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O problema da legitimação do Estado Não gostamos quando alguém manda em nós e nos ameaça caso não obedeçamos. Mas nosso sentimento é geralmente o de indiferença quando é o governo que faz isso conosco. Quando um assaltante nos toma o dinheiro, logo pensamos: “ele não tem o direito de fazer isso”. Contudo, quando é o governo que faz isso, tomando-nos dinheiro em forma de impostos, ninguém tem o mesmo pensamento. Sabemos que o governo é uma instituição que organiza e regula com autoridade a quase totalidade de nossa vida social. Todos os aspectos de nossa vida estão sob a influência do governo: educação, trabalho, impostos, crime e punição, matrimônio, saúde, etc. Ainda, ele pode usar a força para obrigar as pessoas a seguirem suas leis. Entendido dessa forma, como uma entidade dotada de poderes, chamamos o governo de Estado. Sendo assim, surge a pergunta: Porque devemos obedecer ao Estado? Que direitos ele tem de fazer o que faz? Ele é mesmo necessário, ou poderíamos viver sem ele? Nesse texto vamos falar um pouco sobre esse tema e sobre todas as questões envolvidas nele, bem como a opinião de vários filósofos ao longo da história. - O Estado é algo natural ou artificial? Antes de tudo precisamos decidir se o Estado é uma coisa criada pelo homem, ou se é algo que existe por uma razão que não seja a vontade do homem. Em outras palavras, devemos perguntar: O Estado é algo natural ou artificial? Essa pergunta é importante, pois, enquanto assumirmos que ele é algo natural, não faz sentido falar em “necessidade do Estado”, pois ele existiria por razões que estão fora do nosso controle. Só podemos questionar essa existência se assumirmos que o Estado é algo artificial. Sobre isso há várias opiniões. Entre aqueles que acham que o Estado é algo natural, temos os que dizem que ele existe por vontade divina e os que acham que ele faz parte da natureza humana. Nos dois casos, a existência do Estado seria algo que não depende da nossa vontade para existir. A primeira opinião foi muito comum na antiguidade, quando a política ainda era muito próxima da religião. Naqueles casos, o rei, a fim de convencer o povo de seu direito como governante, dizia que Deus (ou os deuses), o haviam nomeado o chefe da comunidade, e que todos deviam seguí-lo e obedecê-lo. Nesses casos, desobedecer ao governador era considerado o mesmo que desobedecer a Deus (ou os deuses), algo do qual ninguém queria ser acusado. Por outro lado, havia aqueles que diziam que a política estava na natureza humana. Com isso eles queriam dizer que o homem sentia necessidade de se associar com outros homens da mesma forma que sentia necessidade de comer ou dormir. Ele seria, nesse sentido, como as abelhas, que formam comunidades com hierarquias bem definidas de forma espontânea. Entre os que pensavam assim estava o filósofo grego Aristóteles (384 a.c. – 322 a.c.). Segundo Aristóteles, o homem é um animal político, pois estava na sua natureza a necessidade de se associar com seus iguais e viver na pólis. Para ele, apenas as bestas e os deuses não precisavam se associar. E ao falar sobre a naturalidade da política, é claro que Aristóteles achava que a existência do Estado era algo que também deveria existir. Além disso, ele dizia ainda que algumas pessoas nasceram para ser governantes, e outras para ser escravas, ou, em outras palavras, o próprio lugar que uma pessoa deveria ocupar na sociedade civil estava já relativamente determinado. - O Estado é algo artificial? Mas também existiram pensadores que negaram que o Estado fosse algo natural ou que deveria existir necessariamente. Com efeito, no Renascimento, do século XIV ao XVII, (mas com alguns episódios também na grécia antiga), algumas pessoas começaram a questionar a “autoridade divina” de seus governantes, e também duvidaram que o homem se associava por sua própria natureza. Para essas pessoas, a política, e, portanto, a existência do Estado, era