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11 Concepções de homem . que é o homem? E esta a primeira e principal pergunta da filosofia. (..) Sec pensamos nislo, a própria pergunta não é uma pergunta abstrala ou "objetiva". Nasceu daquilo que rellelimos sobrc nós mesmos e sohre os outros e qqueremos saber, em relax�o ac (que retlelimos e vimos. o quc somos e em que coisd nos podenos lornar, se realmenle e dentro dc que limitcs somos "artífices de nós pró- prios", da nossa vida, do noss0 deslino. E isto qucremos sabê-lo "hoje", nas condi- oes dadas hoje, pela vida "hodierna" e n�o por uma vida qualcquer e de cqualequcr homem (Antonio CGrarnsci) 1. Antropologia filosófica rão priorizados valores que determinam a csco lha dos conteúdos a serem transmitidos c a ma- Na epígrafe do capírulo. a preocupaçâo do li lósofo italiano Gramsci gira em tormo da pergun- ta: "O que é o homem?". Trata-se de um proble- ncira de transmiti-los a partir dos objctivos pro- postos: que tipo de homem se quer forinar? Fica Cvidente quc na escola lradicional destaca-se o ma de antropologia, ou seja. do questionamento aspecto intclectual cnquanlo na escola nowi não filosólico a respeito do conceito que o homem Taz de si mesmo. se descuida do aspecto existencial. Embora tenham sido várias as teorias antropo- A questão antropológica é a primcira que se lógicus, vamus destacar tuês enfoques possíveis ao coloca em qualquer situação vivida pelo h0- longo da históriu: a concepção metafísica. a cien- mcn, mesmo que ele próprio não tome consei- tificista (ou naturalista) c a histórico-social. ência disso. porque todas as nossas concepções de mundo c todas as nossas formas de agir par- lem de uma idéia de homem que a elas se en-2. Concepção metafísica contra subjacentc. Por isso, éimportantc na práxis educativa que se tenha claramcnic Lemalizada à questêo antro- pológica. para que a atuação do mestre seja in- tencional e n�o se faça apenas dec forma empírica. au seja, a éssência que caracteriza cada coisa. Não deixa de ser interessante observar as di Na tradição filosótiea em que predomina a abordagem metatísica - herdacta dos gregos- busca-se a unidade na multiplicidadc dos scres. Também o conceito dc homemé comprecndido versas leorias pedagógicas, buscando compreen- a partir de uma natureza imutável: apesar dee der o conceito de homem que unima suas dirclri- zes. Vamos dar alguns exemplos. A cducuçâv tra- cxistiria uma essência humana, um molelo a ser dicional valoriza a transmissão da cultura geral c alingido à medida que se dá o amadurecimento. a realização intelectual do homem. Para cumprir esse projeo, centra a atividade escolar na ligura do mestre, transmissor do conhccimento. Já na proposla da escola nova o ensino se voita para a Média c influcnciando a cscoka uradicional que cxistncia. para a vida, para a atividade do aluno, passando este a ser o centro do proccsso. As duas teorias pedagógicas denotam expcc- tativas diferentes de transformação do homem naquilo que ele deve ser. Em cada unu delas se constatadas diferenças entre os seres humanos, Tal cuneepção da natureza humana está na base das mais antigas teorias pedagógicas desde Platão e Aristóveles. passando pela ldade surge na Tdade Modema-,e nela a educação é comprcendida como um processo de aperfeiçoa- mento em quc o indivíduo é levado a "realizar suas potencialidades". Hlá um "modelo" de ho- mun que a criança deve alcançar. arualizando a 112 ARRUDA Ma. Lúcia. Filosofía da Educaçâo essência que tem cm potëncia. E ass1n que Kant, no século XVIlL, diz que "o fim da educação é gerir seu próprio destino. desenvalver, em cada indivíduu, toda a perfei- ão de que ele seja cupaz". O cducador polonês Suchodolski chama de cem seus métodos, notu-se forte influência nalu- essencialistu essa lendência que marca a pedaralista. A psicologia experimental, por cxcmplo. gogia durnte um longo período da história da privilegiará no homem apenas a exterioridade do educaão e ainda hoje coexiste com outras ten- comportanmento, deixundo a consciência "enure às forças da natureE/a. tornando-se incapaz de No final do século XIX c no dccorrer do sé- culo XX. quando as cièncias hurmanas estahcle- dências. parênteses". por considerá-la inacessível aos pro- Os limites dessa abovdagenm sc acham na vi- Jccdimentos considerados científicos. são parcial do probiema cducacional, excessiva- mente cenrado no interior do indivíduo e nas mentalista. influencia até hoje diversas tendên- formas ideais que determinam a priori o que � o cias na cducação, inspirando una metodologia homem e como deve ser a educação. 