. 
43 
 
 
ATRIZ: Sim, eu sei. 
 
 
Silêncio. 
 
 
BARMAN: Tudo bem... Vai pra casa dormir. Já está tarde. Você não vai conseguir escrever 
alguma coisa decente em apenas uma noite. 
 
 
A Garçonete fecha o calhamaço, retira o seu avental, o larga atrás do balcão. O Barman 
continua observando-a enquanto ela sai. A atriz permanece em cena. 
 
 
 
CENA 29 
 
 
Os dois estão sentados no chão. As camisas abertas e uma ou outra poça de água 
escorrendo através de uma cratera que os separa. 
 
 
ATOR 1: Eu sonhei contigo hoje. 
 
ATOR 2: É? 
 
ATOR 1: É. 
 
ATOR 2: E o que você sonhou? 
 
ATOR 1: Sonhei que a gente tava num lugar longe daqui – uma pousada, um restaurante 
de beira da estrada, sei lá – e você estava indignado com alguma coisa, por isso foi até 
dentro do tal lugar enquanto eu fiquei sentado no cordão da calçada, esperando, e quando 
você voltou estava querido de novo e parecia finalmente ter entendido. E então a gente 
conversou e você passou a mão no meu rosto – eu tava com uma barba muito maior do que 
esta que tá agora – e eu sabia o tempo todo, não sei bem o porquê, mas eu sabia o tempo 
todo enquanto a gente conversava que você estava louco pra dizer que me amava, mas não 
conseguia – mais ou menos como quando eu sinto o impulso de dizer pra minha mãe o 
quanto eu amo ela e até planeje isso pra uma ocasião especial, mas quando chega o 
momento eu nunca consigo. Eu sabia que você queria dizer que me amava, e você parecia 
finalmente me entender... Então eu falei com calma, você sorriu, e nós decidimos ficar 
juntos – na verdade a gente não falou sobre isso no sonho, mas eu sabia que a partir dali a 
gente ia ficar junto por muito tempo ainda. E você ficou feliz, e eu fiquei feliz porque você 
estava feliz. E foi só então que eu percebi o seu medo. Mas não sei se o seu medo era 
porque a partir dali você teria que ceder em certas coisas do seu temperamento as quais 
você nunca cede, ou se era simplesmente por medo de estar feliz... 
 
ATOR 2: Você acha mesmo que eu tenho medo de me sentir feliz? 
44 
 
 
ATOR 1: Não sei... Eu tenho, você não? 
 
 
 
CENA 30 
 
 
PALESTRANTE: E pra encerrar, o mais importante aprendizado que hoje eu faço questão 
em tornar ensinamento nas minhas palestras: (Pausa, solene) a vida é um livro. Um livro 
grande e empoeirado que quando a gente pensa que está acabando, percebe que está recém 
no primeiro capítulo. Um livro péssimo, escrito por um imbecil, cheio de erros gramaticais. 
Assim é a vida. Obrigado pela atenção de todos. Uma boa noite. 
 
 
Aplausos. Mudança de luz, etc. 
 
 
 
ENCERRAMENTO 
 
 
ÚLTIMA NOITE – FINALIZADO – ENCERRADO 
 
 
MESTRE DE CERIMÔNIAS: E lembrem-se: não há espaço para verdades aqui. Somos 
apenas máscaras, reflexos, ficções, nada mais que isso. Pequenas luzes espalhadas numa 
enorme cidade imaginária desenhada pelo autor. Então, ao sairmos desta sala, eu espero 
que a gente transforme o lugar lá fora num enorme palco onde cada um de nós atue da 
forma mais irreal possível. Só assim será possível continuar. Afinal, não existe nada além 
do que sempre esteve escondido. 
 
 
Lentamente, o Mestre de Cerimônias faz um gesto para tirar algo de dentro do casaco. 
Antes que o retire e o mostre à plateia, a luz vai descendo até o deixar na penumbra. 
 
 
DIRETOR: Acabou. 
 
LANA: Deite no chão. 
 
BARMAN: Hora de dormir. 
 
ANALISTA: Talvez sonhar. 
 
 
Silêncio. O médico entra. Uma de suas mãos está escondida dentro do casaco enquanto a 
outra segura um copo. 
 
45 
 
 
MÉDICO: Acorde. 
 
 
Ele deixa o copo cair. Blecaute. 
 
 
 
 
FIM

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