uma coisa criada pelo homem por um motivo específico. Se o Estado é algo artificial, ele existe por algum motivo, e isso tem consequências importantes. Primeiro, se ele existe por algum motivo, existe um jeito certo e um jeito errado do Estado ser. Segundo, se esse motivo deixa de existir, o Estado não é mais necessário. Terceiro, alguém sempre pode dizer que, não sendo natural, o Estado não é necessário. Por essa razão, as pessoas que acreditavam que o Estado era algo artificial começaram a fazer as seguintes perguntas: qual o fundamento do Estado? Para que ele existe? Ele tem que ser desse jeito ou daquele? Afinal, ele precisa mesmo existir? Com efeito, na modernidade, os próprios reis viram-se obrigados a responder a essas perguntas, já que sua suposta autoridade divina já não tinha a mesma importância. Da mesma forma, as outras formas de governo, como oligarquias e até mesmo repúblicas, precisaram mostrar porque eram necessárias e porque eram a melhor forma de governo. Foi assim que começaram a surgir as teorias a favor da existência do Estado. - Teorias a favor da existência do Estado. Pense que você vive sozinho no mundo. Nasceu e, logo que pode andar e se alimentar sozinho, foi largado pelos seus pais. Numa terra sem leis e sem ordem, você não tem garantias, nem sossego. Vive com medo de ser morto, ou de passar fome. Ou ainda, tem medo que alguém roube o pouco que você conseguiu juntar. Pense também que você não é a única pessoa nessa situação e com esse sentimento. Na verdade, todos estão assim. O que fazer? Se você pensar um pouco, vai chegar à conclusão de que o melhor a se fazer é um acordo, um contrato com todas essas pessoas, prometendo não fazer mal a elas (não roubá-las, não machucá-las, respeitar suas propriedades) desde que elas não façam mal a você. E para que todos respeitem essa lei, é preciso um poder maior que fique de olho em tudo, e intervenha quando for preciso. E é essa a função do Estado. Essa foi exatamente a ideia dos filósofos chamados contratualistas. Segundo eles, o homem vivia num estado tal – chamado por eles de estado de natureza – que eles chegaram à conclusão de que, para assegurar que sua vida ou seus direitos naturais fossem respeitados, eles precisariam fazer um contrato entre si, estabelecendo regras e deveres. Mas para isso, seria preciso alguma coisa maior que assegurasse que essas regras fossem respeitadas, e essa coisa, na opinião deles, seria o governo, ou o Estado. Vemos com isso que esse grupo de filósofos faz parte do grupo que acredita que o Estado é um bem. Mas apesar desse ponto em comum, há divergências no pensamento desses filósofos. Por isso, vamos ver o que os mais famosos filósofos contratualistas – Thomas Hobbes, John Locke e Jean Jacques Rousseau – disseram sobre esse assunto. - Thomas Hobbes: A principal função do Estado é assegurar a paz e a ordem sociais. Thomas Hobbes (1588-1679) foi um filósofo inglês que primeiro formulou com clareza a ideia de contrato social. Para Hobbes, no estado de natureza, o indivíduo vive num permanente estado de violência e de medo, estado no qual ninguém se encontra a salvo e onde a vida de cada um corre sempre um grande risco. Hobbes sintetizou este estado de guerra permanente entre todos com a seguinte expressão: “O homem é o lobo do homem”. Antes da criação do Estado, ou seja, no estado de natureza, vale a lei do mais forte. O estado de natureza é aquele em que todos se julgam com direito a tudo. Por isso, ninguém reconhece ou respeita direito nenhum. A vida humana é nesta situação um constante conflito e está permanentemente ameaçada pela luta de todos contra todos. Para Hobbes, ninguém consegue aceitar uma situação em que não há garantia alguma de continuar a viver. O indivíduo não pode, então, continuar a viver neste estado que gera angústia e medo. Torna-se necessário o estabelecimento de um contrato ou pacto entre todos os indivíduos que salvaguarde as suas vidas e os seus bens. Assim, Hobbes