0 behaviorismo, ou psicologia comporta que enfativa a rigorosa programação dos passos para se udquirir o conhccimcnto, bun como as técnicase os procedinentos pedayógicos. Skinncr. um dos reprcsentantes dessa tendência. criou a farnosa "máquina de ensinar". Na década 3. Concepção naturalista A partir da ldade Moderna (século XVI). a de 70. a tendência lecnicista (vcr Capítulo 18) é filosofia de Descartes e Locke, bem como o de- fortemente influenciada pelo behaviorismo. senvolvimento do método científico inaugurado por Cralilcu c Newton. laz surgir uma concepção se exerça sempre apenas a influência bcha- do conhccimcnio que até hoje orienta nossa for- ma de pensar A ciência surge como uma forma rigorosa de conhecer que permite perceber regularidades na natureza, levando à formulação de leis e, porlan- to, à previsibilidade dos lenömenos. Por sua vez, a ciência possibilita o desenvolvimento da tec- nologia, segundo a frase protétiea de Francis Bacon "saber é poder". O rigor da nova abordagem certumente influ- enciará a busca de compreensão a respeito do homem. que agora tcrá a preocupação de cncon- irar as regularidades que marcam scu comporta- Em outras teorias pedayógicas, cmbora n�v viorista. também se nota a participaçäo das di- versas ciëneias humanas expcrimcntais na clabo- ração da metodologia. O que caracteriza a ten- dência naturalista é a tentativa de adequar a me- todologia das ciêncías humanas ao método das ciências da natureza, que se baseia na experinmen- tação, no controle e na generalização. Contrapõem-se a essa tendëncia as teorias humanistas que buscanma especificidade do hu- mano, com suas dimensões irredutíveis ao esta- tuto das coisas. mento. 4. Concepção histórico-social Na lilosofia de Descartes. por exemplo, o ho- mem é comprcendido a partir do dualismo psicofisico, ou scja, � constituído por duas subs- tâncias distintas, a mente (substância pensante) e empirismo de locke e pela primaria do senti- o corpo (substância extensa). O corpo, por sua vez, é como uma máquina que funciona "como Romantismo alemão (século XVl). instrumento universal, operando sempre da mcs ma maneira, segundo suas próprias leis". Com o desenvoivimento das ciências, o mo- Uma significativa mudança, caracterizada pela crítica ao mecanicismo newtoniano e ao mento sobre a razão, se descnrola no período do Esses traços fundamentais da antropologia ro- måntica já se encontram em um significativo re- presentante da llustração, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que exerceu grande intluência, e- delo mecânico � substiluído por outros, mais ela boradon. mas persiste a idéia do corpo como coi- sa submetido às leis da nalureza. Surge um cam- po fértil para a concepgão detenninisla: o ho- mem, reduido à dimcns�o corpórea, está sujeito do introxkug�ku à lilenofia. p. 166 1. Ccmullur M. I. A Aruntu e M. H. P. Martun». Fitosofan 113 ARRUDA Ma. Lúcia. Filosofía da Educação volucionando, desde então, iaN tecwus pedupopi cas. Podenos dizer que Rousseuu provcedeu a uma verdadeira "revolugo copcmicana na cducaçdo ao deslocar o centno tradicamal dlo processo, fixn- do no mestre, pura o discipulo, Mnis ainda, coloea o entimento, cuju sede é o coraçio ou n consciên cia moral, no centro de sua visio do hon:m. Mesmo sendo aindu uin pensndor do llumi- situacda om uncontexto histórico-social. nismo, a0 dentacar os dois níveis, naturezu e losoflus essenctalistas). Serex práticos que são, N homens se cdefnenn pela prexluçüo e pclo tra. balho coletivo, Assinn, as codiçiöcs cconômicas estabelecen os modeles sxciais em determin- das circunstàncius. Por isso Marx se recusa a de- linir o hornem de foruu abstrata, buscando com- preende-lo como honmem real (comereto), sempre No decorrer do séeulo XIX, vutros tilósofos sociedade, seu pensamento jú se cacaminha se posicioINuN contru a coepçåo tradcional para uma concepçäo de homem dilcrente da Kierkeganrd, Stirner e Nietzsche lumbém se vol tradicional. lam para a concretude da vidaa humana, inserida Hegel (1770-1831) destaca-se entre os filó- nu realicdade cotidiana. sofos do ldealismo alemão que claborum Leoricamente a antropologia