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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 1 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php NUANCES POÉTICAS NA FICÇÃO TELEVISIVA BRASILEIRA: análise de As Aventuras de Poliana (SBT)1 POETIC NUANCES IN BRAZILIAN TELEVISIVE FICTION: analysis of As Aventuras de Poliana (SBT) João Paulo Hergesel2 Rogério Ferraraz3 Resumo: A relação entre televisão e poesia pode não ser tão heterogênea quanto aparenta. O objetivo principal deste artigo é investigar como se formam as nuances poéticas na ficção televisiva brasileira, por meio de dois recortes de As Aventuras de Poliana (SBT), tendo em vista a relevância científico-cultural desse tipo de discussão e a carência desse tema no campo dos estudos televisivos. A metodologia utilizada é a análise narrativa e estilística, com base nos textos de David Bordwell, Jeremy G. Butler e Simone Maria Rocha, entre outros. O corpo teórico encontra, ainda, suporte nas pesquisas de Décio Pignatari, sobre comunicação poética, de Míriam Cristina Carlos Silva, sobre poético na mídia, entre outros autores. O resultado aponta que, mesmo em se tratando de uma mídia massiva, sobretudo quando direcionado ao âmbito da TV aberta, com foco em uma narrativa que visa ao retrato do cotidiano, é perceptível a presença de momentos que se sobressaem expressivamente. Palavras-Chave: Televisão. Ficção seriada. Nuances poéticas. Abstract: The relationship between television and poetry may not be as heterogeneous as it appears. The main objective of this article is to investigate how the poetic nuances in Brazilian television fiction are formed, through two cuts of As Aventuras de Poliana (SBT), considering the scientific-cultural relevance of this type of discussion and the lack of this theme in the field of television studies. The methodology used is the narrative and stylistic analysis, based on the texts by David Bordwell, Jeremy G. Butler and Simone Maria Rocha, among others. The theoretical reference also finds support in the researches by Décio Pignatari, about poetic communication, and by Míriam Cristina Carlos Silva, about poetic in the media, among other authors. The result is that even in the case of a mass media, especially when directed to the scope of open TV, focusing on a narrative that aims at the portrayal of daily life, it is possible to see the presence of moments that stand out expressively. Keywords: Television. Serial fiction. Poetic nuances. 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Estudos de Televisão do XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019. 2 Doutorando em Comunicação (UAM), mestre em Comunicação e Cultura (Uniso) e licenciado em Letras (Uniso). Membro dos grupos de pesquisa Inovações e Rupturas na Ficção Televisiva Brasileira (UAM/CNPq) e Narrativas Midiáticas (Uniso/CNPq). Contato: jp_hergesel@hotmail.com. 3 Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi. Doutor em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) e mestre em Multimeios (Unicamp). Vice-líder do grupo de pesquisa Inovações e Rupturas na Ficção Televisiva Brasileira (UAM/CNPq). Contato: rferraraz@anhembi.br. mailto:jp_hergesel@hotmail.com mailto:rferraraz@anhembi.br Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 2 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php 1. Introdução Se a televisão é uma mídia capaz de abrigar os mais diversos tipos, gêneros e formatos audiovisuais, vemos que o hibridismo expressivo encontra seu apogeu no Brasil: ao mesmo tempo em que temos produções que tentam consolidar um estilo próprio e identitário, grande parte do que se veicula é uma derivação – ou até mesmo uma reciclagem – de fenômenos já experimentados em outros países. Em termos de televisão aberta, essa mistura de elementos é intensificada: a tentativa de abranger um público bastante amplo faz com que as emissoras nacionais inventem e se reinventem, inovem e se renovem, rompam e corrompam as estruturas do texto televisual. Um dos modos encontrados pela televisão para surpreender sua audiência é experimentar novas técnicas de condução narrativa: desde a quebra dos padrões melodramáticos e inserção do merchandising social em Beto Rockfeller (TV Tupi, 1968-1969) ao uso de recursos cinematográficos em Avenida Brasil (Rede Globo, 2012), muito tem se observado no que concerne à de poética televisiva, isto é, o modo como os produtos são construídos. Em alguns casos mais específicos, como Hoje é Dia de Maria (Rede Globo, 2005) e A Pedra do Reino (Rede Globo, 2007), a preocupação com os elementos artísticos são tantos que a poética (enquanto modo de criação) serve-se do poético (enquanto característica daquilo que contém elementos da poesia). O poético, tal qual um nível mais elaborado e complexo de linguagem, ainda tem uma presença tímida na televisão brasileira, despontando-se em narrativas mais experimentais, especialmente se considerado o fluxo de veiculação dessa mídia (a maior parte das emissoras mantém sua programação no ar de forma ininterrupta). Por outro lado, se uma narrativa prosaica pode trazer trechos que perpassam a aura da poesia, lançamos a hipótese de que uma produção televisiva poderia conter cenas e sequências que carregam em si potencialidades comunicativas que abalam a linearidade do corriqueiro e esbarram no invólucro sensível do lirismo. Entender a relação existente entre poesia e televisão é, portanto, um assunto necessário, e aqui registramos um pensamento inicial no que diz respeito à existência de fragmentos do poético em narrativas televisivas. Com o objetivo de investigar como se formam as nuances poéticas na ficção televisiva brasileira, elegemos dois recortes da telenovela As Aventuras de Poliana (SBT) que parecem não somente retratar parte do cotidiano dos personagens, mas também explorar os efeitos estilísticos capazes de fomentar a intensidade da