diz que para se instaurara paz e a segurança na sociedade, foi necessário dar poderes ilimitados para uma única pessoa, a personificação do Estado, chamado por ele de Leviatã, para que ela garantisse a paz. Mas por que o Estado deve ser personificado apenas por uma pessoa e não por duas, três ou mais? Porque, de acordo com Hobbes, ao dar poder para mais de uma pessoa, os governantes podem querer lutar entre si, e aí retornaríamos a um estado de guerra. Além disso, para Hobbes, o Estado não pode estar submetido a nenhuma lei, pois se seus poderes fossem limitados, ele não teria poder suficiente para governar os outros. Em outras palavras, o Estado estaria acima da lei. - John Locke: O Estado existe para proteger os direitos fundamentais dos indivíduos. John Locke (1632-1704) foi um filósofo inglês, considerado o pai do liberalismo político. A sua teoria política, apesar de também fazer uso da ideia de contrato social, opõe-se ao poder absoluto do Estado proposta por Hobbes. Para Locke, a soberania reside no povo e não no monarca ou no governante. Por isso mesmo, o Estado deve respeitar os direitos individuais (liberdade, propriedade e procura da felicidade) e os indivíduos podem exigir a mudança de governo caso este não satisfaça tal exigência. Embora utilizando conceitos também presentes em Hobbes, Locke vai explicar de modo diferente as condições nas quais se produz a passagem do estado de natureza à sociedade civil e política. Para Locke, no estado de natureza os indivíduos possuem um conjunto de direitos naturais – o direito à vida, à liberdade e à propriedade – que são, inicialmente, reconhecidos e respeitados por todos. Contudo, com o tempo, começam a aparecer conflitos de interesses sobre a propriedade privada. É então necessário regular estes conflitos de interesses para o bem de todos. Daí a existência de um pacto entre os indivíduos. Este pacto social dá a uma autoridade o poder de regular e supervisionar esses conflitos e garantir os direitos dos indivíduos. Essa autoridade será o Estado. Vemos aqui uma diferença importante entre Locke e Hobbes. Enquanto em Hobbes, o estabelecimento do contrato social implica que se dê poderes ilimitados para o Estado, para Locke, o contrato social não dá ao Estado o direito de violar os direitos dos indivíduos, como o direito à vida, à liberdade e à propriedade. Neste sentido, o Estado não poderá interferir ou colocar em causa o direito à vida, à liberdade e o direito à propriedade por parte dos vários indivíduos. Isso implica dizer que quando o Estado não cumprir com a tarefa que lhe foi imposta pelo contrato, os indivíduos têm o direito e o dever de desobedecer o poder político, elegendo para tal novos representantes. - Rousseau: O Estado é a expressão da vontade geral Jean Jacques Rousseau (1712-1778) foi um filósofo suíço, escritor e teórico político e uma das figuras marcantes do Iluminismo francês. Para Rousseau, no estado de natureza o indivíduo vive livremente e feliz, isolado dos outros indivíduos. Ele é, como diria Rousseau, o bom selvagem. Contudo, à medida que o homem intensifica suas relações com outros homens surge o estado civilizado. No estado civilizado o indivíduo começa a comparar-se com os outros, verificando que existem uns indivíduos que possuem mais bens materiais do que outros. Ao tomar consciência destas desigualdades e conduzido pela sua inveja, desencadeia-se os conflitos de interesse. Assim, para Rousseau, é a civilização que torna o homem mau. Verifica-se aqui uma importante diferença entre Hobbes e Rousseau: enquanto para Hobbes, o estado de natureza é caracterizado por permanentes conflitos entre os indivíduos, para Rousseau, estes conflitos entre os indivíduos apenas surgem com o estado civilizado. Torna-se então necessário regular estes conflitos, não com base na força, mas no direito. Para isso, Rousseau defende a necessidade do estabelecimento de um contrato social. O contrato social é um pacto feito entre os indivíduos, a