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Giovanna de Freitas Ferreira – Medicina UFR TRANSTORNOS SOMATOFORMES INTRODUÇÃO O termo somatoforme deriva da união do radical grego sóma, sómatos (corpo) ao latino forme (à forma de), indicando um amplo espectro de condições cuja principal marca se faz nas manifestações e queixas corporais. Esses quadros envolvem interações mente-soma ainda não totalmente compreendidas pela medicina, colocadas como uma “escrita a decifrar” no corpo. Estão relacionados, desde seu desencadeamento e manutenção, com fatores psíquicos. A introdução da categoria nas classificações internacionais de doenças ocorreu há cerca de 35 anos. Entretanto, eles são reconhecidos e descritos há muito tempo, tendo recebido as mais diversas nôminas: distúrbios de órgãos corporais, distúrbios funcionais, hipocondria, neurastenia, somatização, síndrome de Briquet. Em 1980, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – 3 a edição (DSM-III) introduziu a categoria dos transtornos somatoformes, ampliada nas versões posteriores. A Classificação Internacional de Doenças (CID-10), 1 de 1992, passou a incluíla com sete diferentes especificadores: transtorno de somatização, transtorno somatoforme indiferenciado, transtorno hipocondríaco, disfunção autonômica somatoforme e transtorno doloroso somatoforme persistente (os outros dois são diagnósticos residuais). A existência dessa categoria diagnóstica não deixa de apontar o dualismo mente-corpo, muito presente nas concepções médicas atuais. CONSIDERAÇÕES GERAIS Os transtornos somatoformes caracterizam-se por queixas frequentes de sintomatologia física (durante longo período, geralmente anos) que sugerem a presença de acometimento orgânico, porém sem correlação com nenhuma das doenças descritas nos tratados médicos. Eles tampouco são explicáveis pelos efeitos diretos de substâncias ou por outro transtorno mental (p. ex., transtornos de humor). Mesmo na presença de outras doenças diagnosticadas, não se encontra uma explicação fisiopatológica para toda a sintomatologia referida pelo paciente, o que permite levantar a hipótese de somatização mesmo naqueles com comorbidades clínicas comprovadas. Supõe-se que particularidades do funcionamento do aparelho psíquico (como a parca mobilização de recursos para elaboração e simbolização) estejam implicadas no desenvolvimento dos quadros. O conceito de somatização, mais amplo, não é sinônimo de transtorno somatoforme(termo que corresponde ao grupo como um todo) nem deve ser confundido com o de transtorno de somatização (um dos sete subtipos dos transtornos somatoformes). A somatização pode ser descrita como “a tendência para experienciar e comunicar distúrbios e sintomas somáticos não explicados pelos achados patológicos, atribuílos a doenças físicas e procurar ajuda médica para eles”. Ela pode se manifestar de diversas formas: como modo de expressão subjetivo (variação subjetiva normal), indicando doença orgânica ainda não diagnosticada, como parte de outras doenças psiquiátricas e como um transtorno somatoforme EPIDEMIOLOGIA Um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) em diversos países, conduzido nos serviços de atenção primária, detectou taxas de prevalência global para o transtorno de somatização de 0,9% (variando de 0 a 3,8%, conforme o local), mas que chegavam a 19,7% (variação de 7,6 a 36,8%) quando se utilizava o conceito de transtorno de somatização “expandido” 3 – o que reforça a percepção de que, embora a prevalência dos transtornos somatoformes propriamente ditos seja relativamente baixa, as somatizações são muito frequentes. Esse conceito aproxima-se do diagnóstico de transtorno somatoforme indiferenciado, o que apresenta a maior taxa de prevalência dentro de toda a categoria dos transtornos somatoformes (salientando-se que os transtornos conversivos não estão incluídos nos somatoformes pela CID-10). ABORDAGEM PSICANALÍTICA O campo hoje chamado de psicossomática