ação. São eles: a Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 3 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php revelação de um mistério envolvendo a vida pessoal de Sophie; e a lembrança de um beijo entre Luísa e Marcelo. Esta pesquisa, portanto, tem como campo de estudos a televisão, no âmbito da TV aberta, com concentração nas produções brasileiras, enfoque na ficção seriada e direcionamento para a telenovela As Aventuras de Poliana (SBT). Tal trabalho consiste em uma reflexão sobre os contextos da criação (poética da narrativa) e da fruição (possibilidade de apreensão dos recursos estilísticos utilizados), nas dimensões comunicativas e discursivas, versando a respeito de um gênero nacionalmente consagrado, à busca de um aprimoramento das abordagens críticas e metodológicas para a análise desse fenômeno televisivo. Para compreender melhor esse processo, realizamos um percurso que dá continuidade a pesquisas antecessoras envolvendo narrativas midiáticas (HERGESEL; SILVA, 2018), estilo televisivo (HERGESEL; FERRARAZ, 2018) e sua aplicação na dramaturgia do SBT (HERGESEL, 2019). Para isso, aplicamos uma análise narrativa e estilística nas cenas selecionadas, com base nos textos de David Bordwell (2008), Jeremy Butler (2010) e Simone Maria Rocha (2016), entre outros. Antes disso, porém, propomos uma reflexão sobre o que seria comunicação poética e a presença do poéticona mídia, com suporte nas pesquisas de Décio Pignatari (2011), Míriam Cristina Carlos Silva (2009; 2010; 2017; 2018), Gabriela Borges (2004), entre outros autores. 2. Poesia, poético e poética O conceito de “poética”, para Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), está relacionado à criação: enquanto mimesis é o ato de imitar (algo comum na época eram os imitadores de pessoas em ação), a poiesis é o ato de criar – fossem versos líricos ou épicos, tratados médicos ou de física (ARISTÓTELES, 1999). Entende-se “poética” (substantivo), portanto, como a produção de uma obra, independentemente de modalidade discursiva ou de suas características estruturais; entretanto, é necessário salientar que o termo “poética” pode também ser um adjetivo derivado da palavra “poesia”, como é o caso de “comunicação poética” e “nuances poéticas”, conceitos abordados neste trabalho. A concepção de “poesia”, diferentemente de poética (substantivo), está exclusivamente relacionada ao artístico. Considera-se “poesia” – ou obra “poética” (adjetivo) – a obra de arte, principalmente literária, que se utiliza de uma gama de recursos expressivos para ascender seu nível de linguagem. Expandindo a ideia para outras plataformas que não o livro, “poesia é uma Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 4 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php instituição mais potente do que mera disposição de versos, técnicas, estratégias e/ou marcas artísticas; [...] é praticamente uma aura comunicacional que desperta e acompanha outras abstrações, como a paixão, a sensibilidade, o encantamento” (HERGESEL, 2018, p. 6-7). Ao discorrer sobre a comunicação poética, Décio Pignatari (2011) defende: “Quando falamos de arte, não devemos somente pensar em pintura, literatura, música, dança, cinema” (p. 53). Para o autor, muitas são as manifestações da poesia, pois os objetos formam signos e, consequentemente, constroem uma linguagem. “Você pode ‘ler’ uma cadeira tanto quanto um poema”, diz o autor (p. 53); dessa forma, é possível que leiamos os sons e as imagens e consigamos detectar e compreender os recursos de poesia que se manifestam no produto, ainda que de forma velada. Trata-se do poético. O “poético”, segundo Isabella Pichiguelli e Míriam Cristina Carlos Silva (2017) é “uma qualidade da linguagem” que “pode se manifestar em imagens, sons, no corpo, no cinema, em distintos modos de codificação da linguagem e em diferentes suportes midiáticos” (p. 4). Em um estudo anterior, Silva (2010) afirma que “poético” é um fenômeno que oferece um “constante intercâmbio entre os diversos textos da cultura, entre os quais estão os media” (p. 280), vindo a contribuir com o pressuposto de que existe um frutífero relacionamento entre a poesia e as mídias – e, em consequência, entre as nuances poéticas e a comunicação televisiva. Nessa linha de raciocínio, denominamos “nuances poéticas” algo similar ao que Silva (2009) considera “comunicação erótica”, ou seja: pitadas expressivas que “desperdiçam significâncias”, “aguçam os sentidos do receptor”, são “signos gerando signos que geram outros signos”, são “referentes gerando referentes e visando ao prazer textual” (p. 51). Conforme registrado em reflexões anteriores, “são passagens cuidadosamente elaboradas que demonstram zelar pela expressividade, destacando-se das demais partes que compõem determinada narrativa” (HERGESEL, 2018, p. 6). A definição de “nuances poéticas” adotada neste trabalho tem semelhanças ao “sensível”, dissertado por Ana Maria Acker (2013) como sendo um elemento para compreender a experiência estética que se propaga entre a produção de sentido e a produção de presença. Para a autora, que segue o pensamento gumbrechtiano4, o sensível vem a ser uma dimensão que dialoga com a cinestesia, atuando como fator tátil no espectador; o que chamamos de “nuances 4 Hans Ulrich Gumbrecht (1948-) é um teórico literário alemão e um dos principais autores a defender a ideia de materialização dos fenômenos comunicacionais, explorando aspectos como a produção de presença e a produção de sentido. Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 5 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php poéticas”, contudo, não diz respeito necessariamente ao modo como a recepção tende a encarar o objeto, materializando-o, mas sim ao modo como o objeto é constituído. Em síntese, as nuances poéticas podem (ou não) atingir o sensorial durante sua fruição, mas essa não é uma preocupação primária. Para somar a esses raciocínios, Denilson Lopes (2007), estabelece uma diferenciação entre a “estética do efeito”, mais ligada ao grotesco e ao escândalo, e a “estética do afeto”, que seria “o surgimento de um estímulo imaginativo que liga a ética diretamente à estética; não mais uma arte de limites, de transgressão, mas de possibilidades” (p. 90). Para o autor, a obra que se propõe a apresentar traços artísticos sugere algo além do impacto, do choque, algo que motive sentimentos, sensações, emotividade; o que chamamos de “nuances poéticas”, porém, está mais relacionado às estratégias de intensificar ou atenuar, de contradizer ou comparar, de ironizar ou empoleirar o produto. Em suma, as nuances poéticas podem (ou não) despertar afetos na recepção, mas essa também não é a atenção dominante. A ideia de “nuances poéticas”, portanto, não pode ser entendida como sinônimo de “experiência estética”: retomando as origens dessas palavras, aisthesis é a estesia, a percepção que se tem de algo, estando assim mais ligado a quem consome do que a quem produz. Para Laan de Barros (2016), “o exercício da recepção, que envolve apropriação e produção de sentidos, pode ser definida como experiência estética. Nessa angulação, a experiência estética pode ser compreendida como percepção sensível, plena de sensações” (p. 2). Resumidamente, experiência estética está relacionada ao receptor/consumidor/espectador; as nuances poéticas são próprias do emissor/criador/ produtor. Para esclarecer o que seriam “nuances poéticas”, retornamos a Pignatari (2011), e resgatamos a ideia de sintagma e paradigma. Para o autor, embasado pela teoria saussuriana5, o eixo paradigmático está diretamente ligado à seleção, à semelhança, à similaridade; o eixo sintagmático, por sua vez está vinculado à combinação, à proximidade, à contiguidade. Nesse sentido, aludindo à teoria jakobsoniana6, Pignatari diz que a comunicação poética ocorre quando “o eixo de similaridade se projeta sobre o eixo de contiguidade” (p. 17); mencionando 5 Ferdinand de Saussure (1857-1913) foi um linguista suíço bastante reconhecido pela fundamentação da Semiologia enquanto estudo dos signos e por suas dicotomias: língua e fala, sincronia e diacronia, sintagma e paradigma, significante e significado. 6 Roman Jakobson (1896-1982) foi um pensador russo consagrado por suas propostas de análise estrutural aplicadas à linguagem, à arte e à poesia. Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 6 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php a teoria peirciana7, explica que “fazer poesia é transformar o símbolo (palavra) em ícone (figura)” (p. 17). Tendo também como ponto de partida tais reflexões de Pignatari, Luís Mauro Sá Martino (2013) explica que “é característica da comunicação poética alterar as relações entre os eixos sintagmático e paradigmáticona elaboração de formas inesperadas, criativas, de uso da linguagem” (p. 52). Ao aplicar esse pensamento na análise da “comunicação poética do humor” no seriado Chaves (México: Televisa, 1973-1980), o autor diz que “a poética da linguagem está também na elaboração de formas novas como modalidades de se compartilhar mensagens conhecidas” (p. 52). Em um estudo aplicado às peças televisivas de Samuel Beckett, Gabriela Borges (2004) mostra que o referido autor “explorou o seu potencial artístico e, de certa forma, promoveu um diálogo entre os seus elementos constituintes numa busca incessante por expressar o inexprimível” (p. 150). Para Borges, a poética televisual de Beckett pode ser observada se considerados “os mecanismos da câmera, o áudio, a iluminação e a edição em imagens em movimento, com o intuito de dar forma ao seu projeto abstrato” (p. 151). Percebe-se que existe uma associação entre a poética (com sentido de modo de criação) e o poético (como artifício para elevar a expressividade). Ao abordar especificamente a telenovela, Míriam Cristina Carlos Silva e Bruna Emy Camargo (2018) classificam tal narrativa como “um produto produzido artificialmente, que leva em conta uma linguagem e um público específicos” (p. 135). Para as autoras, no entanto, “além de representar os fenômenos sociais, como mediadora, levando à interpretação dos fatos, pode oferecer novos modelos de realidade, sensibilizando o olhar do público, sobretudo quando converge com a arte” (p. 135). Isso reforça a ideia de que, mesmo em se tratando do entretenimento trivial, é possível perceber a presença de nuances poéticas. 3. Investigando as nuances poéticas na televisão Ao mencionar a poética, David Bordwell (1989) retoma os estudos aristotélicos e diz que essa vertente estuda “o trabalho finalizado como o resultado de um processo de construção” (p. 371) e que considera “o modo como o trabalho é composto, sua função, efeitos e usos” (p. 371). Para o autor, estudar a poética de um filme tende a compreender conceitos e percepções 7 Charles Sanders Peirce (1839-1914) foi um filósofo estadunidense que, dentre as contribuições científicas, destacou-se com as teorias desenvolvidas no campo da Semiótica. Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 7 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php que a análise interpretativa não consegue explicar. Posteriormente, a combinação desses elementos – movimentos, cores, formas, sons – no audiovisual veio a configurar o que o autor chamou de estilo. Para Bordwell (2008), “o estilo é a textura tangível do filme, a superfície perceptual com a qual nos deparamos ao escutar e olhar: é a porta de entrada para penetrarmos e nos movermos na trama, no tema, no sentimento – e tudo mais que é importante para nós” (p. 58). Nesse sentido, a análise estilística mostra-se relevante na maneira em que “sem interpretação e enquadramento, iluminação e comprimento de lentes, composição e corte, diálogo e trilha sonora, não poderíamos apreender o mundo da história” (p. 57-58). Desdobrando esse raciocínio, Kristin Thompson (2003) percebeu que as principais características do cinema clássico hollywoodiano se repetiam nas produções televisivas estadunidenses, sobretudo em se tratando de narrativas ficção, o que possibilitou o início de um estudo sobre o estilo televisivo. Em diálogo com essa observação, Jeremy G. Butler (2010) dedica-se a uma metodologia de análise estilística voltada exclusivamente à televisão, relacionando as obras com o contexto cultural em que estão inseridas. Esse percurso vai ao encontro do que Simone Maria Rocha (2016) executa em se tratando de estilo na ficção televisiva brasileira: a autora explica que “a televisão apoia-se no estilo – cenário, iluminação, videografia, edição e assim por diante – para definir o tom/atmosfera, para atrair os telespectadores, para construir significados e narrativas” (p. 24). Para ela, o estilo televisivo pode “denotar, expressar, simbolizar, decorar, persuadir, chamar ou interpelar, diferenciar, significar ao vivo”, além de estar presente “na interseção de padrões culturais, econômicos, tecnológicos e de códigos semióticos/estéticos” (p. 34). Em complementação, Míriam Cristina Carlos Silva (2018) propõe um processo metodológico para observação de aspectos poéticos nos meios audiovisuais. Para a autora, que se dedica à análise de produções ibero-americanas, deve-se, inicialmente, observar o objeto “anotando os elementos de maior peso dramático” (p, 7); em seguida, deve-se assistir novamente ao produto, atentando-se a “aspectos estéticos, tais como o uso da cor, enquadramentos, elementos de cena, figurino e ambientação” (p. 7). Juntamente à descrição das cenas, deve-se pontuar aspectos narrativos, para que, somado a isso, seja feita a leitura dos aspectos poéticos, “entendidos como ‘qualidade da linguagem’ criativa e criadora, capaz de comunicar por meio do sensível” (p. 7). Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 8 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php Em pesquisas antecessoras, apontamos que a análise estilística, sobretudo se acompanhada da análise narrativa, “é uma das metodologias capazes de compreender o conteúdo audiovisual manifestado pela televisão, sendo ela fundamental para estudar o envolvimento pela linguagem, ou melhor, o efeito comunicativo e cultural dos programas televisivos” (HERGESEL; FERRARAZ, 2017). As análises apresentadas neste trabalho, portanto, seguem ancoradas nos estudos narrativos e estilísticos, a fim de investigar como as nuances poéticas se formam no objeto selecionado. Para eleger as cenas e sequências, retomamos o procedimento metodológico apresentado por Renato Luiz Pucci Jr. et al (2013); para os autores, “basta que se analisem os pontos nodais da trama, isto é, aqueles que podem conter os elementos necessários para que se atinja o objetivo da investigação” (p. 97). Por fim, ficam definidos como corpus de análise para esta pesquisa a revelação de um mistério envolvendo a vida pessoal de Sophie (cap. 71); e a lembrança de um beijo entre Luísa e Marcelo (cap. 27). 4. Nuances poéticas em As Aventuras de Poliana Adaptação do livro Pollyanna (1913), de Eleanor H. Porter, As Aventuras de Poliana (SBT, 2018-presente) tem autoria de Íris Abravanel e direção geral de Reynaldo Boury. Trata- se da segunda narrativa televisiva brasileira inspirada no livro; a primeira foi Pollyana (TV Tupi, 1956-1957), versão assinada por Tatiana Belinky com direção de Julio Gouveia, que tem o título de “primeira telenovela infantojuvenil brasileira” (FRANCFORT, 2011, p. 6) – muito embora tenha sido precedida por Aladim e a Lâmpada Maravilhosa (TV Tupi, 1953), Oliver Twist (TV Tupi, 1955), Peter Pan (TV Tupi, 1955), Heidi (TV Tupi, 1956), entre outras produções de ficção seriadas. As Aventuras de Poliana conta a história de uma garota de 11 anos que viaja o Brasil com a trupe circense de seus pais, Alice e Lorenzo; após o falecimento de ambos, Poliana fica sob os cuidados da tia Luísa, que mantém uma personalidade sisuda e amargurada. Com moradia fixa em São Paulo, a garota faz novos amigos e participa da vida de todos a sua volta, mostrando o “jogo do contente”, uma estratégia que consiste em ver o lado positivo de todas as coisas. Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 9 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.phpDesde sua estreia, As Aventuras de Poliana tem sido a responsável pela maior audiência do SBT8, além de ser a telenovela mais exitosa fora da Rede Globo9. Vencedora do Prêmio F5, promovido pela Folha de São Paulo, na categoria de Melhor Novela de 201810, a narrativa apresenta, ao longo de sua trama, momentos de mistério, amor e comédia (dentre outros gêneros discursivos), muitas vezes registrados de modo a extrapolar o prosaico cotidiano e injetar preciosidades expressivas na mise-en-scène. 4.1. Nuances poéticas do mistério Sophie é professora de música na Escola Ruth Goulart. Iuri é professor de teatro. Iuri passa a se interessar romanticamente por Sophie, mas ela diz ser noiva. Sempre que questionada sobre a identidade do cônjuge, Sophie desconversa. Iuri, então, passa a seguir os passos da moça para saber que segredo ela esconde. Nessa perseguição, descobre que, quando inventa que se encontrará com o noivo, a professora na verdade vai a um clube misterioso. Iuri descobre, ainda, que, para entrar no tal clube, é necessário apresentar uma aliança e dizer a senha “buque no chão”. Disposto a desmascarar Sophie, o rapaz se infiltra no local. A cena analisada – parte do capítulo 71, que foi ao ar em 22 de agosto de 201811, configurando o clímax (ponto nodal) de uma linha de enredo que vem sendo construída desde os primeiros capítulos – mostra o momento em que Iuri entra no clube e reconhece Sophie. Num primeiro momento, vemos Iuri em uma fila indiana, aguardando sua vez para entrar no local; o caráter de prosaico prevalece, mesmo que o cenário contenha elementos musicais pintados na parede e uma única lâmpada seja a referência de iluminação da externa noturna. Iuri observa o modo como os que estão à sua frente são tratados (alguém os aborda por uma abertura na porta e solicita uma senha) e aguarda, de modo ansioso, pela sua vez. A ansiedade de Iuri torna-se um recurso narrativo que tende a colaborar com a proposta de mistério: cria-se uma atmosfera de expectativa em torno da possibilidade de o professor ser barrado ou, por algum motivo, desistir de adentrar o estabelecimento. Salvo esse aspecto, a narrativa se mantém de modo convencional, até que chega o instante de ele ser atendido: o 8 Segundo dados do Kantar IBOPE Media. Disponível em: https://bit.ly/2bdYwyy. Acesso em: 19 fev. 2019. 