subjacente à visão romåntica. Ao desenvolver a filoso fia do devir, conccbe o ser como processo, como movimento, como vir-a-ser. Com isso privilcgia a históvia, mudando a dire- ão da antupologia: o homem passa a ser pensado como ser-no-tempo. \ Segundo u concepgio dialética de He- gel, a história n�o significa una simples justaposição de acontecimentos, mas oo presente resulta de um longo e dramático processo, um verdudeiro engendramento cujo motor interno �a contradição. Muda. portanto, o que se entende por verdade, não mais um fato, uma cssêneia, uma realidade dada, mas o resuldo de um desenvolvimento to Espirito. A concepção idcalistu que marca a fi- lusofia de Hegel (que considera o indi- viduo como participando do movimento de manifestação do Espírito) serú con- frontada por Marx (1818-1883). Apro- veitando de Hegel a concepção dialética da históriu, transforma o idea lismo hegeliano em materialismo: o mundo material é anterior ao espírito. e este de- riva daquele. Segundo o materialismo histórico mar- xista, para se estudur o homem e a socic- dade é preciso partir da análise do que os homens lazem. da for1na como produzem Os bens inuwriis necessários à vicda. Só então será possível conpreender como eles pensam e cono são. Dessa forma, para Marx não há nature- 7.a humana universal (conio queriam as fi- Nesta obra, que causou estranheza em 1912, Duchamp bus ca representar as sucessivas fases de um movimento, reve- lando a preocupação em expressar o "dinamismo da vida" (Marcel Duchamp, Nu descendo a escada, Museu de Flla délfla.) 114 quando se fala a respeito da infância, näo é pos- sfvel se referir à crlança em si sem se considerar o tempo, o lugar, a estrutura cial em que ela se No seculo XX. a fenomenologia, cOrrenlc fmeludu peor Husserl. Iem como principais sepui dores Max Scheler, lleidepper. Surtre e Merleu- Ponty. Purn Sartre. um dox fikfOS I1AIS popu | Insere. Nuo cxiste una naturea infantil univer lares, só o homem é um "ser para si", aberto à sa. Aliás, mesma observaçáo vale para uma suposta família en si ou una naturcza humana possibilidnde de construir ele próprio NIA Cxis tencia. Diz que rarn o hoinen "a cxisténcia pre- atenporal. cede u essénciu". o que significa que nAo hú no homem uma essência (como num animnl lugar, biológica e socialmente dependente dos numa mesa), mas "o homem ni) é mais jue o Acdultos para suu sobrevivëncia, mas a manciru E bem verdade quea criunça é, em qualqucr como ela é alimentada, vestida, tratada gera. que ele faz" A concepçao histórico-sOcial se expressa em numa deter1rninada comunidade, uma certa ex- inumeras tendências. O quc importa destacar, pectativa u respeito do quc é "ser criança". Exsu apesar das diferenças cntre elas, é a precupação expcctativa geralmente reflete as aspirações e re- com o processo (nada é estático), com a contra- pulsas dos adultos projetadas na criança. aquilo dição (não há linearidade no desenvolvimento. que rexulta do embate e do conflito) e con o ca seja. Ë compreensfvel quc cwsa imagem erolua ráter sorial do engendrancnto humano (o ser do historicarmente, fazendo da dependencia da cri homem se faz perneado pelas relaçQes hurnanas ança não um fato natural, mas socia e por isso se expressa de formas diferentes ao longo da história). E inevitável que tuis concepções marquem de quc s desgarra da saia da m�e, aprendc a ser pa- forma indelével o ideúrio pedagógico contempo- râneo. Abandonam-se as explicações essen- cialistas e estáticas, não mais se reduzindo o ho- D quie eles pensam que cla é ou esperam que elu Ora, vimos quc na ldade Média a criança par ticipa do mundo ad1ulto. A criança nobre. assin jem, depois escudeiro, preparando-se para se tor- nar cavaleiro. Participa das festas dos adultos e até nos estudos se mistura com eles. A criança mem à dimensão de indivíduo solitário, Fle passa a ser buscudo como pessoa ou ser social e com preende-se melbr a interação entre sujeito e soci edade, inclusive antc us forças do poder. do povo trabalha no campo ou em um oficio no qual se inicia como aprendiz. Quando as estruturas econômicas começam a mudar devido ao aparecimento da nova classe, a burguesia. mudam as relaçõcs entre os homens e, conseqücntemente, muda a expectativa em re- lação à criança: muda a inagem da infäncia. A criança é afastuda das atividades quc desempe nhava, e seu papcl nas relações cconmicas e so 