psicanalítica, que se aproxima dos transtornos somatoformes da CID-10, tem origem nos primeiros escritos de Freud, que datam da última década do século 19. Neles, Freud estabelece uma distinção entre as psiconeuroses (histeria e neurose obsessiva) e as neuroses atuais (neurastenia e neurose de angústia). Ele afirma que a etiologia de ambas se relaciona à sexualidade, o que garante a diferenciação; porém, é o caráter da problemática: nas psiconeuroses, ela remonta a conflitos edificados sobre a sexualidade infantil, já na neurose atual diz respeito ao período contemporâneo ou posterior à maturidade sexual. Giovanna de Freitas Ferreira – Medicina UFR Em Sobre os Fundamentos para Destacar da Neurastenia uma Síndrome Específica Denominada Neurose de Angústia” , Freud esclarece o mecanismo patogênico das neuroses atuais: [...] a neurose de angústia é acompanhada por um decréscimo extremamente acentuado da libido sexual, ou desejo psíquico [...] Todas essas indicações – de que estamos diante de um acúmulo de excitação; de que a angústia, provavelmente correspondente a essa excitação, é de origem somática, de modo que o que se está acumulando é uma excitação somática; e ainda, de que essa excitação é de natureza sexual e acompanhada por um decréscimo da participação psíquica nos processossexuais – todas essas indicações, dizia eu, levam-nos a esperar que o mecanismo da neurose de angústia deva ser buscado em uma deflexão da excitação sexual somática da esfera psíquica e no consequente emprego anormal dessa excitação. Seria como se o indivíduo não conseguisse traduzir a sensação de angústia para a esfera psíquica; ao contrário, ela fica represada no corpo, encontrando escape nas mais diversas manifestações – sejam dores, palpitações, dispneia etc. A Escola Psicossomática de Paris, que tem em Pierre Marty seu expoente, trabalhou o conceito de mentalização – espécie de medida da capacidade (tanto qualitativa quanto quantitativa) de elaboração simbólica da pessoa. Quanto mais mentalizada, menos propensa ela se torna às descargas corporais – a excitação (angústia) pode, dessa maneira, encontrar ressonância nas representações-palavra pré-conscientes. Na teoria de Lacan, importante psicanalista pós-freudiano, a lesão psicossomática é concebida como fenômeno, não constituindo verdadeiramente um sintoma (no sentido estrito do termo) – justamente porque não se produz pelos processos de metáfora e metonímia (deslocamento e condensação, em Freud), característicos do sintoma psiconeurótico. O fenômeno psicossomático é marcado pelo que ele chama de “congelamento” dos significantes, inscrevendo-se em um corpo “sem sentido” – que, não obstante, padece e sofre; como se o fenômeno psicossomático se situasse, assim, no nível do real, e não no do simbólico. QUADRO CLÍNICO E CLASSIFICAÇÃO São descritas, na CID-10, sete diferentes entidades nosográficas dentro do capítulo dos transtornos somatoformes. Aqui, serão apresentados apenas os mais relevantes. Convém assinalar que os transtornos conversivos (uma apresentação particular dos casos de histeria) são classificados em outro capítulo na CID-10, sob a denominação de transtornos dissociativos (ou conversivos) – ao passo que, no DSM-IV, 5 fazem parte dos transtornos somatoformes. TRANSTORNO DE SOMATIZAÇÃO Caracteriza-se por uma história (mais de 2 anos) de múltiplos sintomas físicos, afetando vários sistemas diferentes (mutáveis ao longo do tempo) em uma evolução crônica e flutuante, marcada por inúmeros tratamentos médicos, geralmente ineficazes. Há um grande predomínio de mulheres, e o início do quadro tende a ser precoce (início antes dos 30 anos é um critério diagnóstico no DSM), com prejuízo social importante. Alguns sintomas frequentes são dores pelo corpo, falta de ar, náuseas e vômitos. A presença de sintomas depressivos e ansiosos é relativamente comum. TRANSTORNO SOMATOFORME INDIFERENCIADO Semelhante ao anterior, exceto por não preencher todas