9 Como registrado no Portal RD1. Disponível em: https://bit.ly/2GNMgW2. Acesso em: 19 fev. 2019. 10 Reynaldo Boury agradece prêmio de “Melhor Novela de 2018” | As Aventuras de Poliana. YouTube, 11 fev. 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rFa6P7qOP4I. Acesso em: 21 fev. 2019. 11 Um dos mistérios de Sophie é revelado | As Aventuras de Poliana. YouTube, 22 ago. 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9hM6g14B-iE. Acesso em: 18 fev. 2019. https://bit.ly/2bdYwyy https://bit.ly/2GNMgW2 https://www.youtube.com/watch?v=rFa6P7qOP4I https://www.youtube.com/watch?v=9hM6g14B-iE Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 10 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php enquadramento do personagem é feito de dentro do clube para fora, por meio da abertura na porta (Fig. 1). Ainda que se mantenha colorido, tons pastel invadem o plano, destacando-se a porta cor de ocre e a iluminação amarelada, inclusive sobre o rosto de Iuri. O segurança é apresentado de costas, tendo somente sua voz como elemento para a formação de um imaginário a respeito desse personagem (a trilha sonora se responsabiliza pela imagem a ser construída). A quebra dos tons pastel ocorre somente com o fundo azul-escuro, em alusão à noite, e o brilho prateado na aliança de Iuri. Retomando as figuras de estilo, encontramos na aliança um símbolo12 de relação conjugal, com peso significativo para ser socialmente considerado um emblema13. Ainda nesse trecho, Iuri diz: “Hoje não esqueci a aliança”, o segurança pergunta: “Senha?”, e Iuri responde: “Buquê no chão”. O discurso verbal, enquanto componente do audiovisual, mesmo que pareça corriqueiro, tende a contribuir para o fomento de nuances poéticas. Na expressão “buquê no chão”, identificamos uma metáfora14 para um relacionamento que foi terminado. Quando o segurança abre a porta, um novo plano revela outra nuance poética, principalmente se considerados os efeitos de luz e sombra: o escurecimento toma conta, salvo pela luz interna (do clube), que permite a visualização do segurança (sem que seu rosto seja relevado) e de Iuri (Fig. 2). Os tons de preto, juntamente do posicionamento em que o professor se encontra, fortalece o clima de mistério, mas sinaliza que alguma nova informação será obtida, após a passagem do professor para dentro do local. O plano seguinte, responsável por apresentar o segredo de Sophie, ancora-se também na iluminação para produzir uma nuance poética: há um palco, enfeitado com tule, e, entre os holofotes, podemos ver uma banda cujas integrantes estão vestidas de noivas (Fig. 3). O rosto de Sophie não fica visível num primeiro momento, devido à forte luz sobre ele, sendo gradualmente revelado. A fumaça, ao fundo, é um elemento que parece relacionar a atmosfera de mistério com a ambiência de um show de rock. 12 Símbolo “é uma representação significativa. Por exemplo, a balança, símbolo da justiça” (SUHAMY, 1994, p. 45). 13 Emblema “é um signo deliberadamente escolhido, que, da parte de um indivíduo ou duma comunidade, quer afirmar uma personalidade, divulgar a identificação de um valor, como uma divisa exprimida visualmente” (SUHAMY, 1994, p. 45). 14 Metáfora é “uma comparação em que o espírito, induzido pela associação de duas representações, confunde num só termo a noção caracterizada e o objeto sensível tomado como ponto de comparação” (MARTINS, 2008, p. 121). Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 11 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php Soluciona-se parcialmente o mistério: quando Sophie diz que vai se encontrar com o noivo, na verdade está atuando como vocalista em um grupo musical. Mesmo assim, o mistério se prolonga com outros questionamentos: por que a professora mantém isso em segredo e qual é a razão do vestido de noiva? As respostas surgem com clareza no decorrer da narrativa; porém o desenrolar da cena faz alguns apontamentos a esse respeito. Quanto ao show musical, por mais que esse cenário torne justificável a presença de uma plateia, esse recurso (o povo na tela) está comumente presente nas narrativas produzidas pelo SBT, emissora cuja identidade se encontra nos programas de auditório e na tendência a estar em mesmo nível de proximidade com as camadas mais populares da sociedade. A importância da plateia é indicada com outro plano, que focaliza o coletivo a partir do cotovelo de uma das musicistas (Fig. 4), enquadramento que, por romper os paradigmas tradicionais, sugere outra nuance poética. Mais adiante, em novo enquadramento da plateia, Iuri é registrado caminhando ao fundo, sem destaque, praticamente ocultado pelos personagens vividos pelo elenco de apoio (Fig. 5). Cria-se, aqui, uma espécie de paradoxo15 televisual: embora Iuri seja importante para a cena, ele é menos importante (para Sophie) do que seu público. Essa ideia se ressalta com um plano detalhe na guitarra de Sophie (Fig. 6), sugerindo um fortalecimento no destaque que a personagem dá à música. Desde a entrada de Iuri até esse ponto da cena, a trilha sonora é composta por um instrumental diegético, em representação ao que a banda estaria tocando. Com o término dacanção que estava em andamento, Sophie é enquadrada em primeiro plano (Fig. 7), cumprimenta seu público com entusiasmo e, com os dentes cerrados, anuncia: “Nós somos as Abandonadas no Altar”. A essa altura, o segredo de Sophie foi sonora e visualmente revelado: ela foi abandonada pelo noivo e se juntou com outras mulheres, na mesma situação, para formarem uma banda de rock. Envolto pela plateia, Iuri sorri (Fig. 8), tendo sua face iluminada ora de forma excessiva, ora com ausência de luz, de acordo com a intensidade dos holofotes, que oscilam. O uso da luz se torna um diferencial para a cena, a ponto de os últimos frames serem “estourados” (Fig. 9), como em uma hipérbole16 visual de claridade/clareza. A montagem ainda acumula vários 15 Paradoxo é a “formulação de um pensamento que parece ilógico ou contrário aos dados de experiência” (SUHAMY, 1994, p. 145). 