partir do qual todos concordam em obedecer a um conjunto determinado de leis que, por sua vez, foram aprovadas por todos. As leis são, para Rousseau, a única autoridade que existe no estado civil. Se as leis são a autoridade e se elas são feitas pelo povo, então é o próprio povo que passa a ser a autoridade. É o povo que governa. Na teoria política de Rousseau não existe um poder superior aos outros, mas o poder é o próprio povo. Rousseau evita deste modo o despotismo, a subjugação dos indivíduos a um poder com mais força que a totalidade dos súditos. - Teorias contra a existência do Estado Até agora vimos teorias que procuravam mostrar que o Estado é necessário. Contudo, nem todas as pessoas tiveram uma visão positiva sobre esse assunto. Para elas, o Estado representa mais um mal do que um bem para a sociedade. O desafio para essas teorias será o de demonstrar que males são esses que superam os bens que o Estado traz. Para tanto, veremos a teoria anarquista e a teoria marxista. - O anarquismo: estaríamos melhor sem o Estado O anarquismo é uma teoria que nega haver uma justificação racional para a existência do Estado. A ideia base do anarquismo clássico, associado a filósofos como Proudhon e Bakunin, é a de que o ser humano é naturalmente bom e capaz de formar espontaneamente relações sociais harmoniosas com os seus semelhantes. Verificamos assim que o anarquista possui uma concepção positiva da natureza humana: o homem não é mau, mas é antes um ser naturalmente bom. O que corrompe essa espontaneidade, ainda segundo o anarquista, é a hierarquização da sociedade, o domínio de uns por outros, as punições e as regras, ou seja, a destruição da liberdade dos indivíduos. E para o anarquista, isso é culpa do Estado. Por isso, ele defende a abolição do Estado, porque o Estado seria incompatível com a realização de cada indivíduo. O indivíduo vive em paz e em harmonia com os outros sem o Estado e, nesse sentido, vive substancialmente melhor do que com um Estado que permanentemente coage o indivíduo. Para o anarquista, o homem é por natureza um ser livre e responsável, consciente dos seus deveres e das suas responsabilidades perante os outros e perante si mesmo, que tem a capacidade de dar princípios a si próprio, sem ter que necessariamente obedecer a ordens ou princípios exteriores que limitam a sua liberdade natural e o mantêm numa situação de menoridade. - Karl Marx: O Estado favorece uns e prejudica outros. Karl Marx (1818-1883) foi um filósofo alemão de origem judia, fundador da corrente de pensamento marxista. No século XX aproximadamente metade da humanidade viveu décadas sob regimes políticos inspirados no pensamento de Marx. Defendeu que o comunismo seria a única forma de abolir a exploração de um ser humano por outro. Para Marx, a história tem sido marcada pela luta entre duas classes. Com a Revolução Industrial, a desigualdade entre essas classes intensificou-se, sendo uma a burguesia, detentora da maior parte da riqueza da sociedade e a outra o proletariado, que vive na miséria fruto da exploração a que é sujeito por parte da burguesia. O Estado, quando devia ter um papel de regulador destas desigualdades, apenas contribui, segundo Marx, para manter ou promover essa mesma desigualdade. Uma classe, a burguesia, tem mais direitos e melhores condições de vida do que o proletariado, melhores condições essas resultantes da escravização imposta a esta classe trabalhadora. Para Marx, este antagonismo de bens materiais e qualidade de vida entre os indivíduos não é sustentável. Se o Estado continua a manter esta situação e nada faz para resolvê-la, não faz falta à sociedade e, por isso, tem de ser abolido. Assim, compreende-se que a necessária melhoria das condições de vida dos indivíduos passe pela extinção do Estado. Tal é o objetivo último de Marx: tornar o mundo mais humano nas relações entre os indivíduos, através da abolição do Estado.
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