5. Tornar-se homem A partir desse rápido esboço, lulvez seja pos- sível comprecnder a importância du antropolo ciais torna-se marginal. gia como orientadora do trabalho pedagógico. Sc considerarnos que a história continua scu curso dependência, da impoência, do inacabamento por mcio das contradições a ela inerentes, preci- que vai animar a construção, na ldade Moderna. sarmos ecstar prontos paru rever nossas próprius de uma tcoria pedagógica que visa a "proteção" concepções de homem. Na parte I do Capítulo 6 analisamos o concei- o histórico de famíla c de criança, mustrundo Unidude V. quando tratarmos do conlrunto entre como o modelo de familia nuclear e o conceito a pedagogia tradicional e a pedagugia nova. A de infancia que conhecemos hoje surgem na inageni da criança que surge na escola nova de- modernidade, quando a concepgão burguesa de fende a cspontaneidade, a iniciativa e a eria mundo se fortalece e se difunde. Surge af a imagem da fragilidade infantil, da ea vigilância da criança Rclomaremos essa idéia sobre a inlância na tividade, em oposição à pedagogia de resignaç�o e disciplina, e pode ser cxplicada pelas necessi- Nãco é fácil explicar por que ocorrem tais alte Tçcs, tantas são as influêncius a serem consi- deradas. Podemos, no enlanto, fazer uma primei- ra observação útil ao trabalho do pedagogo: 2. Consultar Bernard Charlot, A mistificuçdo pedagógiru 115 ARRUDA Ma. Lúcia. Filosofía da Educação dades da hurguesia do século XIX, cujo capila- de comunieaçio de massa e da conseqüente Muitus professores se encontram perplexos diante de classex cujos jovens cles o conse- lismo modemo reclama invengao, CXpansao, Rlobalhzaqio do nmundo. mobilidade econðnica e coopração dos indivi duos o guni/ados em equipes de taballho No enunto, no final do século XX, Csse guem muis conpreender. Novos objctivos, novu modelo de famtliae de erianga jú se encontra Cnsibilidade são desalios para a atuaçãv dos em crise. Com base no que foi discutido na cducadores. parle i do Capiulo 6, podemos refletir a res- peito desse novo homem, que surge u partir do modern0, comoderno ou qualquer outro nome impacto dos efeitos da informitica, dos meios Como e esse honmen que surge, Ja ele pó que Ihe queiranos dar' Dropes AAAAAa** ALMAAhas Do ponto de vista da educação o que significa, entäo, promover o homem? Signitica tornar o homem cada voz mais capaz de conhecer os olomentos de sua situação para intervir nela transfor mando-a no sentido de uma ampliação da liberdade, da comunicação e colaboraç�ão entre os ho mens. (Dermeval Saviani) 2 O pensamento pedagoglcocomum considera, mals ou menos implicitamente, que a educaç�ão deve permitir à criança realizar-se, desabrochar. tornar-se plenamente ela mesma. (...) Quando ape nas nos contentamos em falar de desabrochamento, somos vítimas de um dos conceitos mais ideo loglcos que a pedagogía jamals produziu. (Bernard Charlot) Leitura complementar [Crlse da escola?] Enquanto categoria abstrata, instituição em alavanca das transtomaçðes sociais, não se si, portadora de uma natureza imutável da qual se diga é boa, é má, a escola não existe. En- flexo do sistema que a engendra. (...) Dai tam- quanto espaço social em que a educação for. mal, que näo é toda a educação, se då, a esco em crise, como astuta ou ingenuamente se in- la na verdade não ó, a escola está sendo histo- ricamente. A compreensåo do seu estar sendo, porém, n�o pode ser lograda fora da cormpreen histórico-social, econômico, político da socieda são de algo mais abrangente que ela- a soci- edade mesmu na qual se acha. A educaçäo for- mal que 6 vivida na esoola ó um 6ubsistema do nesta ou naquola sociedade, se vem constituin- SIstema maior. As relações entre eles- sub- sistema e sistema maiornão são contudo mecánicas. Se não so pode pedir à escola, o que vale dizer, à educação tormal, que se tone pense, por outro lado, que ela soja um puro re- bm que não seja a escola a que se encontre siste em apregoar, Fala-se da crise da escola como se ola oxistisse desgarrada do contexto de concreta onde atua; como se ela pudesse ser decifrada sem a inteligència de como o poder, do, a serviço de queme desservindo a quem, em favor de que a contra qua (Paulo Freire, Apresentação do livro de Babette Harper et al, Cuidado Escola.) 116 ARRUDA Ma. Lúcia. Filosofía da Educação
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