16 A hipérbole “consiste em usar formas e expressões (não plausíveis) que representem o exagero pretendido para se apresentar uma ideia” (HENRIQUES, 2011, p. 149). Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 12 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php planos, que compreendem registros em primeiro plano das demais integrantes e fumaça preenchendo o espaço. FIG. 1: Iuri apresenta sua aliança e se diz a senha para entrar no clube. FONTE: As Aventuras de Poliana – capítulo 71 (22/08/2018). Direção de Reynaldo Boury. São Paulo: SBT, 2018, telev., son., color. FIG. 2: O segurança abre a porta para Iuri entrar no clube secreto. FONTE: As Aventuras de Poliana – capítulo 71 (22/08/2018). Direção de Reynaldo Boury. São Paulo: SBT, 2018, telev., son., color. Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 13 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php FIG. 3: A iluminação revela, gradualmente, o rosto de Sophie. FONTE: As Aventuras de Poliana – capítulo 71 (22/08/2018). Direção de Reynaldo Boury. São Paulo: SBT, 2018, telev., son., color. FIG. 4: O enquadramento da plateia é feito a partir do cotovelo de uma das integrantes da banda. FONTE: As Aventuras de Poliana – capítulo 71 (22/08/2018). Direção de Reynaldo Boury. São Paulo: SBT, 2018, telev., son., color. Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 14 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php FIG. 5: Iuri caminha ao fundo, quase imperceptível em meio aos outros personagens. FONTE: As Aventuras de Poliana – capítulo 71 (22/08/2018). Direção de Reynaldo Boury. São Paulo: SBT, 2018, telev., son., color. FIG. 6: Plano detalhe na guitarra azul de Sophie. FONTE: As Aventuras de Poliana – capítulo 71 (22/08/2018). Direção de Reynaldo Boury. São Paulo: SBT, 2018, telev., son., color. Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 15 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php FIG. 7: O primeiro plano enquadra Sophie, com os dentes cerrados. FONTE: As Aventuras de Poliana – capítulo 71 (22/08/2018). Direção de Reynaldo Boury. São Paulo: SBT, 2018, telev., son., color. FIG. 8: O primeiro plano enquadra Iuri, sorrindo para Sophie. FONTE: As Aventuras de Poliana – capítulo 71 (22/08/2018). Direção de Reynaldo Boury. São Paulo: SBT, 2018, telev., son., color. Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 16 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php FIG. 9: A iluminação ofusca o plano. FONTE: As Aventuras de Poliana – capítulo 71 (22/08/2018). Direção de Reynaldo Boury. São Paulo: SBT, 2018, telev., son., color. Em síntese, vemos, nesta primeira cena, a ruptura do convencional, tanto pelos elementos cênicos quanto pelas alusões que se instauram. Os elementos narrativos, em especial os personagens e o espaço, são registrados por um viés estilístico que transcende o uso da câmera fixa, da angulação frontal, do figurino cotidiano ou da iluminação tradicional. Os recursos estilísticos do qual a narrativa se serve – a montagem atípica, composta por diversos planos curtos e curtíssimos; os enquadramentos peculiares, apresentando personagens pelas costas, ou a partir de um cotovelo, ou dando destaque a uma guitarra; o uso do vestido de noiva, para condensar um segredo que movimentava a trama e uma revelação que alteraria a história; a oscilação de cores para formar a atmosfera de mistério, usando tons pastel e tons escuros; e a iluminação, ora bastante ausente, ora extremamente intensa – são estratégias que, fortalecidas pelas figuras de estilo que perpassam a “textura tangível”17 do audiovisual, levam à formação de nuances poéticas. 17 Retomando a expressão utilizada por Bordwell (2008, p. 58). Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 17 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php 4.2. Nuances poéticas do amor Luísa é uma mulher contida e resguardada, tia de Poliana. Marcelo é professor de audiovisual da Escola Ruth Goulart. Luísa e Marcelo tiveram um namoro sério na adolescência, mas que chegou ao fim após boatos e mentiras alheias. Marcelo viajou para a Europa e Luísa se fechou para os sentimentos. Em determinado momento da vida, Marcelo retorna ao Brasil para visitar sua família e tem um encontro inesperado com Luísa. Esse evento é revisto por Luísa em suas lembranças. A cena analisada – capítulo 27, que foi ao ar em 21 de junho de 201818, configurando um ponto nodal por revelar a existência de um encontro entre o casal, após sua separação – já se sobressai do restante da história por ser um flashback, o que acarreta em um solavanco na trama (ao passo que o presente é determinado pela narração de Luísa, o passado é mostrado, numa proposta intradiegética, ou seja, construindo uma narrativa dentro da narrativa). Chamado de analepse, esse recurso estilístico já configura uma possível nuance poética, sobretudo quando a memória a ser apresentada é inédita para a narrativa – e não uma mera reprise de um momento já exibido. Imersos na trilha sonora diegética (isto é, que ajuda a compor a narrativa) de