as características descritas. Asqueixas podem ocorrer em númerorestrito, por exemplo, ou o tempo de evolução ser curto; ou ainda pode não ocorrer comprometimento social e profissional. TRANSTORNO HIPOCONDRÍACO O paciente é tomado pela interpretação errônea de sensações corporais costumeiras, levando à crença de estar gravemente doente. A atenção é geralmente voltada para um ou dois órgãos ou sistemas. Seu curso é crônico e flutuante. Embora concebido aqui como um transtorno independente, sabe-se que sintomas hipocondríacos existem também em outros quadros psiquiátricos (p. ex., depressão) ou mesmo como um traço de personalidade, presente em maior ou menor grau na população geral. O transtorno dismórfico corporal – preocupação com um defeito corporal imaginário ou pouco relevante – é incluído na CID-10. DISFUNÇÃO AUTONÔMICA SOMATOFORME Caracteriza-se por queixas objetivas decorrentes da excitação do sistema nervoso autônomo (p. ex., palpitações, sudorese e tremores), que cursam com sintomas subjetivos e inespecíficos (p. ex., sensações de dor, aperto) e que levantam preocupação quanto ao acometimento de um órgão ou sistema específico. Por vezes, esses quadros são genérica e pejorativamente chamados de distúrbio neurovegetativo (DNV). TRANSTORNO DOLOROSO SOMATOFORME PERSISTENTE Quadro de dor persistente e intensa, não atribuível a doenças médicas conhecidas. Há relação com conflitos psíquicos, o que se presume estar na origem das queixas de dor. Sua localização é variável de paciente a paciente, sendo frequentes os relatos de cefaleia, lombalgia e dores difusas. Giovanna de Freitas Ferreira – Medicina UFR Alguns tendem a atribuir à dor a fonte de todos seus problemas na vida, e verifica-se uma importante associação com sintomas depressivos. Levando em conta as já mencionadas dificuldades de classificação nesse complexo campo, ambos os manuais – a próxima edição da CID (CID-11) e o já lançado DSM-5, de 2013 – apresentam propostas de mudanças. Assim, no DSM-5, há a categoria transtornos de sintomas somáticos (somatic symptom disorder) e desaparecem os transtornos somatoformes DIAGNÓSTICO O diagnóstico é feito por meio da história clínica do paciente. Não há exames laboratoriais ou de imagem específicos que o confirmem. Existem alguns dados que sugerem um quadro de somatização: queixas múltiplas e inespecíficas de muitos sistemas orgânicos, sintomas desproporcionais aos achados no exame clínico e cronicidade, com relato de múltiplas intervenções (prontuários médicos longos). Grande parte dos pacientes somatizadores busca atendimento em locais não psiquiátricos, recusando com veemência o encaminhamento a serviços de saúde mental. Um ponto marcante é a dificuldade no estabelecimento de vínculo positivo com os profissionais de saúde, decorrente dos constantes questionamentos das assertivas emitidas pelo técnico (principalmente quando relacionadas com a provável inexistência de substrato orgânico detectável). Embora os transtornos somatoformes tenham hoje o status de um grupo diferenciado dos demais, existem outros que dizem respeito aos seus limites e a possíveis sobreposições aos diagnósticos da clínica médica. São os quadros chamados de “funcionais”, nos quais fatores psicológicos parecem desempenhar papel importante. Alguns deles são: fibromialgia, síndrome do intestino irritável e síndrome da fadiga crônica. Quando atendidos por médicos não psiquiatras, os pacientes podem receber diagnósticos como o de fibromialgia, por exemplo – ao passo que, se encaminhados a psiquiatras, serão classificados como somatizadores. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL É imperativo, inicialmente, excluir a possibilidade de doença orgânica. Isso implica a realização de um exame físico cuidadoso e a solicitação criteriosa de exames laboratoriais, que permitam a diferenciação de possíveis condições clínicas dos transtornos somatoformes. Deve ser dada atenção a doenças que se apresentam com quadros inespecíficos, como a esclerose múltipla e o lúpus eritematoso sistêmico (LES). A relevante presença de comorbidades com outros diagnósticos psiquiátricos pode dificultar essa tarefa. Faz-se necessário atentar para os quadros depressivos (em que os sintomas depressivos predominam sobre as queixas somáticas), os transtornos de ansiedade (nos quais, os sintomas somáticos tendem a ser mais restritos aos períodos de ansiedade exacerbada) e os transtornos conversivos (nos quais há também manifestações somáticas, mas limitadas a um ou dois sintomas pseudoneurológicos). O delírio somático (nas psicoses) também precisa ser diferenciado. É caracterizado por sua rigidez e irredutibilidade. É ainda frequentemente observada a existência de transtornos de personalidade. TRATAMENTO A abordagem desse grupo de pacientes tem se mostrado assunto complexo. Evidências demonstram que não existe estratégia única. Há desde propostas que privilegiam um enfoque na figura do médico (importância das avaliações clínicas, uso de medicamentos) até aquelas que se concentram nos cuidados psicológicos dos pacientes (especialmente por meio de psicoterapia). Deve-se considerar a necessidade de uma avaliação global (clínica, psiquiátrica e psicossocial) no início do tratamento, a fim de poder orientar os procedimentos. O médico não especialista tem função essencial nesse campo, haja vista a resistência dos pacientes com o seguimento psiquiátrico. A relação médico-paciente torna-se essencial em muitos casos; é necessário discernimento para evitar múltiplos encaminhamentos e exames desnecessários (Tabela 10.1). Giovanna de Freitas Ferreira – Medicina UFR Orienta-se que sejam programadas consultas regulares, não muito espaçadas, ainda que breves em duração (alguns especialistas sugerem consultas mensais de 15 min). Seriam oportunidades de esclarecimento quanto a possíveis novos sintomas, de tranquilização do paciente sobre as vivências corporais angustiantes e de progressivamente alterar o foco apenas somático das queixas para aspectos emocionais e sociais. A psicoterapia deve ser indicada sempre que haja disponibilidade. Pode ser individual ou de grupo (utilizada em inúmeras instituições). O modelo a ser empregado comporta diferentes linhas; existem pelo menos duas grandes correntes: uma baseada na psicologia experimental (p. ex., a terapia cognitivo-comportamental) e outra na psicanálise. Os antidepressivos têm sido usados na vigência de um transtorno depressivo ou de ansiedade associado. Utilizam-se os diferentes tipos disponíveis, recaindo a escolha sobre o que melhor se adaptar às características de cada paciente e de seu quadro clínico (presença ou não de sintomas de ansiedade, intensidade de sintomatologia depressiva, doenças orgânicas associadas, efeitos colaterais etc.) Como exemplo, algumas opções comumente utilizadas são os inibidores seletivos da recaptação de serotonina (p. ex., fluoxetina 20 a 60 mg/dia, via oral) e os tricíclicos (p. ex., amitriptilina 50 a 200 mg/dia via oral). Os benzodiazepínicos, embora não tenham uma ação direta sobre os sintomas somáticos, são por vezes administrados, procurando-se restringir seu uso a poucas semanas. A associação de psicoterapia e psicofármacos está indicada em muitos casos, sendo o modelo mais empregado nos quadros graves. Os pacientes devem ser incentivados a buscar atividades saudáveis, como exercícios físicos, e estimulados à sociabilização. PROGNÓSTICO É importante não almejar sempre grandes resultados, principalmente quando se lida com somatizadores graves. Nesses casos, pode ser satisfatório mantê-los afastados de pronto socorros e hospitais, além de complicações iatrogênicas. Os transtornos somatoformes correspondem a condições crônicas e os que deles se ocupam precisam estar preparados para contornar as demandas e tensões, muito comuns nesses pacientes. Giovanna de Freitas Ferreira – Medicina UFR
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