Sampa (Caetano Veloso), vemos Luísa e Marcelo, lado a lado, embora com olhares opostos, no balcão de uma lanchonete. À frente, próximo de Luísa, um lustre verde balança; ao fundo, um globo platinado gira. Há vegetação enfeitando as paredes e bicicletas penduradas como adorno. Uma garçonete passa ao fundo, carregando uma bandeja com copos (Fig. 10). Aparentemente composta pelo prosaico convencional, a cena começa a ganhar destaque quando são observadas as cores utilizadas: há uma predominância nos tons de marrom (que se alastra por todo o cenário) e de verde (nos figurinos de Luísa e Marcelo, no lustre à frente, nas árvores ao fundo, nas plantas pelas paredes, na toalha das mesas, na bandeja da garçonete, na bebida que está na bandeja, em duas figurantes e na suculenta [planta] que parece dividir o enquadramento). Ressalta-se, ainda, o fato de os olhos de Marceloserem castanhos e os olhos de Luísa serem verdes, relacionando-se com esses tons. Devido aos fones de ouvido, Marcelo não ouve quando Luísa pede uma água ao atendente. Enquanto guarda seu computador e seus fones, Luísa agradece ao barman e desperta a atenção do ex-namorado. O plano se volta a Marcelo, enquadrando-o à direita (Fig. 11), e a 18 Flashback: beijo entre Luísa e Marcelo | As Aventuras de Poliana. YouTube, 21 jun. 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dMqko4crZTo. Acesso em: 18 fev. 2019. https://www.youtube.com/watch?v=dMqko4crZTo Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 18 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php música é interrompida com fade out, dando espaço a um instrumental romântico extradiegético e a um efeito sonoro de sinos, muito utilizado no audiovisual em referência a fadas, a seres encantados e a situações de magia. Sugerimos: ao mesmo tempo em que podemos observar nuances poéticas, também podemos notar a utilização de vários clichês. A iluminação direciona certo brilho à face de Marcelo, sobretudo ao olhar. O rapaz sorri amigavelmente; um foco de luz preenche a parte inferior do espaço à esquerda. No plano seguinte, Luísa é enquadrada à esquerda (Fig. 12), também com a face iluminada e olhos brilhantes; à direita, algumas lâmpadas de decoração aparecem ao fundo. Pelo estilo como ambos foram registrados, a visualidade parece sugerir que Marcelo e Luísa se completam, reforçando as nuances poéticas da cena. O plano seguinte, retomando o enquadramento inicial, mostra Luísa e Marcelo lado a lado; desta vez, porém, os olhares estão conectados (Fig. 13). A garrafa de água é verde. A narração em off descreve: “Ele me viu, me chamou para sentar, e a conversa acabou rolando”, funcionando como um pleonasmo19 para a cena. Durante a conversa, Marcelo explica que continua morando na Europa e que só está em São Paulo para visitar a família. Uma trilha musical lenta, extradiegética, envolvendo violinos, intensifica a sensação de drama. O diálogo se prolonga quando Luísa relembra que o namoro dos dois terminou após uma série de mentiras que contaram ao rapaz, nas quais ele acreditou e, por isso, decidiu sair do país; em réplica, Marcelo diz que morar no exterior era um sonho e ele poderia aprimorar seus estudos de fotografia. Também diz que tentou entrar em contato, mas a moça nunca respondeu. Luísa afirma, então, que não aceitou a ideia de que o ex-namorado preferiu acreditar em outras pessoas a acreditar na palavra dela. Diante da reação constrangida de Marcelo, Luísa pede para que não falem mais do passado. Marcelo, então, pergunta se ela está solteira ou namorando. Ela diz que conheceu pessoas interessantes, mas nenhuma significativa. Já ele assume que namorou duas ou três europeias, mas nunca esqueceu Luísa. A trilha musical, nesse momento, se sobressai, intensificando-se e ficando mais alta. Após um corte com sobreposição de imagens, o casal aparece dançando, e a narração de Luísa também descreve essa decisão de irem para a pista de dança (Fig. 14). A trilha sonora, diegética, é preenchida por Esperando na Janela (Gilberto Gil, na voz de um coral). O efeito 19 O pleonasmo “consiste em repetir, redundante mas justificadamente, uma ideia a fim de obter um efeito expressivo” (HENRIQUES, 2011, p. 150). Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 19 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php das luzes do globo platinado faz com que os personagens fiquem iluminados por círculos de luz. A montagem é feita com alguns planos curtos, ganhando destaque um plano detalhe no qual as mãos de Marcelo segura as mãos de Luísa. O fade out na canção de forró se mescla com o fade in de uma balada romântica, extradiegética, numa rápida sobreposição sonora. Ao som de Rock And Roll Lullaby (Pato Fu), os casais figurantes se afastam, voltam para as mesas ou se retiram de cena. Marcelo faz Luísa se aproximar vagarosamente para perto dele (Fig. 15). Ele passa uma das mãos nos cabelos dela. Ela desliza uma das mãos pelo peito dele. Ele encosta uma das mãos na cintura dela. Após alisar a barba dele, Luísa sorri. Um plano detalhe focaliza o globo platinado girando, e a movimentação de câmera se direciona para baixo, registrando o beijo do casal em câmera alta. A cena se encerra num plano frontal que enquadra o casal de beijando. Fig. 10: Luísa e Marcelo estão lado a lada, mas não se veem. Sampa predomina na trilha sonora. Fonte: As Aventuras de Poliana – capítulo 27 (21/06/2018). Direção de Reynaldo Boury. São Paulo: SBT, 2018, telev., son., color. Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 20 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php Fig. 11: Marcelo é registrado em primeiríssimo plano, à direita, ao som de efeitos sonoros de sinos. Fonte: As Aventuras de Poliana – capítulo 27 (21/06/2018). Direção de Reynaldo Boury. São Paulo: SBT, 2018, telev., son., color. Fig. 12: Luísa é registrada em primeiríssimo plano, à esquerda, ao som de efeitos sonoros de sinos. Fonte: As Aventuras de Poliana – capítulo 27 (21/06/2018). Direção de Reynaldo Boury. São Paulo: SBT, 2018, telev., son., color. Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 21 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php Fig. 13: Luísa e Marcelo conversam amigavelmente. Um instrumental lento predomina na trilha sonora. Fonte: As Aventuras de Poliana – capítulo 27 (21/06/2018). Direção de Reynaldo Boury. São Paulo: SBT, 2018, telev., son., color. Fig. 14: Luísa e Marcelo dançam juntos. Esperando na Janela predomina na trilha sonora. Fonte: As Aventuras de Poliana – capítulo 27 (21/06/2018). Direção de Reynaldo Boury. São Paulo: SBT, 2018, telev., son., color. Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 22 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php Fig. 15: Luísa e Marcelo fixam seus olhares um no outro. Rock And Roll Lullaby predomina na trilha sonora. Fonte: As Aventuras de Poliana – capítulo 27 (21/06/2018). Direção de Reynaldo Boury. São Paulo: SBT, 2018, telev., son., color. Se a trilha de imagem já propõe uma avalanche expressiva, sobretudo em se tratando de cores e enquadramentos, a trilha sonora denota a capacidade de transitar entre diversos elementos musicais, aparentemente distintos. Da música popular brasileira ao instrumental dramático; do forró nordestino à balada romântica internacional, a composição musical, mesclando sons diegéticos e extradiegéticos, demonstra que a transição entre si tremula a narrativa convencional e engloba uma nova marca estilística na produção de uma história de amor. Em suma, os tons de verde e marrom, a sensação de incompletude/complementação entre os personagens, o uso de um recuo na cronologia da história, somados à maneira como as músicas e os efeitos sonoros são apresentados, constituem outras amostras de nuances poéticas, ainda que em uma situação dramática bastante clichê em ficção audiovisual. 5. Considerações finaisNeste artigo, estudamos a relação sutil entre poesia e televisão, por meio de uma investigação acerca de como se formam as nuances poéticas na ficção televisiva brasileira, utilizando como objeto de estudo dois recortes da telenovela As Aventuras de Poliana (SBT). Um primeiro olhar mostrou que tais cenas pareciam não somente retratar parte do cotidiano dos personagens, mas também explorar os efeitos estilísticos capazes de fomentar a intensidade Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 23 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php das ações; a observação mais aprofundada apontou para a corroboração dessa perspectiva e para a ratificação da hipótese inicial: a ficção televisiva brasileira pode, de fato, ser composta por passagens que trazem consigo potencialidades expressivas capazes de abalar a linearidade do corriqueiro e se esbarrar no invólucro sensível do lirismo. De acordo com a pesquisa de fundamentação teórica realizada, vimos que a poesia é uma instância comunicacional que não se limita aos textos literários, mas pode estar presente em outros produtos midiáticos, como as obras de ficção televisiva. Vimos também que, quando elementos próprios da poesia se manifestam em modalidades expressivas que não se configuram prioritariamente como objetos de arte, desenvolve-se a ideia de poético. Vimos, ainda, que o poético, no âmbito televisivo, costuma despontar em telenovelas e séries de cunho experimental ou com uma proposta linguística inovadora; no entanto, algumas partículas expressivas podem estar presentes nos mais cotidianos e corriqueiros produtos, fenômeno que denominamos “nuances poéticas”. As nuances poéticas, tendo em vista o embasamento no qual esta pesquisa está ancorada e as análises aplicadas a uma produção de TV aberta brasileira, podem se definir como potências comunicativas, energizadas (ou não) por cargas sócio-histórico-culturais, que provocam certa agitação na estabilidade do prosaico. Utilizando-nos das próprias nuances poéticas, podemos alegorizar que elas são o raio de sol que se espreme entre nuvens carregadas para nos despertar em uma manhã chuvosa; o vaga-lume que pisca em meio à escuridão de uma madrugada na área rural; o momento de pulsação mais intensa dentre os batimentos de um coração normalmente ritmado. Conforme o aporte metodológico revisitado, para que as nuances poéticas sejam detectadas, descritas, refletidas e comentadas, a análise estilística acompanhada dos estudos narrativos se mostra eficaz. Nos casos analisados, considerou-se que o jogo de efeitos visuais e sonoros – dentre os quais podemos citar: enquadramentos peculiares; figurinos simbólicos ou combinados; oscilação ou harmonização de cores; utilização excessiva ou escassa da iluminação – desestabiliza o convencional, provocando inovações (ou renovações) e rupturas na respectiva telenovela. Por fim, a discussão aqui apresentada buscou entender parte da complexidade e da especificidade atribuída à televisão, em esfera nacional, no segmento da TV aberta, com foco na ficção seriada e, particularmente, na telenovela As Aventuras de Poliana (SBT). A abordagem utilizada concentrou-se na poética da narrativa (contexto da criação) e na Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 24 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php possiblidade de apreensão dos recursos estilísticos utilizados (contexto da fruição), sob o viés das dimensões discursivas e comunicativas, privilegiando um gênero enraizado na cultura brasileira. Esperamos que tal estudo cumpra com os propósitos de fomentar os debates sobre teorias e métodos envolvendo os fenômenos televisivos, bem como sirva como encorajamento para pesquisas futuras, no que se refere à temática apresentada. Referências ACKER, Ana Maria. Entre efeito de presença e de sentido: experiências estéticas do futebol no cinema brasileiro contemporâneo. 2013a. 179f. 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